Queridos irmãs e irmãos

Neste primeiro dia do ano, sentimos a grande bênção que é a vida e a expressão da vida em cada um de nós. Este é o dia para nos sentirmos abençoados, para abençoarmos os outros e o mundo em nosso redor.

É tão extraordinária a palavra “bênção”, que quer dizer “bem dito”, “dizer bem”. No fundo, podermos dizer bem da vida, podermos dizer bem deste mistério que Deus manifesta em nós, podermos sentir o bem de Deus em nós.

É maravilhosa esta bênção que Deus pede a Aarão que dê a cada um dos membros do povo de Deus: “O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor faça brilhar sobre ti a Sua face e te seja favorável. O Senhor volte para ti os Seus olhos e te conceda a paz.”

Que cada um de nós sinta que esta bênção é para si, que o Senhor volta para cada um de nós, para a nossa vida, os seus olhos e faz brilhar, sobre a nossa frágil vida, o Seu rosto e nos enche de paz. Este é o dia para darmos graças, é o dia para louvarmos. A própria palavra de Deus desafia-nos ao louvor.

É muito significativo o modo como os pastores vêm, olham para o Menino na manjedoura e voltam louvando a Deus. E nós pensamos: “Mas o que é que eles viram? O que é que lhes enche o coração? O que é que lhes faz ter este gosto, esta necessidade de cantar quando o que eles veem é um menino deitado numa manjedoura?” Isto é, é uma vida nua, é uma vida exposta, uma vida numa fragilidade extrema. E, contudo, eles contemplam aquela vida e dão graças a Deus. Eles veem um botão, veem uma semente, veem um rebento que brota e seguem o caminho cantando e louvando a Deus.

Queridos irmãos, é esta sabedoria que nos faz ter a capacidade de bem-dizer a vida. Porque, se estamos à espera de ver a obra toda acabada, o edifício completo para então louvar a Deus, se estamos à espera de que tudo se resolva, que tudo se faça para então dizer “obrigado” e dedicar o nosso olhar extasiado à beleza do mundo, àquilo que o mundo nos dá, verdadeiramente viveremos um grande desencontro com a vida. Às vezes, ao longo do tempo, sentimos que estamos em desencontro, em contraciclo, que só nos apetece lamentar, maldizer, refutar e recusar, e achamos que nunca é suficiente, que nunca basta.

A lição dos pastores vai toda noutro sentido. Perceber que, no pequeno botão, na mínima expressão da vida, nós já temos todas as razões, capazes de encher, de redimir o nosso coração e de nos encher de louvor. Por isso, que este ano sintamos esta capacidade de bem-dizer, sintamo-nos benditos, sintamo-nos abençoados e tenhamos esta capacidade de transmitir a bênção, que está no nosso coração, ao mundo. Muitas vezes é a coisa mais necessária, porque as outras vão-se conjugando, vão-se encontrando, mas o que é que nos falta? Falta-nos este sentido, este sentido da bênção.

Hoje, lemos a carta de S. Paulo aos Gálatas, que é um dos grandes textos da identidade cristã. É um texto muito revolucionário, muito transformador. Paulo tinha fundado a comunidade dos Gálatas, na Galácia – hoje é mais ou menos uma parte da Turquia. Eles não conheciam o Evangelho e Paulo chega numa situação terrível, possivelmente, com uma doença de pele, que o deixaria muito debilitado, e depois de um grande conflito com os cristãos que vinham do Judaísmo. Ele tinha tido a discussão com S. Pedro, em Antioquia, e tinha ido mais para Oriente. Quando lhe sobreveio esta doença ele pensou: “Está tudo acabado.” E, contudo, quando ele disse “É o meu fim”, foi o seu início, porque os Gálatas, de uma forma que não se consegue explicar, acolheram-no muito bem, acolheram-no como um enviado de Deus. Ele começou a explicar, a anunciar aos Gálatas a novidade de Jesus Cristo.

