Dezembro

2016/12/25 - Tocar o mistério de Deus (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

As leituras deste dia de Natal reforçam muito a dimensão da visualidade. Nós vemos o próprio Deus, o Deus invisível pode-se tocar, o Deus invisível pode-se ver, o Deus transcendente torna-se próximo, vizinho da nossa vida. Por isso, o motivo da alegria é esse:  Nós vimos! “Todos juntos soltam brados de alegria porque veem com os próprios olhos o Senhor que vem a Sião.” E depois, no prólogo do Evangelho de S. João de novo: “Nós vimos a Sua glória.”

Queridos irmãs e irmãos, o Natal fica incompleto se cada um de nós não vir, se cada um de nós não puder ver, não puder tocar o mistério de Deus. O Natal é a anti-abstração, o Natal é a anti-generalização, o Natal é a singularidade. Cada um de nós com as perguntas que traz, com as questões que transporta, com a situação de vida que vive é chamado a ver Deus. A ver naquele Deus connosco, naquele Menino de carne e osso, naquela criança, naquele Filho que nos foi dado. Cada um de nós é chamado a ver a realização da Promessa e é chamado a compreender um Deus que vem ao seu encontro.

Jesus não vem ao encontro da Humanidade, vem ao encontro de mim, de ti, de cada um de nós. É um convite a esse sentimento profundo de que a nossa vida agora é uma vida acompanhada. A nossa vida agora é uma vida que já não é mais na solidão ou na noite. Como dizia o profeta Isaías: “Ao povo que andava nas trevas surgiu uma grande luz.” É isso, queridos irmãs e irmãos, que hoje nós celebramos. Este Deus que vem para que eu O possa ver, para que com os meus olhos, com a minha carne, com a minha inteligência eu O possa entender, eu O possa acolher no meu coração e sentir que Ele vem para trazer-me o mais precioso dos dons. Esse é que é o grande presente. E é esse presente que S. João enuncia desta forma: “A todos os que acreditam Nele Ele deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.” E é isto, queridos irmãs e irmãos, o mistério do Natal. É esta capacidade que Deus dá a mulheres e homens frágeis, imperfeitos, inacabados, inseguros e incertos como nós, a capacidade que Deus em Jesus nos dá de nos tornarmos filhos de Deus. Isto é, de vivermos uma vida divina, de vivermos uma vida que não é só a expressão da nossa carne e do nosso sangue, não é só o nosso bom ou mau feitio, não é só isto que somos e trazemos e repetimos. Não é só isso agora, nós não somos só nós, nós temos o poder de nos tornar filhos de Deus. A cada um de nós é concedido esse poder. Quer dizer, cada vida, cada uma das nossas vidas é ainda mais sagrada. A cada uma das nossas vidas é dado horizonte, é dado infinito, é dada uma capacidade de ser maior do que aquela que só por nós próprios poderíamos contar.

Temos o poder de nos tornarmos filhos de Deus. Isto é, nas pequenas coisas da nossa vida, na multiplicidade dos encontros, nesta teia que nos tece nós temos a possibilidade de ser divinos, de transportar Deus no nosso seio, de dar à luz Jesus como Maria deu à luz, ela que se torna símbolo da própria Igreja. Nós somos chamados a trazer à luz Jesus Cristo, a torna-Lo presente, a contar com essa vida infinita, com essa capacidade infinita de amar. É possível, é possível, é possível. E no fundo, o Natal o que diz a cada um de nós é:

“- É possível, é possível.

– Mas eu já sou tão velho.

– É possível.

– Eu sou casmurro como o boi ou como o jumento do presépio.

– Mas é possível, o boi e o jumento lá estão, é possível.”

É esta possibilidade de uma vida transformada, de uma vida de Deus refletida, espelhada na nossa humanidade que o Natal vem tornar presente a todos os que acreditam, a todos os que têm no seu coração um fio de fé, a todos aqueles que perguntam “Porque não?”, a todos os que olham com espanto e silêncio para o Menino do presépio.

Deus vem dar-nos a possibilidade de nos tornarmos filhos de Deus e essa é a alegria. É a alegria que hoje nos invade, é a alegria que levamos uns aos outros, é a alegria que é servida às nossas mesas, é a alegria que é servida no nosso abraço, nos nossos votos, nas nossas saudações, nas mensagens trocadas, nos presentes que trocamos. É essa alegria! A alegria de acreditar que é possível, a alegria de vencer o fatalismo da nossa humanidade, da nossa idade, do nosso temperamento, da nossa biografia, da nossa história. É possível, é possível. É essa Boa Nova que torna belos os pés daqueles que a anunciam.

Queridos irmãs e irmãos, um grande dia de Natal, um dia santo de Natal, um dia que torna cada um de nós mais santos. Que nos sintamos instrumentos, canais da santidade de Deus que quer chegar à nossa vida.

“A todos aqueles que acreditam Ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus.” Queridos irmãs e irmãos, nós somo-lo de facto, cada um de nós é essa possibilidade, é essa hipótese que o menino do presépio vem inaugurar para cada um de nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Natal do Senhor

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2016/12/24 - Jesus nasce para nos ajudar a nascer (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

A narrativa de S. Lucas que hoje lemos mostra-nos como o mundo não estava preparado para o nascimento de Jesus. Não havia lugar para Ele na estalagem, Ele teve de nascer naquela espécie de relento, naquela terra noturna por onde girovagavam os pastores.

O mundo não estava preparado e de certa forma o coração do homem também não está preparado. Porque há momentos da nossa vida em que parece que nos é mais fácil acreditar na noite do que na luz, em que parece que é mais fácil acreditar nas lágrimas do que nos sorrisos, em que parece que é mais forte acreditar num calçado de guerra, no rumor das batalhas do que acreditar no anúncio da paz e na voz que anuncia a paz. O nosso coração não está preparado e, contudo, Deus não desiste de nós, Deus não desiste de nascer mesmo no impreparado da nossa vida, mesmo tendo de convencer o nosso coração da paz que Ele é portador, mesmo tendo de exortar cada um de nós a alegrar-se, a acreditar na alegria.

Qual é o argumento de Deus? Não é um argumento abstrato, não é uma ideia. O argumento de Deus é a Sua própria humanidade. É Ele assumir a nossa condição, a nossa carne, a nossa vulnerabilidade, é Ele estar connosco, é Ele ser o Emanuel, o Deus connosco, o Deus que nos vem para acompanhar. Nós não estamos preparados, o mundo não está preparado mas Deus vem na mesma e quer fazer um caminho com cada um de nós. Por isso, Ele nasce para nos ajudar a nascer, no Seu presépio Ele dá-nos o mapa, dá-nos o teto, a altura de uma vida nova, de uma vida onde a esperança é possível.

O Senhor vem para limpar as lágrimas dos nossos olhos, para partilhar os nossos lutos, para estar connosco nos momentos de tristeza, para ajudar-nos no provisório e no imperfeito da nossa vida. Ele vem para nos levar ao colo, Ele vem para nos abraçar, para nos consolar. Ele vem para nos colocar de pé todas as vezes que forem precisas, Ele vem para nos fazer olhar para a nossa própria humanidade com os olhos de Deus, não já apenas com os nossos olhos que veem sempre tão pouco, mas para nos ajudar a ver-nos a nós próprios, vermos os outros, a vermos os acontecimentos do mundo com os olhos de Deus.

Por isso esta noite, queridos irmãs e irmãos, é uma noite mística, é uma noite em que a palavra é suplantada pela força da Presença, em que o Verbo se torna carne, se torna gesto, se torna completude no meio de nós. Por isso, o importante é este acontecimento performativo que é estarmos aqui, à volta de um presépio, de uma criança que nasce, escutando no seu gemido, no seu choro, na sua alegria, no seu espanto de estar sobre a terra, a glória do próprio Deus. Essa glória que cercou os pastores naquela noite é a mesma glória que cerca cada um de nós e diz: “Não temas, não temas, nasceu para ti hoje um Salvador.”

Queridos irmãos, um Menino nasceu para nós, um Filho nos foi dado. Sintamos o dom de Deus como oferta para fazermos um caminho, o Natal não é um ponto de chegada, é um ponto de partida. Deus faz-Se frágil, Deus faz-Se pequeno, Deus faz-Se do nosso tamanho, Deus faz-Se mais pequenino do que nós para nos ensinar que os nossos começos humildes são aos olhos de Deus pontos de partida esplendidos para dar força ao pouco, ao medo, ao inacabado que existe em cada um de nós. Sintamos por isso que esta Noite Santa é uma noite que nos envolve, é uma noite que nos coloca no coração de Deus, é uma noite para sentirmos a festa, a alegria.

Hoje nós temos de ouvir a voz do profeta Isaías que diz: “Rejubilai, acreditai na alegria.” Temos de ouvir a voz dos anjos que falaram aos pastores: “Venho trazer-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje nasceu para vós um Salvador.” E se o nosso coração olha com receio, se o nosso coração não está preparado para esta alegria do Natal abramo-lo com confiança, demos uma oportunidade a Deus, a Jesus nas nossas vidas. E sintamos esta alegria que não é fruto nosso mas é este dom de consolação que Deus dá, que Deus oferece à vida de cada um de nós. Hoje, como diz o poeta: “Só quem dançar é que sabe, só quem bater as palmas é que sabe, só quem se alegrar é que sabe, só quem se colocar em silêncio diante do presépio é que sabe, só quem cair de joelhos diante de Jesus é que sabe, só quem sentir que esta palavra é o mapa da sua vida é que sabe, só quem sente que hoje é o primeiro dia da sua história é que sabe, só aqueles que no meio desta noite forem capazes de acender uma luz, uma frágil luz e que sabem, esses são o que é o Natal.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Missa da Noite do Natal do Senhor

2016/12/22 - Celebração Penitencial em tempo de Advento

No dia 22 de dezembro, às 21h, será a Celebração Penitencial em tempo de Advento da comunidade da Capela do Rato.

2016/12/18 - Como é que o Natal nos molda? (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

As personagens que os textos bíblicos nos oferecem neste tempo do Advento são personagens cheias de densidade. Não são personagens planas, são personagens que fazem um caminho de maturação, muitas vezes na apreensão, na dúvida, na incerteza porque eles não estão a ver como. São personagens de uma fragilidade, de um enigma, de um mistério. E também por isso são um espelho muito fiel das nossas vidas, das nossas contradições, dos nossos receios, das nossas dúvidas.

Nós caminhamos para o tempo de Natal, estamos a uma semana do dia de Natal, e com certeza no nosso coração há a pergunta: Como é que eu me vou abeirar de Jesus? Como é que esse encontro, neste ano de 2016, se vai realizar? Como é que o nascimento de Jesus há de constituir para mim próprio um nascimento? Como é que a Sua manjedoura há de  ser ocupada pelo meu corpo, pela minha vida, pelos meus projetos? Como é que eu vou fazer da minha história pesada, atravancada em tanta coisa, cheia disto e daquilo, de luz e de sombra, de esperança e de desalento uma vida que nasce? Como é que eu vou transformar isto tudo? Como é que eu vou fazer dos anos que eu tenho um primeiro dia, um quilómetro zero? Como é que eu vou ser Natal? No nosso coração amontoam-se perguntas, coisas por esclarecer, coisas que confluem para uma expetativa quase sem rosto, quase sem palavras. Nesse sentido, nós vivemos uma situação muito paralela às das personagens das leituras próprias do tempo do Advento.

Na primeira leitura do livro do profeta Isaías nós temos a personagem de Acaz, que é rei de Israel. Tudo isto se passa no século VIII antes de Cristo e Israel está dividida em duas partes. Há dez tribos que estão unidas numa espécie de coligação e têm a sua capital na Samaria. É o reino do norte. E há o reino do sul que são duas tribos da qual a maior é a tribo de Judá e tem como capital Jerusalém, onde está o rei Acaz. Estas duas confederações de irmãos estão em conflito, estão em guerra, o norte contra o sul. O norte está posicionado para atacar o sul. E o que é que faz Acaz? Pensa fazer uma aliança com o rei da Assíria para se defender dos seus próprios irmãos. É aqui que intervém o profeta Isaías dizendo: “Isto não faz sentido nenhum, nós temos é que nos entender com Israel. Temos de resolver os nossos dilemas, os nossos egoísmos regionais e temos de criar uma confederação nacional. Porque nós temos uma herança comum, nós temos uma lei, nós temos uma terra, nós temos um Deus, nós temos uma aliança. Não faz sentido estar a procurar o apoio de potências estrangeiras para resolver conflitos que são nossos.”

Isaías tenta convencer o rei Acaz, vem ter com ele (é a leitura de hoje) e o profeta diz: “Pede um sinal a Deus para perceberes como Deus está do teu lado, como Deus quer de facto que a resolução seja pacífica e interna.” O Rei Acaz resiste e diz: “Não, não vou incomodar Deus.” E às vezes este é o nosso erro. Nós não queremos incomodar Deus. No fundo, nós não queremos que Deus seja mediador dos nossos conflitos, da reconfiguração da nossa vida, das nossas relações. Preferimos resolver ad hoc desta forma muitas vezes disparatada de buscar o apoio a potências estrangeiras, muitas vezes agravando o próprio problema, em vez de colocar Deus no centro da resolução da nossa vida. E é isso que Acaz não quer fazer. Então, o profeta diz-lhe: ”Olha, tu não queres pedir a Deus um sinal mas é o próprio Deus que vai dar um sinal. A Virgem conceberá e dará à luz um filho e o Seu nome será Emanuel, quer dizer: será Deus connosco.” Nós não queremos incomodar Deus mas Deus vem ao nosso encontro, Deus toma a iniciativa de tomar a nossa história, de plantar a Sua tenda no meio do Seu povo, de nascer no meio de nós, no nosso coração, no interior da nossa história, das nossas famílias, da nossa casa, da nossa cidade. Deus nasce, e nasce para nós podermos nascer, e nasce como foco de esperança, e nasce para tornar possível aquilo que tantas vezes nós julgamos que é impossível. Nasce para connosco resolver a nossa vida, nasce para connosco abater o murro de inimizade que nos separa e construir uma lógica de reconciliação e de paz.

A mesma coisa no Evangelho de S. Mateus que nós lemos. É interessante que nós temos dois Evangelhos da infância de Jesus, um contado por S. Lucas, um contado por S. Mateus. S. Lucas toma o ponto de vista de Maria, o anjo vem e anuncia a Maria. S. Mateus, porque é um Evangelho para responder às questões dos Judeus, é um Evangelho contado do ponto de vista do pai, porque em Israel somos filhos do pai. Então, é o pai que tem de ser a chave da identidade de Jesus. Por isso, o protagonista do Evangelho de S. Mateus não é Maria mas é José, e a anunciação é feita a José, só que não é o anjo Gabriel que vem mas é um sonho que José tem. E nesse sonho, como nos nossos sonhos, nós vemos emergir o quê? A nossa vida vulnerável, os nossos medos, as nossas inquietações, a nossa nudez. Os pontos de dor da nossa vida emergem nos nossos sonhos. Mas também o nosso desejo, mas também a nossa vontade de transformação – o sonho de José também é tudo isso. No sonho ele ouve a voz: “Não temas, não tenhas medo, aceita Maria por tua esposa e tu terás uma missão na vida deste filho, tu pôr-lhe-ás o nome de Jesus.” E José sai daquele sonho reconfortado, decidido a dizer “Sim”, decidido a arriscar, a tomar o risco de receber Jesus na sua vida com todas as consequências desse nascimento.

Queridos irmãs e irmãos, nós recomeçamos o ano litúrgico e recomeçamos com o tempo do Advento e o tempo do Natal. Nós estamos a reviver os mistérios centrais da nossa fé, estamos a reviver o mistério da encarnação de Jesus. Já passaram vários natais na nossa vida, se calhar nós já não temos a naiveté, aquela simplicidade de coração, aquele fascínio, aquele natal de um tempo de criança que é tão belo, puro sobressalto em que todos os símbolos falam. Se calhar neste momento os símbolos já não nos falam, achamos o Natal uma maçada, achamos que é um tempo até agressivo. Eu conheço pessoas que ficam doentes com o Natal, querem é fugir para uma terra onde não se oiça falar do Natal, que seja verão, que seja inverno, que seja o fim do mundo mas tudo menos o Natal. E se calhar têm razão, ou têm razões dentro de si. Mas a grande questão é que nós observemos que aquelas pessoas que detestam o Natal também têm paralelo naquelas pessoas que gostam muito do Natal mas o Natal quentinho, o Natal em que nos vestimos de certa maneira e comemos à mesa e repetimos os gestos e fazemos tudo e cumprimos o Natal. E depois, o Natal foi apenas uma tradição social, um ato de convivência e foi o mais inofensivo, o mais neutro possível. E isso também não é Natal.

No fundo, como é que o nascimento de Jesus interroga, interpela, mexe connosco? Mexe com aquilo que somos, mas mexe com as nossas inquietações, os nossos medos, os nossos desejos, as nossas expetativas profundas. Como é que o Natal nos molda como mulheres e homens de uma forma nova? E essa é a grande questão, essa é a grande questão.

Nós hoje lemos o início da Carta de S. Paulo aos Romanos, que é um dos grandes textos identitários sobre o que é ser cristão. A primeira frase da Carta aos Romanos é uma frase emblemática. Paulo diz assim: “Eu, Paulo, escravo do Messias Jesus.”, “Eu, Paulo, que me faço escravo, que me declaro escravo do Messias Jesus.” Paulo é um caso extraordinário na descoberta daquilo que significa Jesus, para ele Jesus é o Messias, e se Jesus é o Messias ele tem de viver de outra forma completamente nova. Quer dizer, começou o tempo do Messias, começou o tempo do fim. Isto é, a Lei, a regra, a lógica, a organização do mundo, as minhas conceções do mundo tudo isso foi superado porque nasce uma verdade maior que é a verdade do Messias. Agora tudo tem de ser interpretado à luz do Messias. E o que é que Paulo é? Paulo é um escravo disto, Paulo é um servo disto. Paulo amarra a sua vida à verdade do Messias, à verdade de Jesus, à verdade do presépio.

E no fundo, a grande questão do Natal é esta: como é que eu ligo, colo, amarro, ancoro, inscrevo a minha vida na vida do Messias? Como é que eu me sinto isto que Paulo se sente: instrumento, canal da alegria do Evangelho do Cristo Messias? É esta a expetativa fundamental no tempo do Advento.

Queridos irmãs e irmãos, o tempo do Advento não é só nosso, não somos apenas nós que temos a expetativa de Jesus. Reduzir Jesus apenas a uma alegria privada, a um assunto privado, é um erro. Nós somos apóstolos, nós somos discípulos, nós somos testemunhas, nós somos enviados. Como diz Paulo: “A criação inteira, o mundo inteiro espera a revelação dos filhos de Deus, espera o testemunho que nós possamos levar.” E por isso, a vivência do Natal não é só uma questão que me diz respeito a mim. Mas a expetativa para que o Natal verdadeiro aconteça é uma expetativa que nós encontramos em todos os corações, em todos os olhares e que depende de nós a resposta. Sintamos também a responsabilidade de estar a viver este tempo, esta hora, esta espera.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Advento

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2016/12/18 - Uma proposta diferente para viver o Advento

Um Diário de Preces a partir de Flannery O’Connor, na Capela do Rato, domingo, dia 18 de dezembro, às 16h00.

Um Diário de Preces começa por ser um dos mais inesperados e essenciais diários espirituais do século XX, escrito por uma daquelas escritoras que valem por uma inteira literatura, a norte-americana Flannery O’Connor. É o relato de uma aventura interior, o tracejado de um espírito interrogador perante o poder da oração e o sentido do Absoluto nas nossas vidas. O encenador Miguel Loureiro pegou neste texto e confiou-o à interpretação uma grande actriz, Isabel Abreu. O resultado é imperdível.

Flannery O’Connor autoria
Paulo Faria tradução
Isabel Abreu interpretação
Miguel Loureiro encenação
Nuno Meira desenho de luz
Nuno Pratas direção de produção
Teatro Nacional D. Maria II e Teatro do Vestido agradecimentos
Coprodução | CCB | Culturproject

2016/12/15 - Percurso de Preparação para o Crisma

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2016/12/11 - A alegria é um estremecimento (homilia)

Queridos irmãos e irmãs,

Celebramos hoje o Domingo Laetare, o domingo da alegria, o terceiro domingo do Advento. Os que caminham experimentam a alegria contemplando, mesmo que ao longe, o lugar para onde se dirigem.

No caminho para Santiago de Compostela há um momento, uma parada, uns 20 Km antes, onde os peregrinos lavavam as suas roupas, robusteciam-se para entrar na cidade de Santiago e dar o abraço a Santiago não como uns mendigos cheios da poeira e do cansaço das estradas, mas renovados e em festa. É essa alegria de uma meta próxima, de um porto, de um abrigo que o nosso coração adivinha que nos faz estar em sobressalto.

E o que é a alegria? O Ricardo Araújo Pereira, que é um especialista na alegria, e temos também de o ouvir, conta muitas vezes que começou a descobrir o humor e o riso em criança, como vêm as grandes vocações, e porque estava em convívio com uma avó muito deprimida. O que ele faz é tentar fazer rir a avó. Cada riso da avó era para ele uma vitória. E como é que ele entendia o riso? Como a capacidade que um corpo tem, sem tocar no outro, de despertar uma reação bonita, feliz no outro.

Então, a alegria não é uma coisa vaga. A alegria é, e os Evangelhos contam isso de forma concreta, um estremecimento. A alegria é uma emoção que nos percorre, a alegria é alguma coisa que nos toca, que nos transforma.

A alegria neste Domingo Laetare também não é uma alegria vaga, uma alegria abstrata. Nós sabemos porque é que experimentamos uma alegria. E esse saber vem da pergunta que João Batista manda fazer a Jesus. A situação é impressionante, João Batista está preso e sabe que a sua morte está próxima, mas manda perguntar a Jesus: “És Tu Aquele que há de vir? Ou devemos esperar outro?” É interessante a palavra em grego porque é um particípio presente: o erchómenos, “tu és Aquele que vem?” E este “o erchómenos”, “Aquele que vem”, é uma espécie de senha para falar do Messias escatológico, do profeta do fim dos tempos, Daquele que havia de vir consumar, dar um sentido pleno à história e à vida. Por isso João Batista manda perguntar: “Tu és Aquele que vem ou devemos esperar outro?” A resposta de Jesus é espantosa, porque não é um “sim” ou um “não”, é uma resposta narrativa: “Ide contar o que vedes e ouvis.” E então o que é que se vê? Vê-se o impacto messiânico na vida concreta daquelas pessoas, vê-se o impacto da chegada de Jesus naqueles corações, e de repente esta liberdade, esta libertação: os cegos veem, os coxos andam, os mortos ressuscitam, a Boa Nova é partilhada com os pobres. Isto é, a história está a ser transformada e isso é uma fonte de alegria, e isso confirma que o erchómenos, aquele que está para vir verdadeiramente chegou.

A razão da nossa alegria não é uma ideia vaga, não é uma expectativa sem rosto, sem nome que cada um de nós alimenta um bocadinho às cegas dentro de si. Não, a nossa alegria brota daquilo que somos capazes de contar uns aos outros, das histórias que somos capazes de narrar. Isto é, da vida multiplicada, da vida acontecida, daquilo que em nome de Jesus continua a acontecer nas nossas histórias, daquilo que a fé em Jesus é capaz de despertar, é capaz de fazer irromper como sobressalto, como emoção, como irradiação de vida em cada um de nós. É isto que contamos uns aos outros, e é isto que dizemos àqueles que estão presos, é isto que dizemos àqueles que aguardam com expectativa a vinda de um sentido, a chegada de uma luz, é isso que nós temos a missão de contar. Isto que vemos e ouvimos.

Queridos irmãs e irmãos, o tempo do Advento é um tempo muito comprometedor, porque é o tempo do Messias. Nós vivemos a nossa vida muitas vezes como se não esperássemos nada, como se tudo estivesse realizado, como se tudo estivesse consumado, como se só contássemos apenas com as nossas forças, com aquilo que trazemos para explicar o enigma da história. Muitas vezes nós fechamos a nossa porta e fechamos mesmo, fechamos o nosso coração e trancamo-lo mesmo, e não contamos com mais nada. Acreditamos em Deus mas isso é uma crença, é uma convicção, não é um poder transformador das nossas vidas. Ora, o tempo messiânico é habitar a tensão do Messias que vem, é não contar só com as pedras que temos na mão, não contar só com as nossas forças, mas contar com aquilo que Ele nos traz. Não apenas contar connosco mesmos, com a nossa fragilidade ou o nosso voluntarismo, mas contarmos com a energia salvadora, transformadora do próprio Jesus. É esse rasgão, essa abertura, essa hospitalidade que fazemos ao Deus que vem que nos sobressalta, que nos enche de alegria, que nos dá razões para acreditar, para festejar.

Queridos irmãos, o Natal não está arrumado numa caixa que nós abrimos anualmente e tiramos de lá os ornamentos, as musiquinhas e as luzinhas, e pomos tudo a piscar e a construir como um teatrinho anual que fazemos uns aos outros para nos consolarmos daquilo que não somos. Não, o Natal é um berço, o Natal é uma manjedoura, o Natal é a possibilidade da mulher e do homem que somos nascer verdadeiramente. E nascer porque Deus vem, Ele é o erchómenos, nascer porque Ele nos levanta. Nascer porque Ele nos faz ser, nos faz ser, nos faz ser!

O Natal não é um símbolo, o Natal é alguma coisa que está a acontecer. É como uma gargalhada que nós damos, como um sorriso que nós damos, forte e que altera o nosso corpo. O Natal também nos altera. E altera-nos não na epiderme, não na superfície, altera-nos profundamente porque Ele está connosco, Ele é o Emanuel, Ele passa a ser o companheiro das nossas vidas. Não contamos apenas com aquilo que trazemos, com aquilo que conseguimos, colocamo-nos por inteiro nas mãos Dele. E isto faz toda a diferença.

Queridos irmãs e irmãos, vivamos o Advento nesta profundidade que Ele nos pede. É tão fácil distrairmo-nos nestes dias que são muito curtos para tudo aquilo que são as obrigações sociais, familiares, culturais, profissionais – temos de estar com isto e com aquilo e mais a pensar no outro. É muito fácil pensar em tudo e deixar de lado o essencial. Por isso, há aqui uma sabedoria, há aqui um alerta, há aqui uma chamada profética a dizer: “ Concentra-te, abre os olhos, abre o coração, compromete-te.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento

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2016/12/08 - Olhar com os olhos de Deus (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Nós lemos neste dia o livro do Génesis. É interessante que pensando no símbolo da árvore de Natal nos perguntemos como é que ele surge. Ele surge porque, no final da Idade Média, se começou a representar no dia de Natal, às portas da Igreja, precisamente este texto do livro do Génesis. Colocava-se uma árvore e havia um diálogo entre Deus, Eva e Adão, e este diálogo antecedia o começo da celebração. Como era no inverno e como se pressupôs que o fruto da Árvore Original era uma maçã e no inverno não havia maçãs – agora há todo o ano- então pendurava-se um fruto a fazer de maçã. Por isso é que aquela árvore começou a ser decorada com frutos não naturais. Aos poucos, ali na região da Alsácia, na Alemanha, começou esta tradição há quatro séculos atrás de construir no Natal uma árvore. E nós encontramos as primeiras estampas de Natal e as primeiras descrições de uma árvore de Natal e o efeito que ela tem sobre o olhar das crianças e sobre o coração dos adultos. Por exemplo, no Werther do romance do Goethe aparece uma das primeiras descrições de uma árvore de Natal.

É muito belo como estes símbolos falam. A árvore de Natal o que é? É a Árvore da Vida, é a árvore que representa esse momento inicial do drama humano, do drama do pecado e da Graça, de como Deus não desiste da nossa história. Aquela árvore que primeiro foi o lugar da tentação depois tornou-se em Árvore da Vida. Porque foi numa árvore da Vida, num madeiro da Vida que o nosso Salvador foi crucificado. Então, aquela árvore tornou-se a árvore que simboliza para nós a própria salvação.

Nós, cristãos, lemos a história em chave de renovação. A história nunca está perdida, nós nunca podemos dizer: “ É irremediável, é irrecuperável, não há nada a fazer.” Pelo contrário, sentimos que a história é tornada reversível, o que era o fim pode ser um princípio porque Deus investe aí a Sua Graça. Mesmo em relação à história humana, nós podemos pensar: “O Homem é pecador, o Homem é frágil, o Homem tem dentro de si esta luta terrível entre o bem e o mal e tantas vezes é o mal que vence e o bem fica oprimido, fica adiado nos nossos corações.” E, contudo, nós ouvimos, como ouvimos hoje nesta leitura da Carta aos Efésios, e ficamos siderados com as coisas que S. Paulo diz olhando para o ser humano com os olhos de Deus: “Não, não, não és um ser perdido, pelo contrário, és predestinado, és amado, és preparado, és trabalhado para receber a Graça, para seres o cântico de louvor, para seres o lugar onde a luz brilha, onde Deus habita.” O cuidado, o amor que Deus investe na nossa humanidade!
Queridos irmãs e irmãos, em tempo de Advento é tempo para olhar para a humanidade com os olhos de Deus, como o lugar sagrado, a história sagrada por excelência e acreditar que nada é irreversível, que nós não podemos tornar fatal a nossa história, acreditar que há um fado destrutivo em relação àquilo que somos. O Cristianismo vem desfatalizar a história, abrir a história neste Deus que assume a nossa condição humana. E por isso nós, recuperando as narrativas evangélicas, construímos nas nossas casas o presépio, e vamos construir também aqui na nossa Capela o presépio, que é no fundo o Deus que Se faz menino, que como todos nós começa assim a Sua história. Um Deus que encarna na nossa carne, na vitalidade tipicamente humana, nesta mistura de carne e de sonho, nisto de cinza e de infinito que cada um de nós é o próprio Deus vive também a Sua aventura.

Ele vem para nós podermos ser. Deus torna-se o Homem para que o Homem se sinta divino. E é tão importante que neste tempo de Advento cada um de nós se sinta divino, porque cada um de nós é divino. Aquilo que nos habita, o sopro que nos habita é um sopro divino. Por isso, a nossa vida é chamada a refletir essa luz, a refletir essa verdade essencial que repousa sobre cada um de nós e que repousa sobre cada criatura. Nós temos a missão de avivar, de dizer isso, de dedicar aos outros palavras de afeto, de entusiasmo, de consolação, de exortação. Porque cada um de nós é uma coisa de Deus, é uma presença de Deus, é uma teofania, é um lugar onde Deus Se manifesta, é um sorriso de Deus, é uma expectativa de Deus. E isto tudo de uma forma muito concreta. Nós hoje celebramos Maria. Quer dizer, no Cristianismo não são ideias, são vidas, vidas concretas. Sabemos os nomes, a biografia conta, a nossa história é para aqui reclamada, é esse o compromisso. Há uma história concreta que nós contamos. A história desta rapariga chamada Maria que vivia em Nazaré, que tinha um noivado com um homem chamado José, a história do que ela sentiu, de como Deus vem à sua vida, de como ela fica perturbada com a grandeza daquilo que lhe é pedido, mas como ela na sua humildade confia e diz “Sim”. Diz ”Sim”, “Fiat”, “Eu sou a escrava do Senhor, faça-se, cumpra-se, realize-se”. E num “Sim” a história abre-se, a história reabre-se, torna-se o rio de Deus, a torrente por onde a Graça de Deus passa. Hoje nós celebramos o “Sim” de Maria mas pedimos a Deus a força para cada um de nós dizer “Sim”, dizer “Faça-se”, dizer “Cumpra-se”. Porque é quando dizemos isso na nossa humildade – e ninguém é mais humilde do que Maria – “Sim, faça-se” que de facto há um rio transbordante de Graça, de vida, de entusiasmo, de uma forma que até nós não sabemos.

Nós pensamos: Maria tinha consciência de tudo? Não, entregou-se, disse “Sim”. Que, do fundo da nossa vida, nós também possamos dizer “Sim” a este Deus que vem, que vem até nós e vem através de nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Imaculada Conceição

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Novembro

2016/11/24 - Percurso de Preparação para o Crisma

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2016/11/20 - Cristo, imagem de Deus invisível (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Nesta Festa de Cristo Rei nós temos como Carta de Paulo esta página da Carta aos Colossenses. É um texto curioso. A comunidade de Colossos era uma comunidade fundamentalmente constituída por pagãos, por cristãos que vinham de outra cultura, de cultura helénica, e que no fundo achavam que a salvação acontecia de muitas maneiras e que havia muitos mediadores da salvação. E Paulo escreve esta Carta aos Colossenses, que é uma carta que arranca precisamente com o chamado Hino Cristológico que nós ouvimos hoje nesta festa. É um hino que começa por dar graças a Deus, criar um ambiente de louvor mas depois tem dois núcleos fundamentais. O primeiro, dizer aquilo que Cristo é: dizer que Ele é imagem de Deus invisível, que Nele nós podemos ver aquele Deus que os nossos olhos de carne não veem, que Ele é verdadeiramente o mediador da salvação que o nosso coração espera. E depois, na segunda parte específica, conta o papel de Jesus Cristo na História da Salvação: dizendo que é por Ele que obtemos a paz, que é por Ele que obtemos a reconciliação, que é por Ele que obtemos a consciência de que somos filhos amados e que somos verdadeiramente irmãos, capazes de construir um mundo substancialmente, qualitativamente melhor.

É interessante esta confissão de fé, este credo que S. Paulo assina na Carta aos Colossenses. Porque, quem é este Cristo? Quem é Jesus? Como é que Ele emerge na nossa vida? S. Paulo no Hino Cristológico usa a metáfora da realeza. Cristo é o Rei, Cristo é o rosto, Cristo é o Senhor, é o Kyrios. Mas, como é que nós O vimos, como é que nós O reconhecemos assim? E reconhecemo-Lo assim nesta página escandalosa do Evangelho de Mateus, em que nós assistimos ao escândalo dos judeus, ao escândalo dos romanos que olham para Aquele pretenso Messias, suspenso numa cruz, na mais completa impotência, na mais absoluta inanidade. Incapaz de tudo, incapaz de um gesto, porque tem os braços presos na cruz, Este Cristo amarrado àquela morte terrível. Eles olham para Ele e troçam, e dizem: “Mas como é que é? Salvaste os outros, salva-Te a Ti mesmo. Se és Tu o Messias desce da cruz para nós acreditarmos em Ti.”

Essa impossibilidade radical de descer da cruz, esse absoluto despojamento, essa pobreza radical, esse quase absurdo de vazio, de sofrimento, de não afirmação é o único lugar que nós temos para perceber como Ele é o Rei, como Ele é o Senhor. Isto é, temos de converter o nosso olhar, temos de converter a nossa visão, a nossa perspetiva sobre o que é um reino e sobre o que é uma realeza para chamar a Cristo, Rei. Porque Ele é Rei mas pela vulnerabilidade, Ele é Rei pela impotência, Ele é o Rei pelo dom radical de si, Ele é Rei porque não pode salvar-Se a Si mesmo. Porque caminhou de olhos abertos para aquele momento da Sua vida em que não podia salvar-Se a Si mesmo. Não podia porque não queria, porque a Sua decisão fundamental foi de viver em amor até ao fim.

E quem vive em amor perde o pé. Quem vive no amor radical, no amor verdadeiro tarde ou cedo acaba por não ser dono de si mesmo, tarde ou cedo acaba por viver com os braços atados a uma cruz, tarde ou cedo acaba por viver nessa pobreza de não impor a sua vontade, de não impor a sua força, de não manifestar o seu poder. Mas, pelo contrário, de calar, de calar, de calar, de morrer, de esvaziar-se, de dar espaço, de oferecer-se no silêncio absoluto com que Jesus ofereceu a Sua vida.

E é assim que nós O contemplamos, neste silêncio, neste esvaziamento de Si que continua a ser para nós o grande sinal, continua a ser para nós o grande caminho, a grande lição. Uma vida de amor, uma vida feliz é assim, e não é de outra maneira. Cristo é uma sabedoria, a Cruz é uma sabedoria, é uma forma de conhecimento, “é uma nova ciência” como escreveu Sta. Edith Stein. É uma nova ciência a ciência da Cruz, é uma nova filosofia, é uma nova proposta de vida que Jesus faz, e que passa exatamente por isso: levar o amor até ao seu extremo. Levar o amor até àquele ponto sem retorno, sem retorno. E nós só somos príncipes do amor se estivermos disponíveis para dar a vida pelo amor. É aí que o amor nos coroa como seus príncipes, como suas princesas, como seus reis, como suas rainhas, como seus apóstolos, como seus símbolos. O símbolo do amor é aquele que se deixa destruir pelo amor, habitar a um ponto tal que o amor torna-se o lugar da consumação, o lugar da chama, o lugar onde a vida inteira é ali colocada. E não dividimos, não calculamos, não pomos nada para o lado mas concentramos tudo no amor.

É interessante o que nós liamos na primeira leitura. Israel era um conjunto de tribos, eles eram os clãs, as famílias, depois aquelas doze tribos cada uma da sua parte com a sua história, as suas divisões, as suas guerras, os seus ódios. E, a um dado momento, eles dizem: “Não, nós temos de superar estas divisões e temos de fazer uma confederação de tribos.” E a confederação é um gesto político mas também um gesto religioso que acontece como nós ouvimos em Hébron: as doze tribos vão ter com David e dizem-lhe esta coisa muito bela: “Tu és ossos dos nossos ossos, és carne da nossa carne, representa-nos, sê para nós um rei.”

Queridos irmãs e irmãos, neste dia da Festa de Cristo Rei é isto que nós dizemos, olhamos para a cruz e dizemos: “Tu, Cristo, és ossos dos nossos ossos e carne da nossa carne, representa-nos, representa-nos. Sê para nós um Rei, sê para nós um farol, sê para nós uma estrela, sê para nós um guia, sê para nós um pastor, sê para nós Aquele que nos conduz.” Ele está sempre pronto a estabelecer esta aliança connosco.

É muito bela a história do ladrão arrependido que, no cimo da cruz, naquele instante derradeiro volta-se para Jesus com este pedido: “Senhor, quando vieres na Tua realeza lembra-Te de mim, lembra-Te de mim.” É uma das mais belas orações que o Novo Testamento tem. “Senhor, quando vieres na Tua realeza lembra-Te de mim.” E Cristo responde-lhe imediatamente: “Hoje mesmo estarás comigo.” A nossa súplica é uma súplica atendida – as nossas orações, os nossos desejos, nem que seja pedir ao Senhor assim de uma maneira vaga, pouco expressa: “Senhor recorda-Te de mim, lembra-Te de mim.” E Ele lembra-se e garante que se lembra, e diz-nos: “Hoje mesmo estarás comigo.”

Esta força de Se tornar próximo da vida daqueles que O procuram só acontece pelo amor, pela radicalidade de amor que levou Jesus à impotência, à dádiva radical, à impossibilidade de salvar-Se a Si próprio. Porque, acima de tudo, Ele queria salvar o outro, Ele queria salvar-nos a nós. Jesus viveu assim uma vida de entrega.

Hoje ouvi uma definição de esperança muito bela que diz: “A esperança é o milagre de uma vida sem milagres.” Na vida de Jesus não houve milagres, Ele não foi poupado a nada, não houve milagres, a vida Dele foi um não-milagre. Mas foi também o grande milagre da esperança, o grande milagre da confiança e o grande milagre do amor: acreditar que a vida pode ser dada, a vida pode ser entregue e multiplicada, como acontece em cada Eucaristia.

Cristo, Tu que és ossos dos nossos ossos e carne da nossa carne sê para nós um Rei.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

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2016/11/15 - Soli Deo Gloria

No último encontro “Soli Deo Gloria”, um diálogo entre a Palavra, o Sagrado e a Música, em torno das Suites para Violoncelo de Johann Sebastian Bach, teremos a Suite nº5, em Dó menor, com alocuções de Mário Cordeiro e de Eduardo Lourenço, e o violoncelo de Irene Lima. Será no dia 15 de novembro, terça feira, às 21h, na Capela do Rato. A iniciativa é coordenada por Bruno Caseirão e tem o apoio da Antena 2.

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2016/11/13 - Adquirir a alma na paciência (homilia)

Queridos irmãs irmãos,

Nós estamos a aproximarmo-nos do final do tempo litúrgico que conclui com a Festa de Cristo Rei. Porque a liturgia é cíclica, nós começamos com o tempo do Advento, vamos até ao Cristo Rei, e depois voltamos a começar um novo ano litúrgico. Em cada ano vamos lendo um Evangelho. No próximo ano vamos ler o Evangelho de S. Mateus.

Estes últimos domingos do tempo litúrgico são domingos destinados a meditar sobre o tempo. O que é o tempo? Como é que nós vivemos o tempo? Como é que nós experimentamos o tempo que passa e ao mesmo tempo o definitivo? O que é que não passa? O que é que não muda? O que é que não se altera? No fundo, o que é podemos esperar, como nós refletíamos no domingo passado?

A questão sobre o tempo, para nós cristãos, introduz o tema do messianismo. Nós hoje praticamente esquecemos esse tema e vivemos na história como se a história fosse autossuficiente e como se ela se justificasse a si própria. Mas, desde o princípio, o Cristianismo é também o movimento messiânico. É o movimento cujos referentes não são apenas aqueles da ordem temporal, da ordem do mundo vigente – nós vivemos numa expectativa, nós vivemos numa espera! Na espera de uma transformação que começamos a viver já dentro de nós. Porque tudo começa aí, nesse encontro transformante com Jesus dentro de cada um de nós. Mas nós acreditamos que a história terá um desfecho e que esse desfecho será o encontro com Deus, com aquilo que Deus é.

A linguagem dos textos bíblicos é muito uma linguagem de poder – a linguagem da soberania, a linguagem do rei que volta, a linguagem do juiz da história. Mas, no fundo, é percebermos que Deus é o grande critério de avaliação da própria história.

A filosofia ajuda-nos a pensar esta questão do tempo e esta questão do messianismo. Nós, o ano passado, tivemos o belo curso programado aqui pela Luísa Ribeiro Ferreira, que nos ajudou a perceber como é que os filósofos tematizavam a questão de Deus.

Por exemplo, sobre o Evangelho de hoje há um sermão muito precioso do Kierkegaard, ou Kierkgord como alguns dizem em dinamarquês. Ele pega na última frase do Evangelho que hoje nós ouvimos e que nesta tradução diz: “Pela vossa perseverança salvareis as vossas almas.” Faz uma tradução que não depende tanto do latim e que diz: “Adquirireis a vossa alma na paciência.” E faz uma reflexão muito interessante sobre este discurso de Jesus, que penso que nos pode ajudar. Ele começa por dizer: “Nós pensamos que já temos a nossa alma, que a única coisa que temos a fazer é não a perder e salvá-la, mas à partida nós já a temos.” Mas ele parte de um pressuposto diferente, ele diz: “Não, nós temos de adquirir a nossa alma.” E “adquirir”, diz ele, “é um bom verbo.” Porque “adquirir” quer dizer comprar, quer dizer conseguir possuir, conseguir alcançar. Como se compra um bem, como se adquire um bem precioso assim nós temos a tarefa de conquistar a nossa alma, de adquirir a nossa alma.

Isto é importante porquê? Porque para ele a vida é tarefa e é importante sentirmos isso. A nossa vida é uma tarefa. Nós estamos numa encruzilhada de liberdades, numa encruzilhada de hipóteses e nós temos de escolhermo-nos. Temos de fazer a escolha por nós próprios, a escolha por aquilo que é uma vida autêntica, uma vida verdadeira. Isso não é um dado, a vida verdadeira não é uma coisa que já temos, não é uma coisa que estamos a guardar zelosamente. Não, a vida verdadeira é uma escolha que nós fazemos, é uma decisão que nos cabe a nós fazer, em cada dia, em cada instante. Temos de a tomar como decisão fundamental da nossa própria existência. Por isso, nós temos de adquirir, de adquirir a nossa alma.

“Nós podemos pensar que o mundo é a nossa alma”, diz Kierkegaard. O mundo, o conhecimento, a riqueza, a grandeza, os nossos projetos, isto e aquilo, o que possuímos, o que temos – pensamos que isso é a nossa alma. Porque isso é que vai dizer: “Esta mulher realizou-se, este homem cumpriu-se.” Ele diz: “Isto é um erro, porque a alma do mundo não é uma alma que nós possamos adquirir. Porque tudo aquilo que possuímos, todos os bens materiais que nós temos verdadeiramente possuem-nos.” Nós temos a ilusão que temos o carro, verdadeiramente o carro é que nos tem a nós; nós temos a ilusão de que temos um bem, não, esse bem é que nos possui a nós, porque ele não é capaz de dialogar profundamente com a construção da nossa alma mais profunda. Por isso, não é a alma do mundo que nos vai dar uma vida autêntica mas é aquilo que só Deus nos pode oferecer e é aquilo que nós só podemos adquirir do próprio Deus. E podemos adquirir pela paciência.

Ele explica o que é a paciência: “A paciência é aquilo que um viajante tem de ter.” Quer dizer, um viajante, um peregrino que vai daqui a Fátima, ele sabe que tem de descansar. Ele sabe que se quiser chegar à meta tem de parar de caminhar durante um tempo, recuperar as suas forças e continuar. Isso é a paciência. Não se consegue tudo de uma vez. Às vezes é preciso a demora, às vezes é preciso o tempo de paragem, o tempo de pausa. Isso é a paciência na nossa vida. Como o agricultor não pode entrar numa ansiedade em relação à semente que deitou ao campo e ir lá escavar para ver se ela já está a brotar ou não, a germinar ou não. Não, ele tem de esperar que a coisa aconteça. Também nós temos de esperar na paciência a emergência da vida autêntica.

Ele começa o sermão dele com uma metáfora: “Temos de ser como o pássaro pobre.” O pássaro rico é aquele que vem através das coisas espetaculares, das coisas que se podem exibir, que se podem mostrar. O pássaro pobre vem apenas nú, com as suas asas através do vento. Se queremos construir uma vida autêntica, é por dentro, é por dentro. É através do vento do Espírito, mas também de uma decisão fundamental, que nós temos de cumprir a nossa própria existência.

O que é que Jesus nos diz no Evangelho? Ele diz-nos: “No mundo é tudo para relativizar.” Nós sabemos isto. Por exemplo, pensemos na história do Ocidente: impérios levantaram-se, impérios caíram; grandes projetos soçobraram; ainda o século XX, as grandes ideologias de resolução da história, a derrapagem trágica, dramática a que nós assistimos. Não é o mundo que nos dá a nossa alma. Por isso, a convulsão do mundo não pode nos capturar, não pode nos assustar. Temos de encontrar uma saída e a saída é escolhendo-nos a nós próprios, é escolhendo a nossa própria vida. Sabendo, com confiança, aquilo que Jesus nos garante: “nenhum cabelo da vossa cabeça se perderá.” Sintamos, por isso, a confiança profunda.

Um outro filósofo, este nosso contemporâneo, Giorgio Agamben, um italiano, tem refletido muito sobre o messianismo. Ele diz: “É pena que o próprio Cristianismo se tenha afastado da dimensão messiânica, porque ele no princípio começou por ser uma religião do messianismo.”

E o messianismo o que é? O messianismo, diz ele, “Não é viver na expectativa do fim, de um fim que está para chegar, mas é viver já hoje o tempo do fim. É sabendo que o fim já veio. E que, por isso, nós temos uma liberdade para ser, uma liberdade para amar que nos define verdadeiramente.” Porque na tradição judaica, onde o messianismo foi germinado, dizia-se isto: “Quando o Messias vier Ele vai absolver a Lei.” Porque a Lei vale até ao Messias chegar. Quando o Messias chegar começa um tempo diferente, é um tempo que já não é definido pelo código da Lei, mas é o tempo do Messias. É um tempo gerido, arquitetado por outros referentes.

Ora, nós cristãos acreditamos que o Messias já veio, e que por isso nós não vivemos justificados pela Lei, mas vivemos justificados pelo próprio Messias, pelo Seu testemunho, pela radicalidade da Sua vida, pelo amor que Ele nos permite. Por isso, no tempo messiânico os cristãos têm de ser profetas, têm de se levantar, têm de sonhar, têm de sentir essa liberdade para repensar o mundo e repensar a história.

