Queridos irmãs e irmãos

Ontem estava num jantar, numa mesa de amigos e, a dada altura, o tema era a parábola dos talentos, que para alguns que estavam ali constituía uma das palavras de Jesus mais enigmáticas: como é que se vai castigar aquele homem que, tendo recebido menos talentos que os outros, foi enterrar o seu talento na terra para assim ter garantido alguma coisa para dar ao senhor quando ele regressasse? E ele acabou por ser castigado, e Deus, o senhor que representa Deus na parábola, retirou o talento dele e foi dar àquele que tinha mais talentos. É uma parábola estranhíssima.

Há muitas palavras de Jesus assim, que nós não conseguimos resolver no nosso coração e que constituem uma pergunta, um espinho na carne, uma interrogação, uma dificuldade, um obstáculo. E caminhamos com essa palavra vida fora, todos nós. Jesus é uma pergunta para todos. E é importante fazer um caminho também com a dificuldade, porque Jesus não é fácil. Nós não domesticamos o Evangelho, esta é uma palavra que nos sacode, que nos desafia. Temos uma grande adesão de coração mas continuamos a colocar perguntas, porque nós, mulheres e homens, somos assim. A fé não é contra a nossa razão, mas a fé é um caminho que fazemos às apalpadelas, mas também com silogismos, mas também com raciocínios, mas também com pergunta e resposta.

No fundo, qual é o problema do homem que recebeu só um talento? A parábola é muito realista, porque conta a diversidade do mundo: não há duas coisas iguais, não há duas pessoas iguais, não há dois talentos iguais, cada um recebeu porções diferentes. Basta olharmos para nós próprios e uns para os outros e perceber que é assim a vida. A questão é: o que é que cada um de nós faz com aquilo que recebeu? Quais são as condições que nos levam a fazer render, a apostar, a arriscar, ou a prender, a esconder, a ficar travado, a ficar enrolado no nosso medo, na nossa insegurança?

Quando lemos a parábola dos talentos, ouvimos o raciocínio, a voz interior, do homem que vai esconder o seu talento na terra. E ele diz: “Eu tenho medo do meu senhor, porque ele quer, ele tem expetativa de coisas que não faz e quer retirar onde não semeou. Sei que ele é um homem severo, por isso vou esconder o que ele me deu para, quando ele me pedir, eu lhe entregar intacto.”

Qual é o problema deste homem? Porque é que ele não aposta? Porque é que ele não corre o risco? Porque ele tem medo, e porque ele sabe que o seu senhor é um homem severo, que ele não entende, na sua lógica, no seu modo de atuar. Esta compreensão que ele tem do senhor trava, bloqueia, amarra a sua vida. Podendo fazer do seu talento outros talentos, outras coisas, ele acaba por enterrar, antecipadamente, o seu talento, atirar a toalha ao chão, dizer “não jogo, não quero, prefiro não fazer, prefiro não ser”.

O que é que acontece no Batismo de Jesus? De certa forma, é a antiatitude deste homem da parábola dos talentos. É interessante Jesus ser batizado por João Batista. Jesus desce lá de Nazaré, que fica um pouco mais a norte, e vem para esta zona do deserto, perto de Jerusalém, mas onde se constrói, de certa forma, uma religião alternativa, reformista em relação a Jerusalém. João Batista é um pregador. Está no deserto, é alguém que quer renovar Israel, reconduzindo a um espírito original. O que é interessante é que Jesus vem para, de certa forma, se ligar a este movimento.

O que é que nós percebemos deste jovem chamado Jesus? Que Ele tem inquietação no seu coração, que Ele tem desejo de mais, que Ele quer outra coisa da vida, que Ele não se satisfaz. Nesta ligação de Jesus ao reformismo de João Batista nós percebemos um coração tão parecido com o nosso, na sua intranquilidade, no seu “ainda não basta, não é só isto, tem de haver outra coisa”. As perguntas que habitam o nosso coração são as perguntas que habitam o coração de Jesus.

Ele vem, como vêm tantos que o Evangelho descreve, para ouvir a pregação de João Batista e fazer-se batizar por ele. Mas quando Ele sobe da água, os céus abrem-se e Ele escuta uma voz. Quer dizer, Jesus tem a compreensão de si mesmo, do que Ele é. Porque, nas grandes batalhas da nossa vida, as verdadeiras são aquelas que nos dão a compreensão do que nós somos. Não é uma ideologia, não é lutar por uma coisa fora de nós, mas é uma coisa total, integrada. O que é que eu sou no meio disto tudo? O que faço aqui? Porque é que eu estou aqui? Para onde é que eu caminho? O que é que me move verdadeiramente?

