Queridos irmãs e irmãos,

Hoje, na grande abundância que a Palavra de Deus nos sugere, eu iria fixar-me nesta segunda leitura da Carta aos Coríntios do apóstolo Paulo. Um texto que de formas diferentes nós vamos encontrando em ocasiões da nossa vida. Muitos esposos escolhem-no para o dia do seu casamento, outros em momentos especiais de inspiração. É sem dúvida uma das páginas mais belas, mais tocantes, mais marcantes do Novo Testamento. E é uma página que vale a pena nós apreendermos, escolhermos no seu sentido mais rico.

Corinto é um lugar importante para o Cristianismo e é um lugar importante na missão de Paulo. Paulo começa por ser um missionário da Igreja de Antioquia. A primeira intenção possivelmente até seria permanecer no espaço da Palestina mas depois a vocação a que ele se sente chamado é levar o Evangelho até aos gentios, isto é, fazer saltar o Cristianismo para lá da cerca do Judaísmo criando uma equivalência entre pagãos e judeus. Na altura era um escândalo terrível e nem os próprios cristãos nem Pedro compreendia bem que pudesse ser assim: que os judeus tivessem um estatuto consolidado na história da revelação. E agora aparecia este convertido chamado Paulo a dizer que o Evangelho era para todos, era universal e todos tinham o mesmo direito a receber o Evangelho.

Paulo, um bocadinho de forma solitária e em rotura com a Igreja de Jerusalém, vai para as missões. Isto é, vai para longe. E longe começa o anúncio, começa a fundar comunidades anunciando a Palavra de Deus. Ele começa a Norte, começa em Tessalónica. Em Tessalónica ele começa a pregar numa sinagoga, depois é expulso da sinagoga, depois vai falar nas praças, nas casas das famílias. Começa ali um fermento, uma comunidade. Os judeus veem em Paulo uma ameaça, denunciam-no às autoridades e Paulo é expulso da cidade e foge.

Então começa a descer de Tessalónica e passa em Atenas. O próprio Paulo não nos dá testemunho dessa passagem por Atenas, mas nós temos a descrição nos Atos dos Apóstolos em que Paulo fala no Areópago de Atenas, aos filósofos de Atenas. E ao que parece, ao que diz S. Lucas, foi um desastre completo. Porque os filósofos ouviram Paulo com curiosidade, com interesse, mas quando Paulo lhes falou da ressurreição dos mortos eles disseram: “Olha, nós havemos de ouvir-te outro dia.” E viraram-lhe costas. De maneira que Paulo percebeu que o seu projeto de evangelização não ia ser fácil. E ele desce um pouco mais a sul à cidade de Corinto. Quando Paulo entra em Corinto, ele próprio diz nesta carta que ficou: “cheio de temor e tremor”. Porque Corinto era uma cidade enorme, era uma metrópole, tinha o templo a Afrodite, tinha o teatro, era uma cidade onde havia a presença da autoridade de um prefeito romano, era uma cidade fortíssima no mundo helenístico. Paulo era um viajante, era um artesão, um fabricante de tendas que trazia no coração o Evangelho de Jesus. Mas o que é que ele iria fazer naquela cidade? A verdade é que Paulo ali demora-se 18 meses na sua primeira estadia. Vai trabalhando. Primeiro vai procurar os do seu ofício, os fabricantes de tendas, encontra ali um acolhimento e a partir dali vai trabalhando e pregando, e missionando, e vai à sinagoga, e vai falar num teatro e aos poucos nasce uma comunidade forte em Corinto.

A comunidade é forte, mas precisa de fazer o seu caminho. Imediatamente os Corintos recebem o Evangelho que Paulo lhes transmite mas recebem-no muito com a cabeça de um grego. E cada um deles, no fundo, procura sobretudo dons espirituais. Na expectativa dos Coríntios, era um Cristianismo muito espetacular. Cada um deles queria um dom que os diferenciasse dos outros gregos, dos crentes das outras religiões.

Era uma comunidade mista, mista do ponto de vista também social. Havia pessoas ricas, nós sabemos hoje, na sociologia da comunidade de Corinto. Por exemplo, o tesoureiro da cidade de Corinto converteu-se ao Cristianismo e teve um papel importante, Paulo ficou hospedado em casa dele. Mas ao mesmo tempo havia os proletários, os trabalhadores do porto (porque Corinto era uma cidade portuária), os mais pobres, e havia judeus, e gregos e gentios. Era assim uma mistura – tal como hoje, o Cristianismo era misto, heterogéneo na sua origem, não era de uma classe social, era esta abrangência. E nós sabemos que isso gera tensões.