Ainda ontem foi o funeral do Alfredo Bruto da Costa, ele é um cristão que dá um exemplo de uma liberdade muito grande face ao mundo. Nós, por exemplo, facilmente caímos num conformismo muito grande em relação a temas como a pobreza, como a desigualdade, como a diferença entre os seres humanos, como a erradíssima distribuição da riqueza e das possibilidades. Nós conformamo-nos muito a este modelo social. Ele era alguém que não se conformava, para ele a justiça de que nós ouvimos hoje ler nos Evangelhos era alguma coisa que habitava o seu coração e que inspirava verdadeiramente a sua ação. Ele era um homem livre face àquilo que é a nomenclatura deste mundo, a organização deste mundo. E sonhava possibilidades diferentes para o mundo.

Isto é, nós fazemos a experiência de que Cristo veio, de que a plenitude do tempo chegou, de que já começou o tempo do fim. Isso dá-nos asas, isso dá-nos desejos, isso dá-nos sonhos, isso dá-nos utopias, isso dá-nos um olhar novo sobre a vida, sobre nós próprios. Isso dá-nos uma amplidão que nos permite ouvirmos estas leituras e não sentirmos que um tijolo nos cai na cabeça e que é o fim e que isto tudo vai acabar e que não há solução. Não, esta reflexão sobre o tempo é para dizer: “A responsabilidade do tempo está nas vossas mãos. Ele já veio, e agora? E agora?”.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIII do Tempo Comum

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2016/11/06 - Caminhamos para o encontro (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Permitam-me começar com um episódio, quase uma anedota, de um escritor que visitou o nosso país e uma das coisas que o impressionou mais foi, nas estações de comboio, nas repartições públicas haver uma sala de espera. Ele ficou muito espantado com este povo peculiar que tinha até uma sala para a espera. Isto não quer dizer que nós saibamos esperar melhor do que outros povos.

Isto lembra aquilo que o Papa Bento XVI, que é um observador atento do catolicismo contemporâneo, na encíclica que ele escreveu sobre a esperança, Spe Salvis, salvos na esperança, começava por dizer: “Hoje, no interior do catolicismo, há um défice em relação à esperança.” Porque sobre a fé nós continuamos a perceber como ela é importante, como ela é significativa, como ela modifica e é central nas nossas vidas. Sobre a caridade, mesmo sendo difícil praticá-la, mesmo com toda a dureza de coração, é impossível nós não percebermos a centralidade que ela ocupa, e como ela é o primeiro dos mandamentos, que é o amor que nos revela o rosto de Deus. Mas, sobre a esperança aí nós temos de colocar muitas reticências. Porquê? Porque deixamos em silêncio esta categoria. É como se nós, contemporâneos, mulheres e homens desta modernidade tardia não soubéssemos já falar da esperança. E a pergunta sobre o que é que nos é possível esperar, o que é que eu espero, é uma pergunta que de certa forma se tornou um tabu cultural. Nós esperamos almoçar a seguir à missa, nós esperamos as pequenas coisas da vida. Mas em relação às coisas grandes há um silêncio incómodo, embaraçoso, que se abate sobre o nosso coração. E mesmo dentro do próprio espaço católico.

Há poucos anos fizeram uma sondagem no interior do catolicismo italiano, que é um catolicismo emblemático (ao menos para o espaço europeu), e verificou-se que 20% dos católicos italianos acreditam na reencarnação, não na ressurreição mas na reencarnação – porque dizem que é mais fácil acreditar na reencarnação. Se fizéssemos uma sondagem semelhante ao catolicismo português se calhar chegávamos a uma conclusão semelhante. Nós, quando ouvimos ‘reencarnação’ pensamos no Oriente, no budismo, no hinduísmo – não tem nada a ver com isso! Esta crença na reencarnação nasceu há 100 anos e nasceu com o espiritismo. Porque no hinduísmo a reencarnação é um mal, é um pesadelo e aquilo que nos salva é fugir do círculo inevitável das reencarnações. A pessoa só se salva, só fica resgatada quando já não tem de reencarnar porque reencarnar é ainda voltar a padecer. Esta visão circular da vida, de uma vida que não tem redenção, de uma vida que tem de regressar sempre ao seu princípio é uma visão que não é a visão cristã.

É interessante nós olharmos para a formação da fé na ressurreição, e eu usei de propósito a palavra fé. Porque uma das dificuldades em falar da esperança é porque nos faltam palavras para a dizer, as palavras são estreitas, desadequadas, ficam aquém do mistério, não temos palavras para dizer. E, de facto, nós no credo não dizemos: “E eu penso, e eu reflito, e eu cheguei a conclusões claras acerca da ressurreição dos mortos e da vida eterna.” Não se diz nada disso, diz-se: “Eu creio na ressurreição dos mortos.” A palavra “crer” vem de um verbo hebraico: Ãman. A palavra que nós dizemos tantas vezes: Ámen. Ãman quer dizer acreditar, confiar. Ámen quer dizer eu creio, eu confio. Não se trata de elaborar um pensamento acerca da ressurreição, mas trata-se de acreditar, de fazer confiança, de colocar o nosso coração aí.

É interessante nós olharmos para o itinerário bíblico, porque a fé na ressurreição só aparece no século II antes de Cristo. Reparem em tudo o que está para trás: uns acreditavam e outros não, e a maioria não acreditava. Há muitos livros da Bíblia em que não se fala na ressurreição, nem esse horizonte está presente. Por exemplo, o livro do Eclesiastes nós diríamos que é escrito por um agnóstico, alguém cujo horizonte de existência é unicamente o horizonte terreno, não há mais nada. Tudo desaparece debaixo do sol, tudo é vaidade ou, como diz o livro da Sabedoria de uma forma tão bela, “Tudo é a sombra de um sonho que passa.”

No século II antes de Cristo, muito a partir da resistência cultural que o Judaísmo começa a fazer ao Helenismo, que colonizava os países à volta, que entrava por Israel dentro, o inculturava e tornava outra coisa, surgem estes Macabeus que são os lutadores, os resistentes. Mas também resistentes culturais porque eles querem manter a integridade do Judaísmo face ao modos vivendi do Helenismo. Quando eles são perseguidos e são martirizados começam a dizer: “Não, Deus é fiel. Nós dizemos-lhe que sim e damos a vida por Ele. Sabemos que Deus há de garantir a nossa vida, sabemos que havemos de ressuscitar, havemos de ser levantados de novo em Deus. Por isso somos capazes de sofrer as maiores atrocidades, porque acreditamos nessa vida que o próprio Deus garante que é maior do que esta.”

Esta leitura que hoje lemos do Segundo Livro dos Macabeus é na Bíblia um dos textos mais antigos para falar da ressurreição. E “mais antigos” é o século II. No tempo de Jesus, dentro do Judaísmo, havia uma grande liberdade de pensamento em relação à ressurreição. Neste texto do Evangelho de Lucas que hoje lemos vêm os Saduceus, que não acreditam na ressurreição, colocar à prova Jesus. Jesus é mais da linha dos fariseus e acredita na ressurreição. Mas podia ser um bom judeu e acreditar na ressurreição ou não acreditar na ressurreição, não era um elemento decisivo, estruturante, da própria confissão religiosa e essa é também uma diferença em relação ao Cristianismo. Porque o Cristianismo faz da ressurreição uma verdade central da sua proposta. Nós somos cristãos e aquilo que nos distingue é precisamente a fé na ressurreição. Aquela manhã de Páscoa, aquele sepulcro vazio tornou-se o quilómetro zero da nossa história. Não quer dizer que não tenham existido dificuldades na fé na ressurreição e que ainda hoje elas não subsistam.

Nós lemos, por exemplo, as cartas de Paulo, Primeira Carta aos Tessalonicenses, Primeira Carta aos Coríntios, Segunda Carta aos Coríntios. Um dos temas fortes nessas cartas é o debate que Paulo tem com a comunidade porque alguns não acreditam na ressurreição. E também vemos a própria dificuldade de Paulo em explicar o que é a ressurreição. Ele começa por usar imagens muito realistas e depois vai usando imagens que sobretudo têm a ver com a transformação, com a mudança, têm a ver com o nascimento, com a imagem do parto. E é muito interessante isto que Jesus nos diz: “Porque nascem da ressurreição.” A ressurreição ser como uma espécie de parto, como uma espécie de nascimento.

Mas, para Paulo, para lá das imagens o que é que a ressurreição afirma fundamentalmente? Afirma que nós estaremos em Deus, que Deus estará sempre a garantir a nossa vida. A fé na ressurreição é a fé no Deus dos vivos, para quem todos estão vivos porque Ele é Deus dos vivos e não dos mortos, como Jesus nos afirma lendo Ele também o Antigo Testamento.

Queridos irmãs e irmãos, no credo que nós vamos rezar daqui a pouco nós vamos dizer: “Creio na ressurreição dos mortos e na vida eterna.” Nós somos chamados a acreditar na ressurreição dos mortos. Nós vamos ressuscitar, aqueles que partiram antes de nós ressuscitam em Deus.

E o que é essa ressurreição dos mortos? Uma das dificuldades em acreditar é muitas vezes a dificuldade da linguagem, a dificuldade de imaginar, a dificuldade de representar. Mas nós temos de saber que o limite é nosso. Hoje a própria ciência nos mostra que o que nós vemos do mundo é muito limitado – um microscópio vê muito mais que os nossos olhos. Por isso, seria irracional nós dizermos: “Eu só acredito naquilo que eu consigo compreender.” Não, a nossa capacidade de compreender é muito limitada também. Por isso, nós temos de abrir o coração a esta confiança: eu acredito na ressurreição dos mortos, e acredito nessa ressurreição como a assunção que Deus faz da nossa vida, completamente.
O que é acreditar na ressurreição da carne? Certamente não é acreditar na ressurreição destas moléculas, destas células, desta pele, mas é acreditar na ressurreição do nosso corpo, daquilo que nós somos.

E o que é o nosso corpo? Hoje a própria filosofia ajuda-nos a entender isso de outra forma. O nosso corpo não é apenas estes quantos quilos, estes quantos metros que assinalam um determinado espaço, estes quantos anos de vida. Mas o nosso corpo é linguagem, o nosso corpo é a nossa biografia, o nosso corpo são os nossos encontros, o nosso corpo é aquilo que nós amamos. O nosso corpo são as nossas paixões, são as coisas que fizeram bater o nosso coração. É isso, é isso o nosso corpo, é isso que nós somos e é isso que ressuscita em Deus. Não chegamos a Deus apenas como uma alma, apenas como um númeno, apenas como uma abstração. Não, nós chegamos a Deus com este conjunto do vivido, do encarnado, do experimentado, do sofrido, do sonhado, do amado que nós somos. E é isso que Deus abraça, é isso que Deus abraça.

Creio na ressurreição dos mortos, creio na ressurreição da carne. Isto é, creio que Deus abraçará isto que eu sou e será fiel a isto que eu sou. Porque em Deus nós sabemos que Ele é o Senhor da vida, que Ele é o Senhor da história. Por isso, nós não caminhamos para o apagamento, nós não caminhamos para o nada, mas nós caminhamos para o encontro. Nós caminhamos para esse grande parto que é, no fundo, a morte e a ressurreição. Esse grande momento transformador, esse grande momento de dom, esse grande momento de dádiva radical, esse grande momento de entrega total que é a nossa morte. Morte que hoje também deixamos de falar dela, temos medo de falar dela, adiamos, tornou-se um fantasma, um interdito das nossas sociedades, quando ela, de facto, é uma etapa fundamental na construção da nossa esperança.

E creio no mundo que há de vir. Creio nesse mundo que habita aquilo que Deus é, esse mundo que o próprio Deus tem no Seu seio, no Seu coração, esse mundo que é essa apocatástase, essa espécie de roda, essa espécie de lugar onde todos os vivos estão, essa espécie de solidariedade não apenas enquanto mortais mas de solidariedade nessa vida escatológica, nessa vida plena onde o próprio Cosmos também entra.

É um desafio nós pensarmos na esperança. Porque a esperança não é só para cada um de nós ter alguma ideia sobre a sua morte ou sobre a morte dos seus. A esperança marca o presente. Porque nós verdadeiramente vivemos conforme esperamos. E a verdade é que não podemos substituir a esperança pelo temor, por uma nebulosa: sei lá como é, não sei. E a verdade é que a maneira como vivemos diz que nós não sabemos, que nós temos muito medo, que é um susto. Porque a maneira que vivemos reflete isso, documenta o nosso medo, a nossa incerteza, a nossa ignorância. Mas quando nós sabemos há uma confiança, há uma simplicidade, há um desprendimento, há uma certeza, frágil que seja, mas que anima o nosso caminho.

Vamos rezar pela nossa esperança nesta sala de espera que é a nossa vida.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXII do Tempo Comum

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2016/11/02 - Reencontrar tudo por dentro do amor (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Uma questão que preocupou desde logo as primeiras comunidades cristãs, os textos por exemplo de S. Paulo refletem muito isso, foi verdadeiramente o destino dos mortos. Aqueles com quem partilhamos a fé, aqueles com quem partilhamos a vida, no fundo, qual é o seu destino? Se tudo acaba aqui ou se nós podemos acreditar que, para lá das evidências, para lá do que os nossos olhos veem, do que os nossos sentidos contactam há uma outra realidade em Deus?

De facto, no centro da proposta cristã há a fé na ressurreição. Nós somos cristãos porque acreditamos nesta coisa um pouco excêntrica, nesta coisa que espantou os sábios de Atenas. Que é acreditar que a morte não tem a palavra final sobre o destino humano, mas que a nossa vida é sempre vida em Deus. Que nós não nos apagamos como as tochas, como a luz de uma vela, mas que, de uma forma que nós não vemos, que a nossa carne não confirma, nós temos a nossa vida prolongada no mistério de Deus, na vida de Deus. E mais, que aqueles que partiram, verdadeiramente não partiram, continuam presentes em Deus. E que, nesse mistério em Deus, nós experimentamos essa coisa que é a Comunhão dos Santos, essa espécie de roda de mãos dadas em volta do mistério: quando não há ontem, nem hoje, nem amanhã, onde não há tempo, nem espaço, onde nada nos separa nem nada nos afasta mas nós vivemos essa comunhão espiritual em Deus.

É este também o centro da nossa fé. Por isso, nós celebramos este dia com a saudade, com o sentido de orfandade, com o vazio que nada nem ninguém pode completar, que é o vazio daqueles que nós amamos e que deixaram um vestígio inapagável nos nossos corações. Mas, ao mesmo tempo, nós olhamos para essa saudade e para essa memória com uma confiança muito grande, sabendo que estamos presentes em Deus e que em Deus está tudo – está a nossa gratidão, está a nossa esperança, está a nossa alegria – e que o sorriso de Deus é capaz de curar a amargura e o silêncio dos nossos corações. Por isso, para nós a celebração deste dia é um ato de fé, é um ato de confiança, é a certeza de que nada nos pode separar do mistério do amor.

É interessante aquilo que Jesus lembra no Evangelho de S. Mateus que hoje nós lemos. Jesus diz: “Tudo me foi dado por Meu Pai, ninguém conhece o Filho se não o Pai e ninguém conhece o Pai se não o Filho e aquele a quem o Filho O quiser revelar.” Isto não é um enigma de Jesus, é dizer: “Só por dentro do amor é que se conhece, só no interior de uma relação filial é que se sabe verdadeiramente, só experimentando o que é isto de ser filho.” No fundo, nós que somos filhos somos a eternidade de nossos pais porque os prolongamos, porque somos um bocado deles, somos a sua evocação, somos fruto deles. E ao mesmo tempo somos outras pessoas, outros seres, mas percebemos que é o mistério desse amor que nos funda. Aquilo que Jesus está a dizer é que só por dentro desse amor nós podemos entender o segredo da vida, podemos entender os porquês, podemos entender as grandes perguntas, o nascer e o morrer. Lembra aquele poema que o Herberto Hélder escreveu na morte da mãe. Ele perdeu a mãe quando tinha onze anos e, de certa forma, toda a vida na sua poesia há o eco deste luto, desta saudade pela mãe. Ele tem um poema muito conhecido em que fala das mães e é claramente uma homenagem de saudade à sua própria mãe. A dada altura, ele diz estes versos: “Até somente ser possível amar tudo e até somente ser possível reencontrar tudo por dentro do amor.”

É no fundo isto que Jesus nos diz: “Ninguém conhece o Filho se não o Pai, e ninguém conhece o Pai se não o Filho.” Isto é, há uma forma de conhecimento que só o amor nos dá. É essa forma que nós aqui evocamos lembrando o nome, a presença, o rosto e todos os nossos queridos mortos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos

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2016/11/01 - Soli Deo Gloria

No segundo encontro “Soli Deo Gloria”,  um diálogo entre a Palavra, o Sagrado e a Música, em torno das Suites para Violoncelo de Johann Sebastian Bach,  teremos a Suite nº2, em Ré menor, com uma alocução de Guilherme d’Oliveira Martins e o violoncelo de Irene Lima. Será no dia 1 de novembro, terça feira, às 21h, na Capela do Rato. A iniciativa é coordenada por Bruno Caseirão e tem o apoio da Antena 2.

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2016/11/01 - Jesus impresso no nosso coração (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

S. Mateus pensou colocar este discurso de Jesus no alto da montanha, onde Jesus está sentado como um legislador. Há claramente a intenção de criar um paralelo entre Jesus e a figura de Moisés, entre a antiga Lei, no Decálogo, nos Dez Mandamentos e a nova Lei com as Bem-aventuranças.

Mas a verdade é que as Bem-aventuranças são mais do que uma lei. Não são apenas uma norma. As Bem-aventuranças são um chamamento, um apelo, a possibilidade aberta de um encontro, mas também um reconhecimento à vida de cada um de nós, àquilo que já é, àquilo que o amor de Deus potencia em nós, àquilo que cada vez mais, progressivamente, se há de manifestar na vida de cada um de nós. Nós somos chamados à felicidade, nós somos chamados à Bem-aventurança.

Mas, se repararmos bem, as Bem-aventuranças são porventura o mais fascinante e exato autorretrato de Jesus. Em cada uma das Bem-aventuranças é como se nós, cristãos, pudéssemos contemplar um traço, uma característica do rosto de Jesus. Porque foi exatamente assim que O vimos no meio de nós. Foi exatamente assim que O reconhecemos. Pobre em espírito, com uma capacidade de acolher a todos, de precisar de todos.

Ainda este domingo nós ouvíamos Jesus a dizer: “Zaqueu! Desce depressa porque Eu preciso de ficar em tua casa.” É esta atitude de Jesus, a atitude de precisar dos outros, de depender dos outros, de abrir o coração ao dom que está muitas vezes sepultado entre as cinzas da esperança da Humanidade. Jesus coloca-se à espera desse dom. Nós vimo-Lo assim pobre, a bater à porta das nossas casas, chamando pelo nosso nome como chamou pelo nome de Zaqueu.

Nós vimo-Lo no meio da multidão. Ele é humilde, humilde e manso de coração. Ele não Se impõe, a Sua voz não se sobrepõe às dos outros, Ele não manda calar. A Sua voz é como a torcida que fumega, é a pequenina luz no meio da floresta do mundo.

Nós vimo-Lo a chorar sobre Jerusalém, a chorar a morte do Seu amigo Lázaro, a chorar a dureza do coração dos homens.

Nós vimo-Lo sedento e faminto de justiça. Nós olhamos para Jesus e encontramo-Lo devorado por uma outra realidade, insatisfeito, inquieto, desassossegado, a querer outras coisas, a desejar mais para cada um, percebendo que o nosso destino não acaba aqui.

Nós vimos Jesus misericordioso. Vimo-Lo deixar todos para ir à procura da ovelha perdida e, quando a encontrou, Ele trá-la aos Seus ombros. Vimo-Lo qual a mulher que procura uma moeda que se perdeu, Vimo-Lo varrer a casa, acender uma luz, vimo-Lo a encontrar a moeda perdida e festeja-la. Vimo-lo à maneira do pai misericordioso tomar a iniciativa de vir ao encontro do filho pródigo.

Nós vimos Jesus puro de coração, puro de coração. O contrário do cinismo, o contrário do niilismo, o contrário do pessimismo, o contrário das reservas, das defesas, da autossuficiência. Vimo-Lo transparente, vimo-Lo autêntico, vimo-Lo simples como uma criança a cada momento.

Conhecemos Jesus como Aquele que constrói a paz, Aquele que derruba murros de inimizade e aproxima corações desavindos. Vimo-Lo sofrer e sofrer de uma forma radical, oferecendo-Se Ele mesmo em sacrifício, de forma radical, por amor da justiça.

De maneira que estas palavras são para nós cristãos, antes de tudo, o retrato de Jesus impresso no nosso coração. Mas são o Seu retrato para nós sabermos como transformar o nosso rosto para nos tornarmos semelhantes a Ele.

O que é a santidade? A santidade é tornar-se semelhante a Deus. E como é que nós nos tornamos semelhantes a Deus, nós que somos poeira e sombra de um sonho que passa? Nós tornamo-nos semelhantes a Deus traço a traço por este guia, este mapa, por este guião que Jesus nos deixou que são as Bem-aventuranças.

É muito interessante aquilo que diz S. João: “Vede com que admirável amor o Pai nos amou em nos chamar Seus filhos e somo-lo de facto.” E depois diz: “Nós veremos a Deus porque nos tornamos semelhantes a Ele.” É quando nos tornamos semelhantes a Deus, quando nos tornamos o retrato de Deus, quando nos tornamos a Sua pegada, o Seu vestígio, a Sua memória, a Sua evocação, o Seu sinal. É aí que nos tornamos semelhantes a Deus e O vemos tal como Ele. Isto é, vemo-Lo por toda a parte, vemo-Lo por todo o lado.

Hoje nós celebramos a festa de Todos os Santos. Quem são? Aquele que vê, o vidente, no livro do Apocalipse aquela multidão de mulheres e homens, aquela multidão que não se pode contar vinda dos quatro cantos da terra, pergunta: “Quem são estes?” O Senhor pergunta a ele: “Quem são estes?” e ele responde: “Senhor, só Tu o sabes.”

Há um poema do Jorge Luís Borges em que ele fala dos justos que estão a salvar o mundo. Conta de um homem que está a ver as provas de um livro e esforça-se por não deixar passar um erro, daquele que cultiva com amor um pequeno jardim, daquele que faz gestos que não se vêem. E ele diz: “Estes justos estão a salvar o mundo mas não sabem.”

A dimensão fundamental da santidade é uma dimensão que nós não sabemos. Porque não se trata de identificar como santo. A santidade é anónima, a santidade não se dá por ela, não se pensa que é santidade. Ou o próprio não pensa, só no coração dos outros é que nasce a pergunta. Quando diziam a Dorothy Day que ela era santa ela dizia: “Não me digam isso! Não me afastem dos outros!” A santidade não é um pódio, não é os primeiros da classe, não são os avançados, aqueles que são colocados à parte, puros. Não, os santos andam a lavar os pés à Humanidade. Os santos andam a carregar os seus pesos, os santos andam a fazer rir, os santos andam a levar o saco das compras, os santos andam mais devagar para ir ao lado dos outros. Os santos falam, os santos calam, os santos cozinham, os santos jejuam, os santos fazem festa, os santos visitam prisões e hospitais. Os santos são os semelhantes a Deus, os semelhantes a Deus.

Queridos irmãos, nós podemos querer ser muita coisa e ter prioridades na nossa vida e metas. E sem dúvida vamos todos ser coisas muito diferentes, vamos sendo e já fomos, e atingindo o patamar das coisas importantes. Isso não interessa. Não tenhamos dúvidas, a única tarefa, a única é mesmo a santidade. A única coisa que conta é a santidade, a única coisa que fica é a santidade, a única coisa que nos é pedida é a santidade, a coisa mais preciosa que nos é oferecida é a santidade.

Por isso, celebremos a santidade na vida de todos os dias, demos valor à santidade. Às vezes damos valor à inteligência, damos valor ao poder, damos valor à riqueza, damos valor à beleza, vamos dando valor a isto ou àquilo e às vezes é um equívoco muito grande. Nós temos de dar valor aos gestos de santidade porque são eles que suportam o mundo e são eles que tornam o mundo semelhante ao coração de Deus.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Todos os Santos

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Outubro

2016/10/30 - Jesus como Aquele que procura (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Este Evangelho, a paragem de Jesus em Jericó e o encontro com Zaqueu, queria dizer três coisas. A primeira: que olhássemos um bocadinho para aquilo que aconteceu naquele dia em Jericó. A segunda: como é que este episódio nos ajuda a compreender melhor Jesus. E a terceira: como é que a pedagogia, o método, de Jesus nos desafia hoje?

O que é que aconteceu em Jericó? Às vezes, como acontece nos filmes ou nos livros que lemos, há um episódio que acontece primeiro, que parece até uma coisa inocente, sem história. Mas, quando aproximamos a lente, percebemos os problemas mais profundos, aquilo que é necessário iluminar e resgatar e que muitas vezes não é aquilo que aparece à superfície.

No princípio é uma coisa quase anedótica e dá vontade de rir: um homem muito baixinho que está atrapalhado e quer ver o profeta de que falam na sua cidade de Jericó, e então sobe acima de uma árvore, de um sicómoro, para ver Jesus. Há quase um lado cómico nesta situação.

Depois, quando a história se adensa, nós percebemos as coisas de outra maneira. Percebemos, por exemplo, que ele sobe a uma árvore. Porquê? Porque é que ele sobe a uma árvore? Porque Ele tem de ver Jesus ao longe, porque ele não se pode misturar com a multidão. E não se pode misturar com a multidão porque é um pecador. É um homem rico mas é um homem que enriqueceu pela corrupção. Porque ele infringiu a lei de tantas formas e prejudicou o seu irmão. Por um lado isso pesa-lhe, e ele tem também o estatuto de pecador público. E, por isso, ele tem de ficar à margem, tem de ficar na fronteira. Ele sobe àquela árvore, não é apenas por ser de baixa estatura, mas também por ser pecador.

Mas, há nele uma coisa espantosa que o narrador de S. Lucas nos diz e que parece ao mesmo tempo uma coisa simples e depois nós percebemos que é muito mais forte. Ele diz:” Zaqueu procurava ver quem era Jesus.” E nós perguntamos: o que é que Zaqueu queria exatamente? Ele queria ver a pessoa como nós às vezes, passa alguém conhecido e queremos ver? Que desejo ele trazia no seu coração em relação a Jesus? Ou ele queria mergulhar mais profundamente, ou ele queria encontrar, ou ele queria compreender, ou ele queria verificar com os seus olhos, sentir com os seus sentimentos quem era verdadeiramente Jesus?

Eram duas estradas paralelas que não se encontravam: a história de Zaqueu e a história daquele cortejo onde vinha Jesus. Mas o que é fantástico é que Jesus provoca um ponto de interceção. Quando passa por baixo do sicómoro, olha para cima, e é a grande surpresa: Jesus chama aquele homem pelo nome e diz: “Zaqueu! Desce depressa porque eu hoje preciso de ficar em tua casa.” Ele desceu e recebeu Jesus com muita alegria.

Este texto é uma narração da surpresa. Ele queria ver quem era Jesus mas não se considerava digno, Jesus era sempre para ser visto ao longe. E Jesus, não só se faz perto, não só chama pelo nome dele mas diz: “Eu preciso, eu tenho necessidade de ficar hoje em tua casa, eu preciso da tua hospitalidade.” Para Zaqueu foi a surpresa das surpresas, achar-se necessário à ação do próprio Jesus. Ele recebeu Jesus com alegria. Uma vez em casa, ele está de pé, ele sente que recebeu um bónus de amor, um excesso de amor. E reage também de uma forma transformada, excessiva, diz: “Senhor, eu vou mudar completamente a minha vida, e àqueles que prejudiquei eu vou tentar reparar o mal que fiz.” E Jesus diz uma coisa extraordinária: “Hoje a salvação entrou nesta casa.”

Nós sentimos na história que a salvação entra numa vida improvável. É uma história nada óbvia aquela que acontece. Por outro lado, há ainda a reação da multidão que diz: “Mas como é que é possível? Entre tanta hospedagem que ele podia pedir foi logo hospedar-se em casa de um pecador.” A multidão que não entende como é que Jesus infringe, derruba aquelas fronteiras do pecado, do que é justo, do que não é justo. Como é que Ele tem aquela liberdade e, podendo ter escolhido a casa de um homem de bem, foi escolher a casa daquele que todos conheciam como um pecador? É um pouco isto que acontece.

Como é que isto nos dá a ver Jesus? Dá-nos a ver Jesus como Aquele que procura. É muito interessante o remate final desta narração em que Jesus diz: “O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.” E se de facto alguma coisa define Jesus é Ele ser alguém que vai ao encontro, alguém que procura. Há uma ou duas vezes em que Jesus Se deixa tocar pelos outros. Mas normalmente é Ele que vai ao encontro, é Ele que toma a iniciativa de buscar. Ele está sempre à procura daquilo que se julga perdido. Isto é, Jesus é um inconformista, é um inconformado. Ele não aceita, não se conforma com o mundo como estava estabelecido. Ele não se acomoda às fronteiras, ao bem e ao mal, ao bonito e ao feio, ao que se deve fazer, ao que não se deve fazer, à moral de uma época. Jesus aparece com uma liberdade que é escandalosa, que é extravagante. Sem dúvida, uma das razões porque Jesus foi eliminado foi exatamente essa: Ele não conhecia muros, não conhecia fronteiras. Tanto estava em casa de um fariseu que era impecável, um homem de bem, como estava em casa do maior pecador, como atendia uma viúva pobre, como se deixava tocar por uma mulher prostituta.

Essa liberdade Dele sem dúvida que é escandalosa, mas ao mesmo tempo é a chave para entender Jesus. Nós não entenderemos Jesus sem entendermos, sem nos avizinharmos da Sua liberdade. Ele veio à procura de todos, à procura de todos. E veio, como Ele diz, “procurar e salvar o que estava perdido”. Para Jesus não há o irremediável, não há o incurável, não há o irreversível. Jesus reabre as possibilidades da vida de cada um, a história volta ao ponto zero, volta ao seu início, é sempre possível começar, é sempre possível recomeçar.

É nesta liberdade que Jesus nos mostra Deus, que Jesus Se torna o interprete de Deus, que Jesus nos dá a ver o rosto de Deus. Quando pensamos em Deus temos de pensar naquele maravilhoso texto do livro da Sabedoria. Deus ama a vida, Deus ama a vida e não desiste dela. Pelo contrário, investe nela o Seu poder restaurador, o Seu poder transformador. Deus resgata a vida continuamente e coloca-a no centro como o bem mais precioso. É isso que Jesus em cada situação dá a ver, indo ao encontro dos últimos, indo ao encontro dos desesperados, indo ao encontro dos que não têm esperança, indo ao encontro dos que estão mais longe.

Jesus não aceitou apenas os que estão perto. Quando nós lemos o Evangelho, a grande surpresa é que Jesus começa por escolher os discípulos e pensamos que a aventura deste Homem vai ser a relação Dele com os discípulos. E depois nós percebemos que não é. Ele encontra os discípulos para os formar numa relação cada vez mais aberta. Os discípulos são testemunhas dos encontros de Jesus com todos, com todos. Ele não está ali apenas com o Seu grupo dos discípulos a formá-los, a consolidá-los, a dizer: “vós sois o meu rebanho.” Pelo contrário, Ele está sempre a mandá-los sair, está sempre a desconcertá-los, está sempre a ensinar-lhes uma liberdade que eles não têm e à qual eles têm medo.mPor isso, este episódio dá-nos a ver Jesus.

E o método de Jesus qual é que é? O método de Jesus é amar primeiro, é confiar primeiro. Jesus não diz a Zaqueu: “Olha, eu até estou disposto a ir a tua casa se tu fizeres isto (um caderno de encargos prévio), isto e isto, então eu entrarei em tua casa.” É exatamente o contrário, Jesus diz: “Eu preciso de ficar em tua casa.“ É porque Ele oferece o Seu amor de uma forma incondicional que há um estremecimento, que a vida, que a lógica de Zaqueu desaba. Ele também se descose e torna-se uma pessoa nova. Houve ali um investimento de confiança incondicional.

O que nos salva não é uma negociação, o que nos salva é um excesso de amor, é uma dádiva, é uma oferta, é alguma coisa que vai para lá de todas as medidas. É isso que nos salva. É o assombro do amor que nos salva. Não é a negociação, o acordo, o pacto, a coisa que puxa para aqui, que puxa para ali. Isso é para os negócios. Mas isso não salva um homem, isso não põe de pé um pecador, isso não traz um filho de volta, isso não é o sinal da misericórdia. A misericórdia é um excesso, é um exagero. Mas é isto, é isto.

No fundo, há sempre o código antropológico que é assim: se cada um de nós não assentar a sua vida numa experiência incondicional de amor, a nossa vida fraquejará sempre, fraquejará sempre. Porque o alicerce de toda a existência, o alicerce de uma vida que arrisca, de uma vida que confia, de uma vida que é, é ela ter recebido do pai, da mãe, um amor incondicional. Mas ter recebido de Deus um amor incondicional e ter consciência que Deus o ama, a ama desta forma, então, a pessoa floresce. No meio da rocha nasce uma flor, no meio do deserto nasce um rio, no meio do desespero nasce um sorriso, no meio do sofrimento nasce uma palavra transformadora. Porque há este investimento de amor.

Queridos irmãs e irmãos, nós estamos a um mês do final do Ano Santo da Misericórdia e a história de Zaqueu confronta-nos com o estilo de Jesus, com o método de Jesus, com a pedagogia de Jesus. E se tivéssemos de resumir numa palavra a pedagogia de Jesus essa palavra podia ser misericórdia. O que é que nós temos feito da misericórdia? Como é que nós a temos usado? Como é que nós a temos vivido? Como é que nós temos acreditado na misericórdia? Porque a lógica de Jesus é esta: procurar e salvar o que está perdido. Muitas vezes, nós criamos barreiras para os outros em vez de criar pontes. Criamos barreiras, somos indiferentes. O Papa Francisco fala desse novo paganismo que é o zapping da indiferença. Nós estamos sempre a mudar de canal. A nossa indiferença acaba por ser uma barreira. Nós não escutamos o desejo do coração dos outros. Aquele homem tinha no seu coração o desejo de ver Jesus e Jesus soube acolher o desejo daquele coração. Uma vida toda desarrumada, toda errada mas Jesus não veio para julgar, Jesus veio para salvar que é uma coisa diferente.

Às vezes nós sentimos que a nossa missão é julgar. A nossa missão não é julgar, a nossa missão é abraçar, a nossa missão é curar feridas, a nossa missão é salvar a vida perdida, a nossa missão é dizer: “Deus ama esta vida, Deus ama a tua vida que é preciosa.” Não é julgar, não é julgar.
“Eu vim procurar e salvar o que está perdido.” Queridos irmãs e irmãos, nós somos hoje mandatados por Jesus para levar esta palavra no nosso coração e fazer com ela um caminho. E abrir-nos a uma história, a uma prática, a um modo, a uma arte de ser, a uma arte de nos relacionarmos uns com os outros, a uma arte de abraçarmos a vida difícil. Porque há tantos nós, há tantas coisas difíceis na vida de cada um de nós por reparar, por restaurar, por iluminar, por salvar com a misericórdia e com o amor. Nós precisamos disso, de aprender o estilo de Jesus para fazer desse estilo o nosso estilo, a nossa prática, o nosso modo de viver.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXI do Tempo Comum

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2016/10/23 - A oração do humilde atravessa as nuvens (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

É domingo, o Senhor ressuscitou! Como os companheiros de Emaús o Ressuscitado torna-Se companheiro da vida de cada um de nós e, ao acompanhar-nos, Ele ressuscita-nos. Nós que chegamos de tantas mortes, de tanta vida adiada, de tanta incerteza, de tanto dilema, feridos por tantos espinhos, tantas perguntas sem respostas, insatisfeitos talvez com aquilo que vivemos, com aquilo que somos ou aquilo que não somos. O Ressuscitado transforma a nossa vida enche-nos de confiança, de serenidade, de esperança e de paz; e é capaz de transformar o copo meio vazio em copo meio cheio. Isto é, é capaz de transformar a nossa sede em louvor, em ação de graças. Sintamo-nos assim reconciliados, abraçados por este abraço de Deus que Jesus representa. Cada um de nós se sinta muito tocado pela Sua presença, pela Sua palavra e pelo partir do pão.

Queridos irmãs e irmãos, na pregação de Jesus, na exposição da Sua mensagem, Jesus muitas vezes recorreu a parábolas. As parábolas não são apenas histórias simples ou histórias edificantes, as parábolas são um caso muito sério de comunicação e de eficácia de comunicação. Porque as parábolas são, não uma linguagem de reforço que vem reforçar, dizer amém, dizer que sim àquilo que nós já sabemos, à nossa visão normal, comum, das coisas. Pelo contrário, a parábola é uma linguagem de crise.

A parábola vem para destabilizar o nosso quadro de valores e de convenções, a parábola vem para colocar em crise o modo habitual de vermos o mundo, de vermos a nossa relação com Deus, de vermos aquilo que Deus nos pede. A parábola é uma linguagem de choque precisamente para criar em nós uma espécie de sismo, uma espécie de estremecimento, de abalo, que nos retire a excessiva confiança, a autossuficiência do nosso olhar, e nos coloque a apreender, nos coloque como discípulos da lógica do Reino de Deus, que tantas vezes é tão distante da nossa lógica quotidiana.

Nesta parábola Jesus começa de uma forma muito interessante. Jesus diz: “Dois homens subiram ao Templo para rezar.” Muitas vezes Jesus conta histórias de duas pessoas. Por exemplo, a história do Filho Pródigo é, no fundo, a história de dois irmãos. E assim por diante em muitas parábolas. Isso o que é que significa? Significa que Jesus quer explorar duas possibilidades, nós podemos ser uma coisa ou outra, e muitas vezes somos uma coisa e outra. “Dois homens subiram ao Templo para rezar”, e então aparece a distinção: ”um era fariseu e o outro era publicano.”

Quando nós subimos para rezar, quando nós vimos rezar, quando durante a nossa semana nós rezamos, mesmo sem querer, mesmo sem ter consciência disso, nós reproduzimos o nosso modo de ver, nós levamos para a oração aquilo que somos. E, muitas vezes, os preconceitos, os interditos, a cegueira do nosso modo habitual de viver é também o problema que afeta a nossa oração.

Este fariseu está no Templo cheio de à-vontades, como se dominasse completamente o espaço. É muito interessante o modo plástico como Jesus desenha a personagem do fariseu. O fariseu está de pé e fala e tem um longo discurso. Quer dizer, é alguém que está completamente no domínio daquela situação. Muitas vezes na nossa oração nós somos assim: nós chegamos, fazemos e vamos embora porque temos um à-vontade completo e já é quase o piloto-automático que nos leva a mandar em Deus como mandamos em tudo o resto na nossa vida. Falamos e dizemos. Este homem está um bocado assim. O fariseu faz uma oração de ação de graças e é uma oração centrada nele: “Senhor eu Te dou graças por mim. Por não ser como os outros que são ladrões, injustos, adúlteros e dou-Te graças por não ser como este publicano.”

A oração do fariseu é uma oração autorreferencial, tudo passa por ele. É uma oração de exclusão, os outros não entram, pelo contrário, ele tem a sua oração bem blindada. “Senhor, dou-Te graças por não ser nada como este mundo corrupto e perdido e danado e enganador. Eu sou o contrário disto tudo, dou-Te graças por poder excluir todos os demais da minha oração.” Depois, ele explica o que faz. E é, de facto, excecional o que ele faz: “Jejuo duas vezes por semana” – os fariseus piedosos faziam isso. E nós sabemos que não é fácil. Atenção, este homem, objetivamente, tem muitos méritos do ponto de vista da piedade religiosa. Jejuar duas vezes por semana não é nada fácil. Ele jejua duas vezes por semana e mais: paga o dízimo de todos os seus rendimentos. Nem a Lei o obrigava a fazer isso. Quer dizer, ele, na sua devoção, no seu zelo ia além da própria lei. A Lei mandava pagar o dízimo de um certo tipo de mercadorias. Ora, ele por zelo pagava o dízimo de tudo. Quer dizer, era uma pessoa que na prática de piedade, na prática religiosa era um cumpridor, era um fiel, e tinha até um cumprimento acima da média. Mas o problema é: todo esse zelo, toda essa devoção para que é que serve? Para que é que serve? No caso dele, servia para excluir os outros. Servia para dizer aquela célebre frase de Sartre: “O inferno são os outros.”, “Porque eu sou justo, eu salvo-me sozinho, eu dou-Te graças por estar aqui diante de Ti com as mãos limpas do contacto com toda esta miséria do mundo.”

Ao lado dele, está um homem, uma personagem que é o seu oposto. Enquanto o fariseu está de pé com grande eloquência, este homem está de rastos, nem se atreve a levantar a cabeça para o alto. Quer dizer, está numa atitude completamente diferente: não é aquele excesso de confiança, aquela autorreferencialidade. Mas é precisamente o contrário, este homem sente-se o último, sente-se o mais indigno, sente-se o mais pobre, sente-se o mais pequenino, sente-se completamente dependente da graça de Deus, da misericórdia de Deus. Se não fosse a misericórdia ele nem estava ali, não está ali por direito próprio, para afirmar aquilo a que tem direito, aquilo que ele comprou com o seu zelo. Ele está ali trazendo a sua ferida, a sua lacuna, a sua miséria, a sua fragilidade, a sua vulnerabilidade, aquilo que ele não consegue ser. Então, está de rastos por terra, bate no peito e diz apenas isto: “Senhor, tem piedade de mim que sou pecador.” É interessante que no grego tem o artigo, é “o amartólos”: “Senhor, tem piedade de mim que sou o pecador.” É claro que ele não é “o” pecador, é “um” pecador, mas ele sente-se “o” pecador. Isto é, sente-se o mais pecador dos Homens. Está ali apenas num ato de arrependimento, de contrição, de abertura, de humilhação, de humildade, de humildade perante Deus e perante os seus semelhantes.

No final, Jesus lança a bomba, a bomba àqueles que O escutavam. Jesus diz: “Quem é que pensais que saiu justificado do Templo?” E Jesus não tem dúvidas: o publicano é que saiu justificado. “Porque quem se humilha será exaltado.”

Queridos irmãos, é um desafio muito grande para nós a humildade. Nós ouvíamos na leitura do livro do Ben Sira uma imagem estupenda: “A oração do humilde atravessa as nuvens.” Isto é, a humildade coloca-nos numa verdadeira comunicação com Deus, connosco, com os irmãos. É tão importante a humildade. Os monges diziam: “Como o navio se constrói com pregos, um monge, um cristão constrói-se com humildade.” e que na vida de um cristão há três coisas muito importantes: a primeira é a humildade, a segunda é a humildade, a terceira é a humildade.

Certamente na vida de oração a humildade é fundamental. Porque a humildade descentra-nos, a humildade relativiza-nos. A humildade introduz um dinamismo crítico em relação àquilo que nós não vemos, ao egoísmo, à afirmação excessiva de nós próprios que muitas vezes acriticamente acabamos por impor aos outros. A humildade dá a medida certa da nossa vida. Por isso, os humildes têm um entendimento de Deus que é muito autêntico, que é muito genuíno, que é muito verdadeiro. Porque eles colocam tudo do lado de Deus, colocam tudo do lado da sua graça, do lado da sua misericórdia.

A parábola de Jesus é uma parábola de crise, é uma linguagem de crise porque também nos diz isto: não há direitos adquiridos em relação a Deus, não há direitos adquiridos. Eu não posso dizer: “Ah, eu faço isto, eu faço aquilo então eu posso contar com isto.” Não, não é assim, não é desse modo. Contando esta parábola, o que é que Jesus está a afirmar: está a afirmar a reversibilidade. Quer dizer, nós não podemos achar que é irreversível. Um dos traços mais escandalosos do ministério de Jesus foi precisamente esse. Quer dizer, as pessoas piedosas do tempo de Jesus achavam que um pecador era um pecador e ponto final – é um perdido, já não tem salvação possível. Eles eram as pessoas piedosas, eles estavam a esforçar-se, mas para os outros acabou, para eles não há salvação. E Jesus vai às fronteiras buscar, Jesus vai acolher, Jesus vai mostrar que não há irreversibilidade. Não há irreversibilidade para os pecadores nem há irreversibilidade para os justos.

Nós temos de ter um sentido crítico não apenas para com o pecado, mas também para com a crença, porque às vezes a nossa crença é uma máquina de reprodução do nosso próprio egoísmo. É um clube de gente exclusiva e que exclui os outros da sua vida, do seu coração e que de muitas maneiras vai dizendo: “O inferno são os outros”.

Ora, o que esta parábola de Jesus nos ensina é que é sempre o outro que me torna justo. Nós não somos justos contra os outros, nós somos justos abraçando, incluindo, perdoando, alargando o nosso olhar, colocando as coisas em Deus para que seja Deus e não sejamos nós a tomar a palavra final, a decisão derradeira.

Humildade, humildade, humildade. “Todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXX do Tempo Comum

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2016/10/18 - Soli Deo Gloria

Um diálogo entre a Palavra, o Sagrado e a Música, em torno das Suites para Violoncelo de Johann Sebastian Bach, vai acontecer na Capela do Rato.

No primeiro encontro deste diálogo teremos a Suite nº1, em Sol Maior, com uma alocução de João Tordo e o violoncelo de Irene Lima. Será no dia 18 de outubro, terça feira, às 21h. A iniciativa é coordenada por Bruno Caseirão e tem o apoio da Antena 2.

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2016/10/16 - Habitar no interior de uma relação (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Hoje um dos temas das leituras que vamos proclamar é a oração. E a oração que nos diz que a nossa vida é uma vida escutada, o Senhor escuta-nos. Escuta o que dizemos e o que não dizemos, o que somos e o que não conseguimos ser, aquilo que são os nossos sonhos mas também as nossas dúvidas, as nossas hesitações. O Senhor escuta aquilo que nem lhe chegamos a dizer. Por isso, sintamos confiança, sintamos, no fundo do nosso coração, o Senhor a tornar fortes, a tornar firmes os passos que nós encaminhamos a na direção Dele.

Queridos irmãs e irmãos, hoje a Palavra de Deus enfoca-nos na questão da oração. E a oração é antes de tudo o reconhecimento de Deus como alguém com quem nos relacionamos, Deus como um “tu” da nossa vida.

É muito impressionante aquilo que um escritor italiano Eri de Luca escreve num pequeno livrinho precioso chamado ‘Caroço de azeitona ‘. Ele diz: “Eu, estando muito perto da tradição cristã e dos textos bíblicos de que gosto muito, a verdade é que não me considero um crente. E não me considero um crente por isto: porque não consigo rezar. E não consigo rezar porque não consigo pensar nem relacionar-me com Deus como um «tu». Para mim Deus não tem rosto, Deus é uma impessoalidade, Deus é uma impossibilidade de eu nomear, de eu tratar por tu. Por isso, sinto inveja dos crentes que reconhecem que Deus é alguém em relação ao qual podemos empregar um vocativo, podemos gritar, chamar por Ele, derramar a nossa vida, conversar, estar calado, mas sentir em Deus alguém que do outro lado, que do lado de Deus, é capaz de nos acolher, de nos acompanhar, de nos abraçar, de nos amar.”

Esta é, de facto, a grande força, a grande originalidade dos crentes. É que, para nós, Deus não é apenas um princípio filosófico. Deus é alguém, Deus é uma presença de amor. E mais: há uma relação que nós estabelecemos e essa relação chama-se oração. Não basta apenas a convicção, não basta apenas a fé como certeza de que Deus existe. Deus existe, ponto. Então, façamos alguma coisa com essa verdade axial das nossas vidas. E aquilo que nós podemos fazer é comunicar, é entrar em relação, é expormo-nos diante de Deus, é abrirmo-nos na nossa nudez, na nossa vulnerabilidade. É confiarmos tanto que nos entregamos no nosso estar, no nosso falar, no nosso calar, sentindo que Deus é o interlocutor privilegiado das nossas vidas.

O Senhor que criou o universo e os mundos, e o que vemos e o que não vemos, Ele é este “Tu” que eu posso invocar, que eu posso nomear. Por isso, fundamental na oração é o reconhecimento de que Deus é um parceiro da nossa vida, que Deus é um “Tu” a quem nos podemos dirigir. Mas, só há oração verdadeira quando também nós somos um “eu” e sentimos que a nossa vida é também a possibilidade de rezarmos, descobrirmos essa possibilidade dentro de nós.

