Queridos irmãs e irmãos
Pensemos no olhar, que é tão importante nas leituras que ouvimos. O nosso olho é uma máquina extraordinária, sofisticadíssima, que nos permite este milagre que é estarmos perante os outros, extasiarmo-nos com a beleza do criado. Os nossos olhos são, contudo, limitados. Hoje, a ciência mostra-nos como tantas coisas escapam ao nosso olhar. Basta colocar uma lente um bocado maior ou um microscópio, para podermos fazer viagens e ver coisas que, com os nossos olhos, nos são completamente invisíveis.
Isto quer dizer o quê? Quer dizer que não existe apenas o que vemos, que esta máquina prodigiosa que é o nosso olhar é uma máquina à nossa medida. Isto é, à medida de seres limitados, frágeis, que da realidade têm uma parte fabulosa, colossal, mas não têm tudo. Nós não dominamos tudo da realidade. Muitas coisas existem, muitos seres existem, que simplesmente nós não vemos.
Quando S. João diz, com toda a verdade, no Evangelho “ a Deus nunca ninguém o viu”, não quer dizer que Deus não exista. Quer dizer que, na nossa humanidade, nós não conseguimos apreender o mistério de Deus. Deus está para lá dos nossos sentidos, para lá da nossa razão. Nós não conseguimos mas, por não o vermos, não quer dizer que Ele não exista. Não, Deus existe e, contudo, nós nunca o vimos.
O que é que se passa no Natal? O que é que se passa com este mistério da encarnação? Não é que Deus desminta o invisível, porque o invisível continua a ter o seu valor, não passa a existir só o que nós vemos, não é apenas este o único regime da existência. Não, há muitas existências que nós ignoramos, que nós não vemos simplesmente, mas Deus quis que nós o víssemos. E este é que é o milagre do amor, que nós celebramos no presépio: Ele tomou a nossa carne e habitou entre nós. Com estes olhos, nós vimos o próprio Deus, vimos o Seu esplendor e tateamos o Seu rosto. Ele esteve no meio de nós. Por isso, o mistério da incarnação que nós celebramos no Natal não torna Deus credível, no sentido que Deus é credível como é: transcendente, imortal, omnipotente, para lá das nossas possibilidades sensoriais. Mas torna o amor de Deus, eu diria, desvairadamente credível.
Porque este Deus infinito quer ser finito, para que eu acredite nesse amor, para que eu, na minha pequenez, na minha fragilidade, me sinta integralmente amado por esse amor, me sinta absolutamente abraçado pela humanidade de Jesus. Deus não precisava de se tornar homem para existir, para ser em Deus, mas para que nós sentíssemos o quanto Ele nos amava. Nós é que precisávamos, nós é que precisávamos de um Deus que nos olhe, olhos nos olhos, de um Deus que tome a nossa carne, que habite esta mistura de contradição entre sonho e sangue, entre noite e dia, entre dor e júbilo. Nós precisávamos que Ele fosse um de nós, que Ele tomasse a nossa condição. Nesse sentido, o amor de Deus torna-se espantosamente credível, porque nós podemos tocá-lo, podemos contemplá-lo.
S. João diz: “No princípio era o Verbo.” Era o logos, que é uma palavra grega que quer dizer muitas coisas e é muito difícil de traduzir. Mas talvez a verdadeira tradução tenha de ser dinâmica. Não é: “No princípio era o Verbo” ou “No princípio era a Palavra”. Mas é: “No princípio era o desejo de comunicar.” No princípio é o desejo que Deus tem de comunicar connosco, de entrar na nossa vida, de bater à nossa porta, de entrar dentro do que somos.
Queridos irmãos: é um mistério que nos deixa sem palavras, é um mistério que nos comove, é o grande mistério da nossa vida podermo-nos abeirar de uma cena como a do presépio e sentir que aquele que está ali, que podia ser eu, que é igual a mim, que é como eu, é o filho de Deus. E que este milagre espantoso acontece por meu amor, para que eu acredite, para que eu confie, para que eu vença o meu desânimo, a minha fragilidade, para que eu suba, para que eu eleve o meu olhar, para que eu viva a minha humanidade como lugar onde eu experimente a salvação e não a condenação apenas, não a morte apenas.
O Natal entrega-nos um Verbo para a vida, para todos os dias do ano, para cada hora que vivemos. E esse verbo é o verbo nascer. É um verbo que, normalmente, colocamos no princípio da nossa vida e, depois, parece que só nascemos uma vez. Ora, o Natal confia-nos o verbo nascer como um programa de vida, como um mapa que nos é dado. E o Menino nasce e diz a cada um de nós: “Agora tu, nasce.” “- Ah, mas eu tenho 80 anos, vou nascer? Ah, mas eu estou a meio da vida, vou nascer? Ah, mas eu já nasci, vou nascer?” “- Agora nasce.”
E nasce como? “Não da carne, nem do sangue, nem da vontade do homem.” Mas agora nasce de Deus. Agora sabe que és filho de Deus, agora torna-te filho de Deus.”
É este mistério, queridos irmãos, que de forma tão funda, para lá das próprias palavras, acontece na vida de cada um de nós.
Sintamos que, a cada um de nós, o Menino diz: “Agora tu nasce, agora tu nasce, agora tu nasce.” Que nós acreditemos que aquela manjedoura é a manjedoura de todos nós e que naquela manjedoura, e naquele Menino, está esta nossa humanidade, representada tal como é, sem coloridos, sem ornamentos, sem idealizações. Está a nossa humanidade tal como é. Mas é a nossa humanidade salva, redimida pelo Divino.
Pe. José Tolentino Mendonça, Missa do Dia do Natal do Senhor
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