Queridos sacerdotes, queridos irmãs e irmãos,

Nós, como leitores do Evangelho, temos curiosidade por saber como é que o Evangelho termina. E, quando se conta uma história ela pode ser contada de formas diferentes, depende do ponto de vista que nós tomamos, que escolhemos para relatar a própria história.

A Ressurreição pode ser contada de duas formas. Os evangelistas podiam (e este “podiam” tem de ser colocado entre aspas) ter escolhido contar a história do ponto de vista de Jesus. Explicar como é que ele estando morto, tendo sido colocado no sepulcro não foi encontrado lá. O que é que Lhe aconteceu? Podiam ter contado a história do como a Ressurreição aconteceu. Contudo, não foi esse o caminho dos evangelistas que ajudam a construir a nossa fé. Eles não contam como Cristo ressuscitou, eles contam que Cristo ressuscitou. Contam a história não do ponto de vista de Jesus, mas do ponto de vista das suas testemunhas. Ou melhor, contam a história do nosso ponto de vista. Por isso, nós estamos aqui para celebrar a Ressurreição de Jesus. Certo. Mas nós estamos aqui para perceber qual é o nosso papel nisto.

O que é que nós, mulheres e homens, temos a ver com esta história? E porque é que ela é contada envolvendo-nos? Porque no lugar desta Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé estamos nós todos. Depois, quando chegarem os apóstolos homens estamos nós todos representados. Então, qual é o nosso papel no meio disto tudo?  Porque é que o Evangelho nos conta a Ressurreição falando de nós, falando de mim, falando de ti? O que é isto? Que desafio representa para a nossa vida?

Eu penso que há quatro etapas fundamentais neste breve texto do final do Evangelho de Marcos. A primeira etapa é pensarmos na natureza das testemunhas, destes primeiros que se abeiraram do túmulo vazio. Eram três mulheres, Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Salomé. Normalmente, quando é uma grande descoberta nós ouvimos nos telejornais, nas revistas científicas. As grandes descobertas são feitas por grandes cientistas, por equipas que andam a estudar, que vão aos confins das galáxias ou que vão ao fundo da matéria humana, à sua parte mínima através de potentes instrumentos técnicos para fazer as grandes descobertas. O que é insólito é que a maior descoberta da História da Humanidade foi feita por três mulheres. Isto é, foi feita por interlocutores que nós diríamos personagens imprevistos, personagens que não estão exatamente à procura de uma descoberta da ciência que faça avançar isto ou aquilo. São personagens que vêm numa fidelidade a um amor, a uma história de amor que não aceitam que morra ali, que acabe daquela forma. Sentem a morte de Jesus e trazem perfumes para perfumar aquela morte e elas vêm no caminho, no meio da incerteza dizendo: “Há uma pedra grande na boca do sepulcro, quem rolará para nós essa pedra?” Quer dizer, o gesto delas, a viagem delas pode ser inútil, pode não servir para nada porque se a porta estiver fechada elas não vão entrar, não vão perfumar o corpo de Jesus. Mas elas na mesma fazem a viagem, pode ser inútil, pode não ser. O amor que têm dentro de si é mais forte, é alguma coisa que não as deixa ficar paradas em casa. Elas organizam-se, não vem uma, vêm três. Organizam-se em grupo, vêm sem saber, mas vêm. Vêm porquê? Vêm porque amam, vêm porque têm piedade, vêm porque choram, vêm porque sentem, vêm porque a morte de Jesus as abalou profundamente tal como a vida de Jesus as tinha abalado muito mais, e elas não eram as mesmas. Elas vêm arriscando tudo porque aquele Jesus era a fonte de sentido das suas vidas.

A Ressurreição, queridos irmãos, quem é que a descobre? Descobrem os misericordiosos, os piedosos, os que fazem suas as lágrimas dos outros, os sofrimentos dos outros. Descobrem os cuidadores, aqueles que até ao fim e para lá do fim continuam a exercer o cuidado pelos seus irmãos. Descobrem os enamorados, aqueles que se apaixonaram, aqueles que guardam o amor na sua vida que até pode ser inútil, até pode nunca se realizar. Porque, a pedra que está na boca do sepulcro há de impedir tudo, mas é essa força no seu coração, é a força do amor que leva aquelas mulheres ao sepulcro, a força da piedade.

