Queridos irmãs e irmãos,
A situação que Paulo refere nesta carta a Timóteo é muito sugestiva: ele está preso mas, no testemunho que ele dá, a Palavra de Deus está livre. Mesmo na prisão a Palavra de Deus continua a atuar, continua a fecundar, continua a respirar, a transbordar da vida de Paulo.
Esta imagem é sugestiva porque vem ao encontro da nossa vida com uma pergunta: O que é que eu faço da Palavra de Deus? Como é que a coloco a render? Será que a Palavra de Deus em mim, a força de Deus, a maravilha do seu Espírito respira amplamente no meu ser através dos meus gestos, das minhas palavras? Ou eu condiciono, ou eu torno mais estreita a ação de Deus? Ou eu muitas vezes bloqueio, impeço, mesmo que não deliberadamente, mas não faço escoar, não faço correr a energia transformadora da bondade de Deus, da sua misericórdia?
É um confronto importante e necessário para cada um de nós. Porque, este exame de consciência é que é capaz de ir à verdade de cada um de nós e, profundamente também, desatar aqueles nós que, tantas vezes, não nos deixam ser expressão de Deus, transparência, imagem e semelhança de Deus.
É interessante o caminho que as leituras que hoje proclamamos nos colocam. Porque é um caminho muito simples. No fundo, deixar Deus falar em nós é uma coisa muito simples. Por vezes o nosso problema é que estamos agarrados às grandes ideias, aos grandes projetos, às coisas espetaculares quando Deus se dá nas coisas pequenas, quando Ele se manifesta naquilo que é até insignificante.
A história deste general sírio Naamã que vai ter com o profeta Eliseu é uma história curiosa. Porque, ele sendo um estrangeiro, um sírio, um importante militar vem ter com um profeta de Israel e o profeta propõe-lhe uma coisa que o deixa desconcertado, diz: “olha, vai banhar-te sete vezes no rio Jordão.” E ele fica indignado e diz: “O quê? Eu tenho rios tão importantes na Síria, vou agora banhar-me num ribeiro, sem dignidade nenhuma, só lama? Que sentido é que tem isso? Vou-me embora.” E depois, em conversa com um servo ele faz um discernimento quando aquele diz: “Se ele te pedisse uma coisa grande não farias? Ele pede-te uma coisa pequena porque é que não a fazes?”
No fundo, o Deus que se revela na nossa vida é o Deus das coisas pequenas. Às vezes ficamos desconcertados, às vezes cega-nos a pequenez de Deus. Deus tem metro e meio, Deus, como diziam os monges budistas, “está num grão de arroz”, Deus está nas pequenas coisas, nos detalhes, no escondido da vida, no banal, naquilo que é mais próximo, naquilo que até nos repugna pensar que Deus possa estar contido naquilo. Porque queremos para Deus, ou achamos que são de Deus, apenas as coisas grandes, omnipotentes, providenciais há, de facto, uma conversão do nosso olhar. Porque é de maneira de ver, de maneira de compreender que se trata verdadeiramente. Quer dizer, nós temos de sentir que Deus chega a nós no pequeno, no pequeno. Chega a nós no banal, naquilo que nós, em princípio, não damos importância. Mas Ele vai tocando à porta do nosso coração, Ele vai-Se manifestando, Ele vai-Se tornando presente se nós quisermos ver. Às vezes nós recusamos e dizemos: “Não, Deus não está aí, só está o chato que tu és. Não, Deus não está aí só está este aborrecimento. Deus não está aí, só está a minha fadiga. Deus não está aí, só está esta coisa atordoante. Deus não está aí, só está a natureza, ou só está um dia de sol ou um dia de chuva. Deus não está aí, Deus está noutro lado.” E a verdade é que Deus está, a verdade é que Deus é em cada uma dessas coisas. Falta-nos um coração simples, um coração confiado para dizer: “Se Deus não está aqui, não está em mais nenhum lugar.”
A verdade é esta, queridos irmãs e irmãos, se Deus não está aqui, nesta hora, neste momento da nossa vida não está em mais nenhum lugar. Qualquer que seja a situação que nós estamos a viver, qualquer que seja o nosso problema, ou a nossa esperança, se Deus não está nele, não está em mais nenhum lugar. Porque Deus é. Por isso, não pode haver interrupções para Deus, não podemos interromper a Sua presença. Ele chega-nos de uma forma abundante nas coisas pequenas. Por isso, a primeira bem-aventurança é: “Bem-aventurados os pobres de espírito.” Isto é, “Bem-aventurados aqueles que têm um coração de pobre porque verão a Deus.” Quem tem um coração pobre, quem tem um coração humilde vê a Deus. Vê a Deus muitas vezes ao longo do seu dia. O que nos acontece mais frequentemente é que passam dias e dias e parece que Deus não nos diz nada, que Deus não nos fala, que Deus está distante. Será um problema de Deus ou será um problema nosso? Por isso, ver Deus nos acontecimentos, naquilo que nos alegra e naquilo que nos contraria, naquilo que nos delicia e naquilo que nos prova. Ver Deus aí e acolhê-Lo com serenidade. Acolhê-Lo sempre como um kairós, como uma oportunidade, como um tempo que se abre para um crescimento, para um “sim” que cada um de nós tem de dizer.