Às vezes acontece que, sendo cristãos há muitas décadas, há muitos anos ou há pouco tempo, nós ainda não desenvolvemos em nós a capacidade de rezar, nós ainda não descobrimos que somos seres orantes, que temos em nós este dom maravilhoso que é de nos podermos abrir, nos podermos dizer, nos podermos expor em oração.

Nós não apenas fazemos orações, não apenas rezamos orações, a verdadeira oração nasce quando nós compreendemos isto: eu sou uma oração, a nossa vida é uma oração. Nós não somos uma maquinazinha de fazer orações, nós somos uma oração. Porquê? Porque a nossa vida, se nós olharmos bem para ela, é um grito, é um apelo, é uma chamada, é um estar diante de Deus. Nós somos continuamente na sua presença, e por isso nós somos uma oração. A nossa oração não é apenas a repetição de uma fórmula, não é apenas a repetição de uma oração aprendida, não é apenas coisas tão importantes como o Pai-Nosso e a Avé-Maria que nós possamos dizer. Mas, antes de tudo, a nossa oração é esta tomada de consciência profunda de que nós estamos diante de Deus e do que isso significa. Porque a nossa vida toda é chamada a exprimir-se, a expressar-se com confiança diante de Deus.

E essa relação, que necessariamente é uma relação de amizade e de amor, que é uma relação de um filho para com o Pai, que é uma relação de criatura para com o Criador, que é uma relação de enamoramento, de confiança, que é uma relação fusional e ao mesmo tempo também uma relação na diferença, porque Deus é Deus e nós somos mulheres e homens, nós somos criaturas, é esta relação fulcral que é no fundo o mistério da oração.

Por isso, às vezes ouvimos dizer ou dizemos: “Mas eu não sei rezar.” A primeira coisa é: antes de querer aprender orações, aprende que o rezar é respirar, aprende que o rezar é estares diante de Deus, é tomares consciência de que Deus está aqui. Ao longo do nosso dia nós podemos fazer momentos de oração em qualquer lado. O que é um momento de oração que nós construímos? É um momento mais agudo, mais intenso da nossa parte, um momento de consciência, uma tomada de consciência de que nós estamos perante Deus e nessa tomada de consciência há uma qualidade de relação, há uma qualidade de comunicação espiritual que se intensifica e que torna aquele momento um momento precioso, torna aquele momento um momento de comunicação. Nós estamos sempre, mas precisamos de tomar consciência de que estamos, precisamos de tomar consciência de que somos diante de Deus.

Há maneiras certas de rezar? Esse é um assunto para especialistas. Porque, eu diria: a maneira certa de rezar é rezar, é rezar. Eu não me esqueço da história de vida de um rapaz que eu acompanhei. Ele é um convertido, e lembro-me no primeiro tempo de oração o entusiasmo com que ele vivia a oração e ele dizia-me isto:

“-Padre Tolentino, eu rezo como um porco.
– Tu rezas como um porco?
– Sim, eu alimento-me de tudo, tudo me serve para oração. Eu não escolho rezar isto ou rezar aquilo. Não, eu rezo tudo o que sou, tudo o que apanho eu rezo.”

De facto, a verdadeira oração é essa, é a oração que hipoteca todo o nosso ser. Não é eu vou rezar esta intenção ou vou rezar aquela. Sim, posso, devo fazer isso, mas é importante que eu faça isso rezando todo o meu ser, rezando permanentemente.

É muito belo na tradição cristã, por exemplo, um dos tratados de oração mais conhecidos e mais marcantes de oração no Cristianismo, é o Relato do peregrino russo. É uma história impressionante de um homem que entra um dia na Igreja e estão a celebrar a missa e ele ouve ler a Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses, onde S. Paulo diz isto: “Rezai sem cessar.” Ele agarra-se a isto e diz: “Mas como é que isto é possível? Como é que eu posso, eu que ando de um sítio para outro, com a vida que tenho, como é que eu posso rezar sem cessar?” E então, ele começa a fazer um caminho por vários mestres espirituais, vai colocar a pergunta a um padre, a um peregrino, ele ouve dizer que há um mestre iluminado e vai tentar conversar com ele para tentar perceber como é que pode rezar sem cessar. Até que por fim, quando a gente procura encontra, quando a gente bate abre-se, quando a gente pede é-nos dado – é isso que Jesus nos diz. Também foi aberto, foi dado, foi explicado àquele homem o que significa rezar sem cessar. E ele percebeu que a oração se misturava com a sua própria respiração e que a sua oração sem cessar era a oração do pecador que confia: “Senhor Jesus, Filho de Deus vivo, tem piedade de mim.” E ele passou a dizer isto, em vez de respirar ele dizia isto: “Senhor, Filho de Deus vivo, tem piedade de mim.”

É claro, se nós vivermos com o nome de Jesus nos lábios, se nós vivermos a respirar o nome de Jesus isso transforma a nossa vida por completo, transforma-nos, só pode ser. Nós tornamo-nos uma cristofania, tornamo-nos uma manifestação de Cristo, porque Ele está sempre em nós, a oração é uma habitação. Os salmos falam muito disso, da alegria de habitar na casa do Senhor, no Templo do Senhor. Essa habitação não é habitar numa casa, é habitar no interior de uma relação. O Evangelho de S. João, por exemplo, explica a oração como um permanecer, é uma forma de permanecer. São tudo verbos que mostram o quê? Que a oração tem de ter uma continuidade, que a oração não são as fórmulas que nós dizemos. A oração é um estar, é a nossa vida ser aquilo, ser transformada por aquilo.

É claro que este é um caminho, é progressivo, é progressivo em nós. Mas, é chamado a confundir-se completamente com aquilo que somos.

Dos encontros mais incríveis que tive na vida foi com uma senhora que estava em estado terminal, estava num sanatório do Funchal. Ela já não sabia nada, não sabia o seu nome, não sabia quantos filhos tinha, o nome dos filhos, se tinha comido de manhã ou não, o nome das enfermeiras, não sabia nada de nada. Qualquer pergunta que se lhe fizesse ela começava a rezar o Pai-nosso, qualquer pergunta. Para qualquer pergunta que se fizesse ela rezava o Pai-nosso. Quer dizer, naquela consciência, naquele ser, o núcleo inapagável, irremovível do seu coração e da sua mente era a experiência do Pai-nosso, era a experiência de que Deus é Pai. Para isto ser assim, eu pergunto-me: quantos Pai-nosso aquela mulher não teve de rezar para tatuar de tal forma o Pai-nosso no fundo mais irremovível do seu ser? Essa é uma experiência de oração.

Por isso, isto que diz Jesus: O que é a oração? A oração é rezar sem desanimar, oração é insistir na oração, oração é uma insistência com Deus. Quer dizer: a oração é a felicidade da repetição, a felicidade da repetição. Nós estarmos e voltarmos a estar, nós exprimirmos, nós cansarmos Deus com a nossa oração, nós cansarmo-nos a nós mesmos com a nossa oração.

A quem diga: “Ah, padre mas eu adormeço na oração.” Bendito sono! Deves adormecer mais vezes, deves prolongar a oração para lá até dos processos da tua consciência, para lá da tua racionalidade. Isto é, a oração deve penetrar completamente em nós, naquilo que somos. E isso transforma-nos, isso transforma-nos. E isso, reparem, está ao alcance de todos nós, não é preciso fazermos um curso de teologia ou um curso de espiritualidade para nos tornarmos grandes orantes, grandes aventureiros no interior de Deus. É uma questão de insistência, é uma questão de treino, é uma questão de prática, é uma questão de não darmos descanso a nós próprios na vigilância, na repetição, na atenção, na fidelidade.

Não podemos fazer depender a oração das nossas sensações, se eu sinto oração, se eu não sinto oração, se eu sinto um eco, uma reverberação luminosa. Nós lemos o diário espiritual de Santa Teresa de Calcutá e ela diz que nunca sentiu nada, nunca sentiu nada. Nunca teve nenhuma experiência favorável, nunca sentiu o coração cheio, nunca sentiu a alma a transbordar de luz. Pelo contrário, seca, seca, seca como um carapau, seca, seca, seca; nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada. E às vezes a nossa oração é o nada, nada, nada, nada. Ou, como dizia Santa Teresa de Ávila, outra grande mestra da vida espiritual, ela dizia que rezou anos e anos e a oração sabia-lhe a palha – é como estar a comer palha.

Então, a oração não depende da nossa sensação. A oração, como diz Jesus, “É orar sempre sem desanimar.” A eficácia da oração não depende da nossa sensibilidade, depende da confiança que fazemos em Deus e na ação de Deus. Quando olhamos para os resultados da vida de santa Teresa de Calcutá, nós percebemos isso: Deus fez daquela mulher um instrumento de amor inacreditável. Deus fluiu através dela, ela própria não sentiu, não percebia como mas Deus fluía. E é esse também o mistério na nossa vida.

Por isso, queridos irmãs e irmãos, nós temos de rezar, temos de praticar mais a oração, temos de trazer a oração para a nossa vida, dar tempo, dar tempo à oração no nosso dia a dia de forma muito concreta. Porque é isso que verdadeiramente nós transforma, é isso que nos transforma, é isso que nos alimenta.

Cada um terá uma forma própria de rezar, como tem uma forma própria de rir, de chorar, de caminhar pelo mundo. Mas o que é importante é que nós pratiquemos. A oração não é uma teoria. Eu acho que, teoricamente, sobre a importância da oração nenhum de nós tem dúvidas. Mas a oração é sobretudo uma prática e aí é que nós falhamos. Oração é concretizar oração, oração não é uma filosofia, oração é rezar. Por isso, vamos pedir ao Senhor que reze em nós e nos ajude a rezar. Nos ajude a rezar a nossa vida, nos ajude a rezar uns pelos outros, nos ajude a louvar.

Na nossa peregrinação a Assis eu fiquei muito impressionado quando me dei conta que, o Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, que é aquele poema maravilhoso: “Senhor, altíssimo sempre eterno, eu te dou graças pelo sol, eu te dou graças pelo calor, pela água…”, S. Francisco de Assis o escreveu enquanto enfermo e praticamente cego. Nós pensamos que uma pessoa que faz um elogio ao mundo, à beleza do mundo, à beleza da criação é um jovem, está apaixonado, está a agradecer tudo aquilo que ele vive. Não, Francisco de Assis estava cego, estava enfermo, estava a meses da sua morte quando escreveu este que é um testamento espiritual inacreditável. Isto também é alguma coisa que só a força da oração nos permite, que é no fundo uma grande liberdade face até aos contextos adversos e uma compreensão de que nada nos falta.

Às vezes andamos com carências enormes, com fomes, com necessidades imaginárias e reais, não importa, a oração enche o nosso coração. A experiência de oração é também a experiência de que nada nos falta e que o encantamento pela vida não depende de estarmos a viver tempos cor-de-rosa, S. Francisco já não via nada e ele via tudo.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXIX do Tempo Comum

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2016/10/09 - O Deus das coisas pequenas (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

A situação que Paulo refere nesta carta a Timóteo é muito sugestiva: ele está preso mas, no testemunho que ele dá, a Palavra de Deus está livre. Mesmo na prisão a Palavra de Deus continua a atuar, continua a fecundar, continua a respirar, a transbordar da vida de Paulo.

Esta imagem é sugestiva porque vem ao encontro da nossa vida com uma pergunta: O que é que eu faço da Palavra de Deus? Como é que a coloco a render? Será que a Palavra de Deus em mim, a força de Deus, a maravilha do seu Espírito respira amplamente no meu ser através dos meus gestos, das minhas palavras? Ou eu condiciono, ou eu torno mais estreita a ação de Deus? Ou eu muitas vezes bloqueio, impeço, mesmo que não deliberadamente, mas não faço escoar, não faço correr a energia transformadora da bondade de Deus, da sua misericórdia?

É um confronto importante e necessário para cada um de nós. Porque, este exame de consciência é que é capaz de ir à verdade de cada um de nós e, profundamente também, desatar aqueles nós que, tantas vezes, não nos deixam ser expressão de Deus, transparência, imagem e semelhança de Deus.

É interessante o caminho que as leituras que hoje proclamamos nos colocam. Porque é um caminho muito simples. No fundo, deixar Deus falar em nós é uma coisa muito simples. Por vezes o nosso problema é que estamos agarrados às grandes ideias, aos grandes projetos, às coisas espetaculares quando Deus se dá nas coisas pequenas, quando Ele se manifesta naquilo que é até insignificante.

A história deste general sírio Naamã que vai ter com o profeta Eliseu é uma história curiosa. Porque, ele sendo um estrangeiro, um sírio, um importante militar vem ter com um profeta de Israel e o profeta propõe-lhe uma coisa que o deixa desconcertado, diz: “olha, vai banhar-te sete vezes no rio Jordão.” E ele fica indignado e diz: “O quê? Eu tenho rios tão importantes na Síria, vou agora banhar-me num ribeiro, sem dignidade nenhuma, só lama? Que sentido é que tem isso? Vou-me embora.” E depois, em conversa com um servo ele faz um discernimento quando aquele diz: “Se ele te pedisse uma coisa grande não farias? Ele pede-te uma coisa pequena porque é que não a fazes?”

No fundo, o Deus que se revela na nossa vida é o Deus das coisas pequenas. Às vezes ficamos desconcertados, às vezes cega-nos a pequenez de Deus. Deus tem metro e meio, Deus, como diziam os monges budistas, “está num grão de arroz”, Deus está nas pequenas coisas, nos detalhes, no escondido da vida, no banal, naquilo que é mais próximo, naquilo que até nos repugna pensar que Deus possa estar contido naquilo. Porque queremos para Deus, ou achamos que são de Deus, apenas as coisas grandes, omnipotentes, providenciais há, de facto, uma conversão do nosso olhar. Porque é de maneira de ver, de maneira de compreender que se trata verdadeiramente. Quer dizer, nós temos de sentir que Deus chega a nós no pequeno, no pequeno. Chega a nós no banal, naquilo que nós, em princípio, não damos importância. Mas Ele vai tocando à porta do nosso coração, Ele vai-Se manifestando, Ele vai-Se tornando presente se nós quisermos ver. Às vezes nós recusamos e dizemos: “Não, Deus não está aí, só está o chato que tu és. Não, Deus não está aí só está este aborrecimento. Deus não está aí, só está a minha fadiga. Deus não está aí, só está esta coisa atordoante. Deus não está aí, só está a natureza, ou só está um dia de sol ou um dia de chuva. Deus não está aí, Deus está noutro lado.” E a verdade é que Deus está, a verdade é que Deus é em cada uma dessas coisas. Falta-nos um coração simples, um coração confiado para dizer: “Se Deus não está aqui, não está em mais nenhum lugar.”

A verdade é esta, queridos irmãs e irmãos, se Deus não está aqui, nesta hora, neste momento da nossa vida não está em mais nenhum lugar. Qualquer que seja a situação que nós estamos a viver, qualquer que seja o nosso problema, ou a nossa esperança, se Deus não está nele, não está em mais nenhum lugar. Porque Deus é. Por isso, não pode haver interrupções para Deus, não podemos interromper a Sua presença. Ele chega-nos de uma forma abundante nas coisas pequenas. Por isso, a primeira bem-aventurança é: “Bem-aventurados os pobres de espírito.” Isto é, “Bem-aventurados aqueles que têm um coração de pobre porque verão a Deus.” Quem tem um coração pobre, quem tem um coração humilde vê a Deus. Vê a Deus muitas vezes ao longo do seu dia. O que nos acontece mais frequentemente é que passam dias e dias e parece que Deus não nos diz nada, que Deus não nos fala, que Deus está distante. Será um problema de Deus ou será um problema nosso? Por isso, ver Deus nos acontecimentos, naquilo que nos alegra e naquilo que nos contraria, naquilo que nos delicia e naquilo que nos prova. Ver Deus aí e acolhê-Lo com serenidade. Acolhê-Lo sempre como um kairós, como uma oportunidade, como um tempo que se abre para um crescimento, para um “sim” que cada um de nós tem de dizer.

Uma outra atitude que é fundamental no crescimento espiritual é a generosidade. É interessante que quando este general sírio é curado ele vai ter com o profeta para lhe dar um presente. E o profeta diz: “Não, não aceito nada, é pura gratuidade.” Isto é fundamental na nossa vida porque mesmo nas relações que temos uns com os outros, mesmo de amizade, de proximidade, de família, de amor muitas vezes andamos com o taxímetro ligado. Sempre à espera de alguma coisa, de uma retribuição, de uma compensação, de que haja também uma resposta, haja também um gesto e falta-nos aquela gratuidade de dizer: “Não, o grande presente é dar, o grande presente é servir, o grande presente é comunicar Deus, é expressar Deus no milagre da tua vida”. Isso basta, isso basta. Essa atitude de uma generosidade, de uma bondade, de um não procurar a consolação, de um não procurar a paga dos nossos gestos, isso amplia o nosso coração. Porque, às vezes ficamos pequeninos, a contar, a comparar, a medir, a esperar, a retaliar. Porque não deste, ou porque não foi assim, ou porque não foi assado. E perdemos a grande experiência da generosidade, a grande experiência da gratuidade: o dar sem ser por nada, ou dar sem esperar em troca, o estar sem qualquer retribuição. Isso são coisas tão grandes, são coisas que nos fazem tanto bem em termos espirituais, que nos transformam tanto. E é uma aprendizagem na relação com Deus.

Outra atitude é aquela que surge na história que Jesus conta no Evangelho, que Jesus vive no Evangelho. É a história da gratidão. Aqueles todos, dez, foram curados mas só o samaritano, o estrangeiro, é que veio louvar a Deus, é que veio agradecer a Deus. Na nossa vida nós damos tudo por descontado, parece que toda a gente tem o dever de nos amar, tem o dever de nos servir, tem o dever de fazer-nos isto ou fazer-nos aquilo. Porque nós somos, de certa forma, o centro do mundo e colocamo-nos no centro do mundo. Ora, temos que reconhecer que não é assim, reconhecer a profunda dádiva dos outros. Porque, nós não nos damos conta, mas a nossa vida, todos os dias, é embalada por uma rede de dádiva, por uma rede de dádiva que é o que nos sustenta. Dádivas visíveis e invisíveis de pessoas que nem conhecemos, numa cadeia de amor e de serviço que faz caminhar o mundo. E nós precisamos de abrir os olhos para essa rede. E àqueles que estão perto, àqueles que nós conhecemos poder louvar, poder agradecer. E a gratidão é tão importante.

A gratidão é aquilo que permite que haja encontros. Nós sabemos que cada um de nós é fruto dos encontros que teve. E há encontros que nos marcaram, que abriram portas no nosso coração, que nos tornaram maiores do que nós somos, que nos explicaram o mundo de outra forma. Então, porque é que nós passamos o tempo a esbarrar uns nos outros em vez de nos encontrar?

Só há grandes encontros quando há gratidão por aquilo que o outro é. E é uma coisa que precisamos aprender, ganhar consciência, agradecer aquilo que o outro é, agradecer a sua presença, agradecer o seu esforço, agradecer o estar aqui, o estar ao meu lado, agradecer a abertura do seu coração. Porque essa gratidão é a garantia de um encontro em Deus, de um encontro maior, de um encontro em que eu sou sensível àquilo que de maravilhoso pode acontecer na troca, pode acontecer na relação. Se eu me deixo ficar no piloto automático nos contactos mecânicos, perco o espanto, perco a abertura de olhos para aquilo que o outro é. É como se fizéssemos parte da mobília da casa uns dos outros e verdadeiramente já não nos enxergássemos.

Não é por acaso que é um estrangeiro que volta para agradecer a Jesus. Porque um estrangeiro não tem os tiques do freguês, não tem o taticismo daquele que já é um habitué. A verdade é que nos tornamos fregueses e habitués da vida uns dos outros e depois acabamos por explorar os outros.

Esta gratidão e a manifestação da nossa gratidão é fundamental, porque coloca-nos no lugar certo da vida. Temos que transferir esta gratidão e este louvor das nossas relações interpessoais para a nossa relação com Deus. Precisamos que a nossa oração se torne de facto uma oração de louvor, de louvor. Em vez de ser apenas uma oração de súplica, em vez de ser apenas uma oração de intercessão, ser uma oração de louvor, uma oração de gratidão. Louvor por aquilo de belo, de bom, de maravilhoso que Deus é, Deus faz, Deus cria na história. A grande oração de Maria, o seu Magnificat, não é outra coisa se não um canto de louvor. A minha alma cresce para louvar o Senhor porque Ele fez tanto, Ele é tanto no mundo.

No fundo, trata-se disso, queridos irmãs e irmãos, a nossa alma tem de crescer, não podemos ficar mirrados por dentro, presos, como S. Paulo diz. Mas temos de libertar, libertar o nosso coração, libertar a nossa espiritualidade, libertar a nossa relação uns com os outros. Mas, a partir destas atitudes que podem parecer pequenas, que podem parecer coisas de nada, insignificantes, mas no fundo são o lugar onde o essencial da vida, o invisível da vida se decide verdadeiramente.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVIII do Tempo Comum

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Setembro

2016/09/25 - A pobreza não é uma abstração (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Já tínhamos saudades de estar uns com os outros e é com grande alegria que recomeçamos este nosso ano pastoral, aqui na nossa comunidade da Capela do Rato. Queria dar as boas vindas a todos, dizer o quanto cada um é precioso nesta comunidade. Mesmo que não saibamos o vosso nome, mesmo que saibamos muito pouco das razões que vos trazem até aqui. É muito importante que cada uma e cada um se sinta verdadeiramente precioso, necessário, sentindo que este é o seu lugar, sentindo que esta capela existe e que o mistério que aqui se celebra existe para que cada um de nós esteja aqui, para que cada um de nós esteja a saborear, esteja a viver, esteja a participar.

Hoje, as leituras têm uma exigência profética porque nos lembram que sobre a vida de cada um de nós cai uma hipoteca social. Nós não vivemos apenas em função de nós próprios, das nossas paixões, dos nossos desejos, das nossas ideias, nós somos chamados a fazer da vida uma coisa maior. E, nesse sentido, é importante recordar que uma das nossas grandes tentações, um dos nossos grandes pecados é a autorreferencialidade. Isto é, nós somos o centro do mundo. O mundo existe em função de nós próprios. É esta a nossa grande ilusão, o grande equívoco que tranca as portas do nosso coração num enorme egoísmo. Nós precisamos de sentir que a nossa vida é chamada a ser uma vida dada, uma vida distribuída, uma vida repartida. Uma vida que só é feliz verdadeiramente se ela se consumar no amor, se ela se consumar numa relação de oferta, de gratuidade, de serviço. E o mundo precisa que nós façamos da nossa vida dom.

O profeta Amós critica as pessoas do seu tempo, os ‘bens-estantes’ do seu tempo, porque se banqueteavam, porque cantavam as suas canções. Porque, no fundo, viviam no seu condomínio de felicidade e esqueciam a ruína de José, esqueciam o sofrimento do irmão mais próximo. Este esquecimento, esta indiferença é alguma coisa que pesa no tempo de Amós e continua a pesar hoje nas nossas vidas.

Ainda a semana passada, na conclusão do encontro de oração em Assis, o Papa Francisco, no discurso final, falava do grande pecado do nosso tempo e que ele diz que é o grande paganismo do nosso tempo. Isto é, o contrário da piedade, o contrário da religião, o contrário da fé. E ele dizia: “O grande paganismo do nosso tempo é a indiferença, é a indiferença. Nós vemos o sofrimento do nosso irmão e, em vez de nos sentirmos interpelados, implicados, nós passamos ao lado como quem muda de canal, como quem se desresponsabiliza completamente daquela situação”.

Queridos irmãos, o Evangelho de Jesus tem uma clareza muito grande: nós não nos salvamos sozinhos, nós não nos salvamos procurando os nossos prazeres, nós não nos salvamos construindo muros de indiferença em torno a nós. Mas nós salvamo-nos escutando a voz de sofrimento dos nossos irmãos e indo ao encontro dos nossos irmãos. Nós salvamo-nos tornando a nossa vida uma história de amor, uma história de dom, uma história de compaixão. E isto acontece num tempo em que nós não podemos ser indiferentes à pobreza que grassa à nossa volta.

Ainda estes dias saiu um estudo sobre a desigualdade em Portugal, patrocinado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, e são impressionantes os dados que lá aparecem. No fundo, dizendo que um em cada cinco portugueses tem de viver com menos de 422€ por mês. Se calhar, a maior parte de nós que está aqui não saberia viver com essa quantia. Mas muitas famílias em Portugal, um em cada cinco, vive nessa situação. E como é que isso nos interpela? Como é que isso nos enche de um zelo, de um desejo santo de transformar, de ir ao encontro?

Para nós, cristãos, a pobreza não é uma abstração. É muito importante que cada um de nós se sinta chamado a ir ao encontro dos pobres. Para nós, os pobres são uma página viva do Evangelho que fica por ler na nossa vida se nós não formos ao seu encontro.

Eu lembro-me muitas vezes de um amigo meu que foi um alto quadro em organizações internacionais, um economista muito respeitado em Portugal e que fez uma obra sem dúvida muito meritória. Mas, quando ele se reformou da universidade, almoçámos, e ele disse-me: “ Eu só tenho a agradecer porque a minha vida foi uma vida cheia, mas eu tenho a plena consciência de que me falta uma coisa: falta-me ir ao encontro dos pobres”. E os últimos anos da vida dele ele dedicou-os, de facto, a ir ao encontro dos pobres.

Para nós, cristãos, é muito importante a amizade com os pobres, a amizade com os pobres. Não é só ser contra a pobreza, não é só fazer tudo o que está ao nosso alcance para encontrarmos os modos, as decisões, as políticas, as planificações que ajudem a combater este flagelo da pobreza e da desigualdade. Mas para além disso, cada um de nós sabe que os pobres são nossos irmãos. E por isso, cada um de nós deveria ter na sua vida um amigo pobre, a quem vai ao encontro, a quem reconhece pelo nome, quem dá tempo. Não apenas dinheiro e ajuda, claro que isso é fundamental, mas dá o seu tempo, envolve-se, dá voz aos seus problemas, fica sensibilizado pela situação muitas vezes de doença, de solidão, de falta de esperança em que as pessoas vivem. E este encontro, este encontro com o pobre é um encontro que nos transforma.

Aquele muro que, na parábola, separava o rico opulento do pobre Lázaro é um muro que continua presente nas nossas vidas, e que só é vencido quando nós tomamos a decisão de dizer: “Não, eu tenho de estabelecer relação.” Porque a pobreza não é uma abstração, a pobreza tem rostos, tem nome, tem histórias e nós precisamos de conhecer, nós precisamos de nos envolver. Não naquele sentido da caridadezinha, em que cada um tinha o seu pobre e, no fundo, tratava o seu pobre como quem trata um animal doméstico. Isso é absolutamente horrível. Mas é ir ao encontro dos pobres e ser capaz de olhar nos olhos, de estar perante um seu semelhante, ser capaz de construir uma história de amizade, uma história de presença à vida do outro. E isso é que verdadeiramente transforma.

Perceber a teoria é muito importante, perceber as análises sociológicas é fundamental, porque elas representam uma palavra profética, mas perceber o olhar do outro, sentir a sua vida, escutá-lo, estabelecer com ele uma relação, isso sim é transformador para aquilo que vivemos.

O Santo João Paulo II falava da “fantasia da caridade” e dizia, no início do século XX, que o século XXI seria um tempo novo se cada um de nós, nós cristãos, tivéssemos a “fantasia da caridade”. Nós precisamos de criar novas formas de caridade, pelo acolhimento, pela relação, pelo encontro, pela vitória sobre a indiferença, e o aumento, o aprofundamento da nossa consciência social.

Há tantas pessoas, tantos cristãos, que no silêncio das suas vidas dão exemplos extraordinários. Eu lembro-me na primeira paróquia que tive, havia uma professora reformada, ela dava metade da sua reforma para os pobres. Eu lembro-me de uma outra pessoa que era administradora de uma grande empresa, ela era visitadora da Conferência Vicentina. Ela gastava os seus sábados, todos os sábados, para recolher na paróquia inteira a oferta que cada um dava para a Conferência Vicentina. Às vezes as pessoas davam um euro ou davam meio cêntimo, que era aquilo que podiam dar. E esta mulher que dizia: “Eu dava do meu bolso 50€ ou 100€ para ter um sábado livre”, empenhava o seu sábado para recolher a cada porta o fundo para a Conferência Vicentina. Isto também é uma dádiva de amor, acreditar que, todos juntos, podemos fazer alguma coisa. E argamassar esta responsabilidade que a todos nos une é fazer alguma coisa.

Outras pessoas que conheço, por exemplo, se vão de férias a um lugar qualquer, oferecem aquilo que gastam nas férias a uma instituição social, a igual quantia. Porque sentem que não podem ficar fechados em si. Têm de repartir, têm de partilhar, isto é a “fantasia da caridade” a operar.

Queridos irmãos, que o Senhor toque o nosso coração. A Palavra de Jesus é uma Palavra muito clara. Às vezes nós esquecemo-nos de onde vimos, esquecemo-nos de onde vimos. Por exemplo, no Antigo Testamento, que é aquilo que está presente na cabeça de Jesus quando ele fala, os pobres têm direitos, os pobres têm direitos. E a esmola, em sentido judaico, quer dizer em sentido bíblico, não é um favor que estamos a fazer a alguém. A esmola é uma restituição daquilo que lhe pertence. Porque, na conceção bíblica, toda a propriedade é de Deus. Por isso, se há um irmão que não tem absolutamente nada a esmola é um ato de restituição. E toda a tradição cristã, a tradição medieval, S. Francisco de Assis, Santa Clara, o grande debate dos Padres da Igreja era, no fundo, afirmar os direitos dos pobres.

É claro, nós hoje vivemos numa sociedade onde isto é um tabu, é um interdito falar destas coisas. Mas é destas coisas que nós somos herdeiros, não podemos esquecer. É deste pensamento do que é a vida e do que é a relação entre os Homens, neste aspeto de pobreza e riqueza, é daqui que nós vimos, é desta tradição que nós vimos. Por isso, cada um de nós tem de sentir como a si dirigidas as palavras que S. Paulo diz a Timóteo dizendo: “Guarda este mandamento sem mancha, e acima de toda a censura até a aparição de Nosso Senhor Jesus Cristo.”

Como é que nós temos guardado o mandamento do amor? Como é que nós temos guardado o mandamento da com-divisão, como é que nós temos guardado a pergunta que Deus faz no livro do Génesis: “Onde está o teu irmão?”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVI do Tempo Comum

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Julho

2016/07/15 – Peregrinação a Roma e Assis

No Ano Jubilar da Misericórdia, a comunidade da Capela do Rato vai fazer uma Peregrinação a Roma e a Assis, de 15 a 21 de julho. As inscrições poderão ser feitas na Capela, no final da eucaristia das 11h30 de domingo ou para o e-mail capeladorato@gmail.com.

Consulte aqui o programa.

2016/07/10 - Ampliar a nossa sede (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Como nos lembra o livro do Deuteronómio, a Palavra de Deus não está longe de nós para que possamos dizer: “Mas como é que eu a posso alcançar? Como é que eu a posso escutar?” Não está inacessível, Deus não está inacessível, Deus está perto de nós, atravessa a nossa história, cruza-Se com os nossos caminhos. Deus é tangível, Deus é visível. E é isso que nós proclamávamos nesse hino extraordinário da Carta aos Colossenses quando nos diz: “Cristo é imagem de Deus invisível.”

Então, para nós cristãos, Deus não é um enigma, Deus não é inescrutável, Deus não é alguém que nunca vimos, que nunca tocamos, cuja proximidade nunca influenciou, nunca entrou pela nossa vida dentro. Pelo contrário, em Cristo nós temos a imagem do Deus invisível. Sentimos a vizinhança de Deus, sentimos a fronteira de Deus completamente próxima dos nossos dias, das nossas horas, dos nossos passos, dos nossos projetos. É uma fronteira próxima porque Deus está, Deus está aqui. No aqui e no agora da nossa vida, Ele está.

A parábola que Jesus conta no diálogo com aquele doutor da Lei, que queria saber como é que havia de ganhar a vida eterna, é uma parábola que vai precisamente nesse sentido a dizer que Deus não é um culto que nós celebramos em Jerusalém, e fica aí tudo. Deus não é um serviço cultual e litúrgico que nós celebramos no Templo e depois deixamos Deus no mistério do Templo, no santo dos santos do Templo. Não, nós encontramos Deus andando em viagem como aquele Samaritano anda em viagem. Ele próprio não ia a Jerusalém, não ia ao Templo, mas Deus ia ao encontro dele.

É muito bela uma frase do profeta Isaías que S. Paulo recupera e cita na Carta aos Romanos que é Deus a dizer: “Eu fiz-me encontrar por aqueles que não me procuravam.“ Quer dizer, Deus não se deixa encontrar só por aqueles que O procuram, mesmo aqueles que não O procuram Deus faz-se encontrar, Deus dá-se a ver. E Deus dá-se a ver onde? Antes de tudo, no encontro com o nosso irmão. Antes de tudo, no encontro com a vida nua, com a vida frágil, com a vida carente, com a vida necessitada. Antes de tudo é aí que Deus Se dá a ver, Se dá a tocar, é aí que Deus Se revela.

Pode acontecer que nós tenhamos o coração fechado, isto é, que estejamos saciados de Deus. A pior coisa para um crente é estar saciado de Deus. Por exemplo, nós vimos à missa e de Deus já temos a nossa dose e não precisamos mais Dele, nem estamos disponíveis para outros encontros com Deus no dizer da vida, na surpresa, no inesperado. Porquê? Porque já fomos ao Templo, já subimos a Jerusalém, já rezámos, já oferecemos o sacrifício e então já estamos desobrigados do encontro com Deus.

Ora, um crente não é aquele que está saciado de Deus, o crente é aquele que tem sede e fome de Deus. Nós estamos aqui não para nos saciarmos mas para ampliarmos a nossa sede, para ampliarmos o nosso desejo de Deus, para fazermos crescer a vontade de O encontrar, a vontade de O ver, para intensificar a nossa busca, a nossa exploração. E por isso, não estamos desobrigados. Pelo contrário, a fé é como um radar, a fé é uma antena, a fé é uma sonda, a fé é um sismógrafo, a fé está sempre numa atenção, numa atitude de atenção. Onde é que Deus está neste momento da minha vida? Onde é que Deus está? Por onde é que Ele está a passar? De que forma surpreendente, de que forma inesperada neste momento Deus está a falar-me? Porque é assim que Deus fala.

Aquele homem andava em viagem, ele era um samaritano. Isto é, era alguém que nunca iria a Jerusalém, fazia a busca de Deus a partir de outra tradição que os Judeus consideravam uma tradição espúria, menor, sem sentido. Ele andava em viagem. E o andar em viagem não o isolava, não insonorizava a sua vida, não o colocava numa cápsula, como tantas vezes a nossa vida está colocada. Mas ele estava atento, o seu coração funcionava, as entranhas de misericórdia funcionavam e quando ele viu aquele homem caído na estrada ele encheu-se de compaixão.

A religião é misericórdia e neste Ano Santo da Misericórdia é preciso nós dizermos isso e nós nos convertermos a isso. Religião é misericórdia. Religião sem misericórdia não é religião, é uma coisa demasiado estreita, é um funil de Deus, é um funil que diminui a força de Deus em vez de intensificar a chegada de Deus ao mundo, reduz Deus, torna Deus mais pobre. Religião é misericórdia, misericórdia. Porque Deus é amor, Deus é entranhas de misericórdia, vísceras de misericórdia.

É interessante que na tradição profética fala-se do útero de Deus. Isto é, Deus tem umas entranhas que geram vida, Deus não é estéril no amor, Ele é um gerador de vida. Deus vive numa gestação de vida permanente. Ele não apenas criou, Ele cria, Ele é essa criação de vida. Neste ano da Misericórdia é muito importante que nos perguntemos por isso: o que é que fazemos nós da misericórdia? Onde é que a colocamos na nossa relação com Deus, na construção de nós mesmos, na forma como habitamos o mundo? O que fazemos da misericórdia?

Aquele homem passou pelo caído na estrada, por aquele homem ferido, e encheu-se de compaixão. E isto é o que transforma a vida: é a compaixão, é colocar-se no lugar do outro, é sentir a dor do outro, sentir a dificuldade do outro. Ele tinha tudo para se afastar mas a misericórdia torna-nos reféns do outro, torna-nos incapazes de nos afastarmos – é um vínculo de solidariedade, é uma empatia espiritual pela situação do outro. Entranhas de misericórdia. Aquele homem encheu-se de compaixão. E com a compaixão ele entra numa espécie de itinerário, é quase como se fosse uma oração. Porque ele aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. A sequência dos verbos é como se fosse uma oração. É a grande oração do amor, do cuidado pelo outro, do ligar o coração do outro, do tratar das suas feridas. Essa é que é a grande oração.

Uma vez encontrei uma pintora que estava a trabalhar as parábolas de Jesus, e uma parábola que ela tratou no seu trabalho artístico foi esta parábola. Ela depois designou a exposição “A noite do samaritano.” Porque ela disse: “Eu li muitas vezes a parábola do Bom Samaritano mas só ao fim de muito tempo é que eu descobri isto: o samaritano passou uma noite inteira junto daquele ferido, passou uma noite inteira a cuidar dele. Então, o que me interessa é tratar a noite do samaritano.” Isto é, aquela noite, aquele tempo longo, aquele gesto talvez desmesurado de amor, de compaixão pelo outro que ocupa a noite inteira. E ele, possivelmente, ficou em vigília toda aquela noite, cuidando do outro. Essa noite, a noite do samaritano é a noite de Deus na nossa vida.

Queridos irmãs e irmãos, nós somos chamados neste Ano Santo a redescobrir a misericórdia. E a misericórdia não é uma coisa teórica é, antes de tudo, a capacidade de sentir compaixão, sentir compaixão. Nós, por muitas razões, tornamo-nos duros de coração, desconfiamos do outro, achamos que o outro não merece, que não vale a pena, desistimos, descartamos. E a misericórdia é alguma coisa que aos poucos vai sendo declarada impossível na nossa vida. Porque nós vemos uma situação e levantamos logo isto, mais aquilo, mais aquele outro e a verdade é que passamos ao lado das situações em vez de nos envolvermos com elas.

É claro que pegar neste homem caído trocou as voltas à vida do samaritano, completamente, deu-lhe cabo da viagem possivelmente, ou transformou-o completamente, ou essas coisas todas. Porque dá trabalho, dá que fazer. Mas naquela sua noite, naquele seu gesto aquele samaritano tocou o mistério de Deus.

Às vezes Deus parece que está ausente, Deus está calado, Deus está silenciado na nossa vida porque simplesmente nós estamos a passar ao lado de Deus. E estamos à espera que Deus nos apareça limpinho, sublime, sobre as nuvens a cair e Deus está caído na rua, Deus tem piolhos, Deus cheira mal, Deus tem a vida desordenada, Deus merecia estar preso, Deus merecia estar excluído. Deus é assim, Deus não toma banho, Deus cheira mal, não cheira bem. Isto é, o encontro com Deus é o encontro com os últimos, é o encontro que só a misericórdia sustenta. Há um encontro com Deus que só a misericórdia sustenta e por isso nós temos de abrir o coração. É um desafio muito grande, este desafio ao cuidado da vida frágil, ao cuidado da vida pobre.

Vamos rezar ao Senhor por cada um de nós. No fundo, o grande desafio é tornarmos a nossa vida uma parábola de misericórdia, que a nossa vida seja uma parábola. Não tem de ser esta do Bom Samaritano, mas a nossa vida tem de ser uma história de misericórdia e tem que ter histórias de misericórdia. Este Ano Santo da Misericórdia ficaria incompleto se nós não protagonizarmos uma história de misericórdia que é chamada a acontecer nas nossas vidas.

Vamos por isso rezar para que o Espírito Santo nos inspire e que este tempo de férias, este tempo diferente do resto do ano seja também uma oportunidade dada à misericórdia nas nossas vidas.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XV do Tempo Comum

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2016/07/05 – Reunião de preparação da peregrinação

Realiza-se no dia 5 de julho pelas 18h30, a reunião de preparação da Peregrinação da comunidade da Capela do Rato a Roma e Assis.

2016/07/03 - A perfeita alegria (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

É um evangelho muito necessário, mas um evangelho difícil, a alegria. Porque, por um lado, todos nós a sentimos, a experimentamos; e, por outro lado, sabemos como ela nos escapa, como ela é precária, como ela é inexplicável, a alegria. Muitas vezes sentimos que ela até é dispensável, podemos até viver sem a alegria, podemos caminhar pela vida fora sem a alegria ou achar que ela tem mais a ver com o caráter, o temperamento de cada um. Mas, lendo as escrituras nós percebemos que a alegria é muito mais do que isso, a alegria é uma condição dos que caminham. Por isso, nós não podemos olhar para a alegria como uma realidade eventual na nossa vida. Se tivermos, muito bem, se não tivermos muito bem na mesma. Não, a alegria tem de caracterizar a nossa vida. A alegria tem de nos acompanhar, a alegria é uma expressão da ação do Espírito Santo em nós, a alegria é um dom de Deus na nossa vida e a alegria é um sinal de saúde interior. Não é apenas um sinal de saúde psíquica mas é um sinal de vitalidade interior. Quando estamos cheios do Espírito, quando Deus trabalha em nós a alegria transborda, a alegria acontece.

E se a alegria falha nós temos de entender isso como um sintoma, como uma campainha que toca, e perguntar o que é que está a acontecer, porque é que me falta a alegria, porque é que a alegria não me visita, porque é que eu não sou um canal, um bom-condutor da alegria, que obstáculo há em mim para que a alegria não se manifeste. Porque a alegria é um trabalho de Deus em nós, porque Deus conspira para a nossa alegria. Nós víamos isso na primeira leitura do livro do profeta Isaías, quando depois dos grandes trabalhos de luto, sofrimento e exílio por que passa o povo de Israel e a cidade de Jerusalém, (sitiada primeiro, depois ocupada) chega esta mensagem de Deus: “Depois do luto alegrai-vos.”

É interessante como Deus aparece aqui como um aliado da nossa alegria, como alguém que modela dentro de nós, dá forma à própria alegria e de uma forma intencionalmente pedagógica. Esta imagem tão bela que nos aparece no profeta Isaías, que é como uma mãe exorta um filho e lhe diz “Coragem! Alento! Não chores!” e lhe faz cócegas e o faz rir, assim também Deus nos faz rir. Assim também Deus nos pega ao colo, nos exorta, nos consola para nos fazer alegrar o coração, para nos dar motivos de alegria. Por isso, sintamos que a alegria não é superficial, não é epidérmica, a alegria não é uma coisa fora de Deus. Mas a alegria, pelo contrário, é um resultado, é uma consequência da ação de Deus na nossa vida e a alegria é também acreditar, sentir a alegria. Nas listas dos dons do Espírito Santo a alegria aparece sempre e aparece sempre nos lugares cimeiros porque a alegria deve marcar a vida cristã. E quem se deixa conduzir pelo Espírito claro que experimenta uma grande paz, claro que experimenta uma liberdade interior mas também experimenta uma grande alegria.

O nosso povo tem muita razão quando diz que um santo triste é um triste santo. Porque os santos devem manifestar a sua alegria. E da mesma maneira, um cristão triste é um triste cristão. Porque, o nosso cristianismo deve levar-nos a experimentar a alegria. Uma alegria que não é uma ignorância do mundo, ou não é uma ignorância do sofrimento, ou não é um estado de isenção: eu estou alegre porque tudo me corre bem, ou estou alegre porque não há nenhuma sombra, ou estou alegre porque tudo é transparente. Às vezes isso acontece, em alguns momentos raros de graça na nossa vida parece que tudo se conjuga para uma transparência, uma luz – também acontece esse milagre. Mas não é o normal, não é o comum. Se nós reduzimos a alegria apenas a esse estado de graça, vamos ser só esporadicamente alegres, não vamos ser continuamente alegres. Porque, a maior parte do tempo, a nossa vida é transformação, é movimento, é incompletude, é inacabamento, é uma surpresa, é um revés, é um cair, é um reerguer-se. A nossa vida é feita dessa turbulência, desse tumulto. Mas será que essa transformação porque passa a nossa vida nos impede da alegria?

É muito belo o movimento quase retórico, gráfico, das palavras de Jesus no final do Evangelho que hoje lemos. Jesus diz assim: “Não se alegrem por achar que dominam os espíritos, mas alegrem-se porque os vossos nomes estão escritos no céu.” Então, Jesus diz: “Não se alegrem por isto, mas alegrem-se por aquilo.” Este movimento é muito necessário acontecer em nós, porque às vezes nós alegramo-nos por coisas que não são as coisas que nos dão a verdadeira alegria. Às vezes pensamos que vamos extrair a alegria do sucesso, da abundância, da afirmação, do poder, da eficácia, da realização e que isso é a fonte da nossa alegria. Mas Jesus diz: “Não se alegrem por isso, alegrem-se porque a alegria é uma coisa maior, a alegria tem a ver com o eterno, não tem a ver com o imediato. A alegria tem a ver com aquelas razões profundas de viver. Alegrem-se porque o vosso nome está escrito nos céus.”

É interessante que o Cristianismo tem debatido muito a alegria. Por exemplo, há uma história nos Fioretti, as histórias pequeninas da vida de São Francisco de Assis, que é uma história sobre aquilo que no franciscanismo se chama a história da perfeita alegria. Então vinha o irmão Leão – Leão é mesmo o nome de um dos frades, apesar de São Francisco também falar com lobos, mas este era mesmo um frade – que vinha acompanhar São Francisco e vinham pelo caminho de regresso a casa, no meio do inverno (vento, neve, frio) e o irmão Leão pergunta ao irmão Francisco: “O que é que é a perfeita alegria?” E São Francisco diz isto: “A perfeita alegria é nós agora chegarmos ali ao nosso convento e batermos à porta e nos vier abrir um irmão e não nos reconhecer. E dizer «Ide-vos embora! O que é que estais aqui a fazer? Vindes roubar o pão que é devido aos pobres» e fechar-nos a porta na cara. E se nós não nos revoltarmos, e se nós não murmurarmos contra aquele irmão, e se nós não arrancarmos os cabelos por não nos ter saído a sorte grande mas por nos ter acontecido aquele revés, e conseguirmos manter a paz, isso é a perfeita alegria. Ou ainda, estando já muito tempo ali fora e caindo a noite nós decidamos no nosso coração: vamos tentar mais uma vez, vamos bater à porta. E batemos de novo à porta e aparece o irmão porteiro e diz: “Outra vez?” E pega num pão e vem à rua e castiga duramente cada um de nós. E se nós aceitarmos aquela provação, pensando nos sofrimentos de Cristo e não nos rebelaremos, não murmurarmos contra aquele irmão, mas mantivermos no nosso coração o amor por ele, experimentando uma liberdade interior muito grande, essa é a perfeita alegria.” Porque a perfeita alegria é a vitória sobre tudo aquilo que é o nosso apego, tudo aquilo que é o nosso “eu” mal resolvido, o nosso “eu” tirânico, tudo o que é a vitória sobre isso, tudo aquilo que nos dá uma liberdade muito grande. Liberdade também face às nossas expetativas, face às nossas conceções da alegria. Porque, às vezes, o que nos faz sofrer não é a nossa vida mas é a idealização da nossa vida – é a vida não ser como a gente a pensou, a idealizou, e depois deixamos de ter a capacidade de abraçar a vida como ela é. Se tivermos a capacidade de abraçar a nossa vida com os sofrimentos, com as revezas, sem murmurar, com um sorriso, essa é a perfeita alegria.

Um outro medieval, mas agora dominicano, o Mestre Eckhart, falava da alegria perpétua. São Francisco fala da perfeita alegria e o Mestre Eckhart fala da alegria perpétua, da alegria contínua. E o que é para ele a alegria perpétua? A alegria perpétua, diz ele, não são as coisas de Deus, não é aquilo que Deus nos pode dar, mas a alegria perfeita é o próprio Senhor. E o próprio Senhor é alguma coisa que nós recebemos no nosso coração quando ‘descascamos a batata’. Isto é, quando tiramos a casca, quando relativizamos aquilo que é relativo, quando nos expomos sem defesa à vinda de Deus, à Sua vontade, ao que Ele nos quer dar – então aí nós temos a alegria perpétua, a alegria que não acaba, a alegria que não é ameaçada. Porque o próprio Deus é a alegria, o próprio Deus Se nos dá.

