Queridos irmãos

Hoje, a primeira leitura é retirada do livro de Job. Sabemos que o livro de Job representa um momento muito importante na revelação bíblica, porque Job representa o homem, a experiência humana, a vida, também como lugar de dúvida, também como lugar de pergunta (e ardente pergunta), também como lugar de interrogação. Job é o homem inconsolável, é o homem que diz: “As respostas religiosas do meu tempo não me servem. Aquilo que a teologia diz não é suficiente. Eu quero falar face a face com Deus, eu quero colocar perguntas a Deus.” O que é fascinante é que Deus aceita este diálogo com Job, este diálogo sem rede, e Job fala com Deus. O livro de Job é quase um livro ateu, quase um livro agnóstico, porque é o homem em carne viva, no seu sofrimento, na sua angústia, que procura um sentido, que procura um significado.

No livro de Job todos nós estamos representados, crentes e não-crentes. Todos nós fazemos nossa a dor, a pergunta, o espinho na carne que Job tem. Todos nós sentimos a dificuldade das palavras de ocasião, circunstanciais, das receitas. E há um momento em que sentimos que nada nos consola se não colocarmos a nossa nudez, a nossa verdade diante de Deus, e é isso que Job faz, e é isso que Deus aceita. Repito, que o protesto de Job seja para nós também uma catequese, porque tantas vezes encontramos mulheres e homens ao nosso lado que vivem a sua existência como uma procura, como uma pergunta. Nós temos a fé, mas a fé não é um sofá, a fé não é um calar todas as questões. Nós sentimo-nos irmãos e irmãs de todas as mulheres e de todos os homens que, no fundo, colocam a grande questão do sentido. A dor maior, o sofrimento maior que cada um de nós pode passar não são as dores físicas; essas doem-nos muito, massacram-nos, torturam-nos, mas esse não é o sofrimento maior. O sofrimento maior é o de não encontrar sentido para a vida, não encontrar significado naquilo que fazemos, nos nossos ritmos; não encontrar um sentido para nos levantarmos da cama, para fazer, para amar, para sonhar. Sentir que, no fundo, a vida é uma paixão inútil – esse é o grande sofrimento humano. E é com esse sofrimento que Jesus vem dialogar e é com esse sofrimento que Jesus nos ensina a dialogar.

Quando preparava as leituras, fiquei muito tocado pelo Salmo 146, e sobretudo por esta estrofe, a estrofe segunda, que diz isto: “ O Senhor sarou os corações dilacerados e ligou as suas feridas.
Fixou o número das estrelas e deu a cada uma o seu nome.” Sensibilizou-me muito esta coisa, um bocado espantosa, que o poeta do salmo faz aqui, que é: está a falar de feridas e de repente começa a falar de estrelas. E diz: O Senhor cura o nosso coração dilacerado, liga, ata as nossas feridas, mas também é o Senhor que cuida das estrelas. Então a prece, a oração, liga a dor, a nossa pequena dor, a dor vivida nesta escala íntima, só nossa, que nos parece (quando olhamos para o universo sentimo-nos como um grãozinho de poeira) como um nada, um quase nada. O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas, à imensidão, ao infinito, ao incontável, àquilo que nos deslumbra, àquilo que está tão alto desta terra onde às vezes nos sentimos prostrados, o Senhor faz essa ligação. E como é que Ele faz essa ligação? Tocando-nos, chamando-nos pelo nome, colocando-nos em pé. Quando o Senhor entra na casa da sogra de Simão Pedro e ouve dizer que ela está doente Ele vai, dá-lhe a mão e levanta-a, e ela fica restabelecida. E sentado na porta da casa, com a cidade toda reunida à sua beira, trazendo todos os doentes, o Senhor toca cada um deles, toca as vidas de cada um deles. E como é que Ele os cura? Cura-os também ligando a sua vida a uma dimensão maior, dizendo: “A vida não é só isto, a vida não é só o que tu vives, a vida não é só a nossa dor, a vida é um para lá, um para além, a vida é um passar, a vida é um atirar-se mais para longe, a vida é um encontrar sentido nas estrelas.”

Nós não somos a solução para a nossa vida, não somos a resposta para a nossa vida. Se calhar nós seremos sempre como Job, não encontraremos resposta. Mas este gesto de Jesus, de nos levantar, de nos atirar o olhar mais para longe, de ligar o presente ao futuro, de ligar o humano ao divino, esta passagem, que é uma passagem pascal, é verdadeiramente uma passagem que verdadeiramente nos salva. Sintamo-nos, por isso, queridos irmãs e irmãos, tocados por Jesus, sintamos que Ele toca a nossa mão e que Ele nos levanta. Sintamos que isto em nós que não tem resposta, isto que em nós é noite e sede, isto que em nós é procura e fadiga, isto que em nós é um exercício, às vezes exasperado, de espera, isto em nós que é uma capacidade de rezar ou uma incapacidade de rezar – o Senhor toca, toca nisso.
O Senhor é capaz de fazer disso uma história de esperança, uma história de sentido, uma história de vida. Jesus, quando a cidade está toda reunida à sua volta, não fica ali, os discípulos de manhã procuram e não O encontram, e Jesus diz: “Não podemos ficar só num lugar, temos de ir mais longe, temos de atirar o nosso olhar mais para longe e, no fundo, há um ensinamento tão forte nestas palavras de Jesus. Nós temos de sair da nossa zona de conforto também, e temos de experimentar criar vida, criar relação, criar encontro, noutras zonas, noutros territórios, fazendo outras experiências. Às vezes fazemos outras coisas demasiado cedo e sentimos que tudo acabou, que tudo está feito, que agora é só aqui, e o Senhor pede-nos sempre um mais além, pede-nos sempre para sair de nós.

