Queridos irmãs e irmãos,

Hoje, neste relato do Evangelho de S. João, Jesus faz um gesto de criação, de recriação em relação aos Seus discípulos: Jesus sopra sobre eles. A ouvirmos este relato nós lembramo-nos da criação do Adão e da Eva, quando Deus soprou pelas narinas do primeiro adâmico terreno para que ele ganhasse o espírito, para que ele ganhasse, em hebraico diz-se a néfes, o sopro vital, o alento que dá a vida e que depois em grego se vai falar como uma alma.

Este sopro é o sopro da criação, sem este sopro nós estamos desanimados, nós estamos desalentados, nós estamos como que prostrados, nós somos apenas terra, nós somos apenas uma coisa que se desagrega. Não somos vida, não estamos de pé. Precisamos do alento vital, precisamos do sopro, do animus para viver animados, para vivermos com a confiança necessária para tomar a vida como ela é. E Jesus faz isso aos Seus discípulos. Por isso, a tradição cristã, desde os primeiros teólogos, os Padres da Igreja, falava da Páscoa como de um nascimento. Para nós, cristãos, é o verdadeiro nascimento, é um tempo de renascimento, em que nos sentimos a nascer de novo, sentimos que acontece uma metanoia, uma transformação do nosso entendimento, uma mudança, uma alteração da nossa maneira de ver as coisas. Passamos a ser mulheres e homens novos porque o sopro do Ressuscitado foi lançado sobre nós.

Na mesma linha, na Primeira Carta de Pedro que hoje lemos, o autor sagrado diz: “Felizes de vós porque nascestes em Cristo para uma nova esperança.” Cristo é o lugar onde a gente nasce, Cristo é o ponto do nosso renascimento. Isto é, o encontro com Cristo não é apenas o esbarrar na vida de um grande homem, uma figura histórica, d. uma figura referencial para a religião. Mas, mais do que um esbarrar é um verdadeiro encontro e um verdadeiro encontro do qual nós nascemos, do qual nós renascemos. Os nossos olhos como que se abrem e nós olhamos tudo de novo pela primeira vez e olhamos tudo de novo de outra forma, à Sua ótica, ao Seu olhar, ao Seu estilo, à Sua gramática, à Sua maneira de ver. E assim nós renascemos.

Mas, este renascer não é automático, é preciso fazer um caminho. Nós percebemos que mesmo os discípulos precisaram de fazer um caminho. Porque, até ao fim, quando lemos por exemplo os Evangelhos sinóticos, mesmo no último momento quando Jesus está a partir na Ascensão há alguns que não acreditam. Isto é, a erva da descrença, o obstáculo da incredulidade está no nosso coração e temos de contar com ele. Nós precisamos de fazer um caminho para acreditar na ressurreição. E o que é acreditar na ressurreição?

Hoje nós temos duas imagens. Se calhar as imagens são mais importantes do que as palavras, porque são mais sugestivas, tocam não apenas o racional, mas tocam também o nosso coração, mobilizam os nossos sentimentos, abrem-nos caminhos mais audaciosos. Uma imagem é do Evangelho de S. João, a outra é dos Atos dos Apóstolos que hoje nós lemos. A primeira imagem é esta de Tomé que ficou preso nas feridas e nós sabemos que não é difícil ficar preso nas feridas, não é difícil. Eu diria que até é o mais normal. O mais normal é nós acharmos que esta ferida é o fim, que esta ferida não se apaga, que depois desta ferida já não há caminho, que não se pode ir mais além, que esta ferida é o ponto final. E este, se calhar, é o modus de entendimento que nós temos. Vemos um corpo rasgado e dizemos: é o fim, é o fim.

A fé na ressurreição obriga-nos a mudar o lugar onde nós colocamos o ponto final. Porque, onde é que nós na vida colocamos os pontos finais? Se calhar, colocamos o ponto final demasiado cedo, porque contamos só connosco e com a nossa força. Se calhar colocamos o ponto final com desilusão demasiado prematuramente, porque não contamos com a força de Deus, com o impacto de Deus, com aquilo que Ele pode fazer em nós. E por isso, em vez de pontos finais, nós deviamos pôr vírgulas. Vírgulas que são esses tempos de espera, esses tempos de suspensão. Na nossa vida, em vez de preenchermos com grandes decisões para todos os tempos devíamos criar tempos de espera, tempos de pausa, à espera de Deus, à espera de Deus.