“Não vos alegreis porque tendes poder sobre os espíritos, alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão escritos no céu.” Queridos irmãs e irmãos, a alegria é uma tarefa para todos nós, como é que cada um de nós vive a alegria? É uma pergunta muito importante, e é uma pergunta de fé. É uma pergunta que tem a ver com a nossa fé. Como é que eu vivo a alegria? Às vezes nós vivemos murchos, nós vivemos tristonhos, nós vivemos anoitecidos, nós vivemos aborrecidos, chateados, pesados, revoltados, esmagados por isto, oprimidos. E o que é feito da nossa alegria? O que é feito desta alegria que Deus opera em nós continuamente, continuamente.

Tem razão S. Paulo, na Carta aos Gálatas, quando diz: “Meus irmãos, a coisa mais importante é esta: que eu seja uma nova criatura em Cristo.” Isto é: “Que eu tenha a capacidade de nascer continuamente em Cristo.”

Queridos irmãos, todos nós, a maioria de nós (as crianças que estão à nossa frente são o nosso futuro), todos nós adultos somos homens velhos, somos homens velhos. Carregados disto e daquilo, de experiências, de provas, de sabemos, de enganos e desenganos, ilusões e desilusões – não é isso que é importante. O importante não é o que eu vivi, o que eu fui ou não fui, o que eu queria, o que não queria. O importante não é isso, o importante é eu poder nascer em Cristo, eu ser novo em Cristo, eu sentir-me nova criatura em Cristo. E nós estamos aqui, nesta Eucaristia, para isso. A Eucaristia é a nossa manjedoura, é a sala de parto. A Eucaristia é aquele lugar onde a Igreja renasce, onde cada um de nós cristãos, batizados, renascemos, somos novos. E somos novos para quê? Para podermos ser servidores da alegria, artesãos da alegria, dançarinos da alegria, cantores da alegria, escultores da alegria, testemunhas da alegria no meio do mundo, a perfeita alegria, a perpétua alegria.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIV do Tempo Comum

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Junho

2016/06/26 - Espaço para a profecia (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

A Palavra de Deus também funciona como um espelho. Como um espelho onde nós encontramos histórias com as quais nos podemos identificar, histórias que trazem uma profundidade de sentido até à nossa vida, nos colocam perguntas, colocam-se a conversar com aquilo que somos, aquilo que vivemos, aquilo que trazemos dentro de nós. É uma espécie de mosaico. É sempre uma narrativa muito ampla, muito aberta mas capaz de tocar pontos concretos do itinerário que cada um de nós, cada um de nós sem exceção, está a fazer. Este conjunto de histórias, à maneira de um repositório, acaba por traduzir de forma muito concreta aquela que é a vontade de Deus inspirar a nossa vida, transformar, transfigurar, iluminar, reconciliar profundamente a nossa vida.

A primeira história é aquela do profeta Elias e do profeta Eliseu. É muito belo porque o profetismo não tem a ver com a família, o profetismo acontece de surpresa, Deus manifesta-se na vida de forma surpreendente. E é importante estarmos abertos para as surpresas de Deus. O modo como Deus vai entrar na vida de cada um de nós é um modo único, é um modo diferente. É importante cada um de nós estar aberto para essa surpresa.

Eliseu estava com os seus bois e o seu arado a trabalhar na terra, as expetativas dele seriam continuar ali, e passa o profeta Elias e tira-lhe a capa. Isto é, desafia-o a começar um destino novo com o qual ele não contou. E então, Eliseu faz um gesto de grande beleza: mata as juntas de bois e com a madeira do próprio arado faz um banquete para os seus e despede-se, e começa um tempo novo de vida.

Mas, ele quer começar esse tempo novo de vida com um momento de dádiva, transformando aquilo que tem numa dádiva, numa oferta aos outros. Isto para nós é um desafio muito grande, porque nem sempre aquilo que temos nós conseguimos transforma-lo em dádiva, conseguimos transforma-lo em oferta, em lugar de encontro, em potenciador da relação. Mas, o que temos são apenas coisas, são apenas bois e são apenas arados. Ser capaz de transformar os bois e arados numa festa é alguma coisa para a qual Deus desafia cada um de nós. No fundo, o que é que fazemos com aquilo que possuímos? E como é que sentimos que estamos a ser chamados?

Nós somos um povo de profetas. Então, na vida de cada um de nós tem de haver espaço para a profecia. Não são apenas: ah, a madre Teresa de Calcutá é uma grande profeta, Jean Vanier é um grande profeta. Sim, sem dúvida são vozes proféticas mas o que Deus quer é um povo de profetas. Isto é, cada um de nós, no seu espaço, no seu território existencial possa fazer acender a profecia. Como é que nós fazemos acender a profecia? A profecia é sempre um gesto disruptivo, é sempre um gesto novo, é sempre um gesto capaz de trazer a força do Espírito Santo.

Outra imagem muito forte, e ao mesmo tempo de grande realismo, é aquela que nos é oferecida por S. Paulo na Carta aos Gálatas. S. Paulo explora aqui uma coisa que ele vai trabalhar muito também noutras epístolas, que é esta: cada um de nós experimenta princípios contraditórios dentro de si. Que ele resume em dois: o princípio da carne e o princípio do Espírito. O princípio da carne leva-nos para um lado, aquilo que é o Espírito em nós leva-nos para outro, e cada um de nós experimenta o conflito, experimenta a dificuldade de ser. Tanto assim que S. Paulo noutra carta vai dizer isto: “Quem me libertará deste corpo de morte? Porque eu não faço aquilo que acredito, mas acabo por fazer aquilo que odeio, aquilo que não quero.” E nós sabemos que é assim. Tantas vezes não fazemos aquilo que achamos que é o bem, aquilo que acreditamos que é o bem e acabamos por ficar escravos apenas da nossa carne e da nossa vontade e vivemos esta contradição interna. S. Paulo dá-nos este retrato. Quer dizer, Deus sabe aquilo que nós vivemos, Deus sabe o que está em cada um de nós, Deus conhece-nos a fundo. E, nesse sentido, esta contradição humana, esta dificuldade de viver, de ser, que cada um de nós experimenta é mesmo assim. Contudo, a palavra de Paulo é esta: “Não podemos desistir de dar na nossa vida prioridade ao Espírito. Não podemos desistir de fazer experiência de liberdade.” E às vezes para nós a liberdade mais difícil é a liberdade face ao nosso “eu”, face ao nosso ego. Porque o nosso “eu”, às vezes, tem exigências tirânicas; o nosso “eu”, às vezes, é uma prisão que nos prende. Nós temos de ouvir a voz do nosso eu, mas ao mesmo tempo não podemos ficar submissos a essa voz. Temos de ter uma liberdade, temos de experimentar um desapego face às exigências do nosso eu, na nossa vontade, nas nossas necessidades. Experimentar uma liberdade, um espaço de liberdade. E é essa liberdade, esse desapego, essa relativização de nós mesmos que também cria espaço para a liberdade do Espírito, para a criatividade do Espírito na nossa vida.

O Evangelho de hoje também é uma sucessão de imagens com as quais nos temos de confrontar. A primeira é esta: Jesus ia a passar na peregrinação de Jerusalém, os discípulos vão preparar-lhe um lugar na Samaria, mas como os samaritanos odeiam os judeus quando sabem que Jesus vai para Jerusalém fecham-lhes a porta. E os discípulos dizem: “Senhor, queres que mandemos cair fogo do céu para queimar esta gente dura de coração?” E Jesus diz: “Não, vamos para outro lugar.” Reparem a forma como Jesus ultrapassa o conflito. Às vezes nós ficamos presos a lutas que não vão a lado nenhum, às vezes nós ficamos a combater por causas que só aumentam a violência, que já não dão possibilidade de encontro e o que é belo é esta sabedoria do Evangelho que diz: “Não, vai para outro lugar. Vai-te embora, desiste disso. Tu não vais mudar a rixa, o conflito entre os samaritanos e os judeus. Começa uma outra coisa, vai para outro sítio.” E este ir embora é, no fundo, também uma possibilidade de começar uma coisa nova.

Aquele discípulo que vem dizer: “Senhor, seguir-te-ei para onde quer que fores.” E Jesus diz-lhe: “As raposas têm as suas tocas, as aves os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” Isto é, nós seguimos Jesus, cada um de nós segue Jesus mas não é para chegar a um lugar, não é para ter um prémio, não é para entrar num parque de estacionamento, não é para ficar parado, não é para ficar seguro. A religião não é uma seguradora, não é a ‘Fidelidade’, não é a ‘Tranquilidade’, não é uma seguradora. A religião é um clube de risco, é para quem, de facto, quer arriscar. E, muitas vezes, precisamente os crentes, precisamente aqueles que se abandonam, aqueles que aceitam Deus têm de viver no nada, no Deus dará, no Deus dará. Têm de fazer a experiência da Providência, têm de sentir que Deus não está a por a mão por baixo, têm de sentir o silêncio de Deus. Têm de sentir que a vida é um risco, é um acreditar. E o acreditar não é: eu somo dois mais dois e então percebo que é assim. Não, eu não consigo somar nada, mas acredito que é assim. Este atirar a vida para diante é a confiança daqueles que seguem Jesus.

Aquela palavra daquela pequena história é uma palavra que para nós nos desassossega porque aquele homem veio dizer a Jesus: “Senhor, eu sigo-Te mas deixa-me primeiro ir despedir-me dos meus pais.” É um pedido honesto, é um pedido certo, até o profeta Elias permitiu que Eliseu se fosse despedir da sua família. Mas porque é que Jesus diz: “Não, não deixa lá isso. Quem coloca as mãos na charrua não pode olhar para trás senão deixa de ser digno de Mim.” Há aqui um paradoxo claramente, Jesus usa também metáforas paradoxais. Mas o que é que Jesus nos quer dizer? Nós temos de ser capazes de experimentar na nossa vida a prioridade de Deus, a prioridade do Reino de Deus. Porque é muito difícil amar a Deus sobre todas as coisas, é muito difícil. É muito difícil colocar Deus em primeiro lugar na nossa vida. Porque é que é difícil? Porque há tantas coisas que são importantes, há tantas coisas igualmente necessárias. E às tantas nós vivemos a adorar tantos deuses, nós vivemos presos a tantas coisas sem a capacidade de perceber qual é a coisa mais importante, qual é o passo que nós temos de dar. Por isso, Jesus diz: “Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás não serve para o Reino de Deus.” Isto é, temos que nos projetar para diante, temos de acreditar que aquilo que o Senhor pede a cada um de nós é, de facto, aquele lugar de encontro e de reencontro. Mesmo que nós não estejamos a ver como é que as coisas se vão passar, como é que vão ocorrer. Maria também não sabia quando o anjo veio ter com ela. Mas, Deus pode, Deus faz, Deus é capaz, a Deus nada é impossível. E é nesta Palavra, é nesta experiência que nós temos de ancorar a nossa vida.

Vamos assim aceitar receber esta Palavra, expor-nos a ela e que este conjunto de histórias correspondam a outros tantos desafios concretos capazes de dialogar com aquilo que nesta hora nós estamos a viver.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIII do Tempo Comum

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2016/06/19 - D. Manuel Clemente na Celebração do Sacramento do Crisma

D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa, vem à Capela do Rato crismar os catecúmenos que durante este ano se prepararam para esta etapa da sua vida cristã. Será no próximo domingo, dia 19 de junho, às 11h30. Toda a comunidade se alegra com este acontecimento e acolhe-o como uma benção.

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2016/06/12 - Deus torna o irreversível reversível (homilia)

Queridos irmãos, irmãs,

Hoje nós revisitamos uma das histórias mais impressionantes do cânone bíblico. Elas vêm em páginas do Antigo e do Novo Testamento. A primeira é a história do pecado de David, no livro de Samuel. Aparece-nos descrita de uma forma tão literária, tão forte, tão intensa, ao mesmo tempo quase tão moderna que nos vimos completamente refletidos na história do rei David.

É muito interessante porque não se explica bem o que é que se passou com David, diz-se simplesmente: “Na altura em que os reis saem a combate, para as frentes de batalha com os seus homens, o rei David ficou em casa.” Ficou em casa, levantou-se tarde e, em vez de começar logo a trabalhar porque estava atrasado, começou a passear-se pelas ameias, pelos corredores, pelo exterior do seu palácio. E aí viu a mulher de Urias e desejou-a. Depois, ele mandou chamar essa mulher, e a seguir tentou apagar o seu pecado da forma mais terrível que foi mandando matar o seu marido, para não se sentir culpado.

E o que nós sentimos é que o rei David, que a Bíblia chama “o rei segundo o coração de Deus” (isto é, foi um rei preparado, foi um rei tão apoiado pela força de Deus, conheceu tantas vitórias, tantos triunfos, era o rei poeta, compôs tantos salmos), a meio da vida passa por um momento de fraqueza absoluta que nem ele sabe bem explicar o que é que está a acontecer.

Muitos autores lendo esta página, este momento, dizem que talvez seja uma crise da meia-idade, uma depressão profunda que se abate sobre o rei David. Ele que começou muito cedo, que tinha já conquistado tudo o que havia para conquistar, a meio da sua vida ele tremeu. Perdeu o horizonte, perdeu o sentido, entrou numa vertigem interna, numa espécie de desconstrução de si mesmo. E, de facto, de repente tudo aquilo que ele construiu parece que se perdia por culpa dele próprio. Como se ele tivesse tecido a sua vida e agora estivesse a puxar os próprios fios.

Depois nós percebemos que este construir e desconstruir, que este plantar e ao mesmo tempo arrancar, que estas crises são grandes oportunidades para a nossa humanidade se construir. Porque não há vida sem crise, não há vida sem crise. Não há vida sem uma problematização profunda. A nossa vida não é apenas linear, a nossa vida tem sobressaltos, tem momentos que nos fazem estremecer, tem coisas que não conseguimos bem explicar como é que entramos aí. Tem avalanches e bolas de neve que nós próprios criamos, problemas que se adensam e de repente, sem darmos conta, somos ultrapassados por eles, e parece que tudo aquilo que construímos se perdeu.

Lendo a história do rei David nós perguntamos: mas como foi possível? Um homem como o rei David? Um homem assim, como é que cai daquela maneira? Ele que era o primeiro, ele que era o rei justo, como é que manda matar um soldado fiel para ficar com a mulher dele? É um crime horrível, é alguma coisa que está para lá de toda a moral, de toda a ética. Como é que o rei pôde cair assim? É verdade que há quedas assim, nem todas têm de ser, graças a Deus, tão terríveis como a da vida do rei David mas todas têm essa dimensão de crise, de problematização da vida, de tempo de interrogação, de tempo diferente que muitas vezes se abate sobre o nosso percurso. Parece que somos outras pessoas a viver outra vida, com outros valores, com outra moral. Parece que vivemos uma vida de exílio, uma vida ao contrário daquela vida autêntica que até aí tínhamos vivido.

Contudo, esse momento que parece um momento completamente disruptivo pode ser também um momento para experimentar, no abismo da vida, experimentar a graça. Porque o pecado leva o rei David a experimentar a humildade, uma humilhação, a reconhecer a sua pobreza, a sua miséria. Ele que era um rei poderoso agora vê-se um homem pecador, um homem pecador diante de Deus.

Quando o profeta Natan faz este processo com o rei David para ele revisitar a sua história e reconhecer-se na parábola que ele conta – o profeta Natan vem-lhe contar aquela história de um homem que tinha uma ovelhinha só, ao lado de um rico que tinha tantas, mas quando o rico recebe um hóspede ilustre manda matar a ovelha daquele que tinha só aquela e a amava como uma filha para banquetear o rico – o rei David fica furioso a dizer: “Esse homem merece a morte” e o profeta diz-lhe: “Esse homem és tu, esse homem és tu.”

Tantas vezes nós próprios achamos que merecemos a morte, tantas vezes nós próprios achamos que não merecemos já ser amados, tantas vezes nós achamos que não merecemos já a esperança, tantas vezes nós achamos que a vida já não é para nós e que nós merecemos todo o castigo, que nós merecemos ficar para trás, que nós merecemos a tristeza, merecemos o peso que carregamos. Este encontro do profeta que vem anunciar a palavra de Deus ao rei David é um encontro que torna o irreversível em reversível. Quando David cai em si o profeta diz-lhe: “Tu não morrerás, o Senhor perdoa o teu pecado.”

Esta é a experiência mais extraordinária da fé, é a experiência mais extraordinária. É nós percebermos que não há uma fatalidade, nós não estamos condenados à fatalidade, e que a nossa vida não é irreversível. Deus torna o irreversível, reversível, Deus consegue purificar o rei David daquele crime hediondo. Deus consegue recuperar a nossa vida, a nossa história, Deus consegue levantar-nos do pó, Deus consegue dar-nos uma outra oportunidade, Deus consegue fazer-nos renascer. Esta experiência de misericórdia, esta experiência de reversibilidade é a experiência fundamental da fé. Porque Deus não apenas nos criou uma vez, mulheres e homens, Deus cria-nos continuamente. Neste momento, neste instante, Deus está a criar-nos, está a recriar-nos, está a dar-nos uma nova oportunidade, está a amassar-nos de novo, está a fazer-nos sair dos nossos lutos, das nossas perdas, dos nossos pecados, da nossa noite. Deus está a fazer-nos sair, está a levantar-nos e é essa a ação de Deus em nós.

É isso que nos encontramos escrito de forma tão inesquecível no encontro daquela pecadora anónima com a pessoa de Jesus. É muito belo porque normalmente é Jesus que toma a iniciativa, é Jesus que vai ao encontro, é Jesus que toca, é Jesus que fala, é Jesus o protagonista da ação. Aqui Jesus é completamente passivo, aquela mulher vem de fora, traz um perfume, entra como intrusa na casa daquele fariseu. E aninha-se atrás de Jesus e começa a beijar-lhe repetidamente os pés, a chorar e a lavar-lhe com as suas próprias lágrimas os pés, a secar com os cabelos; e Jesus deixa, Jesus deixa. É importante nós sentirmos isto: que Deus deixa, deixa que coloquemos junto a Ele a nossa dor, o nosso fracasso, a nossa história problemática, os nossos dilemas. Deus deixa, Deus deixa que nós coloquemos. Reparem, a mulher não diz uma palavra, não diz uma única palavra, não diz nada. Mas o que ela diz é tão forte através das suas lágrimas, através do perfume, através da plástica do seu corpo. O que ela diz é tão forte, ela conta a sua história por inteiro e Jesus deixa ela contar.

Jesus aceita, aceita, aceita e transforma aquela história num novo início, num novo começo. Porque no final Jesus diz: “ Vai em paz, vai em paz.” E é esse encontro que cada um de nós celebra com Jesus. Enquanto não tivermos chorado aos pés de Jesus nós não descobrimos que Jesus tem pés. Enquanto não derramamos lágrimas sobre Ele, nós não descobrimos dimensões de acolhimento, de hospitalidade que Jesus tem para connosco. Este momento da mulher pecadora é um momento de grande descoberta de quem é Jesus.

Por isso, nós descobrimos Deus cumprindo os mandamentos, nós descobrimos Deus procurando ser boas pessoas, nós descobrimos Deus procurando ser bons cristãos. Cumprindo os nossos deveres, fazendo o melhor que está ao nosso alcance, transcendendo-nos a nós mesmos. Mas, nós conhecemos Deus sendo a ovelha perdida, sendo a moeda perdida, sendo o filho pródigo, sendo esta mulher inominada e pecadora. A nossa fragilidade também nos oferece um conhecimento de Deus porque Deus é misericórdia, porque Deus é amor, porque Deus é aquele que diz ao nosso coração “Tu não morrerás, tu não morrerás.” Quando tudo nos condena Jesus diz: “ Tu não morrerás.” E levanta-nos. Quando a Lei nos condena, quando a lei interior nos condena, quando a lei do mundo nos condena, Deus ainda dá ao homem a possibilidade de renascer, a possibilidade de ser. Desta máquina de misericórdia que é o coração de Deus é que nós temos de receber alimento, é aí que nós temos de colocar o nosso coração.

Por isso, confiança, confiança, confiança. Temos de confiar, temos de acreditar. Temos de acreditar que é possível e temos de nascer de novo, a cada momento da nossa vida. Porque Deus é misericórdia, porque Jesus, como diz S. Paulo na Carta aos Gálatas, é “ O novo princípio vital: já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim.” Porque nós somos justificados, somos transformados, somos creditados não numa lei mas num encontro de misericórdia e de amor que Jesus representa, e está sempre pronto a representar, na história de cada um de nós.

Vamos rezar pelos nossos itinerários, vamos rezar pelas nossas crises, e sobretudo por aqueles de nós que atravessam momentos mais dilemáticos da sua própria trajetória. Vamos rezar por eles para que esses momentos sejam momentos de abertura, momentos de confiança, momentos para se lançar por inteiro aos pés de Jesus, momentos para renascer, momentos para ouvir no seu coração: “O teu pecado está perdoado. Tu não morrerás.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XII do Tempo Comum

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2016/06/05 - A misericórdia é a gramática de Deus (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Esta narrativa bíblica é uma espécie de história das lágrimas. Podemos falar da Bíblia contando as lágrimas que aparecem em cada um dos livros, em cada uma das etapas da Revelação. Há uma acusação que fazem, nomeadamente à pessoa de Jesus, é que os Evangelhos nunca dizem que Jesus sorriu ou que Jesus se riu de alguma coisa. Mas contam que Jesus chorou diversas vezes. Chorou a olhar para Jerusalém, antecipando o seu destino, a sua destruição, pensando que toda aquela beleza ia ser destruída. Chorou diante do túmulo do seu amigo. Ao ver Lázaro morto Jesus chorou, e os que estavam à volta Dele diziam: “ Vede como Ele o amava, porque está aqui num pranto pelo seu amigo.”

Não é verdade que Jesus nunca se tenha rido porque os Evangelhos estão cheios de humor. Mas o verbo “sorrir” é um verbo, de certa forma, mais escasso na revelação bíblica que o verbo chorar.

Há muitas lágrimas na Bíblia. Há uma história que emana, que se conta em cada uma das nossas lágrimas. Todas as lágrimas contam uma história. Mesmo quando nós choramos em silêncio, ou quando nós choramos recolhidos, na nossa privacidade. A verdade é que nós choramos sempre para alguém ver. As lágrimas são um grito de socorro, são um apelo, são um chamamento, mesmo que seja silencioso, para que alguém nos acolha, para que um anjo do Senhor nos visite. É um momento de vulnerabilidade, é um momento de fragilidade, de exposição de si. Mas é também um desejo de relação, um desejo de redenção, que as nossas lágrimas contam.

Hoje, nas leituras, temos as lágrimas de duas mães. É impressionante como as mães são também um património destas lágrimas na Humanidade. Há um poema muito conhecido de Eugénio de Andrade, um poema longo em que ele fala de todas as mães que ocupam os grandes textos literários, que diz: “Porque elas sãos as mães, porque elas são as mães.” Ainda estes dias nos jornais nós vemos aquela mãe que está a ser interrogada por, no fundo, manter em aberto o dossiê do seu filho que foi morto e injustiçado. Aquela mulher, mesmo no limite das forças humanas, é uma espécie de retrato daquilo que são todas as mães. Nas lágrimas de todas as mães há esta dor por não aceitar que os seus filhos sejam as vítimas da história.

A Revelação bíblica mostra como Deus acolhe as nossas lágrimas, como as nossas lágrimas não lhe são indiferentes e como o acolhimento das lágrimas é uma condição da própria credibilidade. É muito interessante, no texto do profeta Elias, esta cena com a viúva de Sarepta. Só quando ela vê que Elias não é indiferente à sua dor, ao seu grito, ao seu pranto e faz alguma coisa pelo seu filho é que ela diz: “Realmente eu acredito que tu és um homem de Deus e que a Palavra do Senhor está em ti.” Quer dizer, a misericórdia, a compaixão é uma condição de credibilidade.

Nós podemos acreditar que alguém é portador de Deus quando os seus gestos são de misericórdia, quando os seus gestos são de compaixão. Por isso, uma Igreja, uma comunidade onde a severidade, a intransigência, o rigor se sobrepõem à misericórdia, à ternura, à compaixão é uma Igreja pouco credível, é uma comunidade que não testemunha o amor de Deus. Porque a misericórdia é a gramática de Deus, é a língua materna de Deus, é aquela que melhor explica Deus. Por isso, este Ano Santo da Misericórdia é também um desafio a aprendermos a misericórdia como linguagem comunicativa, como lugar onde Deus Se torna credível, onde Deus se pode tocar, sobretudo nos gestos de misericórdia, nesta atenção compassiva à dor e à fragilidade dos outros.

Em Naim, Jesus vê aproximar-se aquele cortejo fúnebre. Um cortejo fúnebre é uma declaração de impossível, a criança está morta, o que é que há a fazer? Não se pode fazer mais nada. A misericórdia contraria esta impossibilidade, a misericórdia é dizer: “Não, podemos sempre fazer alguma coisa.” Nunca podemos dizer: “Já não há nada a fazer, está tudo perdido.” Não, podemos sempre fazer alguma coisa, podemos sempre fazer alguma coisa. Jesus compadece-Se daquela mulher e isso é fazer alguma coisa. É um gesto de ternura, é um afago. O Evangelho de S. Lucas conta-nos que Jesus ressuscita o filho da viúva de Naim. Isto é, naquela situação onde o irremediável parecia instalado, Jesus é capaz de reabrir à esperança aquela situação.

Nós podemos dizer: “ Mas nós não fazemos milagres. Nós encontramos tanta dor, tantas lágrimas e não temos capacidade de fazer aquilo que Jesus fez.” Não, o importante não é o milagre, o importante é afirmar a possibilidade da vida, é dizer que a coisa não está acabada, que podemos sempre fazer alguma coisa.

É muito interessante, por exemplo, o Evangelho apócrifo de Filipe. Como sabemos, os textos apócrifos são textos de espiritualidade e, de uma maneira heterodoxa ou mais livre, acabam por dizer alguma coisa, muitas vezes relevante, acerca do sentido profundo das próprias narrativas evangélicas canônicas. Neste passo, o Evangelho apócrifo de Filipe faz isto: Jesus oferece um gato à viúva de Naim. É uma coisa que nos faz rir, porque é diferente ressuscitar o filho ou oferecer um gato. Mas oferecer um gato é oferecer uma história de vida, é oferecer alguma coisa que se pode agarrar, é continuar a história. É dizer: “Olha, eu estou atento ao teu sofrimento. Não te posso dar aquilo que o teu coração pede mas posso fazer alguma coisa por ti.” E isto é a misericórdia, isto é a compaixão: sermos capazes de oferecer ao outro um sorriso, um lenço para enxugar as lágrimas, não as podemos calar mas podemos oferecer um lenço, podemos estar ali ao lado, podemos ouvir mais uma vez o sofrimento, podemos manter a fidelidade de uma pequena luzinha acesa, uma manifestação de presença. E isso é a misericórdia, e tantas vezes isso é o ponto de apoio para que o milagre aconteça, para que a transformação aconteça.

A misericórdia perfura os irremediáveis da história, a misericórdia nunca cruza os braços, nunca descorçoa, a misericórdia insiste junto do outro. A misericórdia é sempre mais frágil do que o sofrimento. O sofrimento é uma onda, é uma coisa que destrói tudo, é uma devastação, é uma transformação, é uma crise para a qual nós não temos capacidade de resposta. O sofrimento é isso tudo. A misericórdia é uma arte pequenina, é uma arte humilde, é uma arte frágil. A compaixão é o quase nada. Mas em tantos momentos da nossa vida nós dependemos dessa coisa pequenina que é a compaixão, que é a misericórdia, que é o amor, que é a amizade, que é a caridade de estar próximo, que é um alívio das dores só com um olhar, só com um pequeno gesto, só com uma palavra. Isso é alguma coisa que todos nós temos, essa capacidade em nós.

Por isso, o grande desafio, queridos irmãs e irmãos, é acreditarmos nisso. O Ano Santo da Misericórdia é também um desafio a acreditarmos na misericórdia, na humilde, na pequenina misericórdia, na ínfima compaixão de todos os dias – que, no fundo, é uma grande força capaz de transformar o mundo e capaz de colocar o Divino na fragilidade do nosso humano.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo X do Tempo Comum

2016/06/02 – Percurso de Preparação para o Crisma

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Maio

2016/05/22 - Deus é comunidade (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Celebramos hoje a solenidade da Santíssima Trindade, a festa de Deus. A Trindade é uma afirmação fundamental da fé cristã que tem a ver com a identidade profunda da nossa própria fé. Juntamente com as outras duas religiões monoteístas, o Judaísmo e o Islamismo, nós acreditamos num Deus único, acreditamos que há um só Deus. Mas, diferentemente delas, nós acreditamos que esse Deus único é uma trindade de pessoas. É Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.

Então, acreditamos que, no mais profundo de si, Deus não é uma solidão, Deus não é apenas a unicidade mas Deus também é a multiplicidade. Deus é único e é trino. Deus é comunidade, Deus é espaço onde o dom circula, Deus é a relação de paternidade, de filiação, de envio, de dádiva permanente de amor. Então, só olhando para Deus na relação nós podemos colher o seu mistério.

O mistério da Santíssima Trindade é isso, é um mistério. E, por ser um mistério, nós não o podemos compreender completamente. Só na fé o podemos acolher, o podemos sondar, o podemos explorar. Mas, uma coisa é um mistério, outra coisa é um bicho de sete cabeças. Um bicho de sete cabeças  é alguma coisa que nunca vai ter um sentido, nunca vai ter uma narrativa que o estruture, que o ilumine. O mistério não. O mistério nós conseguimos chegar a ele, construímos com ele uma relação, abrimo-nos a ele, sentimos que mergulhamos dentro dele. Por isso, o mistério de Deus não é alguma coisa que nos afasta de Deus, o mistério de Deus é um tipo de conhecimento. É um tipo de relação que nós próprios mantemos com Deus. Porque o mistério abraça-nos, o mistério vem até nós. Continuará sempre a ser mistério, mas não deixará de ser apreendido, não deixará de ser tocado, não deixará de ser compreendido por nós isso que o próprio Jesus promete aos Seus discípulos: “O Espírito Santo virá a vós e vos dará a compreensão do mistério de Deus.” Então, a vinda do Espírito ajuda-nos a compreender Deus.

Nós também precisamos compreender Deus, esse é um dos grandes desafios da nossa vida. E como é que compreendemos Deus? A filosofia tem sido, desde os começos, uma caixa de ferramentas ótima. Ótima para nós nos compreendermos a nós próprios, compreendermos o sentido da vida e compreendermos o próprio Deus. A teologia, desde o princípio, se aliou à filosofia precisamente para encontrar um discernimento, uma sabedoria, uma possibilidade de dizer o mistério de Deus. E nós este ano tivémos a grande oportunidade de ter este curso de filosofia, pensando aquilo que os filósofos dizem de Deus. E foi, de facto, uma viagem maravilhosa, onde, com ferramentas diferentes, conceitos diversificados se foi apurando a nossa capacidade de escuta, a nossa capacidade de acolher o mistério do próprio Deus.

Mas, a filosofia não é a única caixa de ferramentas, há outras ferramentas. É muito interessante lembrar aquilo que hoje nos diz o livro dos Provérbios que nós começamos por ler, que nos fala da sabedoria de Deus. Esta tradução que nós lemos é assim um bocadinho a fugir à estranheza do texto, porque a palavra hebraica que está ali presente diz que a sabedoria de Deus, que é uma emanação de Deus e que no fundo é O próprio Deus, é uma figura de Deus, tinha o seu prazer, tinha sua delícia não em estar mas em brincar com os filhos dos homens.

Então, para lá da filosofia, para lá da razão uma coisa que nos aproxima de Deus, e que nos ajuda a perceber o mistério de Deus, é a experiência da alegria, é a experiência do jogo, é a experiência da própria poesia da nossa existência.

Um grande teólogo que marca o século XX, Romano Guardini, dizia isto: “Só quem compreende aquilo que um brinquedo representa para uma criança pode compreender o que é a nossa relação com Deus.” A nossa relação com Deus não é apenas com a coisa mais séria, com a pessoa mais grave da nossa existência. Mas, ao mesmo tempo, também tem de ser um momento de pura gratuidade, de puro abandono, de pura graça, de pura imaginação, de pura invenção. Dá-se um brinquedo a uma criança e ela esquece-se, ela passa para dentro de uma história, ela é capaz de dialogar, é capaz de perceber e nós dizemos: “Bem, ela está a criar uma ficção.” Não, ela está a criar, ponto final. Ela está a ser, ponto final. Porque nós também somos todas essas dimensões. E por isso, para pensarmos Deus, para compreendermos Deus, claro que a filosofia, aquilo que Aristóteles nos diz, que S. Tomás de Aquino nos diz, isso tudo é fundamental. Mas, ao mesmo tempo, temos de integrar outras dimensões e perceber que nós tocamos a essência de Deus de muitas maneiras.

E uma delas é, de facto, através do jogo, através daquilo que na terra, daquilo que na vida, funciona até ao fim como uma espécie de brinquedo para nós. Aquilo que é a nossa delícia, aquilo que é o nosso prazer. Nós não chegamos a Deus apenas por uma caminhada árida, ascética, de pensamento, de encadeamento de conceitos. Mas, nós chegamos a Deus por nada, por um sorriso, por uma graça, por uma coisa que floresce, pelo inesperado, pelo surpreendente. E é necessário também nos tornarmos sensíveis a estes modos de chegar a Deus.

Um outro modo, e que o salmo 8 que hoje proclamamos nos lembra, é a contemplação, é o espanto. Isto que o salmo diz: “Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que lá colocastes.” Isto é, quando Pascal dizia que quando comtemplava a imensidão dos céus tinha um arrepio. E não era apenas um arrepio de um frio, mas era um arrepio interior, o arrepio de quem se sente colocado perante o mistério. Para sentirmos Deus, nós não podemos viver uma vida de aviário apenas, uma vida com os vidros fechados, insonorizada, fechada nas sua rotinas, nos seus ritmos. Para sentir Deus nós temos, como dizia a canção de Gilberto Gil, de tirar os sapatos, desatar a gravata, abrir as desculpas e passear, passear. Ir ao jardim, olhar para o ar, ver as árvores, ouvir os pássaros, sentir o ar que corre. Ligarmo-nos, ligarmo-nos em admiração, em contemplação a este mistério que às vezes a gente pensa que está muito longe, e que não consegue chegar lá. Quem é que consegue chegar lá? E se calhar Deus é transparente, Deus está muito mais perto de nós do que nós julgamos e o que nós precisamos é de abrir as mãos, abrir os olhos, abrir os ouvidos e Deus vem, Deus vem, e Deus chega. E esse também é o modo de sentir Deus na sua vida, de nós sentirmos dentro, dentro do mistério de Deus.

Um outro modo é aquele que Jesus nos revela. Jesus revela-nos Deus a partir da experiência da relação. Jesus sente-Se sempre em relação com o Pai. “Tudo o que o Pai tem é Meu.” Mas Ele também diz o contrário: “Eu estou aqui para fazer a vontade de Meu Pai, em Mim está tudo aquilo que é de Deus.” E Jesus fala continuamente do Espírito: “Eu ainda não vos digo todas as coisas, é o Espírito que vos dirá.”

Então, Jesus conjuga Deus em relação. Quando Jesus diz “Deus é Pai”, o que é que Jesus quer dizer? Quer dizer que nós vivemos numa relação com Deus – a nossa experiência de paternidade, essa relação fundante, essa arquitetura íntima, decisiva daquilo que somos. É assim em relação que nós podemos entender Deus.

Nós não podemos entender Deus falando Dele na terceira pessoa do singular, falando do “Ele”, “Deus é isto, Deus é aquilo.” Não, nós entendemos Deus, compreendemos Deus mudando da terceira pessoa para a segunda pessoa, quando tratamos Deus por um “tu” da nossa vida. Quando sentimos que há uma relação, que há um conhecimento operativo, que há um conhecimento que nós descobrimos dentro de nós. No fundo, quando Jesus diz: “ Deus é Pai”, o que é que Jesus está a dizer? Nós descobrimos o nosso pai onde? Descobrimos o nosso pai dentro de nós. Fora de nós existe aquela pessoa durante um tempo da nossa vida, mas é sobretudo dentro de nós que essa figura se perpetua, que essa figura nos estrutura. O que é um pai? É uma relação que nós sentimos que existe com a própria vida, com uma modalidade de existência que nos constrói. E assim, é sentirmo-nos também filhos – e como a filiação é uma dimensão tão fundamental da vida, sentir-se filho.

E depois sentir-se dentro de uma lógica de dom. Há um rio que corre, e esse rio é o Espírito Santo. Um grande pintor, talvez um dos maiores pintores cristãos do oriente, tem muitos ícones em algumas catedrais russas, é o Andrei Rublev, ele pintou a Santíssima Trindade. Às vezes nós pensamos: “A Santíssima Trindade é uma abstração, eu nem quero pensar.” Não, ele fez uma imagem da Santíssima Trindade muito bela usando a narrativa do livro do Génesis, do anjo e depois dos três anjos que Abraão acolheu em sua casa e que lhe vêm anunciar que ele vai ter um filho. E ele colca esses três anjos sentados à volta de uma mesa e à volta da mesa está um cálice. O segredo daquela imagem é que a posição dos três, um a meio e um de cada lado, o espaço vazio entre as imagens desenha também um cálice. Quer dizer, eles não estão sentados à volta de um cálice, eles são o cálice. Deus o que é que é? Deus é o cálice, Deus é o dom, Deus é a oferta de si, Deus é o amor. Deus é essa dádiva permanente, esse ser em relação. E é a este Deus que nós temos de rezar. É neste Deus que nós, cristãos, acreditamos. É com este Deus que nós nos temos que ver, como mulheres, como homens, na nossa história. É este Deus que nós queremos seguir, que nós queremos louvar e que nós queremos imitar na nossa vida, tornando-nos nós próprios também esse cálice, também esse dom. Sentindo que o que é divino não é a solidão, o que é divino é a relação. E aprender isto profundamente. Não é quando eu me fecho em mim, eu tapo a cara, eu me desligo que eu sou divino. Não, eu sou divino quando entro em relação e quando eu percebo que estou em relação, quando eu me descubro em relação, quando eu me descubro nessa torrente eterna de vida. Aí eu sou divino e descubro-me e descubro o sentido profundo de Deus.

Queridos irmãos, a festa de Deus. Nós estamos dentro Dele, somos Dele. A Bíblia também há de dizer que nós próprios somos divinos, nós próprios somos divinos. Divinos, não no sentido que nos confundimos com Deus, mas divinos no sentido de que Deus habita em nós, de que há uma centelha de Deus dentro de nós. O sopro de Deus, o Espírito de Deus habita-nos. E como é que sabemos que somos divinos? Pela relação, pela arte da relação, pela arte do encontro, pela arte do dom. E, de facto, o amor é o grande espelho de Deus, é a grande gramática, a grande linguagem que dá a ver Deus.

Vamos rezar uns pelos outros. E hoje aqui, assim como estamos, de uma maneira que talvez não consigamos ver, mas conseguimos certamente crer: nós todos aqui, juntos, fazemos um cálice. Fazemos o desenho do grande dom.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Santíssima Trindade

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2016/05/24 – Conversa sobre a Eutanásia II

Está disponível para ouvir a segunda conversa sobre a Eutanásia.

Ana Félix Pinto, especialista em Anatomia Patológica e professora associada na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, e Pedro Ponce, especialista em medicina intensiva, diretor da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Cuf Infante Santo e que cumpriu três mandatos no Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos, participaram na segunda conversa sobre a Eutanásia, moderada por Maria João Avillez, no dia 24 de maio, às 21h, na Capela do Rato.

 

2016/05/19 – Conversa sobre a Eutanásia I

António Lobo Xavier e José Pacheco Pereira participarão numa primeira conversa sobre a Eutanásia, moderada por Maria João Avillez, no dia 19 de maio, às 21h, na Capela do Rato. Procuraremos aprofundar a nossa reflexão sobre esta  temática e o que é central na Doutrina Social da Igreja na resposta à pessoa humana.

Está disponível para ouvir a primeira conversa sobre a Eutanásia. A notícia deste encontro na Agência Ecclesia poderá ser lida aqui.

 

2016/05/19 – Percurso de Preparação para o Crisma

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2016/05/15 - Espírito Santo, o grande tradutor (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Nesta festa do Pentecostes nós percebemos melhor como cada um de nós, e todos nós em conjunto, somos uma consequência do Espírito Santo. Cada dia da nossa vida é um dia de Pentecostes.

O dia de Pentecostes não foi apenas aquele dia, concreto, em que o Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos reunidos no cenáculo. O Pentecostes passou a ser o tempo da Igreja, passou a ser o tempo do mundo, o tempo de cada crente. Porque, em cada dia, o Espírito Santo vem em nosso auxílio, o Espírito Santo desce sobre nós, o Espírito Santo está connosco, testemunha o amor de Deus no nosso coração. Diz ao nosso coração: “Podes acreditar em Deus, confia Nele, Deus é credível, podes amá-lo, podes confiar no Seu amor e na Sua Palavra.” O Espírito Santo vem até nós como defensor, não deixa que a voz da noite fale ao nosso coração, não deixa que a voz da sombra ou da violência ou do temor se sobreponham à voz, tantas vezes frágil, da própria esperança, da própria confiança.

O Espírito Santo vem até nós como laboratório da criatividade, da invenção de Deus no nosso coração. Porque o alfabeto com que Deus Se escreve é sempre novo, em cada pessoa, em cada crente, em cada tempo, em cada dia, em cada instante. O Espírito Santo é essa criatividade em ato que nos estimula a sermos diferentes, a sermos originais. E conspira para, na nossa diferença, na nossa singularidade irredutível nós nos conseguirmos entender, conseguirmos criar laços de fraternidade, conseguirmos ser um único pão partido e distribuído para a fome do mundo. Por isso, nós somos consequência do Espírito Santo, e precisamos rezar mais ao Espírito Santo na nossa vida, porque Deus é Pai. E nós sabemos como o Pai é essa arquitetura fundante daquilo que somos, o Pai está na origem da nossa própria vida. Este Pai foi-nos revelado pelo Filho e a experiência da filiação, a certeza de que somos filhos, a descoberta, como diz S. Paulo, de que: “Não somos escravos, mas somos filhos”, é uma descoberta que nos instaura como sujeitos crentes. De facto, nós não somos servos, somos filhos, não somos escravos somos herdeiros. Foi Jesus quem nos revelou isso e esta filiação vivida em cada um de nós.

E o que é a filiação? A filiação é a certeza de que a nossa vida está fundada num amor incondicional. A nossa vida é amada de uma forma ilimitada. Não é hipotético, não é se, se, se… A nossa relação com Deus não é se nos portamos bem, Deus gosta de nós. Ou, se nos comportarmos bem, vamos para o céu. Não, a nossa relação com Deus é a relação de um amor incondicional, a descoberta de que nada nem ninguém nos pode separar desse amor. E mesmo em relação aos pecados, na noite da Páscoa, nós cantamos: “Feliz pecado que te deu a conhecer tal Redentor.” Então, de facto, a experiência de filiação que Jesus nos vem revelar é a experiência de uma filiação infalível, indestrutível que nós descobrimos como código da esperança, tatuado no nosso coração e que já não se pode apagar mais.

Mas Jesus partiu. Ficou-nos a Sua palavra, a Sua presença eucarística. Como é que nós hoje descobrimos Deus vivo na história? Descobrimos através do Espírito Santo que é este Deus, é esta presença de Deus que o Pai e o Filho enviam a assistir aos crentes ao longo da história. E como é que o Espírito Santo se traduz na nossa vida? Traduz-se através da multiplicidade dos dons, desta confiança esparsa, espalhada, infundida, radicada em cada um de nós mas também através daquilo que nós descobrimos que é possível. Porque, se calhar, nós temos mais competências, mais capacidades, há mais potencialidades em nós do que nós pensamos. E, se calhar, ficamos a vida toda a achar que não somos capazes disto e daquilo, que os milagres não são para nós. E, se calhar, os milagres estão na ponta das nossas mãos, estão no interior das nossas palavras, estão nessa capacidade de revitalizar, de acordar a vida, de afirmar que a vida é maior do que a morte, de cuidar, de curar, de transformar a história. Isso é o Espírito em ação, o Espírito em atividade.

O Espírito Santo é dado a mulheres e homens que não têm uma vida isenta, não têm uma vida neutra. É muito duro e muito belo aquilo que nos é descrito por S. João, nesta cena que nós lemos para este dia de Pentecostes.

Os Apóstolos estão reunidos, com as portas fechadas, com medo dos judeus. Quer dizer, eles não estão numa atitude de confiança, leve de coração. Não, estão afundados no seu medo, na intranquilidade, no “ Ai, ai! O que é que vai ser agora?”, no “Não sabemos“, no “Não estamos a ver como é que vamos prosseguir o caminho.” Estava tudo fechado no medo. E Jesus vem, atravessa o medo deles, perfura o medo deles e diz: “ A paz esteja convosco.” E mostra-lhes as feridas, as próprias feridas e o lado. Quer dizer, nós não vamos receber o Espírito Santo para lá das nossas feridas. Se não tivermos feridas recebemos o Espírito Santo, não é isso.

É a mulheres e homens feridos, feridos pela vida, pelos lutos múltiplos, pelos sofrimentos, pela fragilidade, até pela própria imperfeição, pelo inacabamento. É a mulheres e homens feridos que Jesus vem dizer: “A paz esteja contigo.” E é a estas vidas que se calhar não vêem bem como é que podem prosseguir: “E agora? Como é que vai ser? Não vemos claro como é que possa ser o passo seguinte, o dia seguinte, a estação seguinte da nossa vida.” É a esses, que somos nós, que Jesus vem e sopra, sopra. E esse sopro, faz uma citação do primeiro momento da criação em que Deus amassa o Homem da fadiga do barro, da fragilidade da terra, e sopra nas narinas e o Homem vive. E agora Jesus também na fadiga da nossa existência, na sua interminável fragilidade.

Jesus vem e não diz: “Acabou a fragilidade, acabaram as lágrimas, acabou o medo.” Não diz nada, mas sopra sobre nós. E este sopro que cada um de nós recebe é que nos dá a capacidade de entender, de compreender de uma outra forma. Se calhar a grande mudança, a grande transformação é também um exercício de compreensão, uma abertura do nosso olhar, uma capacidade de entender. É interessante que os Atos dos Apóstolos contam o Pentecostes como uma capacidade de tradução. O Espírito Santo é o grande tradutor dos acontecimentos, cada um fala numa língua diferente mas eu sou capaz de entender a diversidade das línguas com que a vida me fala e essa capacidade hermenêutica é um dom que o Espírito Santo nos dá, é o Espírito Santo em ato, em nós.

Queridos irmãs e irmãos, recebamos o Espírito Santo. Este Espírito que é múltiplo, múltiplo. Um cristão tem de ser singular. Cada um de nós tem de viver a fé na sua criatividade, a fé também é fantasia de acreditar. A fé também é um exercício de imaginação. Nós temos de ser diferentes. Temos de receber o Espírito Santo e fazer com Ele a nossa viagem, o nosso caminho.

O Espírito Santo é o contrário do cinzentismo, é o contrário da formatação, é o contrário do tudo igual, da diluição no mesmo que tantas vezes é uma tentação. Não, o Espírito Santo é esta unicidade, é esta diversidade, é esta polifonia. E, ao mesmo tempo, é percebermos que a diferença não é um obstáculo ao encontro. Mas é nas nossas diferenças, na nossa diversidade que podemos criar um corpo, que podemos criar uma orquestra. Que é uma imagem que S. Paulo também usa, no capítulo 14 da carta aos Coríntios: podemos ser uma flauta, um címbalo, uma harpa e todos juntos nos encontrarmos para tocarmos a seu tempo, com as linguagens aproprias de cada um, tocarmos a mesma peça. E assim, enchermos o mundo de esperança, mostrando que é possível.