Porquê? Porque a dada altura Paulo encontra em Corinto isto: havia uns cristãos de primeira e uns cristãos de segunda. Por exemplo, a Eucaristia era celebrada em casa dos cristãos. E tinha de ser gente que tinha uma casa e que tinha uma casa grande para acolher os outros. Primeiro, a Eucaristia começava com uma espécie de ágape fraterno de comidas, de relação, de amizade. Eles primeiro recebiam a sua clientela, a sua parentela e só depois no fim abriam a porta para o ritual, para o sacramento para os mais pobres, criando assim uma espécie de diferença na própria comunidade.

Quer dizer, os desafios que a comunidade de Corinto lança a Paulo são enormes. Paulo escreve-lhes quando está em Éfeso, que fica do outro lado do Mar Egeu, Paulo vai recebendo notícias desta comunidade depois de a ter deixado e quando percebe que há muitos problemas escreve a primeira Carta aos Coríntios. É uma carta para nós muito importante, continua a ser um grande alimento para as nossas vidas.

Mas o coração da Carta aos Coríntios é, de facto, este capítulo 13. Neste capítulo 13, Paulo começa por dizer isto: “Eu vou mostrar-vos um caminho que excede todos os caminhos.“ Um caminho e a palavra : um caminho hyperbolos, um caminho hiperbólico, um caminho maior. Nós estamos no curso da filosofia e começamos pelos gregos. Se há alguma coisa que motivava a sociedade grega era que todos os filósofos, todos os pensadores queriam apresentar um caminho, queriam apresentar um horizonte de vida, de sabedoria. E Paulo também se propõe fazer aquilo que todos os filósofos gregos fizeram: foi apresentar um caminho. Mas qual é o caminho que Paulo apresenta?

Reparem, quando Paulo escreve, Paulo escreve em grego e tem de traduzir a experiência cristã numa linguagem que é a linguagem grega, a linguagem que as pessoas falam, o grego koiné que era o inglês da altura. Paulo vai ter de escolher muito bem as palavras para dizer as coisas novas que ele apreende de Cristo. Paulo, para falar do amor, também tem de escolher palavras. E para dizer “amor”, para expressar a realidade do amor havia três palavras no léxico grego da altura. As mais usadas eram: philia, eros e ágape.  Philia é o amor dos amigos, é o amor daqueles que se olham nos olhos, que são iguais, em que há uma equivalência e é um amor na diferenciação. Eu sou próximo do meu amigo e sou diferente do meu amigo, temos vidas paralelas que se encontram, que se respeitam, que se estimulam, que se querem bem mas são vidas paralelas, mas numa grande proximidade, numa grande afinidade de coração. Era uma palavra que havia, a palavra amizade: philia.

Havia o termo eros que era talvez o termo mais importante para dizer o amor e nós permanecemos com ele falando do amor erótico, do eros. O eros é a relação dos enamorados, dos amantes, que em grande medida é uma relação fusional. Na sociedade grega não era propriamente uma relação de paridade porque a mulher não era cidadã, não tinha direitos políticos. Mas é uma relação fusional, é uma relação com a profundidade que nós sabemos.

Mas havia uma outra palavra menos usada, e é essa palavra que Paulo vai buscar para dizer o caminho de sabedoria que ele aponta, e essa palavra é ágape. Ágape quer dizer amor, quer dizer caridade. Nós traduzimos dizendo: “A caridade é paciente, a caridade é benigna, se eu não tiver caridade nada sou.” Mas como é que se pode traduzir a palavra ágape? Podemos traduzir por caridade, é verdade, e podemos traduzir por amor, é verdade. Mas não é uma caridade qualquer e não é um amor qualquer. O que é que Paulo nos diz com esta palavra?

Quando Paulo diz ágape ele está a pensar no amor desinteressado. O que é o amor agápico? O que é este amor? É o amor que Deus tem por nós, é um amor assimétrico. Isto é, é um amor que eu dou ao outro sem esperar nada em troca. No amor de amizade eu espero em troca, porque os amigos são correspondidos, no amor dos enamorados eles esperam algo em troca, porque amam e são amados. Mas neste amor, neste amor caridade, neste amor agápico nós damos sem querer nada em troca. É um amor completamente desinteressado. Nós podemos até traduzir assim:” Se eu não amar por amar, nada sou.”