E, como acontecia com Paulo, ele estava um tempo, uns meses, às vezes dois anos, numa comunidade e depois partia para outra. Quando ele partiu, vieram os emissários de um cristianismo mais ligado ao judaísmo, que viam Paulo como um rival, como alguém que tinha um Evangelho muito incompleto, como alguém que estava a destruir o caminho da Igreja. Na ausência de Paulo, desacreditam toda a mensagem de Paulo e querem que os cristãos sejam cristãos judeus, se façam judeus. Isto é, para ser cristãos, que passem pela circuncisão, voltem a aceitar todas as normas de pureza ritual, toda a divisão, toda a tradição judaica mais estrita.

Os Gálatas ouvem isto, ficam numa posição de dúvida e dizem: “Não. Nós vamos mandar emissários a Paulo, para Paulo esclarecer, dizer o que pensa disto, se é ou não é.”

E então Paulo, nessa altura em Éfeso, possivelmente preso quando lhe chegam mensagens do que está a passar-se na Galácia, escreve esta carta. É uma carta escrita com sangue, escrita com a alma toda, onde Paulo está com toda a emoção. Mas é uma carta onde ele coloca a questão da liberdade. Paulo diz: “Cristo libertou-nos para sermos verdadeiramente livres” e “Cristo é o fim da Lei.” Paulo diz uma coisa pela qual ele esteve preso várias vezes, que é: “Com Cristo acaba a Lei como tal nós a conhecemos.” Isto é, as leis humanas, a lei do império, a lei do imperador é uma lei insuficiente, essa lei não vale, essa lei morreu com Cristo. Em Cristo começa uma nova ordem do mundo, uma nova ordem das coisas.

Paulo diz isto com frontalidade, com as letras todas. Nós dizemos: “Este homem tem de ser preso.” E, de facto, Paulo estava preso quando escreveu aquilo. Mas a prisão não o impedia de dizer a verdade. Paulo não era um cristão preso, era um cristão que, mesmo quando estava preso, era muito livre. E tinha, no centro, isto: no centro está Cristo. E se Cristo está em mim ninguém me para, quer dizer, nada me basta.

“Ah, eu vou cumprir a Lei. Ah, eu tenho a boa consciência. Ah, eu paguei os meus impostos. Ah, eu fiz a minha parte.” Isso pode ser importante mas é muito pouco.

Nós hoje celebramos a Jornada Mundial de Oração pela Paz. É uma iniciativa que a Igreja tem já há várias décadas e, em cada ano, o Papa escreve uma mensagem aos cristãos que é uma proposta de reflexão para o ano que entra. Este ano, o Papa Francisco escreveu uma mensagem sobre a escravatura, as novas formas de escravatura.

Porque a verdade é que a escravatura foi abolida, mas ela regressou. Regressou duma forma muito visível. No sentido de que muitos são aliciados para trabalhos e depois, quando vão ver, é uma verdadeira escravatura. Mesmo aqueles que hoje constroem as nossas cidades, as nossas estradas, os nossos centros comerciais, são, no fundo, pessoas que depois têm de viver dez, doze anos dentro de um contentor. Se aquilo é vida e a ganhar abaixo do salário mínimo, sem contratos, sem direitos, isso não importa.

Nós pensamos: “Não serão os novos escravos?” Os pobres, os imigrantes, aquelas e aqueles que se têm de prostituir nas estradas da Europa, não serão os novos escravos? Ou então, como vemos chegar barcos e barcos de imigrantes do Norte de África, que pagaram uma fortuna, a fortuna que amealharam, a pequena fortuna, para serem metidos num barco e depois fazerem uma viagem onde muitos morrem, e depois chegam à Europa e têm de voltar para trás porque a dor deles não nos interessa, não tem nada a ver connosco.

O texto do Papa Francisco é um texto forte, mas a realidade supera-o. É um texto pintado com linhas muito marcadas do sofrimento humano, mas a realidade é exponencialmente muito superior. E, perante a realidade da nova escravatura, que está aqui em Portugal, na nossa cidade, aos nossos olhos, não pensemos que isto se passa só em sítios remotos, inalcançáveis. Não, está muito perto de nós.

Então qual é o primeiro desafio? O primeiro desafio é olharmos para esta realidade e querermos ver. Nós só não vemos porque não queremos ver. Porque se nós quisermos ver, vemos, vemos.