Hoje, por decisão do Papa Francisco, é a primeira jornada de oração e de consciência, a primeira jornada mundial contra o tráfico humano, as várias formas de tráfico humano. Nós sabemos também em Portugal que um grande número de pessoas está sem os seus direitos, sem as suas condições: são vendidas no seu trabalho, são vendidas no seu corpo através da prostituição; sabemos que há redes terríveis ao nosso lado, que nós só não vemos porque não queremos, que nós não vemos só porque não queremos. São redes de estupro, são redes de atropelamento da dignidade, da dignidade humana. Ganhar consciência, também da dificuldade, da pobreza, da miséria, do sofrimento dos outros. E isso é também uma missão que o Senhor Jesus nos dá.
E
u estive em Roma esta semana – e hei de falar do encontro do Pontifício Conselho para a Cultura que foi sobre a mulher, as culturas femininas e também sobre o lugar da mulher na Igreja. Nesse encontro, uma das oradoras, que deu um belíssimo testemunho, foi uma freira. Esta mulher, assim uma mulher forte, já quase com os seus oitenta anos, mas com uma capacidade profética imensa, em Itália é responsável pelas Suore di Strada, que são freiras da estrada: são freiras, são mulheres que se dedicam a ajudar outras mulheres, sobretudo as que estão nas redes de prostituição. Os números que ela refere são números impressionantes. Em Itália, por exemplo, ela diz que há dez milhões de prestações sexuais por mês. E a pergunta que ela faz é: “O que é que havemos de pensar dos nossos pais, dos nossos maridos, dos nossos filhos, dos nossos amigos, dos nossos companheiros de trabalho e de nós próprios se alimentamos este comércio, esta rede que acaba por ser um atentado tão devastador à vida humana?” Ela deu um testemunho fortíssimo e a dada altura ela começou a dizer: “E há paróquias, há comunidades cristãs que se reúnem e que estão mesmo ao lado de zonas das cidades europeias onde essas coisas acontecem e não fazem nada, não olham para essas realidades.” E eu enfiei o barrete e disse: “Ai Jesus! Esta mulher vem para me destruir!” E de facto, a gente está aqui neste coração da cidade e o que é que a gente faz para o que está para lá das paredes?

Uma iniciativa desta jornada de oração contra o tráfico humano é acender uma luz: há um mapa do mundo e as pessoas de cada país inscrevem-se e acendem uma luz, e o mapa do país, que está branco, torna-se vermelho, como se houvesse um incêndio de esperança naquele país. No fim da reunião eu fui falar com ela, senti-me muito interpelado, e disse: “Olhe, o que é que eu posso fazer?” E ela disse: “Podes começar por fazer uma coisa, podes já acender uma luz no teu país e podes fazer com que esta semana o teu país fique completamente aceso.” Isto é a consciência.

No site da capela (www.capeladorato.org), está uma mensagem e nós podemos entrar no site desta jornada que é slavesnomore.it , inscrevermo-nos, e acender em Portugal mais uma luz. Neste momento há 47 luzes, eu gostava de ver se no próximo domingo éramos pelo menos duzentas, duzentas luzes, e cada luz quer dizer: alguém que pensou um minuto naquilo, alguém que pensou um minuto nesta situação.
Vamos acender esta luz e deixar que o Senhor nos inquiete. O Senhor tem de nos inquietar, tem de nos colocar o coração a arder, a querer mais, a querer mais e em todas as idades – temos aqui pessoas seniores, temos jovens,… Jesus tem de nos colocar o coração a arder e dizer: “O que é que eu posso fazer? O que é que daqui vai sair?”

Que o Espírito Santo fecunde, fecunde o nosso coração e nos dê esta capacidade de atenção, de atenção ao outro, de atenção à vida. Porque, no fundo, a questão do sentido, isto de ligar a ferida, a nossa ferida, às estrelas, também passa pela nossa capacidade de doação, pela nossa capacidade de entrega, e sentirmos que a nossa vida encontra o seu sentido também quando ela se apaixona, se enamora por uma causa, por uma razão que é maior do que nós próprios, maior do que o nosso pequeno conforto, do que a nossa tarefa, do que o nosso quintal. Quando nos apaixonamos por uma coisa maior, então a vida também ganha outra respiração, ganha outra luz. Acendamos uma luz, esta luz que o Espírito traz aos nossos corações.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V do Tempo Comum

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