Para nós, o Espírito Santo é um mapa, é um programa de vida, é a nossa modalidade de existência. E o Espírito Santo, se nós estivermos atentos à linguagem bíblica vem de duas maneiras.  Vem pela infusão. Isto é, o Espírito Santo derrama-Se em Línguas de Fogo sobre cada um. Isto é, o Espírito Santo transforma-Se na minha vida. A minha vida é uma vida espiritualizada. E depois, já não se consegue separar o que eu sou daquilo que o Espírito é em mim, somos uma coisa só. Então, o Espírito é o que cada um é, é o que cada um traz, é o que cada um pode, é o que cada um sonha. Isso é o Espírito Santo que está esparso em cada um de nós, que está misturado, criativamente confundido, assimilado à nossa vida. E é tão importante isso, assimilarmos o Espírito Santo, recebermos o Espírito Santo, pedirmos que Ele venha como uma chuva sobre nós. Uma chuva que nos fortalece, que nos dá o sentido da sabedoria, da ciência, da caridade, da esperança, da alegria, a capacidade de irmos ao encontro uns dos outros. Este Espírito Santo que vem até à nossa vida, é quase uma dimensão fusional. Que também tem de haver, sempre, porque Deus está em nós, Deus está em nós. E é importante que cada um de nós o descubra dentro de si, e descubra dentro de si qual é o dom que o Espírito Santo lhe deu. Qual é o dom mais forte que o Espírito Santo deu a cada um de nós? Porque cada um de nós tem esse dom derramado no seu coração e tem de trabalhar esse dom, em termos espirituais, fazer um caminho com ele. Por isso, o Espírito Santo é infusão, o Espírito Santo é fusão com a nossa vida.

Mas o Espírito Santo também é diferenciação. Porque Jesus diz: “O Espírito sopra onde quer, e nós não sabemos de onde Ele vem nem para onde Ele vai.” Então o Espírito não é só isto que está derramado em nós, o Espírito é isto que nós olhamos com espanto, com surpresa. Isso que nos faz dizer: “Ai é? Mas como é que pode ser?” O Espírito Santo é esta desinstalação, é este assombro, é este desassossego. Porque Deus surpreende-nos, Deus surpreende-nos, Deus não está apenas aqui. Nós não enceramos Deus, não domesticamos Deus. E, se calhar, aquele que nos vai dizer a palavra do Espírito Santo não pertence a este redil, não pertence à Igreja, não é batizado, não é cristão, é alguém que vem doutro mundo, doutra referência, doutra história. Mas nós percebemos que o Espírito Santo está nele e o que ele diz ilumina-nos, o que ele diz transporta o vento de Deus, o hálito de Deus, o sopro de Deus, esta capacidade de nos deixarmos surpreender pelo Espírito.

De facto, num mundo como o nosso, na sua heterogeneidade, nós temos de perceber que a surpresa de Deus acontece todos os dias. Não podemos trancar Deus em quatro paredes. O Espírito Santo é maior do que a Igreja, o Espírito Santo é maior do que a Igreja, o Espírito Santo é maior do que a nossa tradição. E, por isso, nós temos de ser mulheres e homens que escutam, que se deixam surpreender, que se deixam habitar. Muitas vezes por palavras que chegam em línguas diferentes, em códigos diferentes, em tradições diferentes, mas que nós reconhecemos que nelas, através delas chega-nos o único Espírito Santo. Por isso mesmo, ao mesmo tempo que Ele está em nós e está connosco e nos habita e é aquilo que nós somos e somos uma consequência do Espírito Santo, o Espírito Santo pede que sejamos peregrinos, atentos, de coração aberto, ecuménicos. Capazes de perceber que noutra religião ou noutro humor ou com outras palavras o Espírito Santo está nesta hora a ser declinado, a ser pronunciado, a ser dito, a ser transmitido.

Queridos irmãos, é uma bela festa esta do Espírito Santo, vamos pedir por cada um de nós, para que o Espírito encontre em nós o lugar de ressonância, o lugar de crescimento, que nos deixemos revitalizar pelo Espírito. Que muitas vezes, ao longo dos nossos dias, nós peçamos a Deus que venha o Espírito Santo. Espírito Santo, vem até nós, vem até mim, renova-me, refunda-me, traz-me o dom que eu preciso nesta hora da minha vida. E ao mesmo tempo, que o Espírito seja uma janela aberta, uma disponibilidade, uma atenção ecuménica, uma capacidade de tolerância, de entendimento, de compreensão. Porque, só isso nos faz vencer o medo e as portas trancadas.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Pentecostes

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2016/05/09 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - O Argumento Ontológico – António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira

Está disponível para ouvir a sessão de António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira sobre o Argumento Ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

filosofosCapelaRato_noticia

2016/05/08 - A imagem de Deus (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Nesta festa da Ascensão nós celebramos algo que também é misterioso: o facto de Jesus ser nosso companheiro de viagem, como acompanhou aqueles dois discípulos de Emaús, e ao mesmo tempo os nossos olhos não O verem, os nossos sentidos não O captarem. Hoje celebramos esta coisa misteriosa que é arder-nos o coração e ao mesmo tempo sentirmos o vazio, sentirmos a ausência, sentirmos o silêncio de Deus e aceitarmos esse silêncio como necessário. Aceitarmos a ausência de Jesus como o desejo Dele, como a normalidade da história da própria salvação.

Aceitar significa não tentar troques de manga, não tentar iludir essa dificuldade. Porque é difícil, porque nós próprios gostaríamos de mostrar Deus, nós próprios gostaríamos de dizer: “Este é o meu Deus.” Nós próprios gostaríamos de tocar, de sentir, de ver, de cheirar, de palpar o próprio Deus. Contudo, é no silêncio que nós acreditamos, é no vazio das imagens que nós prosseguimos. E às vezes a nossa tentação é de encontrar subterfúgios, de encontrar consolos, de encontrar oblívios que, de certa forma, nos ajudem a suportar o difícil silêncio de Deus na vida dos crentes.

Porque, como dizia Bernanos, o grande romancista católico, “Os Filhos de Deus também experimentam a medonha solidão que é o vazio de Deus, que é o silêncio de Deus nas suas vidas.” Para nós Deus não é fácil, para nós também Deus não é claro, Deus não é uma evidência, Deus não é domesticado, Deus não cabe nos nossos discursos, nas nossas imagens. É importante que o caminho da fé seja um caminho desconfortável também, seja um caminho de luta, seja um caminho de combate. Acreditar não é ter resolvido tudo, acreditar é sentir-se em estado de pergunta, é sentir-se em nascimento, sentir-se no interior de um parto incessante, de uma sucessão de começos. Isso é a história da nossa fé.

Porque, como nos diz S. Paulo na Carta aos Efésios: “Nós só podemos contar com duas coisas agora: só podemos contar com a força do Espírito Santo que Jesus envia do Pai.” Então, esta é a hora do Espirito Santo em nós, que vem até nós e dentro de nós nos conduz, progressivamente, à verdade plena. Podemos contar com o Espírito Santo e com essa espécie de iluminação dos olhos e do nosso coração, essa iluminação do olhar interior que nos conduz a uma compreensão, a uma hermenêutica da fé no meio do mundo.

É interessante como isto constituiu um grande desafio para a primeira geração de cristãos. Eles esperavam que Jesus fosse e viesse. Por exemplo, um homem como Paulo começou por acreditar que ainda durante a sua vida ele veria a segunda vinda de Cristo. E os primeiros cristãos viviam na expectativa do regresso de Cristo. Por isso, viviam numa espécie de suspensão em relação à história, não se envolviam, não sujavam as mãos no combate, não faziam demasiados investimentos porque esperavam uma vinda eminente de Jesus. Até que depois foram compreendendo, sem dúvida ajudados pelo Espírito Santo, que o mistério da fé é um mistério para viver no tempo e na espera. E esse é o lugar onde cada um de nós está, no tempo e na espera. Aceitando essa nuvem, aceitando essa espécie de cortina que não nos deixa ver tudo, aceitando que a nossa visão é incompleta, aceitando o vazio, aceitando a dificuldade da própria fé.

Entre um crente e um ateu, em muitos pontos, não há diferença nenhuma. Porque nenhum de nós vê, nenhum de nós tem o caminho facilitado, nenhum de nós tem uma via de acesso particular. É a nudez, é o vazio, são as mãos vazias aquilo que nos liga. E por isso, não fazem sentido as guerras religiosas, não fazem sentido as oposições, não fazem sentido. Como se nós víssemos mais do que os outros, não, nós não vemos e é preciso aceitar isso que os místicos nos dizem tão bem, o que esses grandes aventureiros do Espírito nos testemunham. S. João da Cruz, por exemplo, dizia: “A importância do nada no caminho espiritual.” Nada, nada, nada.

Uma fé feita de consolos é uma fé muito infantil. É uma fé que é preciso amadurecer e que a própria vida vai pôr em causa de muitas maneiras, é uma fé que tem de ser purificada. Porque a dada altura nós estamos agarrados ao consolo, estamos agarrados ao rebuçado e não estamos a viver a verdadeira espera de Deus. Não estamos a viver a vida no mistério da sua dureza, a vida como paradoxo, a vida como aporia. O lugar dos crentes não é um lugar que falsifica a história – nós não estamos numa ilusão, não procuramos um estádio que não existe, não queremos falsas consolações. Não, não vemos. Partimos daí, abraçamos, não temos medo de abraçar esse nada, esse silêncio.

Contudo, nós sabemos que o silêncio é lugar de pleroma, é lugar de plenitude como se diz em grego, é lugar da plenitude do sentido. Nós sabemos que este vazio de Deus, esta invisibilidade de Deus não é um obstáculo à relação, porque a relação continua. E se com os olhos da carne nós não O vemos, nós somos chamados a compreender a vida com os olhos do coração, a aceitar que hoje o lugar que o Espírito Santo nos indica como o lugar para encontrar Deus é na vida, é na história, é antes de tudo na pessoa humana, antes de tudo na vulnerabilidade da pessoa humana. É aí que nós encontramos Deus.

Estes dias, e hoje é o último espetáculo no teatro de S. Luís, esteve uma peça de um encenador italiano chamado Romeu Castellucci, intitulada: “Sobre a definição do rosto do Filho de Deus.” É uma peça crua, é uma peça difícil de ver, e é uma peça que tem duas imagens. O texto não tem uma única palavra que nós recordemos. O texto não tem importância, o encenador quis que fosse assim, um texto o mais chão possível. Mas são duas imagens no fundo, e dura uma hora a peça.

A primeira imagem é um filho a tratar de um pai, de um pai idoso, com muitas limitações. E até uma coisa dura de ver, mas que é realidade, com uma incontinência fecal. De maneira que ele tem sempre de estar a limpar o pai. E parece que já não vai conseguir limpá-lo, porque está sempre a acontecer a mesma coisa, o mesmo acidente. E é duro, nós sabemos que é duro. É duro limpar a fragilidade, é duro amparar a situação da pessoa humana. Não são imagens bonitas de ver, são imagens de uma grande crueza, mas ao mesmo tempo, com que delicadeza, com que amor aquele filho cuida daquele pai, e lava aquele pai, e limpa. E há um momento belíssimo na peça em que os dois choram juntos, o filho e o pai choram. Choram perante o irremediável da própria vida, o sentir que já não vão conseguir senão amar-se, senão perdoar-se, senão amparar-se mesmo na não resolução do problema. Esta é uma imagem.

E há uma outra imagem que é a partir do rosto de Cristo de Antonello de Messina, uma pintura fabulosa deste grande mestre da arte cristã, que pintou um rosto de Cristo assombroso, que ocupa toda a parede do palco. E depois, chegam crianças e tiram das mochilas granadas e começam a atirar granadas para destruir aquele rosto, aquela imagem de Cristo. E depois, de facto, a imagem destrói-se, o rosto desce, é quebrado, é rompido com grande violência. E aparecem a conjugação de dois salmos escritos: “Tu és o meu pastor.” O salmo 23, mas depois aparece também: “Tu não és o meu pastor.” Que é uma alusão ao salmo 22: “Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?”

Em alguns lugares da Europa, muitos cristãos se levantaram contra esta peça de teatro dizendo que era cristofobia, que é um ódio a Cristo. Eu interpreto-o de outra forma, e neste dia do mistério da Ascensão de Jesus penso que percebemos melhor. Qual é hoje a imagem de Cristo? Qual é o verdadeiro ícone de Cristo? Não é aquele de Antonello de Messina que tem toda a beleza do mundo, mas não é aquele o Cristo.

O Cristo, antes de tudo, é o corpo daquele pai, é o corpo frágil daquele pai. Por muito que nos custe, a imagem e semelhança de Deus é sempre a pessoa humana. Não é a arte, não é a tradição, não é o património. Claro que isso tem um enorme, um imenso, um intocável valor, mas não tem o mesmo valor da pessoa humana. A pessoa humana é que é o esplendor de Deus, e quanto mais frágil, quanto mais difícil for ver na pessoa humana a beleza de Deus, o esplendor de Deus. De facto, o corpo daquele homem envelhecido não tem já nenhuma beleza, não tem nenhuma beleza. E, contudo, ali, naquele corpo, está Deus – é um lugar onde nós somos chamados a olhar Deus. E, por isso, aquele filho, com uma esponja, lava as partes do pai – aquilo é uma espécie de oração, é uma espécie de oração.

E, no fundo, é isso que nós somos chamados a fazer. Nós já não vamos ver grandes imagens. Onde é que nós vamos ver Deus? Vamos ver Deus tocando a humanidade, servindo à humanidade, ajudando a humanidade uns dos outros. E, sobretudo, ajudando a humanidade mais vulnerável, mais frágil, mais sem esperança, trazendo ao colo, trazendo aos ombros, dizendo uma palavra, acreditando até ao fim, não desistindo nunca. Isso é a nossa oração, isso é a nossa visão. A Sophia de Mello Breyner tem aquele poema “Só o olhar daqueles que escolhestes, nos dá o Teu sinal entre os fantasmas”. E, de facto, só o olhar, só o olhar dos pobres, dos simples, dos pequeninos, dos últimos, das vítimas, do homem frágil, do homem vulnerável, que no fundo somos todos nós também na nossa vulnerabilidade, para lá das nossas armaduras, só o olhar desses nos devolve o rosto de Deus, o sinal de Deus.

Queridos irmãos, vamos pedir por cada um de nós: que estas palavras tão belas da Carta aos Efésios sejam palavras dirigidas à nossa vida, nesta hora. Que o Senhor nos conceda um espírito de sabedoria e de luz para O conhecermos plenamente e ilumine os olhos do nosso coração para compreendermos a esperança a que fomos chamados.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo da Ascensão do Senhor

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2016/05/05 – Percurso de Preparação para o Crisma

Mais informações aqui.

2016/05/02 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa)

Está disponível para ouvir a sessão de Paulo Borges (FLULisboa) sobre Agostinho da Silva, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/05/01 – Tomáš Halík na Capela do Rato

No próximo domingo, dia 1 de maio, o padre Tomáš Halík concelebrará a Eucaristia das 11h30, na Capela do Rato, onde fará a homilia em língua inglesa, com tradução para português. Antes da Eucaristia, Tomáš Halík estará disponível para autografar os seus livros e conversar com quem queira aproveitar esta oportunidade para o fazer.

HOMILIA

Caro Padre Tolentino, caros irmãos e irmãs,

Muito obrigado pelo vosso convite. Estou muito feliz por estar aqui convosco, nesta capela. Já ouvi falar sobre a história desta capela. Peço desculpa por não me poder expressar na vossa bonita língua.

Vim até Portugal principalmente para conhecer os meus leitores. Através dos meus livros, os meus leitores conseguem olhar para o interior do meu coração e agora posso olhar-vos também nos olhos, ver os vossos corações e também as vossas perguntas. O Cardeal Newman disse: “Cor ad cor loquitur”. O coração fala aos corações. Gostaria também de ouvir as vossas perguntas. Gosto muito de perguntas, julgo que às vezes são mais importantes até do que as respostas. Há, aliás, perguntas tão interessantes que é uma pena que sejam estragadas pelas suas respostas. Por vezes, Deus vem ao nosso encontro através de perguntas e não de respostas. “Onde estás tu, Homem? Onde estás, Adão? Onde está o teu irmão, Abel?” Numa Sexta-Feira Santa ouvimos a difícil, escura pergunta de Jesus: “Meu Deus, Meu Deus por que Me abandonaste?” Nesta pergunta, podemos ouvir o grito e as dúvidas de tanta gente que sofreu no passado e no presente.

A Ressurreição é um mistério para responder a esta pergunta. A Ressurreição não é o final feliz da história da Páscoa. A Ressurreição não é um fim, é um começo, um início.

Santo Agostinho dizia: “Rezar significa fechar os olhos e sentir que Deus está a criar o mundo neste preciso momento.” Os teólogos inventaram a noção de Creatio Continua, a continuidade da criação. Há alguns anos atrás surgiu-me a estranha ideia de que a ressurreição é também um processo continuo. É a Ressurectio Continua, a ressurreição a decorrer, a continuar.

A história da Igreja, a nossa própria história de vida, a história da nossa fé é uma participação na ressurreição, é a Ressurectio Continua. A Ressurreição não é apenas um evento histórico, é um processo dinâmico que decorre na profundeza da história e dos nossos corações.

A conversão de S. Paulo (Saulo), a conversão de Santo Agostinho e a conversão de pessoas comuns, como eu, é nada mais do que a participação no evento da Ressurreição. Somos chamados a dar testemunho de que Cristo está vivo, de que Cristo vive na nossa vida, na nossa Fé, na nossa esperança, no nosso riso.

Na Páscoa, Jesus veio ao encontro dos Seus Discípulos através da porta fechada do seu medo. Cristo está sempre a abrir a porta do nosso medo. Veio ao encontro dos Seus Discípulos como um estranho, um forasteiro. Então, os Seus Discípulos, e até Maria Madalena, começaram por não O reconhecer. O apóstolo S. Tomé reconheceu-O através das feridas. Jesus manifesta-Se sempre mostrando as Suas feridas.

No meu livro O meu Deus é um Deus ferido, recordo a minha experiência na Índia. Celebrei uma Eucaristia numa catedral em Chennai e a seguir visitei um orfanato. Fiquei muito sensibilizado ao ver tantas crianças pobres em sofrimento. Recordei-me de uma citação de Ivan Karamazov: “Sinto-me tentado a devolver a Deus o bilhete para o mundo em que as crianças sofrem.” E então, apercebi-me: estas são as feridas de Cristo neste mundo. Esta pobreza, este sofrimento, esta violência, esta perseguição, estas são as feridas de Cristo no nosso mundo. E, quando ignoramos as feridas de Cristo neste mundo, não temos o direito de dizer: “Meu Senhor e meu Deus.”

Gosto da lenda de S. Martinho. O diabo apareceu a S. Martinho na figura de Cristo, e então S. Martinho disse: “Onde estão as tuas feridas?“. Não consigo acreditar num Deus sem feridas, não consigo acreditar numa Igreja sem feridas. Não acredito numa fé sem feridas. A nossa fé está ferida através do mal no nosso mundo. A nossa fé é confrontada com difícil questão do sofrimento, da violência, da injustiça no nosso mundo. Às vezes é impossível receber as respostas finais às nossas perguntas mais difíceis, tal como estas. Acreditar é um encorajamento para entrar na nuvem do mistério. Viver é um mistério, um paradoxo.

De acordo com o livro de Génesis, fomos criados a partir do pó e do espírito. Jesus veio até aos Seus Discípulos e soprou o Espírito sobre eles. Na Páscoa voltamos ao pó, mas precisamos do espírito para ressuscitar. Pelo perdão somos recreados, recebemos uma nova oportunidade, um novo futuro. Algumas pessoas dizem que a nossa era é uma era pós-moderna e pós-secular, dizem que Deus voltou. Mas que Deus é que voltou? Não foi um regresso triunfante da velha religião. Deus volta por vezes como um estranho.

Acreditar significa ser confrontado com esta surpresa. A fé é a aventura de procurar e descobrir Deus. Jesus disse: “Estou presente nos meus irmãos e irmãs mais pequenos.” Podemos descobrir Deus nas profundezas da nossa relação com os outros. Jean-Paul Sartre disse: “O inferno são os outros.” Os cristãos dizem: “O paraíso são os outros.” Algumas ideologias prometeram o paraíso na terra, como os comunistas, por exemplo. Mas as pessoas que prometem o paraíso na terra, por vezes acabam por criar o inferno na terra. Mas nós somos convidados a dar testemunho do Cristo Ressuscitado. Através da nossa misericórdia, do nosso perdão, da nossa reconciliação e solidariedade podemos mostrar a paz do paraíso aqui na terra.

Desejo-vos, portanto, que sejam aqueles que mostram a paz do paraíso na terra. Pela vossa misericórdia, pelo vosso perdão, pela vossa reconciliação. Pela nossa vitória sobre o medo, o ódio e o espírito de vingança. Esperamos o Espírito do Senhor. Que o Espírito do Senhor nos dê a força para sermos testemunhas de Cristo vivo, na nossa era.

Obrigado.

Ámen.

Pe. Tomáš Halík, Domingo VI da Páscoa

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Abril

2016/04/24 - O amor como tarefa (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Em cada Páscoa nós celebramos a verdade central da fé cristã. Essa verdade é esta e muito simples: o Espírito de Jesus ressuscitado habita no meio de nós. Como é que nós sabemos que Ele está vivo? Como é que nós O reconhecemos presente no Emaús da nossa vida e da nossa história? Sabemos porque o Seu Espírito está derramado em cada um de nós. Nós somos, hoje, o Cristo ressuscitado, nós somos o Seu Corpo Místico, nós somos a Sua presença no mundo. Porque Ele ressuscitou e está vivo, porque de junto do Pai Ele enviou o Seu Espírito, derramado, infundido em cada um de nós, para que em cada um de nós Jesus continue presente ao mundo e à história. Por isso, é na nossa vida, são nos nossos membros, nos nossos gestos, nos nossos desejos, nos nossos projetos que nós somos chamados a reencontrar Cristo.

Onde é que O encontraremos? Não é longe daquilo que somos e daquilo que vivemos. Mas nós temos de reencontrar Cristo no estilo da nossa vida, na gramática com que organizamos a nossa vida, nos valores que são o núcleo fundamental das nossas convicções. Aí nós temos de reconhecer Cristo, e Cristo ressuscitado, e temos de abrir mais e mais o nosso coração para que Ele Se torne presente. Ele deixou-nos um mandamento, um mandamento que é absolutamente insólito porque todos os mandamentos e toda a lei chega até um certo ponto.

A lei manda-nos ser justos, manda-nos ser corretos uns para com os outros. E nenhuma lei do mundo pode pedir que nos amemos uns aos outros, nenhuma lei. O amor não cai sobre a alçada da lei. Cai o respeito, cai a tolerância, cai a compreensão, cai a justiça no trato com os nossos semelhantes, mas o amor ninguém nos pode pedir, ninguém nos pode ordenar o amor.

É interessante que mesmo da chamada herança tricolor – liberdade, igualdade, fraternidade – as nossas sociedades liberais continuam o ideal da liberdade e da igualdade, entre aspas, mas o ideal da fraternidade caiu completamente. É como se as nossas sociedades achassem que era um ideal impossível de alcançar. Já não queremos ser irmãos uns dos outros. Queremos ser livres, queremos ser mais indivíduos, queremos ter mais espaço para nós próprios, mas a fraternidade é um ideal completamente em derrota, completamente para trás.

Contudo, Jesus dá-nos um mandamento nessa linha e um mandamento ainda mais exigente: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei.” Isto dá muito que pensar, porque muitas vezes nós achamos que devemos amar os outros como amamos a nós próprios. E por isso é muito importante amarmo-nos a nós mesmos para podermos amar os outros. Não está mal pensado. É importante que nos amemos a nós próprios, que nos encontremos, que tenhamos connosco mesmos uma relação equilibrada, amável, cordial para podermos amar os outros. Freud há décadas que nos veio também lembrar isso de outra forma e noutra linguagem.

Às vezes pensamos que temos de amar os outros como o outro me ama. E isso nós vemos no amor maternal, no amor paternal, como o amor incondicional que recebemos do outro tantas vezes é o modelo de amor – aprendemos a amar, aprendemos a retribuir. Então, o amor é uma espécie de resposta amorosa ao amor que nós recebemos, o amor é uma forma de retribuição. Mas não é nem de um nem de outro amor que Jesus fala. Jesus diz: “O Meu mandamento é este: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei. Então, sabereis que sois Meus discípulos.” A medida do nosso amor, o modelo do nosso amor, o paradigma do nosso amor é o próprio Cristo. E nós temos de aprender a amar como Ele amou, com aquela disposição, com aquela liberdade, com aquela gratuidade, com aquela capacidade de ser dom, com aquela disponibilidade para ir até ao fim, para dar tudo sem limites. Nós temos de aprender esse amor.

A grande força da identidade cristã está sempre aqui. E este tempo, o tempo da Igreja, é para nós um tempo de aprendizagem. Nós somos aprendizes, estudantes, discípulos de um amor assim. Aquilo que é o nosso móbil, o horizonte de sentido da nossa vida é podermos alcançar um amor assim. E sentimo-nos felizes e sentimo-nos livres e sentimo-nos autênticos e sentimo-nos cristãos quando, às vezes por momentos, por um momento, por um dia feliz nós somos capazes de um amor assim, quando em pequenos ou em grandes gestos nós somos capazes de repetir a lição amorosa de Jesus Cristo: “ É este o mandamento que vos deixo.”

Queridos irmãos, a herança de Jesus é esta: é nos dar como tarefa o amor, como mandamento o amor. Aquilo que nenhuma constituição, nenhuma lei, nenhuma ordem nos pede é o que Cristo exige, reclama do nosso coração. Por isso, nós somos um povo mobilizado para o amor, e para um amor que tem a sua medida no amar sem medida, na capacidade de doação, na capacidade de entrega. Será que nós vivemos isto? Será que nós estamos disponíveis para isto?

A grande aventura cristã não é uma aventura ideológica. Os discípulos não tinham muito para dizer. Imaginemos Pedro: Pedro fez aquele caminho com Jesus, mas aquele pobre pescador, do lado de Tiberíades, o que é que ele tinha para dizer aos atenienses que sabiam muito mais de filosofia do que ele? O que é que ele tinha para dizer aos mestres judeus que tinham lido mil vezes a Bíblia mais do que ele? O que é que ele tinha de dizer aos Romanos que inventaram o direito e que eram uma civilização muito superior? O que é que ele tinha para dizer? Não tinha nada. Para dizer verdadeiramente, para anunciar uma novidade excitante de pensamento não tinha nenhuma. A única coisa que ele trazia era este mandamento: “Eu dou-vos um mandamento novo.”

É essa a grande novidade, é isso que é inédito na história do mundo, na pequena história de cada um de nós: recebermos este mandamento e fazermos dele o ponto de partida da nossa vida, o ponto de mudança, o ponto de radicação do nosso viver, podermos acreditar que é aí que se joga verdadeiramente a nossa felicidade. E o que nós vemos de extraordinário no Cristianismo das origens é como isso toca verdadeiramente, por isso as multidões diziam: “Vede como eles se amam.” Porque é esse amor que se torna o distintivo cristão. Por isso, um homem como Paulo de Tarso é capaz de chegar àquelas cidades helenísticas romanas e começar a criar comunidades que são absolutamente inéditas, absolutamente insólitas, porque são comunidades formadas por homens e mulheres, por judeus e gentios, por escravos e por homens livres, por ricos e proletários, todos juntos numa comunidade a escutar a palavra e a celebrar a eucaristia.

O mundo grego, na perfeição que é – o Fernando Pessoa dizia: “nunca mais nos livraremos dos gregos” e é verdade no sentido da dívida que temos para com eles – no auge da sua imensa sabedoria e criatividade, não foi capaz de criar uma comunidade assim. O mundo romano, no seu saber – e nunca mais nos livraremos deles porque eles criaram um instrumento tão extraordinário como o Direito, por exemplo, para lá da língua – não foi capaz de criar um mundo assim.

Quer dizer, toda a cultura, toda a riqueza, todo o engenho, toda a arte não foi capaz de criar uma comunidade de homens e mulheres indistintos que se juntam à volta de uma mesa e se amam, e se consideram irmãos. Agora a pergunta é: a nossa sabedoria para que é que nos serve? A nossa riqueza para que é que nos serve? Aquilo que temos, aquilo que trazemos, aquilo que construímos para que é que nos serve? Para que é que nos tem servido? Para que é que nos tem servido se não for para juntarmos à volta da mesa do amor, à maneira de Jesus Cristo, os nossos irmãos? E quando se diz: “Os nossos irmãos” em linguagem cristã diz-se “qualquer um, qualquer uma”. Isto é, quando formos capazes de amar qualquer homem, qualquer mulher como um irmão nosso, aí nós sentimos verdadeiramente que a lição de Jesus Cristo se torna efetiva em nós.

Para que é que nos serve a nossa vida, as nossas batalhas, as nossas conquistas, o que sabemos e o que ignoramos, o que temos e o que não temos se não for para isso? “Deixo-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei, nisso reconhecerão que sóis Meus discípulos.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V da Páscoa

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2016/04/21 – Percurso de Preparação para o Crisma

Mais informações aqui.

2016/04/18 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova)

Está disponível para ouvir a sessão de Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) sobre Simone Weil, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

filosofosCapelaRato_noticia

2016/04/11 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa)

Está disponível para ouvir a sessão de Carlos João Correia (FLULisboa) sobre Paul Ricoeur, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/04/10 - A ousadia da confiança (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Neste tempo Pascal nós lemos em contínuo os Atos dos Apóstolos. Nos Atos dos Apóstolos surge-nos uma imagem ideal ou idealizada de comunidade cristã. Nós vemos os apóstolos que conhecemos dos Evangelhos, como Pedro, que nos Atos dos Apóstolos nos são descritos cheios de coragem, de desassombro, capazes de fazer tudo, de chegar para a primeira linha e com toda a abertura anunciar a sua fé num testemunho, arriscando e sofrendo o próprio martírio.

A Igreja dos Atos é uma Igreja mobilizada, uma Igreja militante, uma Igreja inflamada no testemunho. A imagem que nos aparece do conjunto é a de uma Igreja capaz de colocar a fé em Jesus como centro agregador e transformador de uma nova cultura de relação. Por exemplo, os cristãos da primeira comunidade colocavam tudo em comum e viviam uma espécie de comunitarismo em que tudo era partilhado, suprindo assim as insuficiências, a pobreza e as dificuldades que podiam sentir. É assim um retrato de uma comunidade onde o amor parece que não tem falhas, onde o amor é de facto uma trincheira ativa e ideal.

Depois nós olhamos para a nossa vida e sentimos que não é assim. Por um lado, vemos o ideal que nos é descrito e que nos é pedido, este quase heroísmo que é a santidade dos primeiros apóstolos, e depois olhamos para a nossa vida e vemos tanta fragilidade, tanta imperfeição, às vezes tanta dificuldade em dizer “sim”, tanto temor em testemunhar, em dar um passo, tanto calculismo em abrir o nosso coração e às vezes os cordões da nossa bolsa. Sentimos que há aqui como que um desacerto entre o modelo de fé que os Atos dos Apóstolos nos oferecem e a nossa própria realidade que é muito mais frágil, muito mais indeterminada, muito mais incerta.

É interessante que os Evangelhos vêm em socorro da nossa dificuldade. Hoje, por exemplo, este conjunto de narrativas que nos são lidas no final do Evangelho de S. João são muito, muito claras. Os discípulos vão pescar e não apanham nada. E isto depois de uma noite de esforços, de trabalho, de terem projetos e desejos e depois nada se concretizar – ser o contrário das nossas expectativas é alguma coisa que faz parte da nossa vida e faz parte da nossa experiência de fé.

É importante reconhecer que muitas vezes há uma esterilidade na nossa fé, que nós não conseguimos por nós próprios aquela fecundidade, aquela abundância, aquele testemunho, aquele fervor que nós gostaríamos. Mas é muito belo porque o Evangelho de João mostra-nos que a fecundidade não depende de nós, é a Palavra de Jesus que lhes manda atirar a rede para outro lado. É confiados nessa Palavra, agarrados nessa Palavra, que os discípulos de todos os tempos veem a sua esterilidade se transformar numa fecundidade.

Então, o importante não é o ponto de partida, não é dizer: “Ah, tu tens o barco cheio. Tu tens as redes cheias. Tu tens as redes vazias.” Isso não importa nada, o que importa é que tu confies na palavra que Jesus diz e para onde Ele te manda lançar as tuas redes tu ouses, ouses mandar as Suas. Esta ousadia da confiança é aquilo que nos é pedido. Nós olhamos para nós e não temos vidas ideais, não temos uma comunidade ideal. Mas a que é que nós somos chamados? A não desistir de acreditar, a não desistir de confiar nesta Palavra que nos é dita: “Atira as redes para ali.” – nós podermos confiar nessa Palavra.

Depois é muito interessante que os discípulos apanham estes 153 grandes peixes mas Jesus aparece numa imagem curiosa, Jesus aparece como cozinheiro. Não apenas como comensal ou anfitrião, mas é Ele que está a assar os peixes na margem do rio naquele amanhecer. E é Ele que lhes dá de comer. É importante nós percebermos que a fé é sempre dom, é sempre um dom recebido, é sempre um convite para acolhermos, para recebermos no nosso coração. E é nesta atitude de acolhimento que nós nos temos de colocar sempre, em todos os tempos, em todos os momentos da nossa vida.

E se este tempo pascal é também um tempo de formação e de envio em missão da própria Igreja, quais devem ser as nossas atitudes fundamentais de testemunhas do Ressuscitado? A primeira é a dependência de Jesus, nós sermos dependentes da sua Palavra. E a segunda é percebermos que Ele é o dom, que Ele é a dádiva. Por isso, precisamos de abrir o nosso coração àquilo que Ele nos dá.

Queridos irmãs e irmãos, um cristão é uma consequência, é uma consequência não é uma causa. Nós vivemos na dependência de Jesus, por isso é tão importante a vida de oração: o espaço que nós damos à oração na nossa vida, o espaço que nós damos ao aprofundamento da Palavra de Deus, ao mergulhar no conhecimento de Jesus, ao estarmos em silêncio perante a Sua Cruz, ao ligarmos o nosso coração ao Seu coração. Isso é tão decisivo! Porque aquilo que nos distingue não é uma capacidade de fazer, não é uma perfeição. Aquilo que nos distingue é vivermos do acolhimento. É esta espécie de vida ligada, conectada continuamente a Jesus, é isso que nos define como mulheres e homens cristãos.

É muito interessante o diálogo que Jesus tem com Pedro, este diálogo final. Na tradução portuguesa parece de facto um bocado estranho, parece um diálogo de surdos porque Jesus está a insistir a perguntar a Pedro: “Pedro, tu amas-Me?” E Pedro responde sempre: “Senhor, sabes que Te amo.” E o Senhor parece que está simplesmente a repetir a pergunta. De facto, a tradução é sempre muito limitada porque há aqui um jogo de palavras que é muito importante. Temos aqui um jogo entre duas palavras gregas, o verbo agapao que quer dizer “amar” e o verbo phileo que também quer dizer “amar” mas quer dizer mais “gostar”.

Ágape é aquele amor incondicional, aquele amor fusional, aquele amor absolutamente radical. E o phileo é o amor dos amigo, que também é um amor radical, que também é um grande amor, mas é mais um gostar. É um amor que não dá aquele passo para a radicalidade última.

Então, o jogo de palavras é este: Jesus pergunta a primeira vez “Simão, tu amas-Me?” e pergunta com este “Tu amas-Me com este amor incondicional, com este agape, amas-Me?” E Pedro responde “Senhor, eu amo-Te.”, mas quer dizer “Senhor, eu gosto de Ti, eu gosto de Ti.” A palavra que ele usa é phileo e pela segunda vez o Senhor pergunta: “Simão, tu amas-Me, com este amor incondicional, com este agapao?” E Simão volta a responder: “Senhor, tu sabes que eu gosto de Ti.” e responde com o phileo. De maneira que um pergunta uma coisa e o outro responde outra, não é exatamente: “-Tu amas-Me? – Eu amo-Te.” Há aqui uma distinção da gradualidade entre a pergunta e a resposta.

E depois, a grande surpresa é na terceira pergunta de Jesus. Porque na terceira pergunta é como se Jesus desistisse de perguntar a Pedro “Pedro, tu amas-Me com este amor incondicional, com este amor radical?” e adapta-Se ao verbo que Pedro estava a usar e pergunta-lhe: “Pedro, tu amas-Me? Tu gostas de Mim?“ E usa mesmo o verbo, phileo. Então nós percebemos a tristeza de Pedro. Pedro, conhece a fragilidade. Ele escolhido para ser o primeiro de entre os apóstolos, ele sabe que é capaz de trair, que é capaz de negar. Este Pedro que está no diálogo com Jesus é um Pedro que viveu a sua própria miséria, a sua fragilidade mais extrema, que sabe como sozinho não consegue, não consegue sustentar aquilo que Deus merece, aquilo que Deus espera completamente de nós. Pedro sabe isso e não consegue dizer “Eu vou amar-Te com esse amor incondicional, sempre.” e diz “Sabes que eu Te amo, mas amo-Te como posso amar.”

E o que é fantástico é que não é Pedro que se adapta ao verbo de Jesus mas é Jesus que Se adapta ao verbo de Pedro, é Jesus que vem ao encontro de Pedro e diz: “Pedro, tu amas-Me? Tu gostas de Mim?” Fica triste por Jesus Se ter de adaptar a ele, por não ser capaz de coisas maiores, dele não ser capaz de dar mais, de dar tudo, de se dar completamente, dar um amor garantido, um amor sem falhas. Ele fica triste e diz: “Senhor, Tu sabes tudo, tu sabes que eu Te amo, sabes tudo. Sabes a nossa vida, sabes tudo.” Jesus adapta-Se à capacidade de Pedro, Jesus vem em socorro da capacidade de Pedro. Jesus aceita o amor com que Pedro o pode amar como Jesus aceita o amor com que cada um de nós o pode amar. Jesus aceita esse amor mas Jesus não deixa de dizer a Pedro: “Pedro, segue-Me, segue-Me.”

Se calhar o amor com que nós amamos é um amor imperfeito, é um amor inacabado, é um amor pouco esclarecido, é um amor exíguo, é um amor insuficiente. Não é um amor isento, não é um amor completamente purificado, mas Jesus não deixa de dizer: “Com o amor com que Me podes amar, segue-Me, segue-Me. “

Esta semana o Papa Francisco publicou a exortação apostólica que estávamos à espera, a “Alegria do amor”. É um belo texto que teremos oportunidade de meditar, de refletir e é um desafio muito grande. Espero que aqui no próximo domingo possamos também já ter os textos para facilitar a leitura. É um texto muito belo, é uma bela catequese sobre o amor, não se resume em duas palavras. É uma catequese sobre o amor, sobre o amor familiar mas numa universalidade que diz de facto respeito a todos, e por isso vale muito a pena aprofundar o sentido dessa catequese que em grande medida é de uma frescura evangélica extraordinária.

Mas um dos pontos que o Santo Padre fala é exatamente do nosso amor imperfeito, do nosso amor inacabado, e como Jesus vem ao encontro, como Jesus integra a fragilidade do nosso amor. O Papa cita muito S. Tomás de Aquino sobre a questão do discernimento. O que é isto? Para nós as leis são claras, a lei tem uma clareza muito grande. Por exemplo, a lei do amor é muito objetiva, o que o amor nos pede é um ideal. Mas ele diz: “À medida que se faz o discernimento e se aplica aos casos particulares cresce a indeterminação, cresce a indeterminação.” Isto é, nós não podemos simplesmente aplicar uma lei cega mas temos de olhar para a circunstância de cada pessoa, de cada situação, não desistindo e anunciando a boa-nova de que Deus não desiste de ninguém.

E por isso Jesus também vem ao encontro da fragilidade do amor com que Pedro o pode amar mas não desiste de lhe dizer: “Segue-Me, segue-Me.”

Queridos irmãs e irmãos, estamos em tempo pascal. É um tempo para sentir Jesus ressuscitado nas nossas vidas. Ele reabilita a mulher e o homem que nós somos, Ele dá força à nossa vida, Ele enche-nos de confiança, enche-nos do Seu Espírito e diz: “Segue-Me, segue-Me.” Que nada seja um impedimento para nós o seguirmos. “Ah, mas a perna dói-me, a alma dói-me, ou não tenho isto, falta-me aquilo, não correspondo, não sou, não posso.” – que nada (como estás, como és, com aquilo que vives) seja obstáculo a este desafio que o Senhor nos faz. “Segue-Me, segue-Me”, faz a experiência, faz a experiência do seguimento. E é esta palavra que permite também às nossas vidas a experiência feliz da Páscoa.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Páscoa

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2016/04/07 – Percurso de Preparação para o Crisma

Mais informações aqui.

2016/04/05 – Conferência "Mulheres e ambiente"

Catarina de Albuquerque, Cátia Souza, Luísa Schmidt e Filipa Vicente conversam sobre mulheres e ambiente, hoje, 5 de abril, às 21h, na Capela do Rato, numa iniciativa do movimento Nós Somos Igreja. Contamos com a vossa presença!

2016/04/04 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa)

Está disponível para ouvir a sessão de Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) sobre Nietzsche, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/04/03 - Passagem que é abertura permanente (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Um dos traços que caracteriza a relação de Jesus com aqueles que O procuram é, precisamente,  Ele eliminar a distância, muitas vezes a distância vigiada pelas autoridades (distância sanitária, distância moral, distância religiosa), e tocar. Jesus não apenas curou os leprosos, Jesus incorreu no risco da pureza legal, e também da própria saúde, por tocar. Jesus não apenas sarava as feridas ,mas reintroduzia na relação. E, por isso, o toque é tão importante no Evangelho e representa, de facto, o estilo de Jesus, que é trazer o outro plenamente à vida. Não é apenas resolver um problema ou uma doença ou uma patologia, mas é reintroduzir a pessoa numa relação, num diálogo de vida – a pessoa sentir-se tocada pelo amor, pela ternura, pela esperança que vem de Jesus.

Depois, nas aparições pascais, reaparece a questão do toque e é uma pergunta que nos é colocada. Tomé que duvida, mas perante a ressurreição quem não sente a dúvida? Quem não sente que tem de fazer um caminho? Quem não sente que não é uma coisa imediata mas é uma surpresa, mas é um espanto, mas é uma pedagogia que tem de acontecer na vida de cada um de nós? Tomé duvidou e disse: “Se eu não O tocar, se eu não meter o meu dedo no Seu lado, nas Suas feridas, não acreditarei.” E Jesus permite-lhe isso e diz : “Tomé, coloca o teu dedo.” Mas o Evangelho não nos diz se Tomé chegou a tocar ou não, porque ele como que interrompe esse movimento da sua mão dizendo: “Meu Senhor e meu Deus.”

E na relação com Maria Madalena nós temos um problema semelhante , porque quando Maria Madalena estende, no jardim do sepulcro, a sua mão para tocar em Jesus, Jesus diz-lhe: “Não Me toques.” “Noli me tangere”. E nós ficamos com esta palavra. Será que o Ressuscitado é aquele que se toca ou aquele que já não se toca? Será que o Cristo pascal, o Cristo da Ressurreição é o Cristo que já não se pode tocar? Quando Jesus diz a Madalena “Não Me toques” , ou quando Tomé, aparentemente sem tocar, sem necessitar de tocar já diz “Meu Senhor e meu Deus”, ou quando Jesus diz “Bem-aventurados os que acreditarem sem terem visto”, será que é uma fé que já não supõe a necessidade de tocar, a necessidade de tatear, a necessidade de ter uma prova concreta, uma prova empírica, aquelas que os nossos sentidos podem construir?

O filósofo Jean-Luc Nancy escreveu um belo livro, pequenino, um comentário fantástico sobre essa palavra de Jesus e sobre as aparições pascais, precisamente sobre isto, sobre o que é que significa não tocar Jesus, não tocar o Ressuscitado. Ele diz uma coisa interessante, que o não tocar é verdadeiramente compreender que o que nós somos chamados a tocar em Jesus é aquilo que passa. Por isso, o “Não Me toques” que Jesus diz a Maria Madalena, e que está aqui como questão de fundo no diálogo com Tomé, quer dizer “Não Me retenhas, não Me detenhas porque Eu sou passagem, porque Eu sou Páscoa. Eu sou Este que está aqui mas continua, Este que não Se deixa prender por nenhuma palavra, por nenhum gesto, Este que é vida em absoluto.” No fundo, a Páscoa, a fé pascal, pede de nós uma capacidade de acreditar Naquele que é vida, não naquele que se faz vida de uma forma representada concreta que eu posso deter, que eu posso tocar, que eu posso reter. O Ressuscitado introduz-nos no mistério da vida que é passagem, que é abertura permanente, que é Páscoa, que é Êxodo, que não é apenas daqui e dali mas que está, mas que é em toda a parte. E no fundo, o Ressuscitado inicia-nos naquilo que é o mistério do Amor, do verdadeiro Amor.

E no amor as pessoas tocam-se, na intimidade as pessoas tocam-se, mas o que é que tocam verdadeiramente? O verdadeiro toque do amor é aquele toque que não é para reter, não é para prender mas é tocar aquilo que cada um tem de intocado, o mistério de cada um. E no fundo, a fé Pascal o que é que nos abre? Abre-nos ao mistério de Jesus. Nós devemos ver Jesus na Sua realidade total, naquilo que Ele é.

Muitas vezes os homens e as mulheres viram o Jesus histórico, não O conseguiam compreender. Ele era apenas mais um profeta, era apenas mais um que pretendia ser o Messias, era mais um contador de parábolas, era mais um. Na Páscoa nós somos chamados a perceber Jesus como o único, somos chamados a compreender a Sua realidade total e isso pede de nós um salto, pede de nós uma capacidade de acreditar para poder ver. Normalmente nós vemos para acreditar, é essa a nossa metodologia no trabalho com a realidade. O Ressuscitado inaugura uma nova metodologia, nós temos de acreditar para poder ver, nós temos de não tocar para poder tocar, nós temos de não reter para poder verdadeiramente possuir, nós temos de aceitar o silêncio, a distância para poder verdadeiramente viver a intimidade e a relação, e isto é a nova relação, a nova relação pascal.

Mas, queridos irmãos, desta relação nós nascemos, nós nascemos. E por isso é tão maravilhoso o gesto que Jesus faz. Ele chega-Se ao interior do grupo e diz: “A paz esteja convosco.” E sopra sobre eles. Claramente este soprar é uma alusão à criação do Adão e da Eva quando Deus faz o Homem, amassa-o do barro e sopra nas Suas narinas para lhe dar vida. Jesus sopra o Espírito sobre nós também para nos vivificar, também para nos dar uma vida nova, para nos dar uma perspetiva nova, para nos dar uma compreensão nova da própria vida. E por isso nós nascemos da Páscoa. A Páscoa é o nosso berço, a Páscoa é o lugar onde cada um de nós reencontra o significado da própria vida mas também o método, mas também a maneira, a maneira de viver.

É muito belo aquilo que os Atos dos Apóstolos nos contam: “Das mãos dos discípulos saiam milagres e prodígios.” Iam todos juntos em consonância, em harmonia, numa capacidade de comunhão que causava espanto a todos.

Queridos irmãos, a Páscoa enche-nos de confiança. Das nossas mãos também saem milagres, das mãos de todos nós. As nossas mãos são instrumentos do milagre, instrumentos do prodígio. Nós precisamos confiar naquilo que o Ressuscitado faz das mãos de cada um de nós e saber que a melhor expressão da nova criação que a Páscoa começa é verdadeiramente a capacidade de viver a comunhão, a capacidade de vivermos uns com os outros, de criarmos história, de criarmos relação insuflados pelo Espírito novo. A Páscoa dá-nos o Espírito, a nós que tantas vezes vivemos desalmados como se nos faltasse a alma, o ânimo, o Espírito. A Páscoa é a grande relativização, o grande levantamento e por isso este é um tempo de confiança, queridos irmãs e irmãos. Tempo para viver na confiança, tempo para acreditar na vida, tempo para acreditar na potência de Deus em cada um de nós. Deus pode, Deus pode. Que na comunhão, na amizade, na solidariedade, no serviço, na reconstrução da vida, no cuidado uns pelos outros, na atenção aos mais frágeis, na celebração da esperança nós possamos reencontrar este Cristo que agora está, que agora é, plenamente, perto de nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Páscoa

Março

2016/03/27 - O princípio de uma vida nova (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Aleluia! Depois da Quaresma que vivemos, em que nos privamos desta palavra, hoje, nesta manhã, nós dizemos com toda a alegria: “Aleluia!” E dizemos nesta palavra toda a esperança, toda a luz, toda a transformação, toda a vida nova, toda a primavera que para nós rebenta na Boa-Nova da Ressurreição de Jesus. Aleluia!

