Queridos irmãs e irmãos
Esta parábola que Jesus hoje nos conta coloca-nos perante a questão da fé e da ausência de fé.
A história da fé é comparada, por Jesus, a este convite para ir trabalhar na vinha do Senhor. Há uns que o Senhor logo pela manhãzinha, pela madrugada, chama para trabalhar na sua vinha. Mas a verdade é que depois sai a meio da manhã, ao meio dia, às três da tarde e ao fim do dia e ainda continua a chamar outros para ir trabalhar na sua vinha.
Quer dizer, o encontro de fé não é igual para todos, não é tudo ao mesmo tempo. Há tempos diferentes no nosso caminho. Há um mistério, para nós crentes, que é percebermos porque é que a fé toca a uns e não toca a outros. Porquê?
Porque é que a fé é um dom que é dado a uns e parece que não foi dado a outras pessoas?
Porque é que a fé é um dom me foi dado a mim? Às vezes pergunto-me…
Certamente que cada um de nós se pergunta, porque todos nós conhecemos pessoas fabulosas e que não são crentes, “mas porquê?”. O que é que eu tenho a mais ou o que é que eu tenho a menos? É um mistério! A fé é, de facto, um dom. É um dom que não se explica. Um dom que não se justifica.
A única coisa que a gente sabe é aquilo que o salmo diz : “Deus está perto de todos, Deus está perto de todos”. A forma como nos relacionamos com essa proximidade de Deus, com essa vizinhança, nós não sabemos.
Nesse sentido, viver a fé tem que ser um exercício de grande humildade, de grande desprendimento e de grande abertura. Porque a fé não nos pertence, a fé é-nos dada. A fé não é um direito nosso, a fé atravessa-nos, como uma coisa que nós servimos, que nós usamos mas que verdadeiramente não é nossa. É um dom de Deus.
Nós precisamos de perceber que acreditamos também para servir os outros, em função dos outros. A nossa fé não nos afasta de ninguém, pelo contrário. Nós acreditamos não é no lugar do outro ou em vez do outro, porque cada um é chamado a esse encontro. Mas nós temos fé para os outros. Não é ter fé e ponto final, como se fosse um direito nosso. A fé é uma abertura para os outros.
Esta parábola que Jesus conta é uma parábola impressionante. Das frases do Evangelho que me impressionam mais é aquela em que os trabalhadores que o Senhor contrata só às cinco da tarde, mesmo no fim do dia, respondem quando o Senhor pergunta: Então e vocês, porque é que não foram para a vinha? Eles respondem: Porque ninguém nos contratou, porque ninguém nos contratou.
Em latim a tradução ainda é mais forte porque diz: “porque nenhuma palavra nos conduziu a ti”. E o Senhor não diz: isso é mentira, vocês foram contratados antes. Não, ele aceita, aceita que foi assim.
Isto quer dizer, queridos irmãos e irmãs, que é um mistério muito grande, aquilo que acontece no coração de um crente e de um não crente. É um mistério muito grande.
O Cardeal Carlo Maria Martini, no final do século passado, na Catedral de Milão, desenvolveu um projeto muito belo, chamado a Cátedra dos não crentes.
Ele levou para dialogar, na Catedral de Milão, crentes e não crentes. E não era só dialogar sobre economia, política, … Não. Eram coisas deste tipo: perguntar a um não crente como é que ele rezava e qual era a sua experiência de oração.
O cardeal Carlo Maria Martini diz uma coisa muito bela: que cada um de nós, no seu coração, tem um crente e um não crente, que conversam entre si e que se perguntam coisas pungentes, coisas dramáticas. Há perguntas que o nosso coração faz porque, dentro de nós, há também um não crente. E é preciso ouvir o não crente que existe em nós porque ele, se calhar, vai ajudar a purificar aquilo que eu penso que é a minha fé mas que, verdadeiramente, não é uma fé iluminada.
Ele diz o seguinte: faz muito bem aos crentes escutarem os não crentes, como faz muito bem aos não crentes escutarem os crentes e dialogarem sobre isso.
Queridos irmãos, porque é que nós estamos no trabalho da vinha? Não é para ganhar mais do que os outros. Essa é conclusão da parábola. Os trabalhadores da primeira hora pensavam: bem, estão a entrar estes, nós entrámos mais cedo, suportámos o dia e o calor, o que será a nossa recompensa? Depois, no final, percebem que todos recebem o mesmo denário.
O caminho que estamos a fazer não é por recompensas. É preciso purificar a nossa fé deste desejo ainda muito humano, ainda muito mundano de recompensas.
Santa Teresinha do Menino Jesus dizia uma coisa que para nós, ao mesmo tempo, é terrível. Ela dizia assim: “Ainda que não existisse céu, eu não deixaria de acreditar em Ti”. É uma coisa muito radical. Há céu. Nós acreditamos que há céu. Mas ela dizia: ainda que não houvesse, eu continuaria a acreditar em Ti…
Quer dizer, a nossa fé é a história de uma relação, de uma relação que nós vivemos agora, no presente, não é em vista disto ou daquilo. Não! Saboreemos o presente, saboreemos o momento que agora estamos a viver, como naquele belo poema de Kavafis, «O regresso a Ítaca».
Ele diz: “Quando regressares a Ítaca, à maneira de Ulisses, reza por uma viagem longa, que possas passar por muitos portos, ter uma vida cheia, uma vida plena de acontecimentos. Porque depois quando chegares a Ítaca, Ítaca não tem nada para te dar, deu-te a viagem».
Deus tem coisas para nos dar, tem a sua presença. O nosso coração vai ser saciado de Deus. A nossa fome, a nossa sede vai ser saciada da sua presença, da sua glória -veremos o rosto de Deus.
Mas não é para termos um lugar à direta ou à esquerda. Não é um pódio, é um encontro. É um encontro que, desde agora, temos que ter a consciência que estamos a viver com os outros, ao lado dos outros, integrando também o que é a experiência dos outros. Porque isso é tão importante… Nós crentes não temos o monopólio nem da fé, nem da moral, nem da ética – não temos!
Os não crentes também têm uma ética, também têm uma relação espiritual qualquer que ela seja, uma abertura ao mistério da vida, têm dúvidas. Nem que seja terem um património de dúvidas. Isso é um património fantástico, têm um património espiritual fantástico.
Por isso vamos pedir ao Senhor que nos ajude a estar no nosso lugar.
Aquilo que o Profeta Isaías diz: Os pensamentos de Deus estão longe dos teus pensamentos como o Céu está longe da terra.
Isto é, a gente acha que é assim ou que é assado. Não. Deus é Deus. Quer dizer, Deus está muito para lá do que penso, do que eu sei, do que eu posso, das representações que eu faço. Aceitarmos isso dá-nos um sentido, ao mesmo tempo, de humildade, de desprendimento, de verdade, de um estar por estar, de um saborear o presente, o momento, o instante. Porque é isso que é fundamental.
O Senhor passa. Não passa apenas uma vez. Passa muitas vezes pela nossa vida. Esta parábola também é parábola das idades da nossa vida. O Senhor, se calhar, passou muito cedo na nossa vida. Mas depois também passa ao meio dia, também passa às três da tarde e passa ao crepúsculo. Se calhar as nossas respostas são diferentes. Mas é importante que a gente sinta que Deus passa, que Deus passa.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXV do Tempo Comum
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