Então, o que é que Paulo aponta? Aponta isto: “Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se eu não amar de forma desinteressada nada sou.” Isto é: se eu não amar simplesmente, se eu não amar por amar, nada sou. Ainda que eu tenha o dom da profecia, o dom da ciência, o dom de falar línguas, o dom da eloquência, se eu não amar por amar, se eu não tiver este amor desinteressado, este amor que não espera nada em troca, este amor que se consola apenas amando, eu nada sou. E depois constrói este texto admirável com verbos, mostrando que este amor é sobretudo uma prática, é sobretudo um conjunto de ações. “Paciente, benigno, não é invejoso, não é altivo, não é inconveniente, não procura o próprio interesse, não se irrita, não guarda ressentimento, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”

Paulo apresenta este amor como aquilo que não vai desaparecer nunca. A ciência vai desparecer, e Paulo diz uma coisa temerosa, diz uma coisa assombrosa, diz: “A própria fé vai desaparecer.” Isto é, a própria fé pode fracassar, pode desfalecer. Mas há uma coisa que nunca passará: é esta espécie de amor.

Queridos irmãs e irmãos, porquê esta grande viagem até Corinto? Para dizer que se há alguma coisa que nos define como cristãos não é apenas a fé, é também o amor. Nós somos crentes em Deus por causa de uma fé mas também por causa de uma certa qualidade de amor que cada um é chamado a descobrir, e que para Paulo era fundamental que os Coríntios descobrissem. Eles queriam descobrir o dom das línguas e os mistérios, e isto, e aquilo, e mais este detalhe de Deus e mais aquilo. E Paulo diz:” Meus amigos, o caminho mais importante, aquilo que temos de descobrir é uma determinada qualidade de amor que passa por amar sem porquê, passa por amar sem retorno, passa por amar sem esperar nada, passa por amar por amar simplesmente, e encontrar aí a sua alegria e encontrar aí o sentido da sua vida, e encontrar aí a sua verdade. Isto é de uma exigência enorme para nós, queridos irmãos. Porque nós amamos aqueles que nos amam. Mas que mérito temos? Nós amamos porque sentimos o impulso de amar, porque é bom para nós amar esta pessoa, aquela pessoa. O riso de um amigo, o sorriso de um amigo é a coisa mais bela; a presença dos que nos amam, o abraço dos enamorados é a plenitude. É verdade, é verdade. Mas há um outro amor. E os cristãos falam também de um outro amor.

Não é um amor que nega os outros amores. Não, afirma-os. Mas a par desses amores falam de um outro amor, é este amor ágápico, é este amor que nós chamamos caritas, este amor que nós chamamos caridade.

Hoje a palavra caridade é uma palavra difícil porque apanha pancada de todo o lado. Não queremos caridadezinha. A caridade tornou-se muitas vezes uma caricatura daquilo que ela é, é uma espécie de descargo de consciência e às vezes não quer dizer nada. Ora, não é isso. Nós cristãos somos chamados à descoberta de um outro amor, e este outro amor é amar por amar. É um amor que nos configura ao coração de Deus, é pensarmos na forma como Deus ama. Como é que Deus ama os meus amigos e os meus inimigos? Como é que Deus ama os que eu conheço e os que eu não conheço? Como é que Deus ama aqueles que eu encontro uma única vez na vida e nunca mais vou ver? Como é que Deus ama aqueles que me incomodam? Como é que Deus ama? E eu ser capaz de um amor assim, ser capaz de um amor divino. E é este o caminho da felicidade, diz Paulo, é esta a maneira de tocarmos a eternidade.

Queridos irmãs e irmãos, acolhamos o desafio de Paulo: “Vou mostrar-vos um caminho que excede tudo. Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se eu não amar desta maneira eu nada sou.” Que nós sintamos o desafio muito grande de descobrir que amor é este, que amor divino é este. Porque pode acontecer que tenhamos até muita idade e muito caminho, e muito amor, e muito amado, e verdadeiramente nunca amámos assim, desta maneira. E nós sabemos que aqui a idade muitas vezes é um handicap, porque pensamos ”a idade aumenta a minha capacidade de amar” – às vezes diminui, às vezes bloqueia a capacidade de amar. Nós encontramos nos jovens, muitas vezes, uma capacidade de amar e de entrega muito, muito maior do que aquela do calculismo que depois numa idade mais adulta começa a prender o nosso coração.

Acolhamos o desafio que, através de Paulo, Deus nos faz da descoberta de um amor maior, de um amor por amor, de um amor divino e pratiquemo-lo, que é no fundo esse o desafio que Paulo faz: praticar este amor todos os dias na nossa vida.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Tempo Comum

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