Queridos irmãs e irmãos
Esta semana tivemos a grande alegria de celebrar dois anos de pontificado do Papa Francisco. Nesse dia, ele quis anunciar a toda a Igreja a convocação de um ano santo, que irá de dezembro deste ano de 2015 a novembro de 2016. E será um ano santo especial.
Os anos santos foram criados para assinalar, precisamente, a experiência do perdão e da misericórdia. Durante muito tempo os anos santos chamavam-se a perdonança porque é o grande tempo da reconciliação. E celebravam-se de 50 em 50 anos ou em momentos especiais. O século XX foi um século muito rico em anos santos. Este será, em pouco mais de 100 anos, o nono ano santo. Este ano santo será convocado sob o signo da misericórdia. É a primeira vez que vamos ter um ano santo para sentir a misericórdia.
De facto, uma cristã, um cristão são especialistas em misericórdia. Especialistas, não porque seja uma competência que nós tenhamos, mas especialistas porque todos somos uma consequência da misericórdia de Deus. Penso que uma mulher, um homem cristãos são chamados a entender a sua própria vida como uma consequência da ternura de Deus, da Sua misericórdia, que não cessa nunca.
Porque, como S. Paulo nos diz hoje neste passo da Carta aos Efésios: “Deus é um Pai rico em misericórdia.” E toda a nossa vida nós declinamos, nós aprendemos. Na prática, no significado desta imagem tão rica: Deus rico em misericórdia. Deus, que ama de tal maneira o mundo que lhe dá o seu próprio Filho, como nos lembra Jesus no Evangelho de João. Deus que não quer condenar o mundo, mas que quer que o mundo seja salvo pela misericórdia revelada em Jesus. Nesse sentido, precisamos, de facto, de ensopar a nossa vida da misericórdia de Deus. Fazer a própria experiência da misericórdia.
O tempo da Quaresma outra coisa não é que um tempo – mesmo na sua exigência, na sua tensão transformadora, no seu impulso de conversão – outra coisa não é que a possibilidade de saborearmos mais amplamente, mais autenticamente a misericórdia de Deus. Sintamo-nos, por isso, tocados por esta misericórdia. Sintamos que a graça de Deus tudo cura, tudo salva, tudo entende, tudo acolhe. A tudo Deus dá futuro; não há nada na nossa vida a que Deus não dê futuro. Porque o que é próprio da misericórdia é, exatamente, a reversibilidade. Nada é completamente irreversível, nada está perdido, ninguém é deixado para trás.
No livro das Crónicas nós meditamos numa etapa da vida do Povo de Deus. Uma etapa difícil, porque o Povo de Deus desviou-se do culto ao verdadeiro Deus, entregou o seu coração aos ídolos, esqueceu-se do Senhor e foi para o exílio. É interessante aquilo que o autor do livro das Crónicas diz: “Já não havia remédio.” Não parecia haver já remédio, Jerusalém foi destruída e o povo foi para o exílio. E o tempo de exílio é o tempo também para experimentar o desejo de Deus, a saudade de Deus.
Verdadeiramente, a ausência de Deus não existe, não existe. Mesmo quando nós falamos com ateus, com pessoas muito distantes, e que não se sentem tocadas pelo dom da fé, há ali como que uma nostalgia, como que uma saudade, como que uma abertura, como que uma disponibilidade. Porque essa marca, essa impressão digital de Deus está tatuada no coração do ser humano.
Deus é fiel ao ser humano. Deus é fiel. Mesmo quando nós não vemos como, não sabemos como, não conseguimos tratar a Deus por “tu”, Deus não deixa de ser este Pai rico em misericórdia que está diante de nós. Por isso, o tempo do exílio, o tempo do silêncio é também um tempo de saudade, de saudade de Deus.
A verdade é que a nossa cultura, em tão grande medida, em tantos parâmetros, parece uma cultura tão distante de Deus, que silencia tanto a procura de Deus. Ela não deixa de ser um lugar onde o ser humano, na aspereza da vida, experimenta o que é este desejo de Deus, esta saudade de Deus. Lembro-me de um filme de Manoel de Oliveira, O Convento: a dada altura há um diálogo, há uma personagem que vive um “mal de vivre”, uma grande inquietação interior, que não tem remédio, e a outra pergunta:
“- Mas o que é que tu tens? O que é que tu tens?