Aquele momento da juventude de Jesus é um momento chave em que Ele tem a compreensão do seu mundo interior, do seu mundo interno, daquilo que Ele transporta. O Evangelho de Marcos mostra-nos esse mundo e, com surpresa, nós ouvimos a voz do Pai dentro do coração de Jesus. E a voz do Pai diz: “Tu és o meu filho muito amado, em ti Eu coloco todo o meu amor.”

Queridos irmãs e irmãos:

A grande diferença da vida é que voz é que nós ouvimos no nosso coração. Que voz é que nós ouvimos? Porque podemos viver a ouvir a voz do Senhor severo, daquele que tem expetativas desmesuradas em relação a nós, aquele cujo fantasma nos esmaga, nos trava, nos bloqueia. E a única coisa que fazemos é dizer: “Bem, deixa-me lá esconder isto para dar o que Ele me deu e está tudo resolvido e não me meto em problemas.” E há outra coisa completamente diferente que é cada um de nós sentir, previamente, que isto não tem a ver com méritos, com virtudes, com recompensas. Tem cada um de nós de ouvir previamente no seu coração a voz de Deus que diz: “Tu és a minha filha muito amada, tu és o meu filho muito amado, em ti coloco o meu amor.”

Então, o nosso ponto de partida não é o medo, mas é a confiança. O nosso ponto de partida não é: “O que é que eu posso fazer para que Ele não me caia em cima, o que é que eu posso fazer para que Ele não me julgue, o que é que eu posso fazer para que Ele não me destrua”. Não é a imagem de um Deus insaciável, que encontra em nós sempre coisas erradas – porque Deus olha para nós e pode encontrar sempre coisas erradas. Esta imagem é uma imagem que nos destrói completamente, é uma imagem de Deus que nos trava, que nos prende, nos captura.

Há uma imagem de Deus amor, que está dentro de nós e nos diz: “Tu és o meu filho, tu és a minha filha. Amados.” E, se ouvirmos esta voz no nosso coração, a nossa vida será outra, será uma vida semelhante à vida de Jesus.

Queridos irmãs e irmãos:

Hoje celebramos o Batismo de Jesus e, no Batismo de Jesus, celebramos o nosso próprio batismo. E o que é o Batismo de Jesus? É a compreensão da vida, do ponto de partida da vida. Qual é o teu ponto de partida? O nosso ponto de partida tem de ser este: a compreensão do amor de Deus. Deus que me ama como eu sou, Deus que se maravilha comigo, Deus que se encanta com a mulher e com o homem que eu sou, tal como sou. Deus que se encanta, Deus que não quer que Eu seja o que eu não posso ser, o que eu nunca vou ser, o que eu devia ser e não sou. Deus que me ama como eu sou e que deposita em mim, de forma incondicional, o seu amor. A grande questão da nossa vida não é o que é que eu faço para saciar um Deus insaciável, mas como é que eu respondo a esta dádiva incondicional de amor que Deus já me deu, que Deus já depositou no meu coração.

Uma coisa é estar a responder a um Pai severo, insaciável e intransigente; outra coisa é estar a receber um Pai que nos diz: “Aconteça o que acontecer, Eu estou contigo, tens o meu amor, Eu estou a teu lado, Eu suporto-te, Eu trago-te aos meus ombros, Eu confio em ti, tu és o meu filho, tu és a minha filha.” Esta certeza do amor de Deus é a nossa razão de viver.

Queridos irmãs e irmãos:

Nós mantivemos o presépio até este dia. Podíamos já tê-lo arrumado, domingo passado, depois da festa dos magos, mas quisemos trazê-lo até este dia porque este é o momento do nosso nascimento. O batismo também é um nascimento, também é um presépio e este é o momento em que cada um de nós tem de nascer do amor, calando as vozes erradas que também nos habitam. É importante não deixar falar a escuridão no próprio coração, é importante ter a confiança de dizer ao próprio coração: “Não me enganes, não é assim.” Porque o que está no centro da vida, no centro desta vida revelada por Jesus de Nazaré, é de facto a experiência do amor.

E isto pede de nós uma conversão, uma transformação, uma redescoberta, uma reviravolta. Se calhar, temos de dar a volta neste grande útero que é a própria Igreja, revirarmos por dentro para podermos nascer, purificar-nos de imagens de Deus que não são aquelas que habitaram o coração de Jesus e que Ele nos revelou. Os céus abriram-se e a voz de Deus pôde-se ouvir: “Tu és o meu filho muito amado, em ti coloquei todo o meu amor.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo do Batismo do Senhor

Clique para ouvir a homilia