Vemos a indignação, a revolta, a explosão de ódio qual fogo a pegar nas ruas dos Médio Oriente e, um pouco, por todo o mundo. Vivemos inseguros, ansiosos, perplexos, atormentados. Esta explosão de ódio e de crueldade, por radicais grupos terroristas, assinala, brutalmente, que ali no Médio Oriente permanece uma ferida aberta, a sangrar, a ferida do Povo Palestiniano encurralado, ocupado, cercado, fermentado em sua revolta pelo fundamentalismo islâmico. Precisamos de estar bem atentos a nós mesmos para não nos deixarmos contagiar por sentimentos antissemitas e islamofóbicos. Vivemos tempos em que o preconceito e o medo do diferente podem ser fogo que se propaga.

Não podemos tolerar que a afirmação de um povo, palestiniano ou israelita, se faça à custa do sacrifício, da ocupação e da eliminação do outro. Bem sabemos que o caminho da paz e da reconciliação foi sempre abortado por radicalismos de um lado ou do outro com, aqui e além, corajosos passos no caminho da paz, logo boicotados. No presente a paz parece impossível. Travar, com todos os meios possíveis, o avanço da explosão e da contaminação do ódio e da violência, manter necessárias pontes de diálogo para fins humanitários e proteção dos reféns, conter a resposta militar israelita, exige coragem e firmeza política, sabedoria diplomática e infinita paciência na capacidade de dialogar entre fogos opostos. Enquanto os exércitos se alinham, a diplomacia procura dialogar. E os crentes pedem a Deus o dom da paz, a começar dentro de si mesmos, pacificando e iluminando as zonas obscuras e violentas de suas vidas.

Quarta-feira passada, na audiência geral em Roma, pediu o Papa Francisco a governantes, crentes, cidadãos, a todos os homens e mulheres de boa vontade:

«As vítimas estão a aumentar e a situação em Gaza é desesperada. Por favor, faça-se tudo o que for possível para evitar uma catástrofe humanitária!

«É preocupante o possível alargamento do conflito, quando já estão abertas tantas frentes de guerra no mundo. Que as armas silenciem! Que se ouça o grito de paz dos povos, das pessoas, das crianças! Irmãos e irmãs, a guerra não resolve nenhum problema, apenas semeia a morte e a destruição, aumenta o ódio e multiplica a vingança. A guerra cancela o futuro. Exorto os crentes a estarem só de uma parte neste conflito: a da paz; mas não com palavras, com a oração, com a dedicação total» (Papa Francisco, audiência geral de 18 de outubro).

A única parte em que nos é legítimo estar neste conflito, é a da paz. «Com a oração, com a dedicação total». E convoca a Igreja para, dia 27, sexta feira, expressar um dia de oração e jejum pela paz.

Somos convocados, continuamente, a rezarmos pela paz na Terra Santa, sem esquecer a Ucrânia, a Síria, a Líbia, o povo arménio em Nagorno-Karabac, o Iémen, Myanmar… Rezar pela paz, antes de mais pacifica-nos, desarma-nos. Rezando, colocamos nas mãos de Deus os nossos sentimentos, mesmo aqueles mais violentos e obscuros. A oração é uma revelação do coração. Uma expressão de solidariedade e de compaixão com quem sofre, com quem é vítima do mal. É uma expressão de amor fraterno, de bem querer, pois fazemos nossas as alegrias e as dores dos irmãos. Na oração nada exigimos a Deus; sintonizamos o nosso querer, a nossa vontade, o nosso desejo com a vontade de Deus pelo Espírito que geme em nós. Sim, rezar pela paz é um gesto de amor, de compaixão, de comunhão fraterna: «Por amor dos meus irmãos e amigos, proclamarei: “A Paz esteja contigo!”. Por amor da casa do Senhor, nosso Deus, pedirei o bem-estar para ti» (Sl 122,7-9).

No meio de políticas dominadoras e de tiranos opressores, inesperadamente podem surgir novas lideranças políticas e militares que abrem, entre os povos, caminhos de paz e de diálogo. Onde havia exílio e prisão, surge a permissão para regressar à pátria. Onde havia choro e silêncio, as estradas no deserto alargam-se para passar um povo de novo livre. A ordem internacional não está condenada à tirania; pode mudar, e mudar para melhor, com o aparecimento de lideranças visionárias, portadoras de um futuro de convivência e de diálogo entre os povos. O texto hoje lido na primeira leitura, do profeta Isaías, anuncia o aparecimento de Ciro, rei dos Persas, convocado por Deus para devolver à pátria o povo de Israel exilado. Qual ungido, a quem Deus conduz pela mão, tem a missão de desarmar os poderosos que oprimem os povos: «fazer cair as armas da cintura dos reis, para abrir as portas à sua frente, sem que nenhuma lhe seja fechada». A Escritura atribui a Ciro o nome «ungido» reservado ao Messias: que atrevimento! A leitura hoje do profeta Isaías reforça em nós a esperança de que surjam, de que estejam já a surgir e a agir, sábias lideranças entre os povos que procurem caminhos de paz e de diálogo entre as nações; mantendo abertas as pontes do diálogo e as portas da ajuda humanitária.