E ela dá esta resposta:
– Tenho saudades de Deus.”
A saudade de Deus quer dizer que o que responde às inquietações do nosso coração é uma medida alta, a medida do amor, a medida da ternura de Deus. E Deus surpreende-nos sempre. Deus surpreende-nos sempre.
Tantas vezes na história do Povo de Deus o amor de Deus, a Sua misericórdia foi uma grande surpresa. Por exemplo, o povo de Deus está no exílio, e quem é que o livra do exílio e reconstrói Jerusalém? Um imperador pagão: Siro, rei da Pérsia. E esta palavra das Crónicas é uma palavra que nos acorda, que nos sobressalta. Porque diz assim: “Deus inspirou a Siro, rei da Pérsia.”
– O quê? Então os pagãos também são inspirados por Deus?
– Sim, os pagãos são inspirados por Deus.
Isto obriga-nos a ler a história de outra maneira, a ler a vida de outra maneira. Porque às vezes olhamos o caminho de fé muito como um Benfica-Sporting. E não é bem assim, não é um clássico de rivais, de competidores. Mas, esta procura, mesmo na dúvida, mesmo na diferença irmana-nos profundamente.
Sintamo-nos convocados a ser testemunhas da misericórdia de Deus. Uns para os outros, sermos transmissores da misericórdia. É verdade que é tão mais fácil transmitirmos um juízo, uma crítica, e isso também há de ter o seu lugar, mas não nos esqueçamos da misericórdia, não nos esqueçamos da misericórdia. Porque também, como diz S. Paulo, a misericórdia triunfa do juízo. E, no fundo, a misericórdia é esta arte de Deus que não desiste, que sabe que é o amor que pode recompor o vaso quebrado, que sabe que é o amor que reconstrói a própria vida a cada momento. E por isso, Ele é o Pai rico em misericórdia.
Ainda recentemente o Papa usava uma imagem muito forte e muito comprometedora para nós cristãos. Ele dizia: “Há dois modos de pensar a Igreja, há dois tipos de evangelização. Um é pensar a Igreja como um lugar onde já estamos salvos e temos de fazer tudo para não nos perdermos. Mas centramo-nos nos que estão aqui, para não nos perdermos. E outro modelo de Igreja, que é o modelo que o Papa diz que Jesus pede que sejamos, é perguntar: e os que não estão aqui? E onde estão os que não estão aqui? E termos a capacidade de ir ao encontro. Ora, nós só podemos ir ao encontro dos outros com a misericórdia. Não é com o bastão da autoridade. É só com a ponte, essa ponte que vai direta ao coração que é a ponte da misericórdia. Por isso, nós somos chamados, neste tempo da Quaresma, a fazer a própria experiência da misericórdia de Deus.
Tantas vezes temos uma imagem de Deus que não é o Deus da misericórdia. No fundo de nós achamos que Deus nos vai tramar, no fundo de nós achamos que Deus não vai esquecer, no fundo de nós achamos que Deus é impiedoso e nos dará aquilo que nós merecemos. Ora, Deus não nos dá o que nós merecemos. A salvação não é mérito nosso, como nos lembra S. Paulo na Carta aos Efésios, nós somos salvos por graça. Deus é gratuidade, Deus é ternura, Deus é amor, e amor incondicional, Deus é misericórdia. Fazermos, cada um de nós, esta experiência da misericórdia de Deus e, depois, sermos capazes de refletir essa misericórdia na nossa vida, nos nossos gestos, na nossa maneira de estar, na nossa relação, arriscando levar a misericórdia, celebrar a misericórdia. Não nos esqueçamos da misericórdia.
Aquela oração tão bonita, tão forte, que nós rezamos hoje no Salmo – “Se eu me esquecer de ti Jerusalém, a minha língua fique presa, a minha mão deixe de funcionar. Que eu não consiga caminhar se não fizer de Jerusalém a maior das minhas alegrias.” – que essa jura seja de facto, pela misericórdia; que essa promessa, que nos empenha profundamente, seja em relação à misericórdia. Que eu não me esqueça de ti, misericórdia.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV da Quaresma
Clique para ouvir a homilia