Quando o Cardeal Lustigier, que era arcebispo de Paris, entrou como membro da Academia de França, uma distinção muito importante, ele que era de famílias judias (os seus pais eram judeus), ele era um convertido, mas cristão, perguntaram-lhe qual era a palavra mais bela que ele conhecia em francês. E ele disse: “Para mim, a palavra mais bela em francês é a palavra «aleluia» ”. Que não é de maneira nenhuma uma palavra francesa, é uma palavra hebraica, mas é uma palavra que é a mais bela palavra em todas as línguas.

Também em português a palavra mais bela é a palavra “aleluia”. Porque é aquela palavra que inaugura um mundo novo dentro de nós, é aquela palavra que derrota a irreversibilidade da vida, é aquela palavra que desfataliza a história, é aquela palavra que inaugura uma brecha, de um modo novo, de uma visão nova sobre a própria realidade. A palavra “Aleluia” não é apenas uma única palavra, não é apenas a mais bela das palavras. Nós, cristãos, temos a responsabilidade de fazer desta palavra não apenas uma frase que dizemos, não apenas uma conversa que mantemos mas temos a responsabilidade de tornar esta palavra uma nova língua, uma nova forma de comunicação humana. Uma maneira diversa de relação entre os Homens, um modo novo de habitar o mundo, uma forma completamente inédita de habitar a própria realidade.

Porque o nosso ponto de partida é o “aleluia.”Não quer dizer que não exista as lágrimas e o luto, não quer dizer que não exista a ameaça e o cerco, não quer dizer que não exista o Calvário e os sofrimentos, não quer dizer que a ferida permaneça e nos próximos domingos havemos de meditar como no corpo do Ressuscitado a ferida permanece. O nosso corpo insurreto, o nosso corpo hoje levantado, o nosso corpo desfatalizado, o nosso corpo que é chamado a acreditar na vida não deixa de ser um corpo vulnerável, não deixa de ser um corpo ferido. O nosso amor, a nossa fé, a nossa esperança continuam a ser inacabados e imperfeitos. Mas levantados do chão, mas erguidos nessa esperança, mas alçados por essa força que o próprio Cristo nos dá.

Porque é que foi Madalena a primeira testemunha da ressurreição, perguntamos nós. Porque é que Pedro e João chegaram a seguir? Porque foi ela cumprir, como tantas vezes cabe na história às mulheres, cumprirem os ritos de piedade, manterem o coração com a dor dos outros, capaz de se compadecer do sofrimento dos outros. Talvez na história e na vida essa função tenha sido desde sempre mais desempenhada por mulheres, e por isso foi Madalena a primeira a acorrer ao sepulcro. Mas há também uma outra razão: é porque Maria Madalena, quando encontrou Jesus, ela vivia como que exilada da sua vida. O Evangelho de Lucas diz-nos que ela era possuída por demónios, isto é, que ela não era dona de si, que ela era escravizada pela vida, pelas tentações, por esta força demoníaca. E no encontro com Jesus esta mulher descobriu uma vida nova.

Porque é que Madalena foi a primeira testemunha da Ressurreição? Porque só aqueles que estiveram como mortos percebem o limiar da vida, percebem mais cedo o limiar da vida. Só os desesperados, os infelizes, aqueles que se atiram completamente para os pés de Jesus, aqueles que não têm outro caminho, aqueles que dizem: “Senhor, Tu és o Caminho, a Verdade e a Vida.”, esses são os primeiros a perceber a Ressurreição. Para esses é a primeira fala de Cristo, e depois para todos os outros, e depois para todos nós, que hoje somos chamados a acreditar para ver, hoje somos chamados a aprofundarmos a nossa fé para vermos Cristo ressuscitado. Isto é, para vermos o destino do mundo de uma outra forma.

Queridos irmãos, esta é a maior das pretensões cristãs. A mais desvairada, a mais louca, a mais inacreditável das pretensões cristãs. Acreditarmos que há homem na história que ressuscitou, e que esse gesto que nos espanta, que nos abisma é o princípio de uma vida nova, de um destino humano novo. E se há alguma verdade a que um cristão é chamado a acreditar é na verdade da ressurreição dos mortos. É isso a grande diferença cristã, é sairmos daqui e dizermos eu acredito que Jesus ressuscitou e fazer desse ato de fé, fazer dessa confissão o motor transformador de uma vida. Porque se eu acredito que Aquele que está numa cruz agora vive, então a existência tem de ser vivida de uma outra forma.

Queridos irmãos, aleluia! Aleluia! Que cada um de nós possa sentir que esta palavra é dita ao seu coração, àquilo que neste momento preciso está a viver, àquilo que gostava e que não gosta, àquilo que evita, àquilo que sonha. Aleluia! Esta palavra é dita a cada um de nós, mas cada um de nós leve esta palavra, leve esta palavra no seu coração. Repitamos esta palavra àqueles que vivem connosco, àqueles que estão ao nosso lado (aos nossos filhos, às nossas mulheres, aos nossos maridos, aos nossos amigos, aos nossos inimigos), àqueles que estão perto e àqueles que estão longe, aos conhecidos e aos desconhecidos. Levemos no nosso coração esta palavra que é um programa, que é um projeto. Aleluia.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Páscoa

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2016/03/20 - Recriados no Seu Amor (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Umas breves palavras neste domingo da Paixão do Senhor, em que o mais importante é de facto escutarmos esta história. Hoje lemos a Paixão no relato segundo S. Lucas, que é o evangelista deste ano. Ouvimos a história da Paixão do Senhor. Ouvir esta história é tornar-se testemunha dela, ouvir esta história é ficar na posse do que ela significa, do seu conhecimento. A grande questão é o que é que cada um de nós vai fazer com esta história? O que é que cada um de nós é chamado a fazer com esta história?

É muito belo aquilo que hoje nos sabemos: que antes dos Evangelhos serem escritos propriamente com todos os relatos da vida de Jesus, já o núcleo central era precisamente este relato da Paixão, que quando se reuniam à volta da eucaristia os cristãos recordavam a Paixão do Senhor. Por isso, a Paixão é o núcleo vital, o núcleo central dos acontecimentos de Cristo. É esta história que nos funda, que nos dá identidade, que nos faz ser.

Marguerite Yourcenar, a grande escritora, dizia que é uma das mais belas histórias do mundo, e é. Está aqui tudo, está o mundo inteiro, estão os personagens, está a nossa vida. Mas é mais do que isso, é mais do que uma bela história, é o lugar onde a nossa vida se reflete, se vê mais profundamente, e onde a nossa vida encontra o seu resgate, encontra a sua luz.

Eu queria de modo muito telegráfico sublinhar apenas três palavras daquelas que ouvimos neste longo relato da Paixão, para que elas continuem a reverberar ao longo desta Semana Maior, desta semana das semanas que nós somos como cristãos chamados a viver e que é o nosso útero. Nós cristãos somos formados nesta semana, é a semana da nova criação, da nossa recriação como mulheres e como homens cristãos.

A primeira palavra é uma palavra que Jesus cita da própria Escritura. Jesus diz aos discípulos: “Estejam tranquilos com toda esta violência ao vosso redor, deixai acontecer para que se cumpra o que de Mim está escrito: «fui contado entre os malfeitores».” Jesus é aquele que desce até à ínfima condição humana. Ele aceitou voluntariamente ser assim. Como lembra o grande hino cristão que S. Paulo nos recorda hoje na Carta aos Filipenses: “Ele esvaziou-se a si mesmo.” Jesus esvaziou-se e quis ser contado entre a miséria humana, entre os infernos da nossa vida. Quis ser contado, quis ser encontrado no meio da nossa fragilidade para que nada nos possa separar do amor de Deus. Hoje, cada mulher e cada homem, hoje, cada um de nós sabe que qualquer que seja o lugar em que se situe Jesus está a seu lado e abraça-o. Jesus abraça a nossa condição pecadora, Jesus abraça a nossa miséria, Jesus abraça a nossa inconsistência, Jesus abraça o inacabamento da nossa vida, Jesus abraça o que gostamos e o que não gostamos, Jesus abraça o que lamentamos que tenha acontecido, Jesus abraça tudo em nós.

“Eu fui contado entre os malfeitores.” Quer dizer: “Eu estive a teu lado, Eu estava a teu lado, nunca estive longe de ti, nunca nada nem ninguém te separou do meu amor.” E é esta promessa de amor, é esta aliança de amor que cada um de nós é chamado a sentir.

Depois a palavra que as autoridades, até um dos ladrões que está pregado ao lado de Jesus numa cruz, grita a Jesus: “Salvou os outros, salve-Se a Si mesmo!” É uma boa entrada para perceber o mistério de Jesus. Porque é que Jesus salvou os outros e não Se salva a Si mesmo? Porque para salvar os outros nós temos de nos esquecer de nós mesmos. Para salvar os outros, para colocar os outros em primeiro lugar, para levar os outros aos ombros, para encher os outros do excesso de amor que é a misericórdia, para dar vida aos outros, para entusiasmar os outros, tantas vezes nós temos de morrer, temos de ficar para trás, temos de ficar em último lugar, temos de permanecer em silêncio, temos de dar o que temos e o que não temos, temos de esvaziar-nos, temos de ficar sem nada para poder dar aos outros a vida, para poder gerar a vida nos outros.

Salvou os outros, não pode salvar-Se a Si mesmo. Esta impotência de Jesus, esta incapacidade de Jesus ser, esta imobilidade de Jesus, esta passividade de Jesus, este silêncio de Jesus durante a sua Paixão, estes braços amarrados a uma cruz que já não podem fazer nada. Jesus não pode fazer nada, não pode dizer nada, mas este nada é o princípio da vida.

Por isso, queridos irmãos, a grande escritora brasileira Clarice Lispector dizia: “A Paixão de Cristo é a Paixão do Homem.” Porque Nele nós temos a lição, no Crucificado, Naquele que levantamos da cruz, nós temos o caminho, temos o mapa da nossa viagem. Salvou os outros não pode salvar-se a si mesmo: não conheço melhor definição para o amor.

A terceira palavra é a última palavra de Jesus: “Pai, em Tuas mãos entrego o meu espírito.” Lembro-me de uma peça musical escrita pelo nosso querido João Madureira que se intitulava “Pai”, “Pater”. A mim tocou-me muito a forma como o João interpretou a palavra “Pai”, porque um artista é capaz de nos fazer perceber muitas coisas. Quando eu rezava o Pai Nosso, eu dizia apenas uma vez a palavra “Pai”, depois de ouvir a composição do João Madureira eu perco a maior parte do tempo a repetir: “Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai, Pai…” E depois é que vem tudo o resto, mas eu percebi que a parte mais importante é o Pai. E agora imaginemos o que é que Jesus sentia, com que emoção, com que dramatismo, com que verdade, com que sopro de vida Jesus disse pela última vez a palavra “Pai”, o que foi esta palavra que o mundo ouviu Jesus a dizer pela última vez, a palavra “Pai” pouco antes de expirar.

E é isso o grande testamento de Jesus, a grande herança, o que Ele nos oferece. Jesus dá-nos um Pai, dá-nos a possibilidade de chamarmos a Deus “Pai”. Não um pai teórico ou abstrato, mas um pai, pai, pai, pai todas as vezes, todos os tons da voz, todas as horas da nossa vida, com todos os silêncios, com toda a leveza, com toda a transparência e com toda a noite escura. Nós em Deus temos um pai, Jesus mostrou-nos o rosto do Pai.

“Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito.” Queridos cristãs e cristãos, vamos começar esta que é a semana que nos define, é a Semana Maior. Não há cristãos sem a recriação que acontece nesta semana. Não são só as liturgias mais longas, é a oportunidade de estarmos no ventre de Deus, no ventre de Deus e estarmos a ser gerados, recriados no Seu Amor e na Sua Misericórdia, colocando em Jesus os nossos olhos, aprendendo Dele a ser, o que significa ser, o que significa acreditar, o que significa amar, o que significa perdoar, o que significa aceitar e o que significa entregar-se por inteiro, entregar-se no Espírito, completamente nas mãos do Pai.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Ramos

2016/03/17 – Percurso de Preparação para o Crisma

Mais informações aqui.

2016/03/14 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa)

Está disponível para ouvir a sessão de Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) sobre Hegel, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/03/13 - Uma sucessão de começos (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Neste Ano Santo da Misericórdia nós somos desafiados a pensar no que é a misericórdia. A misericórdia está profundamente associada à experiência do perdão. Um perdão recebido, acolhido, até ao fundo de nós – sentirmo-nos abraçados pelo amor do Pai. E ao mesmo tempo um perdão oferecido, um perdão dado. Em cada Ano Santo, na tradição de Israel, era o momento em que se absolviam as dívidas, todas as dívidas ficavam perdoadas. Era um grande momento de amnistia e era uma espécie de recomeçar de novo.

A misericórdia também é isto, é recomeçar de novo. S. Gregório de Nissa dizia que “A nossa vida é uma sucessão de começos.” E há nesta frase uma sabedoria espiritual imensa que nós precisamos de recuperar para cada um de nós. Porque se vivemos ligados unicamente ao fio do passado, nós facilmente ficamos sequestrados pelo ajuste de contas, pelas coisas que não ficaram bem resolvidas, por aquilo que fizemos, por aquilo que não demos, por aquilo que não nos deram e a nossa vida torna-se um diálogo com uma floresta de fantasmas.

O passado é passado. Por isso, é tão importante ouvirmos hoje o que disse o profeta Isaías, e o que nos diz S. Paulo, que é dizer assim: “Vamos esquecer o passado, vamos esquecer, deixar para trás o passado.” Ou como diz S. Paulo: “Eu estou numa corrida.” Ele utiliza a imagem do atletismo no tempo das maratonas do mundo helénico, do qual Paulo foi um viajante, um morador. Ele diz: “Deixando o que está para trás eu atiro-me para a frente para poder chegar à meta.” E este gesto de deixar é um gesto espiritual prioritário. Nós temos de deixar, temos de fazer cair, temos de esquecer.

Dentro de nós somos muito rezingões e temos de continuar a pleitear e a disputar: “Ah, porque é que não aconteceu assim, porque é que não foi desta maneira, porque é que não foi daquela? E por isto e por aquilo.” Deixa, deixa. Temos de deixar, foi o que foi. Se nós estamos sempre a esburacar no passado perdemos o futuro, perdemos a possibilidade de acolher a novidade da graça que nos transforma. Deixa, deixa. O julgamento do passado não é a coisa mais importante, ao contrário daquilo que pensamos, não é coisa mais importante. O importante, o mais importante é esta oportunidade de vida que o Senhor concede a cada um e que nos pede que concedamos a nós próprios e uns aos outros.

Eu hoje vou começar de novo, não vou viver agarrado ao passado mas vou sentir-me consequência do futuro. O peso no coração de um cristão não é o peso do passado mas é o peso leve daquilo que está para vir, daquilo que está para chegar. Daquilo que Deus quer fazer, quer inaugurar, quer recriar dentro de nós. Essa é a nossa amarra principal. Senão, nós vamos ficar completamente presos a um passado que não nos salva, que não liberta. Há um passado que amarra, há um passado que condena e não damos a abertura, não damos o salto que a fé nos pede para recomeçarmos agarrados, confiados, à misericórdia de Deus.

No evangelho de S. João esta mulher, apanhada em adultério, está para ser julgada, para ser condenada por todos. Gera-se ali um movimento de condenação daquela mulher. Nós sabemos como são as lógicas de grupo, quando nós nos juntamos para condenar alguém não há remissão possível, porque vence esta lógica totalitária do juízo fácil que condena. E Jesus devolve a questão: “Quem de vós estiver sem pecado atire a primeira pedra.” Então, o que é que Jesus faz? Pede a cada um para fazer o exercício de entrar em si mesmo, entrar na sua própria vida, olhar para a sua própria condição, que é uma coisa que nós ignoramos tanto, ignoramos tanto.

Com facilidade julgamos os outros disto e daquilo, e esquecemos o que vai dentro de nós, aquela que é a nossa realidade vital. “Quem de vós estiver sem pecado atire a primeira pedra.” E eles, um a um, vão–se afastando, sem condenar a mulher. E Jesus pergunta à mulher: “Filha, ninguém te condenou? Também eu não te condeno. Vai e não tornes a pecar.” Esta é a palavra da misericórdia: “Vai, e não tornes a pecar.” Isto é, dar uma nova oportunidade, dar uma nova oportunidade. A vida de cada um de nós, a vida dos outros, que no fundo dependem de nós, da relação connosco, precisa muitas vezes disto, de uma nova oportunidade. E se nós, viciados no passado, feridos pelo passado, recusamos dar essa oportunidade aos outros, nós perdemos os outros e perdemo-nos a nós mesmos. E a nossa vida torna-se muito mais um cemitério, e a gestão das perdas e dos ferimentos e daquilo que não foi, e não rasgamos a nossa vida ao futuro de Deus. “Vai e não tornes a pecar.” Isto é, sente que a vida é de novo colocada nas tuas mãos.

Queridos irmãos e irmãs, nós temos muitas vezes de esvaziar as nossas mãos, esvaziar o nosso coração para que a vida os torne a encher. Às vezes, o que trazemos são queixas, são ressentimentos. Uma vida mal-amada é o peso insustentável do que não aconteceu, do que não foi. Deixemos, deixemos, deixemos. Façamos realmente esta conversão, esta transformação que é uma abertura de coração. Quer dizer, fujamos à tentação de julgar, à tentação de condenar. Mas procuremos a oportunidade, procuremos o começar de novo. E, dentro de nós próprios, procuremos o esquecimento.

Nós sabemos que, em relação ao perdão, muitas vezes o esquecimento é impossível, nós não conseguimos esquecer. Até porque são feridas tão grandes, realidades tão grandes que mesmo que nós quiséssemos não conseguíamos esquecer. O perdão não é esquecer, mas o perdão ajuda a esquecer. O perdão é acreditar que a lógica do amor é superior à lógica da violência, a lógica da resposta. É dar ao outro não o que ele merece mas aquilo que está no coração de Deus, é acreditar no amor em si, ponto final. É acreditar no valor da reconciliação em si mesma, ponto final. E depois, viver assim, viver assim. E aos poucos, quando nós vivemos dessa maneira, nós percebemos que já estamos livres, já estamos desprendidos. Isto é, não estamos ainda agarrados a um passado, a discutir, a dialogar com uma coisa que aconteceu há vinte anos e nós ainda estamos a discutir com isso. Ou que aconteceu há setenta anos, e ainda estamos presos àquilo. E perdemos o hoje, perdemos o aqui e o agora, perdemos a oportunidade da graça que nos é dada, que nos é dada.

“Vai e não tornes a pecar.” Que cada um de nós sinta esta palavra motivadora de Jesus na sua vida e cada um de nós possa dar esta palavra uns aos outros. Este é um exercício da misericórdia.

Queridos irmãs e irmãos, aquela visão maravilhosa do profeta Isaías que vê uma nova terra, que vê uma realidade transformada, que vê como é possível um reflorescimento, uma revitalização, seja de facto uma palavra para cada um de nós. O nosso coração não tem de ser um inverno gelado, cada vez mais gelado, impecavelmente um inverno. O nosso coração é chamado a um degelo e o degelo é a misericórdia. O fim do inverno e a chegada da primavera, isso é misericórdia. Aprendamos, trabalhemos o desprendimento interior, a liberdade interior.

O espírito dá-nos liberdade interior. E é muito difícil, é um ponto muito exigente da nossa vida esta liberdade interior, esta liberdade de coração. Penso que ela só vem num caminho espiritual quando nos colocamos na dependência de Deus, quando suspendemos o nosso juízo e entregamos tudo a Deus. Custa-te perdoar? Entrega a Deus, deixa ser Ele a gerir. Custa-te uma coisa do teu passado? Entrega a Deus, deixa ser Ele a gerir e não penses mais nisso. Custa-te uma relação com uma pessoa? Entrega a Deus, não penses mais nisso. É este entregar e este libertar-se, este desprender-se interiormente, que permite que a nossa vida passe a uma revitalização, passe a um começo, a um recomeço. E como precisamos disso neste tempo de quaresma, neste Ano Santo de Misericórdia, como precisamos da arte de recomeçar. Mesmo quando até a nossa vida parece que está toda bem, parece que tudo flui, parece que é só alegria, só louvor.

Todos nós precisamos de recomeçar, sempre, em alguns aspetos da nossa vida. Por isso, abramos o nosso coração com confiança ao Senhor, e como diz S. Paulo belas palavras na Carta aos Filipenses: ”Só penso numa coisa, esquecendo o que fica para trás, lançar-me para a frente, lançar-me para a frente. Continuar a correr para a meta em vista do prémio a que Deus, lá do alto, me chama em Cristo Jesus.” O nosso prémio não é daqui, não é daqui. Às vezes o nosso erro é querer ter já o prémio, o nosso prémio não é daqui, o nosso prémio é dado lá do alto, por Cristo Jesus.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V da Quaresma

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2016/03/13 – Visita Pastoral de D. Joaquim Mendes

D. Joaquim Mendes, Bispo Auxiliar do Patriarcado de Lisboa, vem no próximo domingo, dia 13 de março, às 10h30, em visita Pastoral encontrar-se com a comunidade da Capela do Rato. Toda a comunidade é convidada a estar presente.

2016/03/07 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora)

Está disponível para ouvir a sessão de Irene Borges-Duarte (UÉvora) sobre Kant, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/03/06 - Um excesso de amor (homilia)

Queridos irmãos e irmãs,

Nesta parábola do Filho Pródigo nós encontramos sentimentos e vivências que refletem amplamente a nossa própria vida. Tudo o que nos passa pelo coração está aqui nesta parábola. E está, sobretudo, o drama que são as relações humanas. São as relações humanas numa família, são as relações humanas entre amigos, são as relações humanas que vamos criando uns com os outros.

Há aqui tudo: a necessidade de liberdade do filho mais novo, os seus sonhos às vezes sem muito chão por baixo, o seu idealismo, a sua fantasia. Depois, também , a incapacidade de os consomar de uma forma correta e a adversidade, porque no país onde ele está também é ferido por uma grande fome e ele vai na enxurrada. Ele primeiro teve tantos amigos e depois está completamente só. O drama que acontece nas famílias da desunião entre os irmãos, a falta de fraternidade.

Depois aquele filho mais velho que, estando com o pai, também tinha expetativas que nunca se realizavam: “Nunca me deste um cabrito para eu festejar com os meus amigos.” Aquele ressentimento do irmão mais velho, a dificuldade de perceber a lógica da misericórdia, da compaixão.

No fundo, nós vemos no trânsito destas personagens o nosso próprio trânsito. Nós somos isto, somos habitados por esta mistura muito grande de sentimentos, de razões, de desrazões, de emoções, de coisas que dizemos, de coisas que calamos. E é esta complexidade humana que nós vemos presente na parábola do Filho Pródigo. Cada uma destas personagens, dos dois irmãos, tem uma grande riqueza interior e têm os seus limites.

O filho mais novo tem uma vontade de autonomia muito grande, e isso é normal. Cada um de nós para crescer também teve de se afirmar e tem de se afirmar como pessoa, tomar conta da sua vida, tomar nas mãos o seu destino, ganhar espaço, e é no fundo isso que ele precisa. Mas, ao mesmo tempo, ele faz tudo isto não em diálogo mas em rutura, ele precisa de ir para longe. Depois nós percebemos que ele quer toda aquela autonomia mas não está, de modo nenhum, preparado para ela, e então, na primeira ocasião, espalha-se completamente ao comprido, com aqueles amigos que ele escolhe, com o tipo de vida que ele tem. No fundo, ele acaba por cair na voragem de si mesmo e sem instrumentos necessários para construir uma vida sólida, ele experimenta o dissabor, a solidão, a miséria, a miséria interior profunda. E também a própria fome, porque ele queria comer as alfarrobas e ninguém lhas dava.

O filho mais velho é aquele que fica junto do pai, tem a expetativa de sucedê-lo, de ser o herdeiro da casa. Mas, ao mesmo tempo, não consegue realizar a sua vida, os seus projetos. O ressentimento que há nele, a dificuldade de ser livre, de ser desprendido, é uma coisa que nós olhamos dentro deste personagem.

Queridos irmãos, o Ano Santo da Misericórdia é um ano para também nos olharmos, para também fazermos o balanço daquilo que está dentro de nós, daquilo que nos habita. E dentro de nós não existem só coisas belas, só coisas luminosas, só coisas resolvidas. Não, dentro de nós há muitos sentimentos sufocados, há muita coisa que é preciso esclarecer, há muitos fios que ainda estão por ligar, há ressentimentos, há coisas por reconciliar, há coisas por perdoar. “O ministério da reconciliação de Jesus foi-nos confiado”, como dizia S. Paulo. Mas eu não sei até que ponto nós próprios já experimentamos em nós a reconciliação que Jesus nos dá como dom, como oferta. Até que ponto nós nos deixamos reconciliar, reconciliar profundamente, no mais fundo de nós? Iluminando a vida, tirando-a de debaixo do tapete, esta vida sempre submersa, sempre negada, nós podemos iluminar esta vida pelo amor, pela confiança, pela reconciliação que Deus nos dá.

No meio destas personagens, que à sua maneira nos refletem, refletem aquilo que nós vivemos, nós temos o exemplo do pai. E, de facto, o ícone da misericórdia, o critério da misericórdia é este pai. Este pai que tem dois filhos e percebe que, tendo dois filhos, os tem de tratar de forma diferente, tem de olhar para cada um de formas diferentes, mantendo um sentido de justiça, mantendo um sentido de verdade.

O filho mais novo vem-lhe pedir a herança. É um pedido estranho porque as heranças supõem a morte dos progenitores, mas ele em vida do pai já quer a sua herança. E, contudo, o pai, sem dizer nada, dá-lhe a herança. É interessante porque Jesus não perde tempo a explicar as razões: porque é que o filho quer sair de casa, porque é que o pai aceita aquele pedido. Não é isso que é importante. Mas o pai aceita o espaço que o filho precisa, o pai aceita o risco da liberdade do filho, aceita. Aceita como Deus aceita o risco da nossa liberdade, aceita que nós peguemos no que Ele nos dá e partamos para o mais longe possível Dele. E aceita a nossa possibilidade de errar, aceita o nosso engano, aceita a nossa miséria, Deus aceita, aceita isso.

Mas, ao mesmo tempo, o filho, quando volta, volta dentro da sua lógica. Porque ele partiu para experimentar a vida e, quando volta, ele volta um bocadinho por calculismo, para salvar a sua pele. Ele diz: “Eu estou aqui a passar fome, em casa de meu pai como servo eu consigo pelo menos matar a fome. Então vou para lá. Já não serei filho, mas serei um servo.” E ele não percebe que isso é impossível, mas o pai é aquele que lhe vem dizer que isso é impossível.

Quando o filho volta, o pai toma a iniciativa de correr ao encontro dele. E, mais importante do que o filho ter ido embora, é ele ter voltado, mais importante do que a rutura, é o regresso. O filho ainda está ao longe e o pai já vai ao seu encontro. Diz-nos S. Lucas: “Cheio de compaixão, foi ao seu encontro e cobriu-o de beijos.” Isto é, cobriu aquela vida incerta, miserável, tornou-a completamente amável. Aos olhos do pai, aquele filho não era o que merecia o castigo mas era o filho, era o seu filho. E, cheio de compaixão, foi capaz de o abraçar, de o reintroduzir em casa. E, de uma maneira que o próprio filho nunca esperava, foi para lá de todas as medidas, foi para lá de todas as expetativas.

Nós podemos dizer: “Este pai excedeu-se. Este pai é um amor excessivo, ele não devia tratar o filho assim. Ele devia dar-lhe um corretivo dos antigos, ele devia pô-lo à prova, ele devia fazê-lo pensar, pô-lo de quarentena. Dizer: «Agora pensa no que fizeste».” O excesso de Deus, este excesso da misericórdia tem um sentido. Nós dentro de nós temos muitas lógicas e teríamos muitas formas de reagir. Mas o que Deus nos diz é: “A misericórdia é uma arte necessária para salvar a vida, a misericórdia é um caminho que todos precisamos de aprender.” E não há misericórdia sem excesso, não há misericórdia sem excesso.

A misericórdia não é dar ao outro o que o outro merece, a misericórdia é dar ao outro o que o outro não merece. Mas dar por cima, dar além, dar muito mais, ir mais longe. Reintroduzir na festa quando o filho merecia ficar a pão e água, mas reintroduzi-lo na festa com o vitelo gordo, o anel no dedo, as sandálias nos pés, a túnica mais bonita. Este excesso de amor é que é a compaixão. Neste Ano Santo da Misericórdia nós perguntam-nos muitas vezes o que é a misericórdia. O que é que é a misericórdia? E a misericórdia não cabe numa definição. Não é dizer: “A misericórdia é isto.” Misericórdia é compaixão, misericórdia é bondade, misericórdia é perdão, misericórdia é colocar-se no lugar do outro, misericórdia é levar o outro aos ombros, misericórdia é a reconciliação profunda. É isso tudo. Mas é isso tudo também feito com um determinado estilo, que é o estilo do pai da parábola de Jesus. Não há misericórdia sem dádiva, sem doação. Aquele filho precisava ser curado, trazia tantas feridas.

Porque às vezes a gente julga os outros: “Ah, fizeste isto, mereceste isto, mereceste aquilo.” Está bem, mas o filho regressa como quem vem de uma guerra, todo estilhaçado da sua própria liberdade, mas às vezes a nossa liberdade despedaça-nos, às vezes a nossa liberdade dá cabo de nós. E é assim que o filho chega, maltratado, ferido, junto daquele pai. E se não há um excesso de amor que ajude a curar as feridas, que dê um outro horizonte, que seja uma alavanca, que seja um trampolim, o filho não podia entrar em casa pelos seus pés, ele tinha de ser levado ao colo pelo amor do pai. A misericórdia é isso, a misericórdia não é esperar que o outro faça o caminho, a misericórdia é carregar com o outro ao colo, com as suas feridas, as suas fragilidades, as suas vulnerabilidades e reintroduzi-lo na esperança, reintroduzi-lo na festa.

Por isso, não há misericórdia sem excesso. Se nós queremos ser pessoas moderadas, se nós queremos ser pessoas apenas justas, se queremos fazer o que está certo, nós seremos até boas pessoas, mas não conheceremos o Evangelho da Misericórdia. Porque o Evangelho da Misericórdia pede de nós mais, pede de nós um excesso de amor: que a gente seja capaz de abraçar a vida ferida, que a gente perceba tudo. Porque o pai não é estúpido, o pai percebe que aquele filho gastou tudo da maneira mais errada, o pai sabe tudo. E contudo, abraça tudo e cobre tudo com o seu amor. E cobrir tudo com o seu amor não é desculpar. Eu acho que esta experiência de amor, esta experiência de misericórdia é a coisa mais exigente da vida.

Aquele filho mais novo é um filho transformado, transformado pelo amor. Muitas vezes, na nossa experiência de liberdade nós aprendemos com as pancadas, aprendemos com as quedas, aprendemos com as repreensões, aprendemos com os limites, aprendemos com os “nãos” que nos dão. Isso tudo é muito útil, e muito necessário e aprendemos muito. Mas se quisermos ser sinceros nós temos de dizer que a nossa vida mudou quando nós ouvimos o “sim”, quando alguém nos disse “sim” e nos abriu a porta e começou connosco uma nova história. Nós precisamos dos “nãos” e crescemos com eles, mas precisamos do ”sim“ para tocar o mistério da própria vida. E isso é a misericórdia, é dizer um “sim” quando a partir daquele momento aquele filho só tinha a expetativa de ouvir um “não” para o resto da vida. E o pai dá-lhe este “sim” inesperado, isso é a misericórdia.

O filho mais velho também precisa ser curado, também precisa de misericórdia. E o pai vem ao seu encontro. É interessante porque o pai não diz: “Olha, está calado.” O pai dá dignidade à indignação do irmão mais velho, dá dignidade. E vai ouvi-lo, vai escutá-lo, sai à rua, sai ao seu encontro. E isso também é misericórdia, ouvir os outros até ao fim, ouvir a sua queixa, o seu lamento, o que eles não compreendem. Isso também é misericórdia. E é misericórdia uma das declarações de amor filial mais belas, que o pai diz ao filho mais velho: “Filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu.”

Se calhar, o filho mais velho também precisava de ouvir aquilo. Era uma coisa implícita, era lógico, o filho mais velho ia herdar, ele estava em casa, ele era o suporte do pai. Era natural que ele viesse a herdar. Mas ele precisava de ouvir aquelas palavras e as palavras que o pai depois diz: “Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado.”

Mas “tínhamos de fazer uma festa.” Eles não tinham de fazer festa nenhuma, não tinham. Mas há um dever que a misericórdia nos faz descobrir: “Nós tínhamos de fazer uma festa.” Isto é misericórdia. Este dever que ninguém nos obriga, mas que é um dever que nasce do fundo, que nasce da esperança, que nasce do desejo de relançar a vida, que nasce da vontade de afirmar que a vida é mais importante e tem de ser vitoriosa em relação a todas as mortes.

Queridos irmãs e irmãos, nós estamos a viver este Ano Santo da Misericórdia. É um desafio muito grande porque cada um de nós é chamado a reencontrar-se com a misericórdia, e não é um encontro fácil, não é um encontro fácil. Quem acha que a misericórdia é fácil é porque nunca a viveu e nunca a deu, e nunca a experimentou. A misericórdia é das coisas mais difíceis, é das coisas mais exigentes. Mas não há vida sem misericórdia. Aqueles de quem nunca nos esqueceremos são aqueles que derramam no nosso coração a semente da misericórdia, os gestos da misericórdia. Que este Evangelho seja um evangelho praticado por nós, isto que S. Paulo diz: “nós somos embaixadores de Cristo.” Então, cada um de nós se sinta embaixador, embaixadora da misericórdia. Olhando para a sua vida e dizendo: “Neste Ano Santo, o que é que eu posso fazer? Como é que posso tornar santo este ano da minha vida?” Que o Senhor nos inspire.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV da Quaresma

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2016/03/05 – Percurso de Preparação para o Crisma

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Fevereiro

2016/02/29 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa)

Está disponível para ouvir a sessão de Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) sobre Espinosa, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/02/28 - Um Deus credível (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

O primeiro anúncio desta Palavra é um anúncio feliz, é um anúncio de que Deus não é indiferente à nossa condição. Deus não olha de fora, de modo neutral, para a história dos homens. O nosso Deus é um Deus que, no amor e na misericórdia, se compromete. É um Deus que toma a iniciativa de manifestar o Seu amor e de transformar o inaceitável da história numa história nova, numa história aberta, numa história onde a vida é verdadeiramente possível.

Deus toma a iniciativa nos primórdios da Revelação de falar a Moisés e apresentar-Se como: “Eu Sou Aquele que é para vós, para vós.” Deus não é apenas um Deus perdido nos confins da sua divindade mas Deus é um Deus que Se derrama em amor e em misericórdia, em solicitude, em cuidado para cada um de nós.

E aqui cada um de nós, queridos irmãs e irmãos, tem de saber no fundo do seu coração que pode confiar em Deus. Cada um de nós pode confiar em Deus. Deus é um Deus credível, é um Deus no qual cada um de nós pode confiar inteiramente porque o Seu amor é um amor incondicional. É Ele quem toma a iniciativa de nos amar e amar-nos quando mais nós precisamos, quando mais nós precisávamos desse amor. Estávamos no Egito, eramos escravos, eramos perseguidos, estávamos abatidos, oprimidos e Deus vem ao nosso encontro.

Então, não há limite, não há separação, não há momento nenhum na nossa vida no qual o amor de Deus e a Sua misericórdia não se possam manifestar. Não há obstáculos para o amor de Deus, Ele pode amar-nos sempre, e pode amar cada uma das Suas criaturas sempre, em todo o tempo. Esta é a mensagem libertadora dirigida ao nosso coração: nós não estamos sós, o nosso Deus não é um Deus que não vê, não é um Deus que assiste de longe, não é um Deus impávido. É um Deus que vê, é um Deus que ouve, que escuta o nosso sofrimento, a nossa miséria e vem ao nosso encontro.

Por isso, cada um de nós se sinta verdadeiramente envolvido, tocado, mergulhado no mistério da misericórdia de Deus. A nossa vida não está sob o signo da fatalidade, a nossa vida está sob a luz de uma bênção, sob a luz de uma promessa. Por isso, cada um de nós é chamado a confiar, a confiar. Confiemos, confiemos neste amor que Deus nos oferece, confiemos naquilo que Deus pode realizar em nós. Por maior que seja a nossa dificuldade, o emaranhado da nossa vida, o nó, a fragilidade, Deus pode, Deus pode. Confiemos, acreditemos nesta misericórdia, nesta mão estendida que Deus lança à vida de cada um de nós. Esta é a palavra mais importante.

Nós hoje ouvimos hoje o salmo 102: “Bendiz, ó minha alma o Senhor e não esqueças nunca os seus benefícios porque Ele perdoa os teus pecados e coroa-te de graça e misericórdia.” No fundo, o salmo 102 lembra-nos que o caminho do Povo de Deus ao longo da história é o caminho de uma memória sempre presente do amor de Deus e da sua misericórdia. A nossa biografia, a nossa autobiografia crente, o património de vida que construímos juntos é um património que pode atestar e documentar como Deus é misericordioso para nós.

Queridos irmãos, nesta Quaresma sintamo-nos apóstolos da misericórdia de Deus, chamados a ser misericordiosos. Cada um de nós tem de ser testemunha da misericórdia, aprendermos a arte da misericórdia que é uma arte de reconciliar, de restaurar, de abrir portas fechadas, de quebrar isolamentos, de testemunhar que é possível, de acordar a esperança, de não apagar a pequenina chama entre as cinzas, mas pelo contrário fazer tudo para que aquela chama não morra. Que cada um de nós se sinta um enviado da misericórdia na sua vida, no seu contexto familiar, no seu mundo de trabalho, com os seus amigos, com os próximos e os distantes, com aqueles com quem estamos bem e com aqueles com quem temos problemas, com quem temos conflitos. Podermos testemunhar neste Ano Santo da Misericórdia, e num tempo de Quaresma que é um tempo de intensificação espiritual, sermos apóstolos da misericórdia: vermos, ouvirmos.

A Sophia de Mello Breyner, sem dúvida inspirada nesta teologia, depois escreveu: ”Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar.” A misericórdia é esta impossibilidade de ignorar o sofrimento dos outros. Não ignoramos e não julgamos, não julgamos. O Evangelho de hoje, neste capítulo XIII de S. Lucas é muito nessa linha. Nós não podemos julgar ninguém, não podemos julgar, só nos podemos compadecer, sabemos lá, sabemos lá. Às vezes ouvimos falar de coisas e é tão fácil julgar, é mais difícil colocar-nos no lugar do outro, na pele do outro.

Isso acontece muito, por exemplo, quando visitamos as prisões ou quando visitamos pessoas em situações de grande miséria, de grande sofrimento. É uma lição de humildade porque com muita facilidade a gente percebe que podia estar naquele lugar. Nós podíamos ser aquela pessoa, naquela situação. Só não somos nós que estamos ali porque fomos muito poupados, porque fomos muito protegidos, porque tivemos muitas graças, porque nos encontramos com as pessoas certas, porque fomos embalados por uma mão protetora. Porque senão, todos somos feitos da mesma matéria, da mesma massa, passamos pelas mesmas tentações. Às vezes colocamo-nos numa posição de superioridade mas é só porque não estamos a ver bem, não estamos a ver bem. Porque quando olhamos bem para aquilo que somos, com verdade, nós percebemos que somos quem somos apenas por graça, apenas por misericórdia, apenas porque fomos amparados. E isso aumenta a nossa responsabilidade e é disso que Jesus também fala no Evangelho de hoje. Sentirmo-nos responsáveis.

Mas responsáveis no melhor dos sentidos, responsáveis no sentido de comprometidos com uma missão libertadora, comprometidos com uma missão messiânica, comprometidos com uma tarefa transformadora da realidade. Não é para nos culparmos. Aquela frase do Dostoievski, “Nós somos responsáveis por tudo perante todos”, que é uma frase cristianíssima, que é uma frase evangélica, mas não é uma frase para nos esmagar com a culpa: “Ah, eu sou responsável, eu merecia, eu não tenho, eu merecia um castigo e fui poupado.” Não, isso não é evangélico, isso não é cristão, são as nossas culpas, é o labirinto do nosso interior que também precisamos arrumar interiormente.

A responsabilidade tem de ser não vivida como culpa mas vivida como missão, vivida como envio. Significa: agora, torna à tua volta o mundo melhor, enche-o de pequenos gestos, acende pequenas luzes, modifica, altera, renova, faz o que está ao teu alcance em todos os dias. É esta mobilização ativa para o bem que a Quaresma pede a cada um de nós em vista da Páscoa. É este rejuvenescimento da alma que a responsabilidade pelos outros, pelo mundo, nos dá. E não ficarmos esmagados por uma culpa ou por um sentido de responsabilidade que nos paralisa, que nos imobiliza completamente e nos prende as mãos e os pés e as palavras e os ouvidos e o coração para nos colocarmos como cuidadores, como servidores da Humanidade ferida.

Aquela palavra de Paulo, “Quem está de pé esteja atento para não cair”, significa: vigiemos sobre nós próprios, não nos fechemos em nós, no nosso conforto, no nosso egoísmo, nos nossos problemas, nos nossos: ‘Eu tenho isto, eu tenho aquilo’, nas nossas dores: ‘doí-me aqui, doí-me ali’ e de repente nós perdemos a capacidade de amar.

Eu lembro-me da pedagogia do Padre Américo. Ele fundou uma instituição chamado “Calvário” precisamente para doentes em estado muito avançado, pessoas com grandes problemas de saúde. Mas ao lado do “Calvário” ele colocava uma “Casa do Gaiato”. Quer dizer, ao lado das pessoas que estão já com muitas limitações, muitos sofrimentos, colocava crianças. No fundo para que cada um se sentisse responsável pelos outros e pudesse sair um bocadinho de si próprio. Sair um bocadinho de si próprio, deixar de pensar no que dói e entusiasmar-se pela vida, pelo cuidado. Porque no fundo o grande milagre é esse até ao fim, o grande milagre é a possibilidade de amarmos.

Porque a nossa fragilidade vai acompanhar-nos sempre. “Ah, eu tenho um feitio muito mau.” Vais corrigi-lo, vais altera-lo mas se calhar tu vais ser sempre uma pessoa com um feitio um bocadinho difícil. Mas não desistas é de, com o feitio que tu tens, fazer outras coisas, fazer o milagre do amor. Esforça-te! “Ah, eu falo muito das minhas doenças.” Vais continuar a falar disso mas esforça-te um bocadinho por ouvir das doenças dos outros calado, sem comentar: “Eu também tenho, também me dói.” Não, ouve calado. Ouve o sofrimento dos outros, as doenças dos outros. E no fundo, é um método, é um método. Quer dizer, a nossa vulnerabilidade vai acompanhar-nos sempre e nós também se somos água não nos vamos tornar azeite, sejamos realistas. Mas dentro do realismo não desistamos de ir ao encontro dos outros, do milagre do amor, do milagre do serviço, do colocar os outros em primeiro lugar. E este esforço transforma-nos, coloca luz dentro de nós.

“Bebamos – como diz S. Paulo- do rochedo que é Cristo.” Bebamos dessa nascente. O tempo da Quaresma, queridos irmãs e irmãos, é para colocarmos os olhos em Jesus. Que Ele seja para cada um de nós o modelo. Isso implica também que cada um de nós se coloque perante Ele. É muito importante que o tempo da Quaresma seja um tempo de oração, que cada um de nós, sozinho, olhe para Ele. E Ele fala a cada um de nós, Ele diz coisas concretas à nossa vida. Cada um de nós se coloque perante Ele, perante os Seus braços abertos capazes de acolher por inteiro a nossa vida, capazes de nos abraçar e capazes de reprogramar a nossa vida, os nossos sentimentos, as nossas prioridades, a nossa agenda. Isto é quaresma, quaresma é dar-se que fazer, quaresma é desinstalação, quaresma é renovação.

“É possível renascer” começamos nós por cantar. Seja este um tempo mobilizado, um tempo para sentir que temos uma tarefa por fazer e essa primeira tarefa é o amor, e a segunda tarefa é o amor e a última tarefa ainda é o amor.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Quaresma

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2016/02/25 – Percurso de Preparação para o Crisma

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2016/02/21 - Olhar para as estrelas (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

A história da salvação, podemos dizer, é uma história em contra círculo, completamente inesperada. Porque se cada um de nós tivesse, imaginemos, de rodar um filme, escrever uma história, preparar um argumento em que se iniciasse uma aventura, que ator é que nós íamos escolher para viver uma aventura exigente, mesmo em termos físicos, que exigisse uma liberdade de movimento, andar de um sítio para o outro, viver façanhas destemidas como aquelas que a Escritura nos conta? Certamente nós íamos escolher uma pessoa jovem, uma pessoa que não tivesse ainda grandes compromissos, pudesse ir de um sítio para o outro com a energia, com a vitalidade, com a capacidade de sonhar que nós temos aos 18 ou aos 20 anos.

Mas o que é curioso é que ator é que Deus vai escolher. Ele vai escolher não um jovem de vinte anos mas um reformado, e vai fazê-lo protagonista da Sua aventura. Um homem que já tinha a sua vida em grande medida vivida, já se tinha estabelecido de novo na terra dos seus parentes, um homem que olhava para a sua existência e dizia: “Bem, está feito, está completo, está acabado.” Ou, por ventura, até: “Eu estou acabado, vou viver tranquilamente a vida que me resta.” E é a este homem, que fazia consigo estas contas, que Deus vai dizer: “Olha, sai da tua terra, sai da tua tenda.” E mais: “Olha para as estrelas, se as puderes contar.”

Nós sabemos como a tendência (até porque a nossa coluna vai cedendo) não é olharmos para o alto, a tendência é à medida que os anos avançam começarmos a olhar para os nossos sapatos, para o chão, para o nosso umbigo. Esta capacidade de olhar para as estrelas e enamorar-se delas, e perceber que as estrelas falam connosco e dizem-nos alguma coisa do que a vida pode ser é normalmente um tempo da vida. Isso é bom para os enamorados, para quem ainda não passou por determinadas experiências, que tem uma certa naïveté, uma certa ingenuidade. Isso é bom para essa fase. Mas depois, ninguém tem mais tempo para as estrelas. E, contudo, é assim, a homens e mulheres já vividos, a homens e mulheres numa idade adulta, que nós dizíamos que já são o homem velho, já são a pessoa velha, que Deus escolhe.
Deus não desiste nunca da nossa vida. E precisamente a este reformado Deus vai dizer: “Olha, sai e olha para as estrelas e sente que a vida é promessa.” A vida não é aquilo que a gente consegue contar, a vida não é o que a gente conquistou, a vida não é o que a gente vê, o que a gente consegue administrar, gerir. A vida é mais do que isso, a vida é além, a vida está para lá, a vida é promessa, a vida é caminho. E, nesse sentido, como diz o Papa Francisco: “Nós temos de nos entender em saída.” Não podemos dizer: “Ah, já não consigo mais, já está feito.” Não, nós temos de viver superando-nos, indo além de nós. E é este o sentido profundo da quaresma. O sentido profundo da quaresma é semear, atiçar dentro de nós o fogo da inquietação, do desassossego. Cada um de nós tem de dizer no seu coração: “Não pode ser só isto, não me posso contentar com a vidinha que vivo, com aquilo que já faço, com aquilo que já tenho, há de haver mais.” E é esta capacidade deste gesto disruptivo, deste gesto que nos atira para lá de nós mesmos, que é voltar a olhar para as estrelas.

