Queridos irmãs e irmãos,
Uma questão que preocupou desde logo as primeiras comunidades cristãs, os textos por exemplo de S. Paulo refletem muito isso, foi verdadeiramente o destino dos mortos. Aqueles com quem partilhamos a fé, aqueles com quem partilhamos a vida, no fundo, qual é o seu destino? Se tudo acaba aqui ou se nós podemos acreditar que, para lá das evidências, para lá do que os nossos olhos veem, do que os nossos sentidos contactam há uma outra realidade em Deus?
De facto, no centro da proposta cristã há a fé na ressurreição. Nós somos cristãos porque acreditamos nesta coisa um pouco excêntrica, nesta coisa que espantou os sábios de Atenas. Que é acreditar que a morte não tem a palavra final sobre o destino humano, mas que a nossa vida é sempre vida em Deus. Que nós não nos apagamos como as tochas, como a luz de uma vela, mas que, de uma forma que nós não vemos, que a nossa carne não confirma, nós temos a nossa vida prolongada no mistério de Deus, na vida de Deus. E mais, que aqueles que partiram, verdadeiramente não partiram, continuam presentes em Deus. E que, nesse mistério em Deus, nós experimentamos essa coisa que é a Comunhão dos Santos, essa espécie de roda de mãos dadas em volta do mistério: quando não há ontem, nem hoje, nem amanhã, onde não há tempo, nem espaço, onde nada nos separa nem nada nos afasta mas nós vivemos essa comunhão espiritual em Deus.
É este também o centro da nossa fé. Por isso, nós celebramos este dia com a saudade, com o sentido de orfandade, com o vazio que nada nem ninguém pode completar, que é o vazio daqueles que nós amamos e que deixaram um vestígio inapagável nos nossos corações. Mas, ao mesmo tempo, nós olhamos para essa saudade e para essa memória com uma confiança muito grande, sabendo que estamos presentes em Deus e que em Deus está tudo – está a nossa gratidão, está a nossa esperança, está a nossa alegria – e que o sorriso de Deus é capaz de curar a amargura e o silêncio dos nossos corações. Por isso, para nós a celebração deste dia é um ato de fé, é um ato de confiança, é a certeza de que nada nos pode separar do mistério do amor.
É interessante aquilo que Jesus lembra no Evangelho de S. Mateus que hoje nós lemos. Jesus diz: “Tudo me foi dado por Meu Pai, ninguém conhece o Filho se não o Pai e ninguém conhece o Pai se não o Filho e aquele a quem o Filho O quiser revelar.” Isto não é um enigma de Jesus, é dizer: “Só por dentro do amor é que se conhece, só no interior de uma relação filial é que se sabe verdadeiramente, só experimentando o que é isto de ser filho.” No fundo, nós que somos filhos somos a eternidade de nossos pais porque os prolongamos, porque somos um bocado deles, somos a sua evocação, somos fruto deles. E ao mesmo tempo somos outras pessoas, outros seres, mas percebemos que é o mistério desse amor que nos funda. Aquilo que Jesus está a dizer é que só por dentro desse amor nós podemos entender o segredo da vida, podemos entender os porquês, podemos entender as grandes perguntas, o nascer e o morrer. Lembra aquele poema que o Herberto Hélder escreveu na morte da mãe. Ele perdeu a mãe quando tinha onze anos e, de certa forma, toda a vida na sua poesia há o eco deste luto, desta saudade pela mãe. Ele tem um poema muito conhecido em que fala das mães e é claramente uma homenagem de saudade à sua própria mãe. A dada altura, ele diz estes versos: “Até somente ser possível amar tudo e até somente ser possível reencontrar tudo por dentro do amor.”
É no fundo isto que Jesus nos diz: “Ninguém conhece o Filho se não o Pai, e ninguém conhece o Pai se não o Filho.” Isto é, há uma forma de conhecimento que só o amor nos dá. É essa forma que nós aqui evocamos lembrando o nome, a presença, o rosto e todos os nossos queridos mortos.
Pe. José Tolentino Mendonça, Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos
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