Queridos Irmãos e Irmãs

A grande questão que se coloca no início do Cristianismo é saber como de um acontecimento que em si é um acontecimento disruptivo, é uma crise terrível que emerge – que é, no fundo, o episódio da morte do Senhor, da sua crucifixão -, como é que, deste acontecimento, que deve ser um ponto final, pelo contrário, emerge uma realidade de vida. Como é que isso é possível? Como é que é possível ser cristão depois do nosso Messias ter sido levantado de uma cruz?

Como é que se pode ser cristão na sua ausência, na sua perda, no vazio daquele sepulcro ao qual as mulheres foram e os discípulos correram naquela manhã de Páscoa?

Como é que se constrói uma vida nova, como é que se constrói um projeto, como é que se olha para o futuro a partir deste vazio, deste sinal contrário, deste sinal absurdo que é a cruz? É interessante perceber como é num caminho de maturação,  maturação interior e maturação também no sofrimento, que as primeiras comunidades cristãs vão perceber como é que a cruz se torna a árvore da vida. E como é que aquele sepulcro vazio se torna para nós a certeza de que Ele está vivo, de que Ele está presente, de que Ele está connosco.

Hoje nós ouvimos na leitura dos Atos dos Apóstolos  a história da Igreja de Samaria, é uma história impressionante e que se conta em duas palavras. Quando se deram os acontecimentos pascais, os discípulos amontoaram-se em Jerusalém. A questão era estarem uns com os outros, com medo do que pudesse acontecer-lhes na sequência de Jesus, porque no fundo eles eram cúmplices de um condenado à morte. E o medo trancou-os em Jerusalém. Mas não só o medo, a sua própria mundividência. A interpretação que eles faziam do acontecimento de Jesus Cristo, das suas palavras, era muito a partir da sua vivência judaica. O que aqueles homens e mulheres pensaram é: nós temos que continuar a ser bons judeus, e ponto final.

Ora, acontece a chamada perseguição aos gregos. Porque quando os cristãos começam a falar, dá-se o seguinte: aqueles mais radicais, aqueles que levam mais longe a interpretação de Jesus Cristo, não são os de origem judaica. São os de origem grega. Isto é, aqueles que, no fundo, tinham uma maior liberdade para dizer quem era Jesus Cristo. Enquanto aqueles que eram de origem judaica o que faziam era simplesmente ler Jesus Cristo à luz da gramática judaica, na qual eles funcionavam.

Por isso, o primeiro mártir do Cristianismo é um grego, é Estevão, e não é Pedro, o primeiro mártir. Pedro será depois. Mas aquele que primeiro estica a corda, o que primeiro diz uma palavra de ruptura, acaba por ser um grego. E por causa dos gregos há uma perseguição aos cristãos, mas aos cristãos de origem grega.

O Espírito fala através dessa crise, através dessa perseguição. Quando estes são chutados para fora de Jerusalém, em vez de ser o fim, é o princípio. Eles pensavam que ia acabar tudo, iam perecer. Não. Ali é que começou verdadeiramente a história. E então Filipe, que também é de origem grega, vai evangelizar os samaritanos. Era uma coisa que não passava pela cabeça de Pedro, no princípio, era que eles pudessem evangelizar os samaritanos, que eram rivais históricos, contumazes da tradição judaica. Mas como acontece esta perseguição e Filipe está na Samaria, ele começa a evangelizar os samaritanos.

Assim se percebe que Deus começa a falar para lá das fronteiras, e de uma forma completamente imprevista, inaudita, inesperada, o Evangelho começa a ganhar força, a ganhar raiz em corações absolutamente impensados, porque é assim o caminho de Deus. E, de certa forma, a Igreja começa a perceber a forma como Deus  a conduz.

Filipe faz a primeira evangelização, e depois Pedro e João descem até à Samaria para a completar, infundido o Espírito Santo, porque os Samaritanos ainda não tinham recebido o Espírito Santo.

Nós que estamos aqui somos uma consequência do Espírito Santo. Cada cristão, cada batizado é uma consequência do Espírito Santo. E o Espírito Santo é a maior descoberta da nossa vida. Para dizer assim depressa, é a maior descoberta que cada um de nós tem que fazer.

É interessante, parece que não tem nada a ver, mas a semana passada no El Pais vinha uma entrevista a um filósofo, hoje muito conhecido e um homem um bocado blasfemo em relação ao status quo da nossa cultura, que é o esloveno Slavoj Zizek.

Zizek dizia que há três grandes invenções, invenções entre aspas ou descobertas, que no seu entender marcam o caminho da humanidade: a primeira invenção é a invenção da democracia pelos gregos, pais da democracia; a segunda grande descoberta para ele é o Espírito Santo e a terceira é a revolução francesa.

Vamos pensar um bocadinho no destaque que ele dá à descoberta do Espírito Santo, como uma descoberta que transforma completamente o mundo. Porque a descoberta que os cristãos fazem de que não estão sós mas de que neles vive o Espirito do ressuscitado é, de facto, uma alavanca de transformação, não apenas das realidades individuais mas da realidade do mundo, da história.