Este tempo da quaresma, queridos irmãs e irmãos, é um tempo em que nós, ousadamente, voltamos a olhar para as estrelas e a sentir a que a nossa vida está não sob o domínio de uma fatalidade: “tem de ser assim, agora é assim, não pode ser de outra forma, com realismo, com pragmatismo, eu tenho de perceber que é assim e não há mais conversa.” Não, nós temos de sentir que a nossa vida se liga a uma promessa que é maior do que nós, e que nos mobiliza e que diz ao nosso coração: “Tu és capaz, tu és possível, Deus prepara-te outra coisa, Deus pede mais de ti. Tu estás em transformação, a vida está em movimento, não estás cristalizado.” É este movimento exodal, esta saída de nós mesmos que dá a este tempo que estamos a viver um sentido pascal, um sentido verdadeiramente cristão.

Como é que isto acontece nós não sabemos. É interessante a pergunta que Abraão faz: “Senhor, mas como é que sei que vai ser assim?” Deus diz-lhe: “Olha, prepara um sacrifício.” Ele preparou os animais, mas depois vem o sono sobre ele e vem o medo, vem o terror sobre ele. E quando o fogo de Deus passou por meio dos animais, quando Deus manifestou a Sua glória, Abraão não estava preparado para isso porque a vida é mistério. Como é que Deus vai resolver a nossa vida? Como é que Ele vai manifestar a sua glória? Só Ele sabe. O que nós temos é de viver na confiança, atirar mais para longe o nosso coração.

A Carta aos Filipenses é um texto muito especial dentro da epistolografia de S. Paulo. Porque S. Paulo tinha uma relação de grande amizade com a comunidade de Filipos, possivelmente era aquela comunidade com quem Paulo criou uma relação afetiva mais forte. E Paulo está preso quando escreve esta carta aos Filipenses que hoje nós lemos. Está preso em Éfeso e escreve esta carta, com uma grande ternura, uma grande cumplicidade afetiva, em que Paulo diz aos Filipenses: “Sede meus imitadores e não vos torneis pesados a pensar apenas nas coisas terrenas. Fazendo do ventre o vosso Deus e fazendo das coisas do mundo o único sentido, o único significado, o único horizonte para interpretar a vida.”

E disse esta coisa fantástica: “A nossa cidadania está nos céus.” É interessante a palavra Políteuma, a palavra grega que podemos traduzir por cidadania. Podemos também traduzir por pátria, como hoje nós ouvimos: “A nossa pátria está nos céus.” Podemos também traduzir pela conversa que mantemos uns com os outros: “A nossa conversa não está aqui, não acaba aqui, a nossa conversa está nos céus, nós dependemos do alto.” A vida não é só isto que a gente consegue gerir e meter em sacos plásticos e nos armários, e nas horas, e na vida burocrática que todos nós temos. A vida não é só isto, é outra coisa. No fundo, aquilo que nos é pedido é a capacidade de pequenos gestos, de gestos com confiança. Ligar, ligar ao alto, dizer: “Não, não pode ficar só por aqui, temos de ligar.”

É claro que às vezes sobrevém ao nosso coração o medo e às vezes nós desconfiamos de que seja possível. É possível eu morrer para mim mesmo? Para o meu egoísmo? É possível eu sendo velho nascer de novo? É possível voltar a olhar para as estrelas? É possível o amor em mim? É possível a fé? É possível a esperança? É, é possível. E ao nosso coração vem o peso do desalento, do desânimo e até do medo de ir até ao fim. Mas a festa que hoje nós celebramos, a festa da Transfiguração, é uma festa que se celebra para curar o medo da cruz, para curar o escândalo da cruz. Quando os discípulos estavam com Jesus nesta fase e estão à beira de subir para Jerusalém e já percebem que o desfecho não vai ser como o que eles gostariam, o seu coração fica apertado e eles estão ao lado de Jesus mas já estão longe, estão a escapar, estão a fugir. E a Transfiguração é eles verem verdadeiramente Jesus, verem com um olhar espiritual, perceberem quem é Jesus e perceberem quem é que eles são à luz da pessoa de Jesus. E isso vence o medo que eles têm no seu coração.

Queridos irmãos, nós também precisamos de uma visão assim. Precisamos de olhar verdadeiramente para Jesus, colocar Nele os nossos olhos, os olhos do nosso coração. E com esse olhar, olharmos para nós próprios e dizermos: “A confiança tem de vencer o medo. O chamamento de Deus, a Sua promessa, tem de vencer a imobilidade, as nossas resistências, a nossa instalação.” Neste tempo da quaresma nós temos de nos descobrir com uma juventude de coração, uma juventude interior, e temos de trocar os nossos sapatos por sandálias, temos de trocar os nossos lugares parados, os nossos lugares “Daqui ninguém me move, daqui não saio” por um desejo de estrada, por um desejo de caminho.

Vamos tentar, vamos recomeçar, vamos acreditar na conversão, na transformação interior, nessa requalificação da nossa vida. Requalificação espiritual, ética, ontológica, viver com maior autenticidade. Isso é o grande desafio, é o desafio que o próprio Deus com a Sua força, a Sua misericórdia, sustenta em cada um de nós. Por isso, amados irmãos, confiemos no Senhor e que este tempo da quaresma seja para nós de facto um tempo em que semana a semana, dia a dia nós vamos sentindo que estamos a caminhar. E se aconteceu que fizemos belos propósitos na quarta-feira de cinzas e já nos esquecemos deles ou achamos que já não somos capazes e foi um erro sequer pensar em propósitos, vamos recomeçar hoje, vamos recomeçar agora. Que das nossas quedas, das nossas falhas, a gente possa sempre reencontrar um coração inteiro, um coração que acredita.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Quaresma

2016/02/15 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus" - Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova)

Está disponível para ouvir a sessão de Adelino Cardoso (FCSHUNova) sobre Leibniz, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/02/14 - Até onde somos livres? (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Nós começamos este tempo da Quaresma. É um tempo que começamos sob o signo da esperança, nós precisamos de renascer, precisamos de reganhar uma liberdade, uma vida interior, precisamos de passar dos invernos gelados do nosso coração à primavera. Precisamos deste trabalho, de um acordar, de um despertar, porque a verdade é que mesmo não fazendo grandes disparates, ou não sendo especialmente inventivos no mal que fazemos, sem darmos conta há alguma coisa que nos corrói. Há uma desvitalização interior, vamos perdendo ânimo, vamos perdendo a alma. Vamos cedendo aqui, vamos condescendendo connosco. De repente, sem fazermos grandes coisas, o nosso eu acaba por ser um tirano e vivemos em função de nós próprios, do que nos dá prazer, daquilo que nos é mais agradável, do nosso ‘eu’. E à frente de tudo e de todos colocamos o nosso ‘eu’, a julgar tudo como o único comandante da nossa nave. E, sempre sem darmos conta, acabamos por viver numa espécie de idolatria. Prestamos culto a Deus mas prestamos culto também ao dinheiro, ao nosso ter, ao nosso conforto, às nossas ideias, a isto e a aquilo, aos ídolos de cada momento. Somos cristãos, mas por dentro será que somos? Acreditamos, mas até que ponto esse acreditar é decisivo para as pequenas e grandes escolhas da nossa vida? Sentimo-nos livres, mas até que ponto experimentamos de facto a liberdade interior? Até onde somos livres? Até onde? Quais são as nossas amaras? O que é que nos prende? O que é que nos captura? O que é que nos sequestra? Que desprendimento, que gratuidade nós somos capazes de experimentar?

O tempo da Quaresma é assim um tempo para fazermos um diagnóstico. Não é da vida do vizinho: “Ai que mau!” Não é o outro, sou eu, é um diagnóstico da minha vida. Porque cada um de nós tem de tirar o pulso, tem de tirar a temperatura à sua vida espiritual e sentir que há em nós um horror ao vazio. Se a gente não enche o nosso coração de Deus vamos encher de toda a tralha possível e imaginária. E por isso, nós precisamos de um tempo, de um tempo de renascimento, de um tempo de uma religação, de um tempo de uma verdade, da procura de uma inteireza interior que nos aproxime do grande acontecimento pascal. Na linha do horizonte está a Páscoa de Jesus, que é também a nossa páscoa, a nossa passagem, o nosso êxodo, a nova criação, a nova criatura, passar do homem velho ao homem novo.

Como é que isso se faz? Percorrendo um caminho de verdade, trabalhando interiormente, sentindo o apelo à conversão, à transformação interior.

Na quarta-feira passada nós recebemos as cinzas e agora temos este caminho que é um caminho penitencial. Por exemplo, não cantamos o “Aleluia”, não rezamos o “Glória”, as vestes são o roxo, não temos flores no altar. São sinais de uma frugalidade e ao mesmo tempo de uma penitência. Quer dizer, nós não cantamos o “Aleluia” porque nem sempre merecemos cantar o “Aleluia”. Nós não rezamos “Glória” não é porque Deus não mereça ser louvado. Não, às vezes a gente tem de calar e dizer: “Não, eu não mereço, as coisas não estão bem. Posso fazer mais. Peco tanto por omissão.” E esta consciência que cada um de nós tem de ter tem de ser também uma consciência fina, não podemos viver uma consciência adormecida. Porque senão acontece aquilo que dizia Hannah Arendt: “O mal torna-se uma banalidade.” Há a banalidade do mal, perdemos o sentido do pecado, tudo é mais ou menos igual, tudo é mais ou menos relativo, tudo é justificável. E às tantas, o fogo divino já não arde dentro de nós, já não se acende o nosso coração porque fica pesado de tantas paixões e ao mesmo tempo de tanta condescendência. Por isso, este é o tempo de sacudir, este é o tempo de desinstalar.

Jesus é o nosso exemplo. No texto evangélico de hoje Jesus está no deserto e é tentado pelo Diabo. “Diabolos” quer dizer: duplo, dividido. Às vezes a nossa vida também se divide e escutamos vozes contraditórias dentro de nós: apetites, paixões, inclinações diferentes dentro de nós. Jesus passou por três tentações que resumem três mil tentações, são grandes tipologias de coisas que nos tentam. E o que é que nos tenta?

A primeira tentação. Jesus sentiu fome e o Diabo disse-lhe:

“-Olha, transforma estas pedras em pão.

E Jesus disse-lhe:

– Nem só de pão vive o homem.”

De facto, a nossa grande tentação é o materialismo, é transformarmos tudo em pão, tudo serve para alguma coisa. A bondade das coisas passa a ser definida pelo proveito que nos trazem. Por exemplo, uma rosa não é bela em si mesma, não é bela no jardim, é bela porque eu a arranco, porque eu a possuo, porque eu a tenho. Então, de repente, as coisas todas existem para saciar a minha fome que é insaciável, que é insaciável. Porque a nossa fome é a nossa voragem, a nossa rapacidade é verdadeiramente insaciável. E se a gente não faz um corte, se a gente não diz: “Não, as coisas não existem só para me dar prazer, só para me confirmarem, só para me admirarem.” Não, as coisas têm uma bondade em si, têm uma beleza em si, têm uma vida, uma vida em si. “

“Nem só de pão vive o homem.” Quer dizer, eu não preciso só das coisas para me alimentarem, eu preciso da Palavra de Deus, eu preciso do significado da vida, eu preciso daquilo que não tem porquê nem para quê. E isso dá-nos uma liberdade muito grande.

Queridos irmãos, é muito fácil vivermos no materialismo, muito fácil, muito fácil. Por exemplo, às vezes vivemos com o taxímetro ligado. Mesmo em família, mesmo para prestar um serviço a alguém, mesmo para os nossos amigos, para os outros. Estamos sempre a cobrar, sempre a cobrar. E no fundo, tudo tem a ver com o dinheiro, com o material, com as trocas, com isso. Acaba por haver muito pouca gratuidade na nossa vida, muito pouco exercício de generosidade, muito pouca capacidade de acolhimento, de dádiva, de doação. E é verdade que nós precisamos de pão, mas precisamos de muitas outras coisas, muitas outras coisas. É verdade que os nossos carros só andam com gasolina mas para andarmos na vida nós precisamos de muitas outras coisas. E, se calhar, colocamos a materialidade da vida num lugar de exclusividade, quando ela é só um aspeto da vida e muitas vezes não é sequer o aspeto mais importante, não é o aspeto mais decisivo.

“Nem só de pão vive o homem.”: é uma descoberta que cada um de nós tem de fazer, tem de fazer. E é uma descoberta cheia de consequências e sobretudo é uma prática, é uma arte de viver, é um estilo que nós vamos cultivando nas relações uns com os outros.

Depois o Diabo leva Jesus a ver num instante todos os reinos do mundo, todo o poder. E diz:

“-Olha, eu dou-te tudo isto se venderes a tua alma, se te prostrares diante de mim e me adorares.

E Jesus diz:

– Só adorarás o Senhor teu Deus.”

E esta é, de facto, uma outra tentação, porque precisamos de poder, precisamos no fundo de ter as coisas ao nosso alcance, queremos dominar, queremos possuir. E nós sabemos que o caminho para isso, a maior parte das vezes, é vender a própria alma. É alienar as nossas convicções, é baixar o nível dos nossos valores, é exigir menos, é fingir que não se vê. É tanta coisa que no fundo é isso: é adorarmos o ídolo e não o verdadeiro Deus, ter uma liberdade muito grande face aos poderes, face ao poder, ao poder que nos tenta. Ser capaz de dizer: “Não, os meus valores são estes e há valores que são inegociáveis. Eu não posso fazer menos.” Ah, mas eu vou ser prejudicado por isso, mas eu perco aquela oportunidade, perco aquele lugar. Perco!

Eu tenho de aceitar perder. Eu tenho de aceitar perder e tenho de aceitar o risco de perder. Porque se a gente não perde também acaba por hipotecar a própria liberdade, acaba por hipotecar a própria vida. Nós sabemos como no jogo da vida social é tão fácil isto acontecer, e quase de uma maneira invisível somos empurrados para vender a alma ao Diabo. Por uma razão ou por outra. De repente, já não somos nós próprios, já não estamos inteiros, já não somos senhores do nosso destino.

E por fim, o Diabo que leva Jesus a um pináculo e diz: “Atira-te daqui abaixo porque o Senhor mandará os seus anjos. ” E Jesus que responde: “Não tentarás o Senhor teu Deus.” De facto, há esta tentação do providencialismo que é o contrário da primeira tentação. A primeira tentação é uma espécie de ateísmo prático: nós vivemos como se Deus não existisse. E depois, a terceira tentação é querermos que Deus nos resolva a vida, é querermos um providencialismo mágico quando nós temos de viver a responsabilidade pela nossa vida. Eu tenho de sentir-me responsável pela minha vida e construi-la com esse profundo sentido de responsabilidade. Este é o caminho de Jesus, este é o caminho da nossa existência. Que é um caminho tentado, é um caminho provado, mas é um caminho em que eu me tenho de descobrir sabendo, como diz S. Paulo, que a Palavra de Deus não está longe do nosso coração. E basta confessar que Jesus é o Senhor de todos, todos, não só judeus mas também o grego. Isto é, para todos o Senhor Se manifesta, a todos o Senhor dá a oportunidade de ser.

Queridos irmãos, a Quaresma é assim um tempo prático, um tempo para readquirir a chama para reacender no meio da cinza o fogo. Cada um de nós tenha o seu programa de Quaresma, o seu projeto. Pensando uma, duas no máximo três coisas que pode melhorar, que pode fazer nesta linha de uma fidelidade a Jesus, de uma fidelidade ao Seu Evangelho. Como é que eu vou concretizar isto na minha vida? Sabendo que o tripé: oração, jejum e esmola, é um tripé muito útil no meu caminho.

O jejum. O jejum é o viver com frugalidade, é o saber desprender-me, é eu saber contrariar os meus apetites, as minhas vontades. “Ah, eu adoro chocolates.” Está bem, mas durante quarenta dias não comes e não morres, isso dá-te uma liberdade muito grande. Aprendes que na vida há outros gostos, há um gosto a chocolate que se tem não comendo chocolate, o gosto da renúncia por amor que é um gosto tão importante a descobrir na nossa vida. O gosto daquelas coisas a que tínhamos direito mas renunciamos por amor, renunciamos por liberdade. Isso é um gosto tão grande que nós precisamos de descobrir porque no fundo é o gosto da liberdade, o gosto do amor, o gosto da vida espiritual.

Nestas sextas-feiras nós somos também chamados à abstinência. E a abstinência traduz-se de forma muito concreta em tomarmos às sextas-feiras um alimento frugal. Temos dois dias de jejum: quarta-feira de cinzas e agora o próximo é sexta-feira santa. Mas às sextas-feiras temos um alimento frugal e não comemos carne, não comemos carne. E não comemos carne unindo-nos a uma tradição espiritual do Cristianismo mais antigo que passa por não derramar sangue, sangue animal. E não derramar sangue é muito importante. É um gesto, é um símbolo. Depois, nos outros dias podemos voltar a comer carne mas naquele dia nós interrompemos. Interrompemos precisamente para dizer que a nossa vida não vale mais do que a vida dos outros e que nós percebemos os limites, percebemos que há um sofrimento do qual nós somos uma parte da cadeia. Se podermos interromper e pensar nisso isso nos devolve uma liberdade. Por isso não comemos carne à sexta-feira e comemos um alimento frugal.

Depois temos a esmola. O tempo da quaresma é um tempo de condivisão, é um tempo de partilha. Quer dizer, nós procuramos adotar um estilo de vida mais frugal e é importante renunciar. Gosto imenso de ir ao cinema, abdico de ir uma vez. Gosto imenso de café, abdico de menos um. Ser capaz de abdicar, não é dar do que nos sobra, é retirar do nosso estilo de vida, é renunciar para poder condividir com os outros. E condividir materialmente mas também condividir do nosso tempo, do nosso serviço, das nossas competências, da nossa disponibilidade para poder partilhar mais com os outros, e isso também é uma esmola. Há muitas formas de dar a esmola, de expressar a caridade divina: as obras de misericórdia, cada uma delas é também uma esmola, é um ato de caridade.

E por fim, a oração tem de estar do princípio ao fim. Porque a conversão só é possível em nós através da oração. Não é um exercício da nossa vontade, é uma abertura à transformação que o Espírito Santo faz em nós. Por isso, precisamos de rezar, aumentar o tempo da oração, rezar mais. E rezando mais certamente vamos rezar melhor. Porque a oração também é uma prática. Às vezes a gente está muito preocupada em encontrar a forma mais extraordinária de oração, a forma mais extraordinária de oração é qualquer uma, é qualquer uma. Porque a oração é esta abertura de coração a Deus, é tão pessoal como o caminhar, como o rir e é o estar, é o desejo de estar. Muitas vezes a nossa oração não é a que desejávamos mas esse desejo de Deus já é Deus, já é oração. Por isso, cada um de nós procure reforçar o tempo de oração durante esta Quaresma e seja também um tempo de rezarmos uns pelos outros. Nós que fazemos parte da mesma comunidade temos também uma corresponsabilidade uns com os outros, rezarmos uns com os outros. Porque não é fácil, quer dizer, no dia em que a gente se dispõe “Ah, eu vou fazer isto”, depois naquele dia vão-nos aparecer cem tentações para fazermos precisamente o contrário. E temos de ser fortes, na nossa fraqueza temos de ser fortes, e nas horas da tentação de facto só a oração nos pode valer. A oração e fugir delas.

Os Padres do Deserto diziam: “Não tenhas ilusões, só há uma maneira de combater as tentações é fugindo para longe e levando Deus no seu coração.” Por isso, vamos rezar ao Senhor por este tempo da Quaresma. Nós estamos aí com um grande inverno mas a Quaresma é assim uma primavera, uma primavera interior que cada um de nós é chamado a acordar dentro do seu coração.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo I da Quaresma

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2016/02/11 – Percurso de Preparação para o Crisma

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2016/02/10 - "Entra no teu quarto" (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

O imperativo que hoje escutamos na voz do Senhor é o convite que este tempo da Quaresma nos faz: “Entra no teu quarto e ora a teu Pai que está no segredo.”

“Entra no teu quarto.” Isto é, entra dentro de ti, entra no teu coração. Muitas vezes vivemos só à superfície, vivemos no rame-rame da vida, vivemos à pele os acontecimentos. Mesmo a espiritualidade é alguma coisa sobretudo de fora, uma expressão de gestos, de atos, de coisas que fazemos. A verdade é que a nossa vida interior vai definhando, vai perdendo a capacidade de inspirar a vida, vai ficando para quando tivermos tempo que nunca temos. Vamos perdendo a coragem de entrar dentro de nós, vamos desacreditando de nós, desacreditando de que é possível, de que vale a pena, de que Deus nos ama realmente e nos transforma, e acabamos por viver uma vida apenas superficial.

“Entra no teu quarto.” O tempo da Quaresma é um desafio a vivermos com interioridade o próprio tempo entrando dentro de nós. Não é entrar no quarto ao lado, no quarto do outro, na vida do outro. É entrar na nossa própria vida, olharmos para nós próprios, para aquilo que somos, para aquilo que vivemos. É que acontece muitas vezes que temos olhos para tudo menos para a nossa própria vida, porque exatamente a nossa própria vida é aquilo que nos custa mais ver. Temos consciência dos pecados, das fragilidades, das dificuldades de toda a gente  (“Já viste este. Já viste aquela. E mais isto e mais aquele outro”) e da nossa própria vida nós não tomamos consciência.

“Entra no teu quarto.” Quer dizer: “Toma consciência da tua vida, da qualidade da tua vida.” Da qualidade espiritual, da qualidade de amor, da qualidade de generosidade, da qualidade ou não de misericórdia que tu vives. “Entra no teu quarto.” Isto é, escuta o teu coração, entra. E entra com esperança, porque não é apenas para ficarmos perdidos no nosso caos interior mas é para olharmos o Pai, descobrirmos o Pai, dentro da nossa vida descobrirmos que Deus é Pai, que Deus nos ama. E se Deus nos ama, Deus estende-nos a mão. Quando Pedro se estava a afundar nas águas e pediu: “Senhor, salva-me.” O Senhor estende-lhe a mão e é esse gesto que Deus faz a cada um de nós.

“Entra no teu quarto e descobre, redescobre que Deus é teu Pai e que Deus é uma presença de amor.” E porque Deus é Pai Ele assiste ao nosso parto, Ele assiste à reinvenção de nós mesmos, Ele assiste à transformação interior da nossa vida.

Nós estamos aqui porque precisamos de conversão, eu antes de todos, mas cada um de nós está aqui porque precisa de conversão. Não é por outra coisa, é por isso, porque precisamos de conversão. Não é porque o outro é isto ou porque o outro é aquilo, é porque eu sou assim. Eu preciso de conversão, eu preciso de transformação, eu preciso que a Palavra de Deus se torne mais autêntica em mim, preciso de maior verdade, de maior generosidade, de maior misericórdia, preciso de transformação. No tempo da Quaresma os cristãos entram para obras, isto é, para reparações, como uma casa de vez em quando precisa de um teto novo, precisa de um soalho, de uma porta, de uma reparação qualquer. Nós também precisamos de reparação, nas nossas costas devia haver uma tabuleta a dizer: “Para obras. Este está em obras.” É isso que nós estamos, estamos em obras e para isso cada um de nós tem de ter consciência do seu pecado e da sua limitação.

Queridos irmãos, o pior que nos pode acontecer é ignorarmos o nosso pecado, ignorarmos a nossa fragilidade. Por isso este tempo também é um tempo para tomarmos consciência do egoísmo, do desamor, do peso com que sobrecarregamos os nossos irmãos, das nossas omissões que muitas vezes são o nosso maior pecado. Tomarmos consciência disso mas tomarmos com esperança de quem sabe que Aquele que nos vê, Aquele que nos olha não é um impiedoso juiz mas é um pai misericordioso que nos estende a mão e diz: “Confia, acredita, o Meu amor é possível.” E então, este amor que nós recebemos de Deus é uma força que transforma a nossa vida, que nos coloca de pé.

Como é que vai ser este trabalho de reparação interior em que todos entramos? Vai ser um trabalho pensado, um trabalho consciente. Isto é, não pode ser: “Comecei a Quaresma, pronto. O que acontecer aconteceu.” Não, eu tenho de programar, eu tenho de entrar dentro de mim. Se calhar já entrámos, e temos de entrar porque neste tempo a gente tem de ter os olhos bem abertos para si mesmo. Sem ficar colados aos sapatos mas olhando para longe. Mas temos de estar atentos a nós mesmos, mas temos de ter um programa. Isto é, eu que me conheço, que olho para mim, o que é que eu posso fazer com a ajuda de Deus para transformar a minha vida?

Aqui de facto os três “P” ajudam muito: o que eu tenho de fazer é uma coisa pequena, não é uma coisa grande; o que eu tenho de fazer é uma coisa pessoal, não é uma coisa para os outros; e o que eu tenho de fazer é uma coisa possível, Deus não me pede o impossível, Deus pede-me coisas possíveis. Então, neste tempo de Quaresma era muito importante que cada um de nós tivesse dois, no máximo três propósitos. Dois ou três, não é preciso mais. Que fossem pequenos, pequenas coisas que estão na nossa vida, que estão ao nosso alcance combater, lutar, transformar. Que sejam coisas nossas, não vou combinar com o outro, não, sou eu que tenho de mudar, sou eu. E uma coisa que seja possível, uma coisa que realmente eu veja que com a ajuda de Deus eu consigo mudar.

Então, cada um de nós tenha estes dois ou três propósitos e vá caminhado, vá caminhado. Estes propósitos podem ser em três linhas, há um tripé no tempo da Quaresma. O jejum: muita gente, por exemplo, no tempo da Quaresma diz “Não como doces durante o tempo da Quaresma.” É uma coisa boa, é uma coisa que está ao alcance de nós todos. Ou: “Não tomo álcool.” Ou: “Fumo menos.”Ou “Como menos.” E depois há todo o outro tipo de jejum: vejo menos imagens, passo menos tempo sozinho na Internet a fazer não sei o quê, a evadir-me, falo menos da vida dos outros, vou tentar dominar esta coisa que é a minha língua que muitas vezes não tem controle algum. São formas de jejum. Se cada um de nós se comprometer num jejum é uma coisa tão pequena, parece tão pequena, mas depois é uma coisa que nos dá liberdade. Porque aquilo que nos acontece é que nós não temos liberdade face a um tirano chamado ‘eu’. Aquele que me sequestra é o meu próprio eu, que me escraviza, que me leva a fazer e a achar que não há outro caminho quando há tantos. Então, o jejum ajuda-me a libertar-me, a libertar-me.

O outro caminho é a esmola. A esmola quer dizer caridade, quer dizer misericórdia. O Santo Padre Francisco, na mensagem para esta Quaresma de 2016 em contexto de Ano Santo Jubilar, Ano da Misericórdia, desafia cada um de nós a redescobrir as obras de misericórdia e a fazer deste tempo da Quaresma um tempo muito especial de misericórdia, para descobrir o que é a misericórdia, para praticar, para fazer gestos de misericórdia. E isso tudo é uma esmola, é uma partilha de amor, é um ato da caridade divina do qual nós somos canais na vida uns dos outros.

E por fim, nada disso é possível se não for acompanhado da oração. A oração, no tempo da Quaresma, se a gente quer mesmo mudar de vida, se a gente quer mesmo que alguma coisa aconteça, acreditem, não acontece nada sem oração. A oração é a força que nos transforma, a oração é que prepara o nosso coração para a confissão, a oração é que faz sentir que nós não estamos sós, a oração é que nos impede de desistir, a oração é que nos faz levantar depois de termos caído. Por isso, a oração deve acompanhar a nossa vida e neste tempo da Quaresma ela deve estar ainda mais presente que nos outros meses do ano.

Nós celebramos o tempo da Quaresma quando esperamos a primavera. Hoje está assim um dia de chuva, mas nós sabemos que a primavera não está longe. E há a primavera que as árvores vão mostrando mas há sobretudo uma primavera interior, um rejuvenescimento da alma, uma juventude de coração que cada um de nós pode ganhar. “Pode um homem sendo velho nascer de novo?” Sim, pode nascer de novo pelo espírito, por esta transformação interior.

Queridos irmãos, que nenhum de nós fique parado, que nenhum de nós fique desmobilizado. Este tempo é um tempo para estar mobilizado e contar com a ajuda de Deus. É o amor incondicional que Ele nos dá que é a nossa alavanca, que é o nosso trampolim. É claro, os mais pequenos podem fazer umas coisas, os grandes podem fazer outras. A nossa penitência é uma coisa pessoal, muitas vezes é uma coisa entre nós e Deus, mas que seja verdadeiramente e cada um à sua medida faça alguma coisa. Este não é um tempo de boas intenções, a Quaresma é um tempo prático, é um tempo prático. É pouco, é poucochinho, pronto, mas faz alguma coisa, faz. Porque a fé é também um fazer, um praticar.

Vamos agora benzer estas cinzas, que é um sinal austero, é dizer ao Homem: “Olha, lembra-te que um dia vais ser cinza, e que tudo aquilo que tu achaste que era o maior isso tudo vai passar. Então, lembra-te disso não para entristeceres mas lembra-te disso para fazeres as escolhas certas, aquelas que não passam.” Vamos ouvir, quando recebermos a cinza na nossa cabeça: ”Converte-te e acredita no Evangelho.”Que essa palavra a gente a guarde no coração e dê hoje o primeiro passo.

Pe. José Tolentino Mendonça, Quarta-feira de Cinzas

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2016/02/07 - Quem irá por nós? (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Neste ano de 2016 a nossa diocese, o Patriarcado de Lisboa, vai realizar o seu sínodo. Um sínodo é uma assembleia dos cristãos, uma mobilização de todas as comunidades e de todos os cristãos, individualmente, em torno a uma palavra do Papa Francisco da Evangelii Gaudium que diz: “O sonho missionário de chegar a todos.” Deus quer chegar a todos, quer tocar o coração de cada pessoa, quer levar a Sua Palavra, a semente da Sua esperança a cada morada. Quer ser a âncora, quer ser a tenda, quer ser o caminho, quer ser a mesa aberta na vida de cada um.

Mas a palavra que Isaías escutou é a palavra que nós escutamos também, essa pergunta que Deus faz: “Quem enviarei? Quem irá por nós?” Quem cumprirá o sonho missionário de chegar a todos? Quem será a presença de Jesus? Quem levará Deus ao horizonte humano? Quem, no concreto da vida, nos dias minúsculos da história poderá testemunhar a grandeza de Deus? Quem irá por nós? Quem falará em nosso nome?

E aqui, perante a grandeza do testemunho, cada um de nós se sente fraco, se sente pecador, se sente indigno, se sente impuro. A verdade é que este sentimento, muito real em cada um de nós, acaba por nos desmobilizar, acaba por ser um travão. Nesse sentido, é muito interessante o ritmo destas três leituras que nos apresentam situações vocacionais gerais do Povo de Deus.

Comecemos por Isaías. Isaías era um cortesão, era um funcionário real, vivia na corte. Ele não era profeta, nem ninguém nasce profeta como nenhum de nós nasce cristão. Nós não nascemos cristãos, nascemos homens e mulheres, depois tornamo-nos cristãos. Isso é uma grande diferença, porque a descoberta do chamamento de Deus, do apelo missionário para nos tornarmos um povo de testemunhas não nasce connosco, é uma descoberta. Muitas vezes a contra gosto, a contraciclo nas nossas vidas.

Isaías nunca pensou ser profeta, mas naquele dia ele assistiu à manifestação de Deus. Temos aqui uma maravilhosa linguagem poética e bíblica: “Viu os querubins, os serafins.” Viu a glória de Deus, testemunhou a glória de Deus. A verdade é que cada um de nós, na nossa vida, em tantos momentos, testemunha de uma forma vibrante, de uma forma real, de uma forma que mexe connosco. Testemunhamos em sobressalto a glória de Deus. E Isaías pensa: “Eu vou morrer porque eu vi a glória de Deus.” Mas quando ele pensa que vai morrer e que está tudo acabado acontece o contrário: vem um anjo com uma tenaz e purifica os lábios dele. Isto é, cura-o, transforma-o da sua fragilidade, do seu pecado e torna-o capaz de testemunhar.

A mesma coisa nós temos com S. Paulo. Paulo era um perseguidor, era um opositor radical da experiência cristã. Ele tinha ido pedir cartas às autoridades de Jerusalém para perseguir os cristãos até Damasco. Isto é, até ao fim do mundo ele havia de prender os cristãos. E precisamente naquele caminho, este homem que depois diz que é o último dos Apóstolos, que nasce como que de um aborto, este homem é tocado por Cristo, é transformado por Cristo. E aquele que era um perseguidor torna-se um apóstolo, torna-se um anunciador.

A mesma coisa nós temos com Pedro. A relação de Jesus com ele contada no Evangelho de Lucas, neste capítulo 5, é extraordinária porque se percebe como Deus vai entrando progressivamente na vida dele, como quem não quer, de uma forma discreta, com pezinhos de lã, como tantas vezes Deus faz na nossa vida. Primeiro nos pede uma coisa e depois nos pede outra, e depois outra e de repente nós percebemos que estamos dentro do Seu projeto, dentro da Sua palavra.

Primeiro Jesus pede a Pedro um barco, o barco está à mão para fazer dele um palco, um pódio para falar à multidão que está na margem do lago. Depois Jesus faz-lhe uma proposta completamente inesperada: “Faz-te ao largo e lança as redes.” E Pedro que é um pescador experiente e vem de uma faina fracassada diz: “Senhor, já labutamos toda a noite e não conseguimos nada, porque é que eu hei de confiar na tua palavra, tu nem pescador és, não sabes nada disto. Eu já experimentei o mar, já sei o que posso tirar e o que não posso, e hoje já arrumei as redes.” E o Senhor diz: “Confia na palavra.” E quando as redes se enchem de peixe, quando Pedro faz até ao fundo a experiência da confiança na Palavra de Jesus ele vem ter com Ele e diz: “Senhor, afasta-te de mim porque sou um homem pecador.”

Nós somos mulheres e homens pecadores os que estamos aqui. Mas o que é que nos afasta de Deus? Não é o pecado que nos afasta de Deus. Não é a nossa fraqueza que nos afasta de Deus. Não é a nossa fragilidade que nos afasta de Deus. O que nos afasta de Deus é sim a autossuficiência, é sim a crosta que nos impede de ver a nossa fragilidade, é sim aquele obstáculo de soberba, de convencimento que não nos deixa perceber o quão carentes estamos da misericórdia de Deus. Por isso, acontece mais vezes na nossa vida que é a virtude a afastar-nos de Deus do que o pecado a afastar-nos de Deus, por contraditório que isto possa parecer. Às vezes quando tudo corre bem, quando está no nosso controle, e nós somos pessoas tão boas e está tudo a rolar, tudo a acontecer, parece que Deus não é necessário na nossa vida. Não precisamos Dele, nós damos conta do recado, nós valemos por nós, nós resolvemos tudo, sabemos tudo. Por vezes quando estamos mergulhados na dor, no sofrimento, na lama, na miséria, quando sentimos a profunda pobreza interior então percebemos que sozinhos não nos salvamos. Precisamos da mão estendida de Deus que toque, que agarre, que transforme a nossa vida.

Por isso, nos Evangelhos nós temos este paradoxo: são os pecadores que melhor escutam a Palavra de Jesus. São aqueles desclassificados, os que estão distantes, que comem e bebem com Ele, e aceitam a Sua proposta e se mobilizam para a transformação interior que a sua Palavra é capaz de despertar. Os justos do tempo, os fariseus e os escribas andavam sempre com duas pedras na mão, sempre com cálculos, sempre a medir, sempre a julgar. É esta condição de mulher e homem pecador, é o assumir da nossa fragilidade com verdade diante de Deus que nos cura, que nos transforma, que abre na nossa vida uma brecha real para Deus atuar, para Deus transformar.

Quando Pedro se abeira de Jesus e diz “Senhor, afasta-te de mim porque sou um homem pecador”, Jesus diz “Pedro, a partir de hoje serás pescador de homens.” É esta condição, é esta palavra de Pedro que mostra que ele tinha as condições necessárias para ser um verdadeiro discípulo do Senhor, para ser enviado não em nome da sua certeza ou da sua virtude, ou das suas estratégias mas para ir cheio de Deus e ir em nome de Deus.

Queridos irmãs e irmãos, é tão importante não reduzirmos a nossa experiência cristã a uma espécie de moralismo onde nos julgamos uns aos outros, como um clube de bem-comportados. A fé e a Igreja não é isso, é outra coisa. São mulheres e homens com os pés assentes na terra, que não são melhores do que os outros, muitas vezes são até piores do que outros que não têm fé. E contudo, atiram a sua pobreza, a sua miséria para os pés do Senhor. E contudo, sabem que o Senhor é capaz de transformar até o nosso lixo em coisas preciosas, que o Senhor é capaz de tornar cada um de nós vaso da sua eleição, instrumento do Seu Evangelho, do Seu Reino, e por isso nos colocamos com confiança.

Na convocação do sínodo o Povo cristão é chamado a descobrir-se um Povo de testemunhas, um Povo que é capaz de testemunhar Cristo na vida. E uma das propostas é, por exemplo, numa semana junto-me com uma pessoa amiga (um amigo, uma amiga) ou em família e fazemos uma ação de evangelização. Se calhar nós já somos cristãos há décadas mas nunca fizemos uma ação de evangelização, nunca falamos do Evangelho, nunca anunciamos o Evangelho. Achamos que anunciar o Evangelho é para os outros, para os outros evangélicos ou para as testemunhas de Jeová, e muitas vezes o nosso grande pecado é o pecado da omissão, é o pecado da abstenção. Nós vemos mas não dizemos, não falamos, não fazemos a proposta. Não é impor, é não fazemos a proposta. E muitas vezes o coração do outro é uma terra boa, é uma terra que está à espera daquela semente, mas ele não a recebe de nós. Por omissão, por vergonha, por respeito humano, porque também nós nos sentimos pecadores e dizemos: “Então sou eu que vou anunciar? Eu que ainda não vivo completamente, eu que, eu que, eu que…” E perdemo-nos, e o Evangelho não é o que podia ser, e não se multiplica. A vida não se multiplica porque nós ficamos presos a uma consciência de culpa, em vez de ficar presos ao dinamismo da confiança.

Queridos irmãs e irmãos, este sonho missionário de chegar a todos tem verdadeiramente de tocar-nos e de fazer-nos experimentar radicalmente a força da Palavra. É tão maravilhoso isto que acontece com Pedro. Imaginemos que ele estava ali, Jesus estava no barco dele mas estava a falar a outros, para outros e estava simplesmente a falar. Mas uma coisa é falar outra é experimentar, é sentir na sua própria história, na sua própria carne a transformação. Mas quando Jesus acaba de falar aos outros também fala com ele e diz: “Faz-te ao largo, lança as tuas redes.” E é preso a esta Palavra que a vida de Pedro se torna outra coisa. Para nós não é diferente, para nós não é de outra maneira, é quando nos amarramos com confiança à Palavra do Senhor que a vida se transforma, não é de outra maneira. É quando nos amarramos com confiança à Palavra que a nossa vida se transforma. É quando confiamos no risco da sua Palavra, quando depois de termos limpo as redes o Senhor ainda nos manda atirar outra vez, quando depois de noites fracassadas o Senhor ainda nos manda arriscar, quando nós não vemos como e o Senhor diz-nos uma palavra no sentido que a gente não quer ou não espera, mas avança, mas acredita, mas faz-se ao largo que a vida verdadeiramente se transforma.

Vamos rezar por cada um de nós, para que este sonho missionário de Deus possa contagiar o nosso coração, e sentirmos verdadeiramente que a religião não é uma medalha de bom comportamento, a religião é, com todas as ganas, com todas as vísceras, com todas as nossas entranhas nós confiarmos, nós acreditarmos, em todas as situações da nossa vida. É essa confiança, esse atirar-se na sua pobreza para os pés de Jesus.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V do Tempo Comum

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2016/02/02 – As mulheres nos Evangelhos e na Igreja

A Irmã Maria Julieta Mendes Dias convida-nos a refletir sobre as mulheres nos Evangelhos e na Igreja. A proposta que nos faz é olhar para a atitude de Jesus para com as mulheres e perceber a reação das mesmas à Boa Nova de Jesus, para tentar compreender a situação das mulheres na Igreja ao longo dos tempos. Será nos dias 26 de janeiro e 2 de fevereiro, às 21h30, na Capela do Rato.

2016/02/01 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus“ – Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCP)

Está disponível para ouvir a sessão do Pe. Henrique Noronha Galvão (UCP) sobre Santo Agostinho, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

filosofosCapelaRato_noticia

Janeiro

2016/01/31 - Amar por amar (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Hoje, na grande abundância que a Palavra de Deus nos sugere, eu iria fixar-me nesta segunda leitura da Carta aos Coríntios do apóstolo Paulo. Um texto que de formas diferentes nós vamos encontrando em ocasiões da nossa vida. Muitos esposos escolhem-no para o dia do seu casamento, outros em momentos especiais de inspiração. É sem dúvida uma das páginas mais belas, mais tocantes, mais marcantes do Novo Testamento. E é uma página que vale a pena nós apreendermos, escolhermos no seu sentido mais rico.

Corinto é um lugar importante para o Cristianismo e é um lugar importante na missão de Paulo. Paulo começa por ser um missionário da Igreja de Antioquia. A primeira intenção possivelmente até seria permanecer no espaço da Palestina mas depois a vocação a que ele se sente chamado é levar o Evangelho até aos gentios, isto é, fazer saltar o Cristianismo para lá da cerca do Judaísmo criando uma equivalência entre pagãos e judeus. Na altura era um escândalo terrível e nem os próprios cristãos nem Pedro compreendia bem que pudesse ser assim: que os judeus tivessem um estatuto consolidado na história da revelação. E agora aparecia este convertido chamado Paulo a dizer que o Evangelho era para todos, era universal e todos tinham o mesmo direito a receber o Evangelho.

Paulo, um bocadinho de forma solitária e em rotura com a Igreja de Jerusalém, vai para as missões. Isto é, vai para longe. E longe começa o anúncio, começa a fundar comunidades anunciando a Palavra de Deus. Ele começa a Norte, começa em Tessalónica. Em Tessalónica ele começa a pregar numa sinagoga, depois é expulso da sinagoga, depois vai falar nas praças, nas casas das famílias. Começa ali um fermento, uma comunidade. Os judeus veem em Paulo uma ameaça, denunciam-no às autoridades e Paulo é expulso da cidade e foge.

Então começa a descer de Tessalónica e passa em Atenas. O próprio Paulo não nos dá testemunho dessa passagem por Atenas, mas nós temos a descrição nos Atos dos Apóstolos em que Paulo fala no Areópago de Atenas, aos filósofos de Atenas. E ao que parece, ao que diz S. Lucas, foi um desastre completo. Porque os filósofos ouviram Paulo com curiosidade, com interesse, mas quando Paulo lhes falou da ressurreição dos mortos eles disseram: “Olha, nós havemos de ouvir-te outro dia.” E viraram-lhe costas. De maneira que Paulo percebeu que o seu projeto de evangelização não ia ser fácil. E ele desce um pouco mais a sul à cidade de Corinto. Quando Paulo entra em Corinto, ele próprio diz nesta carta que ficou: “cheio de temor e tremor”. Porque Corinto era uma cidade enorme, era uma metrópole, tinha o templo a Afrodite, tinha o teatro, era uma cidade onde havia a presença da autoridade de um prefeito romano, era uma cidade fortíssima no mundo helenístico. Paulo era um viajante, era um artesão, um fabricante de tendas que trazia no coração o Evangelho de Jesus. Mas o que é que ele iria fazer naquela cidade? A verdade é que Paulo ali demora-se 18 meses na sua primeira estadia. Vai trabalhando. Primeiro vai procurar os do seu ofício, os fabricantes de tendas, encontra ali um acolhimento e a partir dali vai trabalhando e pregando, e missionando, e vai à sinagoga, e vai falar num teatro e aos poucos nasce uma comunidade forte em Corinto.

A comunidade é forte, mas precisa de fazer o seu caminho. Imediatamente os Corintos recebem o Evangelho que Paulo lhes transmite mas recebem-no muito com a cabeça de um grego. E cada um deles, no fundo, procura sobretudo dons espirituais. Na expectativa dos Coríntios, era um Cristianismo muito espetacular. Cada um deles queria um dom que os diferenciasse dos outros gregos, dos crentes das outras religiões.

Era uma comunidade mista, mista do ponto de vista também social. Havia pessoas ricas, nós sabemos hoje, na sociologia da comunidade de Corinto. Por exemplo, o tesoureiro da cidade de Corinto converteu-se ao Cristianismo e teve um papel importante, Paulo ficou hospedado em casa dele. Mas ao mesmo tempo havia os proletários, os trabalhadores do porto (porque Corinto era uma cidade portuária), os mais pobres, e havia judeus, e gregos e gentios. Era assim uma mistura – tal como hoje, o Cristianismo era misto, heterogéneo na sua origem, não era de uma classe social, era esta abrangência. E nós sabemos que isso gera tensões.

Porquê? Porque a dada altura Paulo encontra em Corinto isto: havia uns cristãos de primeira e uns cristãos de segunda. Por exemplo, a Eucaristia era celebrada em casa dos cristãos. E tinha de ser gente que tinha uma casa e que tinha uma casa grande para acolher os outros. Primeiro, a Eucaristia começava com uma espécie de ágape fraterno de comidas, de relação, de amizade. Eles primeiro recebiam a sua clientela, a sua parentela e só depois no fim abriam a porta para o ritual, para o sacramento para os mais pobres, criando assim uma espécie de diferença na própria comunidade.

Quer dizer, os desafios que a comunidade de Corinto lança a Paulo são enormes. Paulo escreve-lhes quando está em Éfeso, que fica do outro lado do Mar Egeu, Paulo vai recebendo notícias desta comunidade depois de a ter deixado e quando percebe que há muitos problemas escreve a primeira Carta aos Coríntios. É uma carta para nós muito importante, continua a ser um grande alimento para as nossas vidas.

Mas o coração da Carta aos Coríntios é, de facto, este capítulo 13. Neste capítulo 13, Paulo começa por dizer isto: “Eu vou mostrar-vos um caminho que excede todos os caminhos.“ Um caminho e a palavra : um caminho hyperbolos, um caminho hiperbólico, um caminho maior. Nós estamos no curso da filosofia e começamos pelos gregos. Se há alguma coisa que motivava a sociedade grega era que todos os filósofos, todos os pensadores queriam apresentar um caminho, queriam apresentar um horizonte de vida, de sabedoria. E Paulo também se propõe fazer aquilo que todos os filósofos gregos fizeram: foi apresentar um caminho. Mas qual é o caminho que Paulo apresenta?

Reparem, quando Paulo escreve, Paulo escreve em grego e tem de traduzir a experiência cristã numa linguagem que é a linguagem grega, a linguagem que as pessoas falam, o grego koiné que era o inglês da altura. Paulo vai ter de escolher muito bem as palavras para dizer as coisas novas que ele apreende de Cristo. Paulo, para falar do amor, também tem de escolher palavras. E para dizer “amor”, para expressar a realidade do amor havia três palavras no léxico grego da altura. As mais usadas eram: philia, eros e ágape.  Philia é o amor dos amigos, é o amor daqueles que se olham nos olhos, que são iguais, em que há uma equivalência e é um amor na diferenciação. Eu sou próximo do meu amigo e sou diferente do meu amigo, temos vidas paralelas que se encontram, que se respeitam, que se estimulam, que se querem bem mas são vidas paralelas, mas numa grande proximidade, numa grande afinidade de coração. Era uma palavra que havia, a palavra amizade: philia.

Havia o termo eros que era talvez o termo mais importante para dizer o amor e nós permanecemos com ele falando do amor erótico, do eros. O eros é a relação dos enamorados, dos amantes, que em grande medida é uma relação fusional. Na sociedade grega não era propriamente uma relação de paridade porque a mulher não era cidadã, não tinha direitos políticos. Mas é uma relação fusional, é uma relação com a profundidade que nós sabemos.

Mas havia uma outra palavra menos usada, e é essa palavra que Paulo vai buscar para dizer o caminho de sabedoria que ele aponta, e essa palavra é ágape. Ágape quer dizer amor, quer dizer caridade. Nós traduzimos dizendo: “A caridade é paciente, a caridade é benigna, se eu não tiver caridade nada sou.” Mas como é que se pode traduzir a palavra ágape? Podemos traduzir por caridade, é verdade, e podemos traduzir por amor, é verdade. Mas não é uma caridade qualquer e não é um amor qualquer. O que é que Paulo nos diz com esta palavra?

