Homilia do Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, na missa de encerramento do Ano da Fé, no Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Peniche.
A fé em Cristo na caridade do seu reino
Reunimo-nos aqui, caríssimos irmãos, para concluir o Ano da Fé. E fazemo-lo neste santuário de Nossa Senhora dos Remédios, porque é em lugar mariano que melhor celebraremos a fé de todos, que antes de mais foi a d’Ela. Sim, a fé com que aderiu inteiramente ao propósito divino de vir a este mundo e viver entre nós. Como em Jesus Cristo, o Filho de Maria, finalmente aconteceu.
– E que importante é esta primeira alusão! Da anunciação do anjo à hora da cruz, é com Maria que vivemos a fé, com ela aprendida. Com Maria, recebemos o Cristo que Deus Pai nos oferece; com Maria, crescemos em Cristo, guardando no coração as palavras com que Ele mesmo se revela, mais e mais; com Maria, permanecemos ao pé da cruz, onde Ele nos dá a sua vida e partilha connosco a sua mãe.
Por isso estamos aqui, provindos de tantos lugares do nosso Patriarcado, para com Maria nos salvarmos na cruz do seu Filho. E assim mesmo compreenderemos como a Igreja tem em Maria o seu resumo e imagem, pois se trata de repercutir nas nossas vidas pessoais e comunitárias os sentimentos com que Ela recebeu, seguiu e assinalou a vinda de Cristo ao mundo.
Presença de Cristo que inaugura o Reino. Os nossos antepassados do Antigo Testamento, guardavam a memória do rei David, que representara quase tudo o que Israel tivera de grande entre os povos. Os profetas divisaram depois um novo Reino, ainda maior na dimensão e nos propósitos, concentrado num “Filho de David”, como o próprio Jesus seria anunciado e aclamado.
Mas, em Jesus, se há continuidade e resposta em relação às melhores expectativas humanas, há sempre novidade no modo desse mesmo acontecer. Porque, em Jesus, Deus não se limita a responder-nos no sentido curto do que imediatamente nos conviria. Em Jesus, Deus dá-nos respostas definitivas, a que só poderemos aceder se nos dispusermos a viver definitivamente a vida. Na cruz, a entrega divina é total. Ao pé da cruz, a adesão de Maria é completa, representando já a da Igreja toda – o que a nossa há de ser, como verdadeira obra da fé.
Caríssimos irmãos, eu creio e quero crer que tudo quanto aconteceu nas nossas vidas e comunidades ao longo do Ano da Fé, hoje concluído, serviu de facto para nos convencer ainda mais de que, enquanto cristãos, só podemos ser assim, definitivos e totais no acolhimento e seguimento de Cristo. Cristo nas Escrituras, sempre ouvidas e lembradas. Cristo nos sacramentos, outros tantos sinais da sua entrega e companhia, pedindo-nos coerência e progresso na comunhão com Ele. Cristo nos irmãos, em que clama pela nossa atenção e serviço, para afinal nos retribuir a cem por um.
Isto mesmo creio e espero, como fruto dum Ano da Fé traduzido em caridade. Porque a nossa fé não tem nada de imaginário ou abstrato, antes se focaliza inteiramente na vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, o Filho de Maria e nosso Cristo. E, assim focalizada, não tira os olhos de quanto aconteceu do presépio à cruz, aí mesmo apercebendo os primeiros fulgores da ressurreição garantida. E, se assim nos fixamos, também assim o experimentamos, verificando como o Espírito vai reproduzindo em nós a vida, morte e ressurreição do mesmo Cristo.
– Pois não é espantoso, irmãos, sabermos e reconhecermos que, em todos e cada um dos que aqui viemos, a vida de Cristo se prolonga no mundo?! – E que assim mesmo se alarga aquele Reino e convivência nova em que tudo em nós ganha e realiza a caridade, que outra coisa não é – mas isso mesmo há de ser! – do que o amor com que Cristo nos amou?!
Aqui estamos, pois, e graças a Deus, com Maria ao pé da cruz. Aqui começa o Reino anunciado, porque, acontecendo no coração do mundo, só poderia ser onde o coração humano mais sofre e mais ama. Nada nos é oferecido em Cristo, senão na cruz do mundo, em que inteiramente se entrega. É por isso também que a nossa fé nada tem de alienante, pois, longe de nos alhear do drama e das dores da condição humana, nesta mesma nos faz encontrar a Deus, que exatamente aí nos espera, em Cristo crucificado, e donde Cristo ressuscita.
Por isso São Paulo podia resumir assim a sua pregação, escrevendo aos coríntios: «Julguei não dever saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e este crucificado» (1 Cor 2, 2). E isso dizia, por experimentar vivamente o amor com que Cristo o salvara, como que fazendo dos dois uma só vida. São de fogo estas palavras de Paulo aos gálatas: «Estou crucificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim» (Gl 2, 19-20).