Há um filme de Sérgio Tréfaut , os “Lisboetas”, sobre os imigrantes em Lisboa. Ele mostra como há uma invisibilidade muito grande. Eles estão a nosso lado, mas nós não vemos, porque não andamos naquelas ruas, mesmo quando eles passam nas nossas ruas nós não vemos, não estão nos nossos cafés, não estão nas nossas universidades, então nós não vemos. Vivem connosco, ao nosso lado, servem nas nossas casas, mas nós não os vemos. Isto é, não os vemos como cidadãos, não os vemos como seres humanos.

Então, o primeiro desafio é o da visibilidade, é o da informação. Nós sabemos também como a nossa informação está muito condicionada, somos alimentados pela futilidade. A maior parte das notícias é pura futilidade, é uma telenovelização da vida, da política, da economia que depois não é nada quando as grandes questões do sofrimento humano não são notícia, não interessam, são depressivas para nós, vão aborrecer-nos. Nesse sentido, tem de haver um esforço nosso, ao longo deste ano, de conhecimento, antes de tudo de conhecimento da realidade. Olhar para as situações, fazer perguntas, ver, ver. E depois de ver, julgar.

A grande pergunta é “Onde está o teu irmão?”, que é a pergunta que Deus faz a Caim e que é a pergunta que Deus nos faz a nós. Nós podemos dizer: “Eu tenho as minhas mãos limpas.” Ninguém tem as mãos limpas, ninguém tem as mãos limpas no sentido de que isto é um sistema: para nós estarmos bem, outros têm de estar mal, para nós termos outros não têm. A desigualdade tornou-se um sistema.

“Eu tenho as mãos limpas, eu não fiz nada.” Não, se não fizeste nada também estás a contribuir. A ideia não é não fazer nada e deixar as coisas como estão. A ideia é transformar para tornar melhor, para tornar o mundo mais justo.

Então, precisamos de julgar com a verdade de Paulo. A Carta aos Gálatas é um texto que devíamos ler, este ano, porque é o grande texto que diz o que é ser cristão. Ser cristão é viver numa inquietação permanente, é perceber que não basta cumprir a lei, não basta a norma, não basta o que o imperador nos diz. Se temos o Messias, se acreditamos no Messias, vamos simplesmente estar bem porque obedecemos ao imperador? É um absurdo. Cristo libertou-nos para sermos livres. E livres para quê? Livres para amar, livres para contagiar o mundo, livres para tornar o mundo mais justo.

Há esta pergunta que Deus nos faz “Onde está o teu irmão?” e nós, de facto, precisamos de sair das nossas zonas de conforto, precisamos de ir ao encontro dos pobres, precisamos de ir ao encontro desta humanidade que é escravizada com as formas mais diversas. E, se o Senhor nos tocar no coração a dizer “Tu tens de fazer alguma coisa”, que nós sigamos isso e possamos fazer alguma coisa.

Porque o gesto de amor que nós fizermos não morre. O gesto de amor que nós fizermos não morre, o gesto de não-amor que fizermos ou a nossa abstenção vai pesar-nos, vai pesar-nos.

É isso que o Papa Francisco nos diz, neste primeiro dia da paz: se quisermos a paz, temos de dizer aos nossos irmãos: “Tu eras escravo mas agora és meu irmão.” Isto, há dois mil anos, foi a história do Cristianismo: “Tu eras escravo, tu eras gentio, mas agora és meu irmão.”

Não se fazem cristãos de outra maneira. Nós podemos inventar um cristianismo como um bem-estar, um momento de bem-estar, podemos pensar na salvação da nossa alma. Está bem, isso tudo está certo, mas eu não sou cristão porque penso na salvação da minha alma. Esse é um problema filosófico de todos os homens e mulheres da Terra, de todos os credos e religiões. Eu torno-me cristão quando percebo que há um caminho para ser cristão, e esse caminho é olhar o meu irmão nos olhos e dizer: “Tu eras escravo mas agora és meu irmão.” E sentir que, nessa universalidade – que não é uma teoria, não é uma ideologia, mas é uma prática de vida, uma opção de vida – que nessa prática de vida, nessa universalidade, nessa condivisão de vida eu torno o mundo mais justo, eu coloco Deus no coração da história.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus

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