Queridos irmãs e irmãos

Celebramos hoje a solenidade da Ascensão de Jesus. Como se lê no livro dos Atos dos Apóstolos, há um momento em que Jesus nos é tirado do nosso olhar, como que uma nuvem agora oculta a visão do próprio Jesus. E os Discípulos têm de aprender uma coisa que até aí não sabiam, que é viver a presença de Jesus na sua ausência. Viver em Jesus não O vendo, não O encontrando, não contando com Ele, com a Sua presença física e visual no dia a dia.

Mas entretanto um processo havia acontecido, e é esse processo que também a nós nos funda como cristãos, também a nós nos sedimenta a nossa identidade cristã. E que nós podemos, de certa forma, comparar àquilo acontece na vida de cada um de nós em relação aos nossos pais. Essas figuras determinantes da nossa vida interior, daquilo que cada um de nós é, da confiança com que investimos ou não na própria vida. E o que aconteceu com os nossos pais numa idade muito tenra, numa idade de colo, foi uma internalização. Nós passamos a contar com os nossos pais não só fora de nós mas dentro de nós. Essa presença dentro de nós passou a ser fortalecedora e, a um dado momento, como que passou a ser suficiente para que começássemos a viver autonomamente. É claro que uma criança de colo precisa de muito pai e de muita mãe, e precisamos sempre, mas precisam daquela presença, daquela forma de presença. Por isso os miúdos não passam de colo para colo, e precisam de estar de mão dada e precisam ver, precisam mostrar e olhar. E, aos poucos, não é que se desliguem ou amem menos os pais, mas os pais passam para dentro deles a palavra, a presença. Eles sabem que podem ir agora ao fim do mundo e que os pais estão dentro deles, que essa ligação não é ameaçada pela distância ou pela ausência.

Esse processo, que é o processo fundador da autonomia de cada um de nós, também é, de certa forma, o processo que acontece no crescimento da vida cristã. Os Discípulos começaram com Jesus, partilhando 24 horas por dia a sua existência com Ele, comeram e beberam com Ele, ouviram a Sua palavra, escutaram os Seus silêncios. E, agora, Jesus está-lhes oculto por uma nuvem. Mas isso não quer dizer que eles perderam Jesus. A Igreja não perdeu Jesus na Páscoa. Nós ganhamos Jesus de outra forma, ganhámos a Sua presença em nós.

Por isso é tão importante aquilo que S. Paulo nos diz: “Que o Senhor ilumine os olhos do vosso coração para compreenderdes a esperança a que sois chamados.” Precisamos olhar com os olhos do coração para compreender a qualidade e a dimensão da esperança a que cada um de nós é chamado.
Em vez de sentirmos que a nossa vida se desmobiliza, pelo contrário, a Igreja sente neste tempo pascal que esta é a nossa hora, chegou a nossa vez, que agora temos de ser nós a assumir a beleza e a radicalidade da proposta cristã. Por isso este é o momento do envio, este é o momento do mandato em missão: “Ide por todo o mundo e anunciai.”

É muito bela a fórmula que S. Marcos utiliza: “E o Senhor cooperava com eles.” O Senhor coopera connosco. Isto é: Deus vem em nosso auxílio, Deus socorre-nos, Deus ampara-nos para esta missão de sermos agora nós os protagonistas, os atores deste Evangelho a anunciar ao mundo. Nós podemos contar com essa ajuda efetiva de Deus para a nossa vida.

Queridos irmãs e irmãos, muitas vezes a ausência de Deus, o silêncio de Deus é um embaraço para nós. Muitas vezes sentimos que Ele nos descorçoa, nos faz cair os braços, nos desalenta, não nos dá a força. Ora, a Igreja que surge que é formada na Páscoa, pelo contrário, é uma Igreja mobilizada, é uma Igreja que sabe interpretar a ausência e o silêncio como lugares a preencher com uma comprometida presença da nossa parte. Por isso este tempo pascal, que é um tempo privilegiado para a construção da própria Igreja e para a consciência que cada um de nós é chamado a ter, da sua identidade, da sua missão; este é um tempo para mobilizar, este é um tempo para sentir, este é o tempo para descobrir, este é um tempo para compreender. Compreender, descobrir, mobilizar o quê? Perceber que agora sou eu, que em Cristo agora é a minha vez de ser.

Porque Cristo não nos veio substituir, Cristo veio motivar-nos, Cristo veio possibilitar-nos, Cristo veio dar-nos a capacidade de, mas temos de ser nós a lançar-nos nesta experiência que é sobretudo uma arte de ser, uma arte de ser.

O Cristianismo não é apenas uma verdade que nós mantemos na história. É antes de tudo uma cultura, um modo de ser, um conjunto de atitudes, um conjunto de escolhas que fazem realmente a diferença na nossa vida. Nós, verdadeiramente, não nos sentimos dignos do nome de cristãos enquanto o ser cristãos na nossa vida não faz a diferença. Por sermos cristãos acontecem determinadas coisas na nossa vida. Há passos, há rumos, há trilhos que nós fazemos em nome da nossa fé.

É claro que isto é um trabalho interior de grande vigilância, é um trabalho paciente que acontece. Sto. Agostinho lembrava: “Nós não nascemos cristãos, nós tornamo-nos cristãos.” Muitas vezes, com surpresa, nós cristãos de há muitas décadas descobrimos que não somos cristãos, ou que naquela circunstância precisa não fomos cristãos, ou que naquela reação, naquele modo de pensar, naquele juízo nós não fomos cristãos. Mas, de certa forma, não temos que nos espantar porque o Cristianismo não é natural em nós, não é natural. É um tornar-se, é uma transformação, é uma metamorfose, é uma mudança que tem de acontecer em nós.

Por isso, nós precisamos desta ligação a Cristo, precisamos da força da oração. Sem oração nós não conseguimos. Precisamos de reencontrar a força e o sentido da oração, que é o grande estímulo neste processo de transformação em que nós estamos. Por isso, um cristão não navega com o piloto automático, isso não existe. Um cristão tem de estar sempre atento, e ele com as mãos no leme, sabendo que Deus coopera com ele. Mas sabendo que cada passo, cada gesto precisa ser levado a Cristo. Temos que levar a nossa vida a Cristo para que Cristo a ilumine, para que Ele nos revele aquilo que a nossa vida é e o que ela pode ser.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Ascensão do Senhor

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