Amados irmãos, importa saber, importa reter, que a fé cristã é um compromisso total com a cruz do mundo, em que Cristo nos espera. Aí mesmo experimentaremos – quando nos abeirarmos de todas as dores e expetativas dos outros – a presença de Cristo, que tão solidariamente nos salva. Aí e só aí se repetirá o diálogo que ouvimos no Evangelho; sendo agora Cristo e nós, cada um de nós, os protagonistas: «E acrescentou [um dos que foram crucificados com Jesus]: “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com a tua realeza”. Jesus respondeu-lhe: “Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso”».
Compreendemos pois que, concluindo o Ano da Fé, o nosso programa diocesano seja agora “atuá-la pela caridade”. Direi até que, com este ou outro lema, nesta ou noutra oportunidade, sempre teria de ser assim, para ser autenticamente cristão. E nunca nos faltam ocasiões para crescer na fé, atuando a caridade.
Olhe cada um para si, para a família, para os outros, na cruz que aí permanece e onde Cristo nos espera. Como Teresa de Calcutá, que, duma multidão compacta, que enchia uma imensa gare, ouviu um dia o clamor de Cristo na cruz: «Tenho sede! “. E nunca mais deixou de ouvi-lo… É nesta sede compartilhada que também nos dessedentaremos a nós.
Durante o Ano da Fé, repetimos com consciência renovada as frases dum Credo que resume tudo o que aprendemos de Cristo. Sobre o Pai, magnificamente revelado na misericórdia com que aguarda e refaz todos os pródigos, que somos nós. Sobre o próprio Cristo, verdadeiro irmão mais velho, que – ao contrário do da parábola – partilha inteiramente da misericórdia do Pai e nos vem buscar aonde estamos e mal estamos, para nos levar à casa paterna. Sobre o Espírito, em que nos envolve no amor que partilha com o Pai. Sobre a Igreja, que somos nós todos, na comunhão com Ele, para glória de Deus e salvação do mundo. Sobre a vida eterna, outro nome da caridade que o seu Espírito infunde nos nossos corações e não acabará jamais.
Quando cada um destes artigos articula de facto o nosso ser, em contemplação e ação, estamos deveras no seu Reino e alargamo-lo diariamente neste mundo que, sendo nosso, há de ser finalmente o seu. Finalmente de Cristo, único modo de ser de todos, na caridade, na justiça e na paz.
Ainda na cruz que nos cabe, voltemo-nos para Ele na sua, como fez o bom ladrão. E as duas serão uma só, pois por todos se entrega e a todos oferece a sua vida, como aconteceu naquele dia derradeiro: ao bom ladrão ofereceu o paraíso, ao discípulo amado a sua mãe, a todos a própria vida, no sangue e na água que lhe brotaram do inextinguível coração.
Uma última coisa vos quero dizer, caríssimos irmãos, e especialmente operativa, programática quase: Quando professamos o Credo, há um momento central em que quase nos detemos, sempre inclinamos – e até genufletimos, no Natal e na Anunciação: é quando lembramos que Jesus Cristo, Filho de Deus, «encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem».
Tiremos daqui toda a consequência contemplativa e prática, pois assim mesmo e só assim cresce o Reino de Cristo no mundo. Incarnação significou para Cristo fazer sua a natureza humana, no que esta tem de promessa e igualmente de carência, contradição e até miséria. E aí mesmo estar connosco, estar com todos, com aquela proximidade absoluta que só Deus pode ter, como Criador que absolutamente nos conhece e como Salvador que inteiramente nos redime.
Pois bem: se já vivemos da sua misericórdia, sejamos também sinais ativos dela, junto de todas as necessidades do próximo, único modo de sermos concidadãos e testemunhas do seu Reino. Isso mesmo lembra outro passo evangélico, falando o próprio Cristo: «Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me de vestir, adoeci e visitastes.me, estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25, 34-36).
E não nos pareça grande demais o enunciado, pois se trata dum único sentimento, repercutido nos diferentes campos em que a nossa vida se desdobra, em relação indispensável com os outros. Trata-se sempre da caridade de Cristo, única naturalidade do seu Reino, a alargar no mundo pelos que queiram ser realmente seus.
Deste Reino somos e queremos ser. Por isso aqui estamos e assim daqui partimos, para os compromissos diários da nossa fé, que sempre atua pela caridade, e apenas nesta se credibiliza e demonstra (cf. Tg 2, 18).
Connosco temos a Mãe de Cristo, que diante de todas as carências, nossas e alheias, nos repetirá o que disse nas bodas de Caná: «Fazei o que Ele vos disser!» (Jo 2, 5). Assim fez sobretudo Ela, e agora reina com Cristo, no coração de Deus e do mundo. Assim nos ensinará a fazer, para que o Reino de Cristo seja a imbatível esperança de nós todos!
+ Manuel Clemente
Nossa Senhora dos Remédios (Peniche), 24 de novembro de 2013, solenidade de Cristo Rei e encerramento do Ano da Fé.