Quando Paulo diz ágape ele está a pensar no amor desinteressado. O que é o amor agápico? O que é este amor? É o amor que Deus tem por nós, é um amor assimétrico. Isto é, é um amor que eu dou ao outro sem esperar nada em troca. No amor de amizade eu espero em troca, porque os amigos são correspondidos, no amor dos enamorados eles esperam algo em troca, porque amam e são amados. Mas neste amor, neste amor caridade, neste amor agápico nós damos sem querer nada em troca. É um amor completamente desinteressado. Nós podemos até traduzir assim:” Se eu não amar por amar, nada sou.”

Então, o que é que Paulo aponta? Aponta isto: “Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se eu não amar de forma desinteressada nada sou.” Isto é: se eu não amar simplesmente, se eu não amar por amar, nada sou. Ainda que eu tenha o dom da profecia, o dom da ciência, o dom de falar línguas, o dom da eloquência, se eu não amar por amar, se eu não tiver este amor desinteressado, este amor que não espera nada em troca, este amor que se consola apenas amando, eu nada sou. E depois constrói este texto admirável com verbos, mostrando que este amor é sobretudo uma prática, é sobretudo um conjunto de ações. “Paciente, benigno, não é invejoso, não é altivo, não é inconveniente, não procura o próprio interesse, não se irrita, não guarda ressentimento, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”

Paulo apresenta este amor como aquilo que não vai desaparecer nunca. A ciência vai desparecer, e Paulo diz uma coisa temerosa, diz uma coisa assombrosa, diz: “A própria fé vai desaparecer.” Isto é, a própria fé pode fracassar, pode desfalecer. Mas há uma coisa que nunca passará: é esta espécie de amor.

Queridos irmãs e irmãos, porquê esta grande viagem até Corinto? Para dizer que se há alguma coisa que nos define como cristãos não é apenas a fé, é também o amor. Nós somos crentes em Deus por causa de uma fé mas também por causa de uma certa qualidade de amor que cada um é chamado a descobrir, e que para Paulo era fundamental que os Coríntios descobrissem. Eles queriam descobrir o dom das línguas e os mistérios, e isto, e aquilo, e mais este detalhe de Deus e mais aquilo. E Paulo diz:” Meus amigos, o caminho mais importante, aquilo que temos de descobrir é uma determinada qualidade de amor que passa por amar sem porquê, passa por amar sem retorno, passa por amar sem esperar nada, passa por amar por amar simplesmente, e encontrar aí a sua alegria e encontrar aí o sentido da sua vida, e encontrar aí a sua verdade. Isto é de uma exigência enorme para nós, queridos irmãos. Porque nós amamos aqueles que nos amam. Mas que mérito temos? Nós amamos porque sentimos o impulso de amar, porque é bom para nós amar esta pessoa, aquela pessoa. O riso de um amigo, o sorriso de um amigo é a coisa mais bela; a presença dos que nos amam, o abraço dos enamorados é a plenitude. É verdade, é verdade. Mas há um outro amor. E os cristãos falam também de um outro amor.

Não é um amor que nega os outros amores. Não, afirma-os. Mas a par desses amores falam de um outro amor, é este amor ágápico, é este amor que nós chamamos caritas, este amor que nós chamamos caridade.

Hoje a palavra caridade é uma palavra difícil porque apanha pancada de todo o lado. Não queremos caridadezinha. A caridade tornou-se muitas vezes uma caricatura daquilo que ela é, é uma espécie de descargo de consciência e às vezes não quer dizer nada. Ora, não é isso. Nós cristãos somos chamados à descoberta de um outro amor, e este outro amor é amar por amar. É um amor que nos configura ao coração de Deus, é pensarmos na forma como Deus ama. Como é que Deus ama os meus amigos e os meus inimigos? Como é que Deus ama os que eu conheço e os que eu não conheço? Como é que Deus ama aqueles que eu encontro uma única vez na vida e nunca mais vou ver? Como é que Deus ama aqueles que me incomodam? Como é que Deus ama? E eu ser capaz de um amor assim, ser capaz de um amor divino. E é este o caminho da felicidade, diz Paulo, é esta a maneira de tocarmos a eternidade.

Queridos irmãs e irmãos, acolhamos o desafio de Paulo: “Vou mostrar-vos um caminho que excede tudo. Ainda que eu fale a língua dos homens e dos anjos, se eu não amar desta maneira eu nada sou.” Que nós sintamos o desafio muito grande de descobrir que amor é este, que amor divino é este. Porque pode acontecer que tenhamos até muita idade e muito caminho, e muito amor, e muito amado, e verdadeiramente nunca amámos assim, desta maneira. E nós sabemos que aqui a idade muitas vezes é um handicap, porque pensamos ”a idade aumenta a minha capacidade de amar” – às vezes diminui, às vezes bloqueia a capacidade de amar. Nós encontramos nos jovens, muitas vezes, uma capacidade de amar e de entrega muito, muito maior do que aquela do calculismo que depois numa idade mais adulta começa a prender o nosso coração.

Acolhamos o desafio que, através de Paulo, Deus nos faz da descoberta de um amor maior, de um amor por amor, de um amor divino e pratiquemo-lo, que é no fundo esse o desafio que Paulo faz: praticar este amor todos os dias na nossa vida.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Tempo Comum

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2016/01/26 – As mulheres nos Evangelhos e na Igreja

A Irmã Maria Julieta Mendes Dias convida-nos a refletir sobre as mulheres nos Evangelhos e na Igreja. A proposta que nos faz é olhar para a atitude de Jesus para com as mulheres e perceber a reação das mesmas à Boa Nova de Jesus, para tentar compreender a situação das mulheres na Igreja ao longo dos tempos. Será nos dias 26 de janeiro e 2 de fevereiro, às 21h30, na Capela do Rato.

2016/01/25 – Curso “Os Filósofos também falam de Deus“ – São Tomás de Aquino – Marta Mendonça (FCSHUNova)

Está disponível para ouvir a sessão de Marta Mendonça (FCSHUNova) sobre São Tomás de Aquino, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/01/24 - Viver em escuta (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Um dos verbos mais utilizados em toda a Bíblia é o verbo escutar. Desde o início o Povo de Deus, do qual nós somos expressão, se pensou a si mesmo como comunidade de escuta. Se alguma coisa nós fazemos, se alguma coisa nos representa verdadeiramente é este ato que estamos aqui juntos a realizar de auscultação, de escuta daquilo que Deus nos diz. E abrimos o nosso coração, e dispomos o nosso corpo, e organizamos o nosso tempo, e juntamo-nos uns aos outros numa assembleia heterogénea mas fraterna para vivermos este acontecimento da escuta.

Nós precisamos de escutar, cada um de nós precisa de escutar. Precisa de calar as vozes, calar o ruído, calar os embaraços interiores que muitas vezes são uma cápsula de desesperança à nossa vida e nos blindam num silêncio que não é vida. Precisamos de deixar cair essas paredes interiores e nos colocarmos à escuta, à escuta daquilo que Deus nos tem para dizer. Este gesto é um gesto que nos identifica, é um gesto que nos diz quem nós somos, e é um gesto no qual continuamente nos reencontramos. Podemo-nos perder mil vezes mas a Palavra de Deus é a nossa âncora, é o nosso porto. Escutamos esta Palavra e sabemos quem somos.

O Povo de Deus, quando foi para o exílio, perdeu o Livro e perdeu a tradição da leitura comunitária do Livro, da sua escuta. Quando Jerusalém é reconstruída, no tempo de Neemias e de Esdras, pela primeira vez o Povo se junta passado o exílio para escutar a Palavra de Deus. E é um momento, como ouvimos, de comoção extrema: o Povo chorava porque reencontrava naquela palavra a possibilidade de ser. Porque viver não é apenas somar dias ao calendário, viver é encontrar sentido para aquilo que somos em cada instante. Viver é acreditar, viver é apaixonar-se por uma razão, por uma determinada experiência daquilo que é a própria vida. E isso é a palavra de Deus que acorda em nós. Ao escutar aquela palavra o Povo de Deus sabia que a vida não é só silêncio, que a vida não é só ausência. Mas que na vida, na existência, na história nós experimentamos a vinda de Deus, a relação que Deus estabelece com o nosso coração. E isso foi uma revitalização para o próprio Povo.

Queridos irmãos, este momento também nos revitaliza, também nos emociona, também nos toca. Porque nós sentimos (cada um sentirá à sua maneira) porque Deus coloca no nosso coração a palavra que nós precisamos, mas cada um de nós sentirá que Deus fala, que Deus vem ao nosso encontro, e que esta Palavra, que nós mantemos como nosso património comum, não é apenas uma bela palavra que sobrevoa a nossa história. Mas esta Palavra é a nossa massa, é a nossa argamassa, esta Palavra constrói-nos, esta Palavra faz-nos ser a cada instante.

Jesus também viveu como membro do Povo de Deus. Viveu em Sinagoga, isto é, viveu em comunidade de escuta, em comunidade de leitura e de escuta da palavra. Andava por várias sinagogas, e naquele dia foi também à sinagoga da sua terra e, cheio do Espírito Santo, leu a Palavra de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim porque Ele me ungiu.” E depois enuncia a missão messiânica, que é confiada ao Messias e a todo o Povo do Messias: “O Espírito do Senhor está sobre mim para anunciar a boa nova aos pobres, para proclamar a redenção aos cativos, a vista aos cegos, para restituir a liberdade aos que estão oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor.”

E depois, quando Jesus fechou o livro, todos os olhos se colocaram Nele. E aquela Palavra, que é ao mesmo tempo uma Palavra de revelação, foi também naquele momento uma Palavra de escândalo, porque aqueles auditores não estavam à espera do que Jesus vai dizer. Mas Jesus diz: “Hoje cumpriu-se esta Palavra.” E quando Jesus diz isto ensina-nos a ler a Palavra de Deus. E a Palavra de Deus deixa de ser apenas uma palavra para ser escutada. Nós vimos aqui para escutar, mas nós vimos aqui também para dizer: “Hoje cumpriu-se esta palavra que escutámos, hoje cumpriu-se. Cumpriu-se em mim, cumpriu-se no segredo de mim, no silêncio de mim, mas também na motivação, na inspiração que eu passo a transportar. Mas cumpriu-se esta Palavra.”

Porque todos nós sentimos que esta Palavra nos torna missionários, nós torna apóstolos, nos torna enviados, esta Palavra responsabiliza-nos. E escutarmos juntos esta Palavra é uma responsabilidade que nos une, que nos fraterniza a todos, nos torna irmãos de todos, mas também irmãos de todas as mulheres e de todos os homens. Esta Palavra dá-nos uma arte de viver, dá-nos um modo de ser, de atuar, torna-nos especialistas de humanidade assumindo esta missão neste Ano Santo da Misericórdia, assumindo esta missão da misericórdia: anunciar uma boa palavra, uma boa noticia aos pobres; proclamar a redenção aos presos, de tantas prisões; restituir liberdade; fazer ver, dar vista aos cegos; proclamar a misericórdia do Senhor. Que cada um de nós, queridos irmãs e irmãos, se sinta muito empenhado em cumprir, em dar corpo, no fundo, a cada uma destas palavras, com aquela criatividade, com aquela fantasia que a misericórdia, que a caridade de Deus inspira em nós, desafiando-nos a ser protagonistas desta Palavra.

Jesus começou a Sua vida pública em Nazaré, segundo o relato do evangelista Lucas, precisamente lendo a Palavra e acreditando que ela se cumpre. E o primeiro apelo que a escuta da Palavra nos faz é esse: que nós acreditemos que esta Palavra é uma possibilidade concreta e empenhada nas nossas vidas. Não é uma palavra inacessível, não é uma palavra impossível de realizar, é uma palavra que abre o nosso coração, que nos enche de força, de fortaleza para podermos fazer aquilo que está ao nosso alcance, que é sempre o Deus nos pede. Deus não nos pede coisas impossíveis, Deus pede-nos o difícil, o exigente, o hábil, o possível. O pequeno gesto, aquele que está à nossa mão, aquele que está ao nosso alcance, aquele que cabe nas nossas palavras, aquilo que cada um de nós pode fazer, é isso que Deus nos pede. E Deus pede-nos em ordem ao amor, em ordem à relação.

Paulo conta a consequência de uma comunidade que escuta a palavra do Senhor: é uma comunidade que aceita por um lado a pluralidade, a diversidade, e por outro lado a complementaridade. É preciso fazer essa descoberta da paixão pela diversidade mas também pela coexistência, mas também pela capacidade de nos sentirmos complemento uns dos outros, sentirmos que a missão de uns e o dom de uns é uma riqueza para o outro. Por isso não podemos descartar ninguém, não podemos excluir ninguém. Mas temos verdadeiramente de viver inclusivamente.

Saiu agora uma obra de um grande académico norte-americano, Michael Walzer, que escreve do ponto de vista da teologia política. Faz uma leitura da Bíblia. É um tema importante porque, no fundo, trata-se de saber em que medida é que um texto sagrado tão fundamental como o texto judaico-cristão, que é o nosso, é um instrumento a favor da paz. É um instrumento que não é um motor de guerra mas é uma forma de colocar as mulheres e os homens do mundo inteiro ao lado uns dos outros, confiando uns nos outros. E ele, que se diz ateu e faz uma leitura do ponto de vista científico, muito objetiva, da Palavra, diz esta coisa espantosa, de forma deslumbrada com a Bíblia: “Aquilo que nós aprendemos na Bíblia é isto: há várias teologias, há várias doutrinas dentro da Bíblia. E não quer dizer que não exista até a tentação da supremacia, a tentação da violência ou a tentação do nacionalismo que exclui os outros. Mas, no final, na versão final da Bíblia o que é que nós vemos? Vemos que não se escolhe uma teologia apenas, mas deixam-se várias teologias. Não se escolhe um ponto de vista único sobre Deus e sobre o homem, mas nos livros diferentes há tons diferentes, sublinhados diferentes, há modos diferentes de dizer.”

Por exemplo, a Igreja das origens não escolheu um evangelho único, isto é uma coisa espantosa! Havia vários evangelhos, mas a Igreja podia dizer: ”Não, nós só queremos um evangelho. Só queremos João, só queremos Lucas, não queremos confusões, não queremos várias vozes a contar coisas diferentes. Não queremos isso queremos um só.” Não, a Igreja escolheu quatro precisamente para dizer como a polifonia é importante. Nós precisamos de várias vozes, precisamos da complementaridade. E, no fundo, se há algum caminho para a paz, se há algum caminho para a misericórdia é este. Nunca vamos ter todos a falar a uma única voz, todos a dizer o mesmo, todos num caminho único, mas vamos criar pontos de convergência.

De facto, essa imagem que Paulo usa é uma imagem extraordinária: “nem todos têm de ser pé, nem todos têm de ser braço, nem todos têm de ser ouvido, nem todos têm de ser olho.” E, contudo, nós precisamos de pé, de braço, de todos. Precisamos de todos e levar isto no coração, esta necessidade de todos. Dizermos: “eu preciso de todos, eu preciso de todos.” E perceber como esta diferença me enriquece.

Na primeira leitura ainda há dois aspetos que me parece são também desafios para nós. Um é a consagração do tempo. O sacerdote diz ao Povo emocionado pela escuta da Palavra: “Lembrai-vos que hoje é um dia consagrado ao Senhor.” Um dos nossos deveres como cristãos é também consagrar o tempo, tornar o tempo consagrado ao Senhor. E isso está nas mãos de cada um de nós. Como é que nós santificamos o tempo? Estamos aqui juntos, este é um momento de santificarmos o domingo. Mas também podemos encontrar outros gestos de tornar santo o domingo, como as obras de misericórdia. Visitar os doentes, ir ao encontro dos pobres, falar aos esquecidos, dar de comer aos famintos, vestir os nus, acolher, ouvir, aconselhar. No fundo, ser um dia dedicado, consagrado à tarefa messiânica da vida, ser um dia consagrado àquilo que o Espírito Santo sugere a cada um de nós.

Queridos irmãos, nesse sentido lutemos também contra uma cultura que torna tudo igual. O tempo, a semana, os dias parecem um open space mais ou menos sem grandes mudanças. Não, cada um de nós tem de emprestar um cunho próprio ao domingo, que é um dia santificado. Então, cada um de nós tem de dar ao domingo um cariz diferente. Porque é um dia em que descansamos mais, em que cuidamos da nossa própria humanidade, em que relaxamos do ritmo em que vivemos, em que respiramos de outra forma. Tudo isso é importante. Mas que seja também um dia para o dom, um dia para o encontro, um dia para a relação, um dia espiritual. Porque uma das nossas missões é verdadeiramente essa: de sentir que tornamos o tempo um templo, fazermos do tempo um templo.

E outra mensagem que a leitura nos deixa é, de facto, o dever da alegria. O Santo Padre, o Papa Francisco, quando acaba o Angelus, já se tornou uma espécie de refrão, ele diz sempre: “ Buon pranzo e buona Domenica.” Bom almoço e bom domingo. É interessante, e até pode parecer estranho: “então o Papa a desejar bom almoço?” É uma coisa que normalmente não se espera.

Mas é isso que encontramos no Livro do profeta Neemias quando ele diz: “Ide para casa, alimentai-vos, fazei uma boa refeição, tomai bebidas doces e reparti com aqueles que não têm nada preparado. “ Isto é: “Bom almoço, bom almoço.” Isto é, experimentai a alegria. A alegria das coisas que nos alimentam, não são só comidas doces, há tanta doçura no mundo que nos alimenta. “Alimentai-vos, regozijai-vos, experimentai a alegria.” É muito importante, queridos irmãs e irmãos, sentirmos a alegria como um dever, como um dever nosso. Não é apenas uma eventualidade para a nossa vida. Podemos estar, ou não, mais chouchinhos ou mais entusiasmados. Não é isso. Nós temos o dever da alegria. E esse dever é um dever que em cada domingo sai reforçado, sai fortalecido.

Queridos irmãs e irmãos, estamos a começar o ano e, de certa forma, as leituras estão a mostrar-nos o caminho, as atitudes fundamentais. Como é que vamos viver este ano? E, de facto, viver em escuta, cumprindo a Palavra, tornando-a um caminho na nossa vida, aceitando que temos de crescer, aceitando as incitações que domingo a domingo, dia a dia, Deus faz a cada um de nós. Crescer com isso, criar um programa pessoal, familiar, de amigos, de comunidade, como depois também vamos ter para viver este Ano Santo da Misericórdia para que seja, de facto, um empenho de todos. E como diz a leitura: que a alegria do Senhor seja a nossa fortaleza.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Tempo Comum

2016/01/21 - Percurso de Preparação para o Crisma

Mais informações aqui.

2016/01/18 - Curso "Os Filósofos também falam de Deus" - Aristóteles - António Caeiro (FCSHUNova)

Está disponível para ouvir a sessão de António Caeiro (FCSHUNova) sobre Aristóteles, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

filosofosCapelaRato_noticia

2016/01/11 - Curso "Os Filósofos também falam de Deus" - Platão - José Pedro Serra (FLULisboa)

Está disponível para ouvir a sessão de José Pedro Serra (FLULisboa) sobre Platão, no curso livre Os filósofos também falam de Deus.

O curso “Os filósofos também falam de Deus”

A Comunidade da Capela do Rato mostrou grande interesse pelo Ciclo de Conversas sobre Deus. Pensámos que seria pertinente retomar o tema, colocando-o num outro registo – a filosofia – e seguindo um outro método – o curso livre. Aproveitando a disponibilidade generosa de um grupo de professores universitários, seleccionámos doze pensadores que gostaríamos de apresentar, fomentando o diálogo com os mesmos. Não foi possível incluir todos os nomes que consideramos relevantes mas a selecção feita contempla posicionamentos muito diversos, suficientes para se ficar com a ideia de que “Os filósofos também falam de Deus.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira
( Coordenadora científica )

Plano do curso

Autores abordados, oradores e calendário:

Platão – José Pedro Serra (FLULisboa) 11 Janeiro
Aristóteles – António Caeiro (FCSHUNova) 18 Janeiro
S. Tomás – Marta Mendonça (FCSHUNova) 25 Janeiro
Santo Agostinho – Pe. Henrique Noronha Galvão (UCPLisboa) 1 Fevereiro
Leibniz – Adelino Cardoso (FCSHUNova) 15 Fevereiro
Espinosa – Maria Luísa Ribeiro Ferreira (FLULisboa) 29 Fevereiro
Kant – Irene Borges-Duarte (UÉvora) 7 Março
Hegel – Manuel José Carmo Ferreira (FLULisboa) 14 Março
Nietzsche – Viriato Soromenho Marques (FLULisboa) 4 Abril
Paul Ricoeur – Carlos João Correia (FLULisboa) 11 Abril
Simone Weil – Maria José Vaz Pinto (FCSHUNova) 18 Abril
Agostinho da Silva – Paulo Borges (FLULisboa) 2 Maio

O Curso Os Filósofos também falam de Deus terá uma sessão final em que será analisado o argumento ontológico, tal como foi apresentado por Santo Anselmo e por Descartes. Os conferencistas serão os Professores António Pedro Mesquita e Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Esta 13ª sessão será no dia 9 de Maio, no horário habitual.

Desenvolvimento das sessões: apresentação teórica, seguida de debate.

Indicações Bibliográficas:

Histórias da Filosofia:

  • François Châtelet,(org.) História da Filosofia, Lisboa, D. Quixote, (8 vols.), 1974
  • Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental, Lisboa, Temas e Debates, 2003
  • Juan Manuel Navarro Cordon e Tomas Calvo Martinez, Historia da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2014

Dicionários de Filosofia:

  • José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, Lisboa, D. Quixote, 1978
  • LOGOS- Enciclopédia Brasileira de Filosofia, , (8 vols.) Lisboa, Verbo, 1995

Outras informações

As sessões do curso terão lugar nas instalações da Capela do Rato, às 2ª feiras, das 18.15 às 20.00 horas, nas datas indicadas acima. O curso terá um número limitado de participantes e a inscrição foi feita por ordem de entrada.

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2016/01/10 - Somos filhos amados (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Nesta cena do Batismo, que este ano nós lemos na narrativa do evangelista S. Lucas, o cenário é muito importante. Porque João Batista, de forma deliberada, quis construir um lugar simbólico. Então, possivelmente, ele que era ligado à dinastia sacerdotal (o seu pai segundo o próprio S. Lucas nos conta, Zacarias, era um sacerdote do templo), ele que vinha dessa linhagem dinástica, afastou-se de Jerusalém e foi para as margens do rio Jordão.

O rio Jordão não é um lugar inocente para João escolher, porque o Povo de Deus entrou naquela terra pelo rio Jordão. O rio Jordão foi a porta de entrada daquela terra. Quer dizer, foi o momento zero daquela história. Antes de tudo, de tudo o que se construiu, de tudo o que se fez, antes mesmo da cidade de Jerusalém e do Templo e de toda a máquina sacerdotal, o rio Jordão, aquele humilde rio, ali naquela planície sem tamanho, aquele humilde fio de água foi o lugar por onde o Povo de Deus passou para entrar na terra prometida.

Então o quilómetro zero é a possibilidade de dizer assim: “Vamos rebobinar o filme, vamos passar a história para trás, vamos começar de novo.” E, no fundo, a proposta de João Batista, que encontrava um eco nas aspirações disseminadas no Povo de Israel naquela época, era a construção de uma alternativa. No fundo Israel estava sobre o domínio Romano, não havia grande esperança de uma libertação e de uma vivência autêntica da própria palavra. Havia um messianismo, uma expetativa messiânica difusa e João sentiu-se chamado a construir uma alternativa.

Nós hoje conhecemos vários movimentos batistas e conhecemos, na história de Israel deste tempo, várias tentativas para construir uma alternativa ao modelo reinante em Jerusalém. João Batista também era isto, era uma pessoa, um carismático que se sentia chamado a um viver alternativo. Nesse sentido, S. Lucas não nos fala disso na passagem que nós ouvimos mas, quer a dieta de João Batista, ele se alimentar de mel e gafanhotos, quer a sua forma de vestir com uma pele de animal, um cinturão, é de facto alguém que quer comer e vestir de uma forma completamente diferente. Isto é, é alguém que quer instaurar uma rutura simbólica. E este desejo de João Batista é também um desejo partilhado porque muitos vão até ele para serem batizados por ele.

Este é um bocado o clima: há muitas expetativas no ar, há muito desejo de mudança, de construir um caminho diferente, há muitos sonhos. O próprio João Batista, que começa por encabeçar este movimento de rotura, a dada altura ele congrega em torno a si imensas expetativas: “Será ele ou não o Messias?” é a pergunta que abre a leitura do Evangelho que hoje nós lemos. Mas João Batista projeta mais longe a própria expetativa e diz: “há de vir um profeta escatológico. Ele batizará não na água mas no fogo, Ele será o profeta do fim dos tempos.” E também atira mais longe a esperança. É um dos trabalhos do profeta pegar nas expetativas do presente e atirá-las para um futuro maior, para uma escala maior, para uma dimensão mais larga.

E é neste contexto que aparece Jesus. E, sem dúvida, este contexto foi um contexto favorável a Jesus. No sentido de que as expetativas que primeiro se colocaram sobre João Batista foram depois transferidas para Jesus, os discípulos de João Batista foram depois discípulos de Jesus, os sonhos que primeiramente se viveram ali, naquela espécie de rebobinar da história ”voltemos ao princípio, comecemos de novo”, também foram potencializados por Jesus.

Mas o que é que foi decisivo para Jesus? O que é que fez Jesus ao descobrir-se chamado para aquela missão messiânica? Qual foi o seu clique, a sua luz, a sua iluminação? O que é que Lhe deu força para ser? O que é que O confirmou verdadeiramente? E é, no fundo, a pergunta que nós podemos devolver a cada um de nós: O que é que nos confirma? O que é que nos dá força para agir? O que é que nos empurra? O que é que nos motiva para os trabalhos de todos os dias, para as pequenas e grandes decisões de todos da nossa vida? O que é que nos atira mais para a frente?

Se nós formos responder a isto, muitas vezes até são coisas que se revelam infundadas, pensávamos que era uma coisa e depois saiu-nos outra, quisemos usar uma esperança que depois vimos que não era tão esperança quanto isso. Esta reflexão sobre o que é que determina a nossa vida é uma reflexão, eu diria, fundamental, alicerçante daquilo que somos. E aqui importa olhar por os olhos em Jesus. Jesus é mais um nesta fila para se batizar por João Batista, mas naquele momento alguma coisa de fundamental acontece. Os céus abrem-se e Jesus escuta esta voz. Se calhar os que estavam juntos também puderam escutar, mas é claramente uma voz dirigida para Jesus, porque é uma voz que diz “Tu”, por isso é sobretudo para Aquele. E o que é que Jesus ouve? “Tu és o Meu filho muito amado, em Ti coloco o Meu agrado, a Minha complacência, o Meu amor, a Minha estima, o Meu elogio, a Minha esperança, a Minha expetativa, o Meu deleite, é em Ti que Eu coloco o Meu coração. Tu és o Meu filho, é em Ti que Eu coloco o Meu coração.”

É claro que o ambiente de expetativa messiânica que Jesus encontrou foi muito importante para o pregador que Jesus foi, para o profeta, para o taumaturgo, para o anunciador do Reino que Jesus foi. Isso tudo foi o contexto político, o contexto sociológico, o contexto social.

Mas se nós queremos perguntar: Qual é o segredo de Jesus? O que é que o empurrou para aquela vida? O que é que o fez sair de Nazaré para os caminhos da Galileia? O que é que O fez assumir plenamente o Seu destino? Eu não teria dúvidas a dizer que foi esta experiência profunda de que Ele é o Filho, de que Ele é o Filho amado, e que Nele Deus coloca o Seu deleite, o Seu coração, o Seu agrado. No fundamento de toda a vida de Jesus está esta certeza de amor, de ser amado. E uma certeza de que fomos amados é uma força para sempre, é uma fortaleza para sempre.

Isto na vida de Jesus é muito claro desde o princípio. E é interessante que nós ouvimos isto no Batismo de Jesus e depois vamos ouvir no momento da Transfiguração, quando o destino tremendo, exigentíssimo de Jesus, aquele desfecho que é a Cruz se desenhava, ouve-se de novo a voz do céu: “Tu és o Meu filho, em Ti coloquei o Meu coração.”

Queridos irmãos e irmãs, o que é que nós somos aqui? Qual é o sentido de estarmos aqui juntos? Porque é que o Cristianismo se torna razão da nossa vida? Nós não somos apenas simpatizantes, partidários, militantes de Jesus. Nós estamos aqui porque cada um de nós faz aquela experiência que Jesus fez. Nós, como depois dirá S. Paulo, somos feitos filhos no Filho. Em Jesus nós descobrimo-nos filhos amados de Deus, e é essa a experiência fundamental.

É claro que os cenários podem ser uns ou outros, mais favoráveis ou mais desfavoráveis. Mas o fundamental é que cada um de nós sinta, oiça, escute no fundo mais silencioso da sua alma Deus a dizer: “Tu és o Meu filho, tu és a Minha filha, amados, em ti coloco o Meu coração.” Cada um de nós é depositário desse amor, e é a certeza desse amor a alavanca da nossa vida, a força que nos sustem, a porção de espírito necessária par nós podermos ser. Deus derrama o Seu Espírito em Jesus quando derrama o Seu amor. E também em nós. Nós somos recetáculos do Espírito, o Espírito derramado em nós porque esse amor está presente nas nossas vidas.

Por isso, nesse discurso inicial que S. Pedro há de fazer, e que nós proclamamos hoje na leitura do livro dos Atos dos Apóstolos, S. Pedro explica assim o fenómeno Jesus, diz ele: “Ele passou pelo mundo fazendo o bem porque Deus estava com Ele.” E é porque Ele está com Jesus que Jesus é Jesus. Como é porque Deus está connosco, porque nós temos a memória desse amor viva em nós, que nós somos capazes de ser, que nós somos capazes de vencer a noite, vencer a dificuldade, vencer a dúvida, vencer o cerco de tudo aquilo que afunila a vida, de tudo aquilo que nos tira o tapete. Nós ganhamos a força na certeza de que somos filhos, e somos filhos amados.

Nós vemos isso, por exemplo, na história de pessoas que resistem a coisas inimagináveis. Por exemplo, uma pessoa que consegue num campo de concentração não ser completamente aniquilado mas consegue manter a esperança. Qual é o segredo daquela pessoa? Se formos analisar, o seu segredo é uma imagem de amor que a pessoa tem dentro de si, que internalizou, que experimentou e que vai ser a sua força para sempre, para sempre. E não há ameaça nenhuma, não há peso nenhum capaz de esmagar essa experiência fundamental.

Queridos irmãos, que neste Ano Santo da Misericórdia cada um de nós sinta o desafio muito grande de reforçar, de avivar, de iluminar dentro do seu coração a experiência fundante do amor de Deus. Este é o ano para nós ouvirmos a voz do Pai: “Tu és o meu filho, tu és a minha filha muito amada.”

Contrariando em nós tantas barreiras, tanto desamor, acharmo-nos órfãos de Deus, acharmos que Deus não está presente, que Deus no fundo não nos ama, que Ele tem razões para não gostar de nós, ou tem razões para castigar-nos, ou tem razões para voltar-nos as costas. Desmentirmos estas imagens, estes caminhos labirínticos das culpabilidades que não levam a parte alguma e colocarmos no centro da nossa experiência religiosa a experiência do amor, de que somos amados de uma forma incondicional, de uma forma primeira. E que esse amor nos dê forças, nos dê criatividade, nos dê emoção, nos dê alegria, nos dê as competências necessárias para afrontarmos os trabalhos da vida.

É muito belo isto que ouvimos na primeira leitura do profeta Isaías a falar da missão do Messias. No fundo o que é que o Messias vai fazer? O Messias vai como um relojoeiro, como um ourives, vai restaurar os traços pequeninos e frágeis da vida, vai cuidar da vida, e vai dar à vida que está quase a deslaçar-se uma nova oportunidade. Vai amparar, vai proteger, vai avivar, vai confirmar. E é, no fundo, isso que nos é pedido a nós, esse trabalho que a vida nos pede de sermos ourives, miniaturistas a restaurar os pequenos laços quebrados da vida. Nós só vamos ter força para isso se tivermos bem presente em nós a certeza de que somos, como dizia o verso da Sophia de Mello Breyner Andersen, a certeza de que somos “olhados, amados e conhecidos.” Esta certeza que fez a diferença na vida de Jesus é esta certeza que faz a diferença na vida de cada um de nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Festa do Baptismo do Senhor

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2016/01/07 - Percurso de Preparação para o Crisma

Mais informações aqui.

2016/01/03 - Desejo de adorar (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Nós celebramos hoje a grande solenidade da Epifania do Senhor, da Sua manifestação. Falar da Epifania é falar do mistério de Cristo, do programa de Cristo, da novidade que Ele introduz na própria história. É muito importante olharmos para a festa da Epifania, como a liturgia nos aconselha, com a ajuda do apóstolo Paulo, que foi um dos primeiros cristãos a trabalhar este tema da Epifania de Jesus e o caráter transfronteiriço da mensagem cristã, da proposta que Jesus vem fazer.

S. Paulo na Carta aos Efésios faz uma espécie de resumo daquilo que hoje nós, simbolicamente, também celebramos. Ele diz: “Foi-me revelado o mistério de Cristo.” E o mistério de Cristo é este: “Os gentios recebem a mesma herança que os judeus, pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa em Cristo por meio do Evangelho.” Isto que parece uma coisa muito simples é uma revolução completa. É a emergência de uma realidade nova que, de certa forma, nós ainda estamos a apanhar, estamos a colher, com muita dificuldade, porque é mesmo assim.

Mas ainda estamos longe de perceber a radicalidade desta palavra porque, durante séculos, a história do Povo de Deus era uma história que unia a Revelação à construção de uma nação, de um país. Então, toda a promessa de Deus era lida em chave nacionalista. Isto é, esta palavra é uma palavra que pertence a Israel, pertence àqueles que geneticamente são deste povo. Todos os outros são gentios, são pagãos, não têm acesso à manifestação de Deus. Ora, Jesus vem como homem, como pessoa humana, para tornar a Salvação de Deus acessível a todos. Jesus vem para dizer a todos que é possível, que é para eles que Deus se manifesta, que Deus Se revela.
Ora, isto não é fácil porque das primeiras palavras que nós aprendemos a dizer é: “Meu, é meu, é meu.” E também em relação a Deus: “É o meu, é o meu Deus, é a minha maneira de ver, é a minha oração, é a minha tradição religiosa.” E, de repente, nós estamos a aprisionar Deus, a aprisionar Jesus.

Nós estamos a celebrar a festa da Epifania, desta universalidade da salvação que Jesus vem revelar. Como é que nós, Igreja, vivemos essa universalidade? Muitas vezes nós construímos igrejas, e dentro das igrejas capelas, e dentro das capelas capelinhas. Porque a nossa tendência é essa, é de barricar, de enclaustrar, de fazer uma trincheira, de dizer: “É meu, é minha.” E ficar apenas por aí.

Lembro-me do ano passado uma homilia do Papa Francisco, uma homilia agitadora como é a palavra do Santo Padre, uma palavra profética, ele dizia isto: “Há dois modelos de Igreja: o modelo daqueles que procuram sobretudo alimentar, confortar, consolidar os que já estão dentro. E, então, nós construímos uma espécie de cintura que nos isola do resto e procuramos, sobretudo, fortalecer a fé dos que já estão, dos que já pertencem. “ E o Papa diz: “Uma Igreja assim não se distingue nada de um clube.” Daqueles clubes muito reservados, com muito pedigree. Uma Igreja assim não se distingue de um clube. E há um outro modelo, diz o Santo Padre: “Que é daqueles que dizem: «É bom estar dentro, é bom já pertencer, mas nós temos de sair para fora, temos de ir ao encontro dos que ainda não estão aqui» E essa, diz o Santo Padre, é uma Igreja missionária, é uma Igreja em saída, é uma Igreja que não fica no conforto das suas certezas, das evidências já conquistadas, já reconhecidas. Mas vai partir pedra, mas vai fazer caminho, mas vai ao encontro de um mundo que é diverso, que é impuro, que não é aquele que nós idealizamos, que tem tantos contrastes, que tem tantos paradoxos mas, no fundo, é um mundo que Deus ama, é um mundo que precisa ser salvo.”

Isto para nós é uma responsabilidade muito grande, queridos irmãos, porque também nós somos artesãos da Igreja, somos construtores da Igreja. E podemos criar segredos, fazer disto uma espécie de segredo inútil que se transmite e que morre aqui, ou podemos fazer de Jesus, daquilo que a Encarnação de Jesus significa, podemos fazer Dele uma epifania, uma manifestação, sabendo que esta boa-nova tem de chegar para lá, para lá das nossas fronteiras.

No Evangelho de S. Mateus emergem dois personagens e, no fundo, são dois tipos humanos, são dois tipos de atitude, podemos tanto ser um ou ser outro. Temos o rei Herodes. O rei Herodes não sabe nada, ignora tudo, a única coisa que ele sabe é o seu poder, é que ele tem de sobreviver no poder, que ele tem de continuar. Ele não sabe que o Menino nasceu, ele não sabe nada da Estrela, ele tem de perguntar aos outros, tem de ler os grandes livros, ele não sabe que o Messias vai nascer em Belém, ele não sabe nada, só sabe de si.

E temos este outro tipo humano que é esta figura dos Magos. Os Magos que vivem longe, que são aquelas pessoas curiosas pela vida, que mantêm uma disponibilidade para se deixar surpreender. No fundo, é preciso ter um coração pobre, é preciso não fazer do seu ego o seu trono, para ainda abrir uma janela e olhar para as estrelas e perguntar o que é que aquelas estrelas quererão dizer. E estes homens estão disponíveis para fazer caminho, para fazer estrada. Um rei é prisioneiro da sua corte, do lugar onde se senta. O Rei Mago é um nómada, é alguém disponível para sair da sua casa, sair do seu palácio, fazer uma viagem.

Uma viagem da qual não há muitas certezas, porque se nos deixamos guiar por uma estrela é uma viagem muito aberta, muito pobre ao mesmo tempo de sinais, é uma espécie de alinhavo, não é um traço forte. Mas eles estão disponíveis para ir adorar uma coisa que está longe deles, e não apenas adorar o seu umbigo, adorar a sua imagem. Estes são capazes de ir mais longe. E quando chegam, perante uma criança, ajoelham-se e adoram.

O que é que nós adoramos normalmente, o que é que nós consideramos? Uma pessoa tem de dar o litro para merecer a nossa admiração, para merecer a nossa confiança tem de fazer uma coisa verdadeiramente excecional, aí, nós sim reconhecemos. Estes põem-se de joelhos perante uma vida que não fez nada, perante uma vida que é, perante aquilo que é o mistério desabalado da própria vida. De joelhos a contemplar o Menino, não contemplam coisas, atos, monumentos, ações, glórias, saberes, conhecimento, não, ajoelham-se perante a vida a vida trémula, a vida que não é nada, a vida frágil, a vida que tem ali todo o seu mistério, a vida no ato puro de ser.

Estão ali de joelhos e partilham com aquela vida as suas riquezas, os seus tesouros, aquilo que trazem. Tesouros sem dúvida simbólicos, para perfumarem a vida: o ouro, o incenso, a mirra. Os grandes tesouros do mundo antigo e que têm a ver com o mundo real, com o mundo sacerdotal, com o mundo profético, com as coisas mais preciosas daquele mundo e daquela cultura. E eles partilham os seus tesouros e depois partem, voltam ao seu caminho.

Nós sabemos que Herodes só pode fazer o contrário. Herodes só pode determinar a matança dos inocentes porque Herodes não suporta o outro como uma ameaça, ele não suporta não ser o centro e por isso há de mandar matar todos os meninos que nasceram naquela época.

Os Magos vêm, adoram a vida e partem. São dois tipos, são duas atitudes perante a vida e a verdade é que nós encontramos ambas dentro de nós, a rivalizar dentro de nós. O necessário é que nos tornemos reis magos ao longo deste ano, deste Ano Santo da Misericórdia, tendo a capacidade de ir mais longe, tendo a capacidade de ser guiados pelo alto, tendo capacidade de nos desinstalarmos, de fazermos a grande viagem e de retornarmos depois à nossa casa, ao nosso coração por um outro caminho. Isto é, voltar à nossa casa transformados pela própria viagem porque aquilo que vimos, aquilo que fizémos transformou completamente a nossa vida.

Queridos irmãos, é a grande festa da Epifania, que responsabilidade nos é colocada nas mãos, que responsabilidade tornarmo-nos nós agentes desta Epifania. Deixarmos para trás o Herodes que subsiste, que sobrevém sempre dentro de nós e sermos capazes de adotar a atitude dos Magos, e aprender com eles este desejo de adorar. O primeiro mandamento é adorar a Deus , amar e adorar a Deus sobre todas as coisas. E este ter uma coisa para adorar na vida é um bem sem tamanho.

Muitas vezes nós vivemos uma vida só mesquinha, só conseguimos gostar ou não gostar, ou querer ou não querer – é a posição de Herodes. Estes que vêm de longe são capazes da adoração. O Senhor nos dê um coração capaz da adoração. Isto é, da contemplação do seu mistério, do fantástico reconhecimento da sua presença no mundo, nas nossas vidas.

Pe. José Tolentino Mendonça, Epifania do Senhor

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2016/01/01 - Sintamo-nos abençoados (homilia)

Queridos irmãs e irmãos,

Neste primeiro dia do ano celebramos Maria com um título especial, um título, se quisermos, até radical, porque a saudamos como Santa Maria Mãe de Deus, theotókos. Foi um caminho que a própria Igreja fez e uma discussão muito grande num concílio. A pergunta era se não era excessivo chamar Maria Mãe de Deus, chamar uma pessoa humana mãe do próprio Deus. Isso parece um paradoxo total, uma coisa nunca vista.

Mas o que celebramos em Maria, a sua maternidade divina, é também a visão cristã sobre a pessoa humana. No fundo do Cristianismo há um otimismo, se quisermos radical, em relação àquilo que a pessoa humana é capaz. O Cristianismo o que é que diz? Que cada ser humano é capaz de gerar o divino, de trazer em si o divino. Cada ser humano é capaz de ser cúmplice do próprio Deus, é capaz de ser a Sua imagem e semelhança, é capaz de ser o Seu canal de transmissão, é capaz de ser a Sua presença no mundo, é capaz de ser o grande sinal de Deus na história.

A esta crença liga-se a bênção. Neste primeiro dia do ano as leituras concentram-nos em torno à bênção. Deus diz a Moisés e a Aarão que abençoem os filhos de Deus. E o que é abençoar? A própria palavra benedire quer dizer: dizer bem, dizer o bem que cada pessoa é, dizer o bom que cada pessoa é. E como isso é fundamental para a vida! É o próprio Deus que nos abençoa, que diz o bem que existe em nós. É tão bela a bênção que Deus ensina a Aarão e a Moisés a atribuírem ao Povo de Deus: “O Senhor te abençoe e te proteja, o Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável, o Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz.”

Neste início do ano, queridos irmãs e irmãos, sintamo-nos abençoados, sintamos que somos filhos, filhos amados de Deus, confiemos no bem que Deus vê em nós. Simone Weil dizia que: “Mais importante do que termos fé em Deus é compreendermos que Deus tem fé em nós.” Esta fé que Deus tem na nossa Humanidade é a âncora, é a alavanca que nos transforma. Sintamo-nos por isso abençoados, vencendo todo o sentimento interior de orfandade, de distância, de exclusão. Sintamo-nos verdadeiramente filhos, isso que S. Paulo também hoje nos diz na Carta aos Gálatas: “Vós não sois escravos, vós sois filhos. Assim como filhos amados.” Aquilo que Deus disse no Batismo a Jesus “Tu és o Meu Filho muito amado, em Ti coloco o Meu amor.” é, no fundo, isso que Deus diz a cada homem, a cada mulher: “Tu, Meu filho muito amado.” E isso é a verdadeira bênção, a verdadeira bênção.

Às vezes na vida nós caminhamos mais sobre peso, sobre a sombra da maldição do que sobre a luz de uma bênção. Precisamos de ser abençoados, precisamos que a bênção nos seja recordada, nos seja lembrada, precisamos que nos digam o quanto somos queridos, amados por Deus, o quanto fazemos parte do Seu projeto qualquer que seja a nossa situação, a nossa trajetória, o nosso caminho. Sintamo-nos abençoados, abençoados por Deus.

Hoje nós celebramos a quadragésima nona jornada de oração pela paz. O Santo Padre, o Papa Francisco, na mensagem deste ano coloca o ponto de atenção na necessidade de vencermos a indiferença. Ele diz: “Vence a indiferença se queres construir a paz.” E, de facto, é a vitória sobre a indiferença que nos dá razões de alegria. Por exemplo no Evangelho, os pastores, eles estavam nos seus rebanhos, na sua vida, quando foram chamados para ir ao presépio. Imagine-se que eles não iam, era menos uma razão de esperança, de grande esperança, para eles.

Tantas vezes nós perdemos a esperança, a nossa vida como que se desvitaliza, como que fica amorfa, cinzenta, encapsulada. Porquê? Porque construímos um muro de indiferença que não quebramos, e por isso nada nos toca também, nada nos redime. Às vezes não queremos sofrer: “Ah, eu vou envolver-me, vou saber, vou fazer, não quero sofrer, não quero ter trabalhos.” Há uma maneira de não sofrer, é não amar, mas isso também não é humano.

O Santo Padre, nesta Carta que era importante que todos lêssemos (ela está disponível na internet e noutros meios), que começa por dizer isto, é a primeira frase da mensagem: “Deus não é indiferente.” Deus não é indiferente, Deus não é indiferente aos nossos sofrimentos, à nossa esperança, à nossa humanidade, pelo contrário Deus é parcial, Deus toma partido pela pessoa humana, Deus vem ao encontro da pessoa humana. O Santo Padre, fazendo o diagnóstico do mundo presente, diz: “Talvez o grande pecado do nosso tempo seja de facto a indiferença.” Numa sociedade da informação em que temos o conhecimento hora a hora, minuto a minuto, nesta aldeia global em que o mundo se tornou, a verdade é que também cresce uma indiferença. Vemos as imagens mas elas já não nos tocam, estamos como que anestesiados perante aqueles que nos rodeiam, perante a situação de tantos. Vencer a indiferença é o caminho para a construção da paz.

Mas como é que se vence verdadeiramente a indiferença? O Santo Padre, na sua mensagem, liga esta jornada de oração pela paz ao Ano Santo da Misericórdia que nos estamos a viver. Ele diz que: “A verdadeira vitória sobre a indiferença é aquela que acontece num coração misericordioso.” Neste ano de 2016 nós somos chamados a redescobrir a misericórdia. Cada um de nós, cada um de nós. O Santo Padre abriu as portas em Roma, na Basílica, mas aquilo é só um sinal de uma coisa que tem de acontecer no coração de cada um de nós. Abramos as portas do nosso coração e sintamos este desafio que a Igreja nos coloca este ano de cada um de nós redescobrir a misericórdia.

O Santo Padre diz uma coisa muito preciosa e precisa, diz ele: “Cada cristão torne a misericórdia o seu programa de vida.” Cada cristão torne a misericórdia o seu programa de vida. Neste ano de 2016, a misericórdia seja o nosso programa de vida. Que cada um de nós pergunte: o que é a misericórdia? O que é a misericórdia na minha vida? Eu já sei o que é a misericórdia? Eu pratico a misericórdia? O que é que eu tenho a aprender sobre a misericórdia? E como é que a misericórdia se pode expressar, na vida que eu tenho? Na humanidade que eu sou como é que ela se pode expressar?

Que a misericórdia seja a grande escola da paz, uma paz interior que começa no nosso coração, mas uma paz que sai para fora, uma paz que inunda a nossa vida, uma paz testemunhada na cidade, uma paz com uma dimensão política, uma dimensão económica, pedagógica, de relações. Que a misericórdia seja o nosso empenho neste ano de 2016. E, se assim for, que ano de esperança nós estamos a começar, que ano de alegria nós estamos a viver!

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus

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