O Espírito Santo é, de facto, o grande motor da história. O mundo antigo, mesmo aquele mundo grego que inventou a democracia, 90% eram escravos. As mulheres não tinham possibilidade de participar na democracia grega. De facto eles inventaram um sistema fantástico, com filósofos que hoje continuam a ser os nossos mestres, mas era uma democracia muito limitada, temos de reconhecer.

No mundo antigo, as fronteiras da raça, da etnia, as fronteiras sociais, as fronteiras religiosas, as fronteiras de género, eram fronteiras insuperáveis. Quem era escravo, morria escravo. As mulheres não tinham qualquer possibilidade de participar ao nível religioso, naquela que era a vivência dos homens.

Um judeu não se sentava à mesa com um pagão. Um pagão jamais poderia acreditar plenamente e participar plenamente no judaísmo. Seria sempre um prosélito, alguém que está fora.

O que é o Espírito Santo? O Espírito Santo é o derrube completo dos muros e das fronteiras. Aquilo que S. Paulo há-de dizer de forma lapidar na carta aos Gálatas: «Em Cristo sois nova criatura. Não há judeu, nem pagão. Não há escravo nem homem livre. Não há homem nem mulher. Pois todos sois um só no Espirito de Cristo»

Então, o que é o Espírito Santo em nós? O Espírito Santo em nós é o fundar no nosso coração, na nossa vida, a nossa dignidade, a nossa condição. A nossa dignidade, a nossa condição, a nossa capacidade de plenitude já não depende do sítio onde nascemos, do berço onde nascemos, já não depende do status ou do pedigree, já não depende da nossa religião ou da tradição religiosa onde nascemos e surgimos, já não depende do género ou da condição. Mas é o Espírito Santo que nos torna iguais. E esta dimensão de uma igualdade fundamental, de um reconhecimento de uma igualdade fundamental, é alguma coisa que o Cristianismo transporta como património, como património para a humanidade. Desde o princípio, comunidades de homens e mulheres, de cidadãos e de escravos, de judeus e de pagãos a celebrar o que nós hoje estamos a celebrar, foi, de facto, a maior transformação da história. E por isso o Espírito Santo é o grande agente da transformação. Da própria transformação politica que é uma realidade em que nós não pensamos. Às vezes nós cristãos parece que temos um certo sentimento de vergonha em relação à democracia. Parece que somos uma  espécie de subgénero dentro da democracia. Não, o Cristianismo é a fonte da democracia, da democracia tal como nós aspiramos, até uma democracia maior, melhor, mais qualificada do que aquela que hoje nós temos. O Cristianismo historicamente é, de facto, é um motor de transformação.

E quem diz isto é este neomarxista Slavoj Zizek. Não somos nós a dizer o que damos. É gente de fora a reconhecer, no fundo, o que é o testemunho cristão.

Por isso, nós somos chamados a descobrir o Espírito Santo. A descobrir o Espírito Santo na vida de cada um de nós, a sentirmo-nos consequência do Espírito. E como o Espírito nos liga a Jesus…

Como é que a Igreja ultrapassa o vazio da sua origem? A perda, a disrupção,  a crise que está na sua origem?

Ultrapassa percebendo isto que Jesus diz no Evangelho de João: “Eu não vos deixo órfãos. Eu vou enviar-vos o Espirito». Nós recebemos o Espírito e sabemos assim que essa palavra de Jesus é verdadeira, porque o Espirito está no nosso coração a dizer que Essa palavra é verdadeira, a confirmar as sementes de esperança que Jesus lançou e lança no nosso coração.

O Espirito é a certeza que Jesus está connosco até ao fim dos tempos.

Queridos Irmãos, em cada tempo a Igreja tem que nascer do Espírito Santo.

Nós temos que ser homens e mulheres marcados pelo Espírito Santo. O Espírito Santo que nos dá esta certeza de Deus connosco. O Espírito Santo que nos confirma no caminho, que nos recorda as razões da nossa esperança.

O Espírito Santo que nos torna artesãos, servidores, instrumentos da própria esperança. O Espírito Santo que nos dá uma inquietude e uma capacidade de sonhar, de ir mais longe, uma capacidade de transformar aquilo que é crítico num motivo e numa razão para um caminho diferente, para um caminho novo.

Vamos pedir que o Espírito Santo desça sobre nós, este Espírito que Pedro e João levaram a Samaria, que Jesus derramou sobre os seus discípulos no dia de Pentecostes, seja Ele aquele que Jesus faz cair sobre cada um de nós, para que o Espírito nos dê a força que neste momento nós precisamos para cumprir o caminho de esperança que o Senhor desdobra diante do nosso coração.

 

Pe. José Tolentino Mendonça

Homilia na Celebração Eucaristica no Domingo VI da Páscoa

 

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