O que é que os discípulos foram obrigados a fazer? A retirar os pontos finais. Jesus morreu, vírgula, e ressuscitou. Aquela ferida era uma ferida que Tomé acreditava que era mortal, e ele tinha posto um ponto final. Depois daquela ferida não pode haver mais nada. Mas Jesus vem dizer: Não, depois da ferida põe uma vírgula, porque a história continua, a história continua. E, no fundo, a fé na ressurreição é uma fé que só quem ama entende. Quem ama não se conforma, quem ama está sempre à espera, quem ama está num tempo de suspensão. Para quem ama não há um fatalismo, não há dizer: isto não tem mais remédio. Porque amar é dizer ao outro: “Tu não morrerás.” E dizer isso obriga-nos a recusar os pontos finais e a acreditar que o tempo da ferida, o tempo da dor, o tempo do sofrimento, o tempo da morte que nós experimentamos é apenas uma etapa de um caminho, de um caminho que vai mais longe.

Como será nós não sabemos. O modo de intervenção de Deus nós não controlamos. O que vimos foi um sepulcro vazio, o que vimos foi um vivente que nos apresenta as Suas feridas. Mas apresenta-nos as Suas feridas dentro da Sua vida, dentro de uma vida nova, dentro de uma vida restaurada.

Então, aprendamos a não colocar demasiado cedo os pontos finais. A fé na ressurreição é isso, é acreditar que há uma resolução para a vida que nós podemos não estar a ver mas temos de acreditar nela. Temos de contar com ela e temos de acreditar que a ferida pode ser o lugar de uma fecundidade, que a ferida não é necessariamente estéril e que o rasgão daquele lado pode ser a fenda da esperança, a fenda de onde sopra o espírito novo e isto é acreditar na ressurreição. Mas acreditar na ressurreição não como uma magia, não como uma fantasia. Acreditar na ressurreição como um modo de viver, como um modo de tocar a vida, de a abraçar, de a encarar e a ler, sabendo que na vida temos de contar- precisamos contar e podemos contar- com essa força de Deus que faz tudo nascer e renascer a cada momento.

Por isso, é também extraordinariamente importante aquela imagem do livro dos Atos dos Apóstolos. Porque a fé na ressurreição não é apenas uma fé intimista, não é uma fé solipsista, não é uma fé para eu acreditar e mudar um bocadinho os meus pontos finais e as minhas vírgulas. A fé na ressurreição tem uma dimensão política, tem uma dimensão económica, tem uma dimensão existencial, tem uma dimensão na maneira de viver, na maneira de organizar a minha própria vida. Por isso, essa imagem extraordinária do livro dos Atos dos Apóstolos: aqueles irmãos que estavam reunidos, na bela expressão de S. Lucas, era como se tivessem uma única alma. Porque viviam numa solidariedade, numa capacidade de condivisão, num espírito de serviço e de partilha, num assumir as dificuldades porque passam os outros, num fazer seus os dramas que os outros vivem, numa capacidade de atenção, de entrega, de verdadeira fraternidade que era como se o mundo ressuscitasse, se Jerusalém ressuscitasse, se a comunidade ressuscitasse. E aqui também há tanto trabalho nosso. A ressurreição, o tempo pascal é um tempo para arregaçarmos as mangas e metermos as mãos na realidade transformando-a, fazendo-a renascer na linha daquilo que os Atos dos Apóstolos nos apontam, que é a capacidade de construir uma comunidade qualificando a nossa relação de uma forma nova, de uma forma nova que já não é o meu nem é o teu, que já não é isto nem é aquilo mas é uma capacidade de ser novo.

Isto é um desafio para nós, um desafio imenso, imenso para nós. Vamos pedir ao Senhor que este tempo pascal seja um tempo de desassossego para nós. Porque, a fé na ressurreição não é apenas o happy end desta história dramática, a fé na ressurreição é muito mais do que isso. A fé na ressurreição é dizer: Vá! Agora és tu! Agora faz. O que é que vais fazer com isto? Para que é que isto serve? Porque é que nós acreditamos que Aquele que está crucificado está vivo? Para que é que esta fé serve?

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Páscoa

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