Queridas Irmãs
Queridos Irmãos
Nada do que somos, vivemos, experimentamos, padecemos e regozijamo-nos é indiferente a Deus. Nada do que é humano, do que constitui o registo da nossa existência, por entre alegrias e tristezas, esperanças e angústias, fica fora da humanidade do nosso Deus. E aqui está a escandalosa originalidade do cristianismo: Deus faz-se homem; assume, por inteiro, a carne vulnerável e em risco da nossa condição humana; torna-se um de nós, experimentando em si mesmo, em seu próprio corpo, a grandeza e a miséria da condição humana. Deus e Homem encontram-se na fragilidade da carne; Deus e Homem coincidem na vulnerabilidade do corpo. E isso é a profundidade do mistério da Encarnação que hoje celebramos neste santo dia de Natal.
Com solenidade diz a Carta aos Hebreus que o falar de Deus, nestes tempos definitivos e últimos, é através do próprio Filho feito homem; é através da nossa linguagem corpórea, do registo da nossa existência, a partir de dentro da vida que somos, partilhamos, experimentamos em risco e em promessa. O falar de Deus não é a partir de fora; é a partir da nossa própria humanidade, da sua densidade dramática. Nada há no mundo que não pertença, agora, ao próprio mistério de Deus. O humano inscreve-se eternamente no mistério da Trindade, pela carne do Filho.
Igualmente num tom solene e conciso, proclama o prólogo de evangelho de S. João: «No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus (…). E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós. Nós vimos a sua glória». Aquele que é Deus desde sempre, eterno com o Pai, por quem tudo foi feito, vem ao que já é seu, entra nos dramas da história humana, faz-se ele próprio drama encarnado, assumindo por inteiro a vulnerabilidade da condição humana. «O Verbo fez-se carne»: nunca a fé cristã disse o mistério do Homem e o mistério de Deus de uma forma tão precisa e tão coincidente. Deus encontra o Homem na carne da nossa humanidade; e esta, este corpo que somos, experimentamos e vivemos, é o caminho para encontrarmos Deus, o modo de nos experimentarmos como filhos e de vivermos esta aventura de comunhão fraterna que é a Igreja. Que é uma aventura corpórea, de comunhão de corpos que se cuidam, que se acolhem, se abraçam, se protegem e mutuamente se destinam à glória da vida eterna.
O mistério da Encarnação diz o concreto da existência cristã, que é, ela também, sempre encarnação, reencontro com a nossa própria vulnerabilidade corpórea, reconciliação com a fragilidade de sermos carne. O Concílio Vaticano II disse isto de uma forma inovadora: pela sua encarnação, o próprio Filho de Deus une-se a cada carne concreta, a cada pessoa em sua existência corpórea (cf. GS 22). Em nossa carne Cristo une-se a nós, torna-se presente em nós; em sua carne, todos e cada um de nós, está presente e unido a Cristo. Somos, na carne de Cristo, uma comunhão de histórias singulares, de biografias, de existências corpóreas que se cruzam, se confrontam e se completam. E na aceitação da vulnerabilidade da nossa carne crescemos em humanidade.
Por isso, esta celebração do dia de Natal é bênção para cada um de nós, para a nossa aventura biográfica, tão singular, única, feita na carne vivente do corpo que somos. Somos vida que acontece, dom que continuamente se acolhe e se cumpre na dádiva de si. Somos encontro mas também confronto e conflito. Somos promessa mas também fracasso. Somos aliança mas também possibilidade de rotura. Somos vida que experimenta o risco, o perigo, a ameaça. Vivemos destinados à morte, e isso faz parte da nossa condição carnal. O amor é carnal, experimenta-se no corpo, celebra-se no corpo, é paixão e dom de si mesmo. Mas é também ferida aberta, possibilidade de fracasso, promessa que não se cumpre. Em nossa própria carne, cada um de nós transporta uma promessa e a experiência dos seus limites, a sua mais profunda humanidade. A carne que somos, em comunhão com o Verbo feito carne, é o que celebramos neste dia de Natal.
A nossa condição carnal é um caminho dramático, tenso, tecido de ambiguidades e de contradições. Também de rejeições, de exclusão, de discriminação, de violência e de intolerância. Cada um de nós já experimentou em sua própria carne o preço de alguma rejeição ou incompreensão, um traço de não aceitação. Isso aconteceu com o próprio Verbo feito carne, como nos assinala S. João: «Estava no mundo,
e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não O receberam». No drama de uma rejeição, a vida do Filho de Deus cumpre-se como dom, como dádiva de amor até ao fim. É nesse amor incondicional que podemos avaliar e medir as nossas infidelidades, a nossa mentira, o nosso adiamento no cumprimento de nós mesmos.
A reconciliação com a carne que somos, a reconciliação com a vulnerabilidade da carne dos outros irmãos, que tantas vezes nos ameaça e nos agride, é um caminho pascal, de continua morte e ressurreição. A vida cristã nunca sai da carne. Porque fiel a Cristo, o cristianismo quer ser fiel à carne do humano, sempre ameaçada, sempre em risco. Em nossa própria carne estamos destinados à ressurreição, a uma plenitude de vida, na superação de todas as ambiguidades e desencontros.
Na nossa própria carne, veremos a Deus.
Pe. António Martins, Natal do Senhor, Missa do Dia