«Dai a César o que é de César, e dai a Deus o que é de Deu», é uma das frases mais conhecidas do evangelho, com tantas aplicações políticas: a separação do Estado da Igreja, a laicidade do Estado, a proteção dos direitos das pessoas crentes e das comunidades… Mas talvez a frase possa até querer dizer outra coisa… Chegam junto de Jesus partidários de Herodes, aliados da ocupação romana, e fariseus, opositores à mesma, numa curiosa aliança. Colocam a Jesus uma pergunta tramada, um dilema: «É lícito ou não pagar tributo a César?». Exigiam como resposta um sim ou um não. Se Jesus dissesse «não», seria considerado rebelde e perseguido pelos romanos; se dissesse «sim», seria acusado de colaboracionista e perderia a simpatia do povo. Importa dizer que a ocupação romana impunha pesados impostos sobre propriedades, negócios, profissões; a isto acrescentava o «tributo ao imperador», o pagamento de um denário (no valor de um dia de trabalho) por pessoa adulta, homens, mulheres e escravos. No denário estava esculpida a esfinge do imperador com a inscrição «Tibério César, filho do divino Augusto»; nas costas, a inscrição «Sumo Pontífice», em latim, claro. Para muitos judeus, pagar tributo era sinónimo de idolatria, pactuar com a profanação romana da Terra Santa.

«Dai/restitui a César o que é de César». A moeda, cunhada pelo imperador, ao imperador deverá ser devolvida/restituída. Jesus não se opõe ao pagamento de impostos, e, especificamente, o pagamento do «tributo da César», considerado divino. Reconhecendo a autoridade do imperador, está a esvaziá-lo da sua dimensão divina, ao não separá-lo de Deus: César não é divino, não é Deus. E já aqui uma dimensão subversiva do evangelho. Jesus humaniza toda a autoridade, dessacraliza-a, colocando-a ao serviço das pessoas. «Dai/restitui a Deus o que é de Deus». Mas o que isto significa? Jesus não esclarece. Deixa a nós o discernimento, a aplicação. Se o denário trás esculpida a imagem do imperador, cada ser humano é criado à imagem de Deus. Cada pessoa é reflexo vivo do Deus vivo, sua imagem e semelhança. É a pessoa que é sagrada, não o poder, não o dinheiro, não o imperador. Restituímos a Deus o dom que Deus nos dá, a vida, a identidade, a capacidade de amar, a consciência, a liberdade, a criatividade. Restituímo-nos a Deus proclamando, defendendo a dimensão sagrada e inviolável de cada vida humana, a dignidade de cada pessoa, seja qual for a sua situação, a sua história, as suas capacidades. Pertenço a quem? Como expresso e vivo a restituição a Deus do dom da minha vida? Sou valioso(a), único(a), irrepetível. Como vivo, celebro e testemunho a minha pertença a Deus?

Faz um ano aqui nos despedíamos do nosso querido José Alberto, após duas semanas vertiginosas, divididos entre o vislumbre de uma esperança possível e aquela esperança que espera contra toda a espera, de quem se confia por inteiro nas mãos de Deus. Aprendemos, na dureza dos acontecimentos, a aceitar o inevitável da morte à luz de Cristo, o Vivente. Há um paradoxo na morte: é irreparável perda, mas consuma, arruma, configura a inteira vida de uma pessoa. A morte dá forma definitiva à nossa vida. Por isso o rosto dos nossos mortos nos fala. Está tudo consumado, perante a nossa impotência. Mesmo nas circunstâncias mais duras, a morte de quem amamos pode ser vivida na paz e na doçura, uma paz que vem a nós como graça. Neste ano já passado, família, amigos, comunidade, aprendemos a «estar» com o José Alberto de outro modo, a viver a sua «presença» na sua ausência. Tal como celebramos a nossa fé em Cristo. O Senhor fisicamente não está presente, mas está presente, pelo Espírito, na palavra, na eucaristia, na comunidade reunida. O José Alberto está presente em Cristo ressuscitado, celebrado na eucaristia, numa comunhão de amor que atravessa o tempo e o espaço, transgride fronteiras, une a terra ao céu.

Com as palavras de Paulo, recordamos a atividade da sua fé vivida e testemunha na vida eclesial e profissional; o esforço da sua caridade, da sua partilha, da sua ajuda fraterna; a firmeza da sua esperança em Cristo, sempre animado, sempre alegre, sempre bem-disposto. Cada um de nós dele recebeu vida, afeto, apoio, coragem. Em Cristo ressuscitado, expressamos a nossa gratidão, unidos numa oração comum pelo José Alberto. Aprendemos a viver sem a sua ajuda, sem a sua proteção, sem sua arte de relacionar e de gerir. Queremos honrar a sua memória, guardando viva a sua presença no meio de nós, em nós, reforçando os laços da nossa vida comunitária. A melhor maneira dos irmãos recordarem o amigo, o pai, o companheiro, é viverem como irmãos, cuidarem da vida fraterna, não perderem a estima uns pelos outros; e quando surgem desentendimentos, não ficarem bloqueados pelas divergências, mas, na paciência do diálogo não interrompido, procurarem pontos de entendimento. Honramos como amigos, filhos, esposa, familiares, irmãos de comunidade a memória do José Alberto, procurando sempre o que une e não o que divide.

Pe. António Martins, XXIX Domingo do Tempo Comum