Uma outra atitude que é fundamental no crescimento espiritual é a generosidade. É interessante que quando este general sírio é curado ele vai ter com o profeta para lhe dar um presente. E o profeta diz: “Não, não aceito nada, é pura gratuidade.” Isto é fundamental na nossa vida porque mesmo nas relações que temos uns com os outros, mesmo de amizade, de proximidade, de família, de amor muitas vezes andamos com o taxímetro ligado. Sempre à espera de alguma coisa, de uma retribuição, de uma compensação, de que haja também uma resposta, haja também um gesto e falta-nos aquela gratuidade de dizer: “Não, o grande presente é dar, o grande presente é servir, o grande presente é comunicar Deus, é expressar Deus no milagre da tua vida”. Isso basta, isso basta. Essa atitude de uma generosidade, de uma bondade, de um não procurar a consolação, de um não procurar a paga dos nossos gestos, isso amplia o nosso coração. Porque, às vezes ficamos pequeninos, a contar, a comparar, a medir, a esperar, a retaliar. Porque não deste, ou porque não foi assim, ou porque não foi assado. E perdemos a grande experiência da generosidade, a grande experiência da gratuidade: o dar sem ser por nada, ou dar sem esperar em troca, o estar sem qualquer retribuição. Isso são coisas tão grandes, são coisas que nos fazem tanto bem em termos espirituais, que nos transformam tanto. E é uma aprendizagem na relação com Deus.
Outra atitude é aquela que surge na história que Jesus conta no Evangelho, que Jesus vive no Evangelho. É a história da gratidão. Aqueles todos, dez, foram curados mas só o samaritano, o estrangeiro, é que veio louvar a Deus, é que veio agradecer a Deus. Na nossa vida nós damos tudo por descontado, parece que toda a gente tem o dever de nos amar, tem o dever de nos servir, tem o dever de fazer-nos isto ou fazer-nos aquilo. Porque nós somos, de certa forma, o centro do mundo e colocamo-nos no centro do mundo. Ora, temos que reconhecer que não é assim, reconhecer a profunda dádiva dos outros. Porque, nós não nos damos conta, mas a nossa vida, todos os dias, é embalada por uma rede de dádiva, por uma rede de dádiva que é o que nos sustenta. Dádivas visíveis e invisíveis de pessoas que nem conhecemos, numa cadeia de amor e de serviço que faz caminhar o mundo. E nós precisamos de abrir os olhos para essa rede. E àqueles que estão perto, àqueles que nós conhecemos poder louvar, poder agradecer. E a gratidão é tão importante.
A gratidão é aquilo que permite que haja encontros. Nós sabemos que cada um de nós é fruto dos encontros que teve. E há encontros que nos marcaram, que abriram portas no nosso coração, que nos tornaram maiores do que nós somos, que nos explicaram o mundo de outra forma. Então, porque é que nós passamos o tempo a esbarrar uns nos outros em vez de nos encontrar?
Só há grandes encontros quando há gratidão por aquilo que o outro é. E é uma coisa que precisamos aprender, ganhar consciência, agradecer aquilo que o outro é, agradecer a sua presença, agradecer o seu esforço, agradecer o estar aqui, o estar ao meu lado, agradecer a abertura do seu coração. Porque essa gratidão é a garantia de um encontro em Deus, de um encontro maior, de um encontro em que eu sou sensível àquilo que de maravilhoso pode acontecer na troca, pode acontecer na relação. Se eu me deixo ficar no piloto automático nos contactos mecânicos, perco o espanto, perco a abertura de olhos para aquilo que o outro é. É como se fizéssemos parte da mobília da casa uns dos outros e verdadeiramente já não nos enxergássemos.
Não é por acaso que é um estrangeiro que volta para agradecer a Jesus. Porque um estrangeiro não tem os tiques do freguês, não tem o taticismo daquele que já é um habitué. A verdade é que nos tornamos fregueses e habitués da vida uns dos outros e depois acabamos por explorar os outros.
Esta gratidão e a manifestação da nossa gratidão é fundamental, porque coloca-nos no lugar certo da vida. Temos que transferir esta gratidão e este louvor das nossas relações interpessoais para a nossa relação com Deus. Precisamos que a nossa oração se torne de facto uma oração de louvor, de louvor. Em vez de ser apenas uma oração de súplica, em vez de ser apenas uma oração de intercessão, ser uma oração de louvor, uma oração de gratidão. Louvor por aquilo de belo, de bom, de maravilhoso que Deus é, Deus faz, Deus cria na história. A grande oração de Maria, o seu Magnificat, não é outra coisa se não um canto de louvor. A minha alma cresce para louvar o Senhor porque Ele fez tanto, Ele é tanto no mundo.
No fundo, trata-se disso, queridos irmãs e irmãos, a nossa alma tem de crescer, não podemos ficar mirrados por dentro, presos, como S. Paulo diz. Mas temos de libertar, libertar o nosso coração, libertar a nossa espiritualidade, libertar a nossa relação uns com os outros. Mas, a partir destas atitudes que podem parecer pequenas, que podem parecer coisas de nada, insignificantes, mas no fundo são o lugar onde o essencial da vida, o invisível da vida se decide verdadeiramente.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVIII do Tempo Comum
Clique para ouvir a homilia