Não deixa de ser interessante que sejam elas as primeiras testemunhas da Ressurreição. A Ressurreição não é uma verdade antes de tudo para as nossas cabeças, não é uma verdade para lermos numa revista científica. A Ressurreição é uma verdade que encontramos tatuada no nosso coração, nos gestos de amor; que encontramos dentro das nossas lágrimas; que encontramos quando o pacto que temos com os outros, a aliança de amizade, de afeto, de cumplicidade vai até ao fim e para lá do fim. Estas três Marias que vão a caminho do sepulcro são para nós um desafio muito grande, que explica como é que nós vamos tocar o Mistério da Ressurreição.

A pedra está rolada e elas entram. E é uma surpresa enorme para nós porque não há nada, não há nada. Cristo ressuscitou. Que prova é que nós temos a que nos podemos agarrar? O que é que indica como sinal? Qual é a coisa indubitável? Nada! Nós não temos nada, nós aqui não temos nada. É um vazio, não temos nada. Ele não está aqui, Ele não está aqui. A Ressurreição não é nos agarrarmos a uma certeza, não é nos agarrarmos a um corpo, não é nos agarrarmos a uma realidade física, a uma explicação. Continua a ser um mistério! E um mistério que brilha no vazio, um mistério que brilha no despojamento, um mistério que brilha no silêncio.

Onde é que nós, cristãos, vamos tocar a Ressurreição? Muitas vezes é no vazio, é no nada, no nada, no nada. Muitas vezes é no incrível despojamento da nossa própria vida. É aí que tateamos o Mistério da Ressurreição. O Mistério da Ressurreição não é para encher, é para nos esvaziar. E, nesse vazio, nós sentirmos que há alguma coisa para lá de nós.

As mulheres, perante aquele vazio, elas não estão sós. Elas são desafiadas a ler o vazio através de uma Palavra. Nós viemos aqui, personagens improváveis. A NASA, as grandes agências espaciais não nos contratariam, a nenhum de nós – não sei, talvez os mais jovens, que são futuras promessas da ciência mundial, a mim não me iam contratar para descobrir grandes verdades, eu sou um personagem completamente improvável. Talvez por isso nós estejamos aqui. E estejamos aqui a tatear nada. É bom que não associemos a Ressurreição a um monte de certezas, a uma reposição. Não é o filme que nós vimos que agora vai passar, não é uma reposição de Jesus. É bom que nós sintamos que o sepulcro está vazio, Ele não está aqui. Mas que nós sintamos isto confiados numa Palavra, num anúncio tão inusitado, mais inusitado do que o próprio vazio.

“Não vos assusteis. Procurais a Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou.” E é esta Palavra que nos é dita. Por isso, esta noite é a noite de uma Palavra que nos alerta, de uma Palavra que nos alarma, de uma Palavra que nos desassossega, de uma Palavra que não nos deixa mais em paz, de uma Palavra que é dita ao nosso coração. “Ele não está aqui, Ele ressuscitou.” E é a Palavra que em nós desembrulha a vida, desembrulha o sudário em que nós manietamos a nossa vida. Desamarra, desembrulha os limites, desembrulha as dúvidas, desembrulha as limitações, as imperfeições, o medo de morte que os discípulos têm nestas horas. É esta Palavra que desembrulha. Por isso, é este o alegre anúncio Pascal. A Ressurreição, nós tateamo-la num anúncio que nos é feito, num anúncio que vem de Deus, num anúncio credível no qual nós podemos confiar. “Ele não está aqui, Ele ressuscitou.”

E qual é a grande implicação disso? É aquilo que depois o jovem vestido de branco diz às mulheres e que é o quarto ponto, que é dizer: “Ide dizer uns aos outros, ide dizer aos seus discípulos: Ele vai adiante de vós para a Galileia, lá O vereis.” Ele vai adiante de vós. Como é que nós experimentamos o Ressuscitado na nossa vida? Não experimentamos Jesus simplesmente como uma memória do passado, como grande figura histórica, extraordinária. Eu ainda estes dias folheava a biografia que escreveu  o Ernesto Renan, um escritor um pouco de moda durante muito tempo mas que procurava uma perspetiva simplesmente racional de Jesus. Ele diz: “Jesus é o homem mais extraordinário que apareceu na terra.” Isto para nós não basta, isto para nós não chega. Não chega que Ele tenha sido o maior de todos os tempos, não nos basta o seu passado. Agora, hoje, esta noite nós sabemos que Ele caminha adiante de nós e que nós seguimos os Seus passos.

Isto, queridos irmãs e irmãos, dá um sentido novo à nossa vida, um sentido outro àquilo que somos, um sentido luminoso à nossa noite. Nós cantamos: “Feliz noite! Ditosa noite.” Porque, precisamente, é nesta noite que nós descobrimos que os nossos passos vão atrás dos passos de Jesus. E por isso, quando olhamos para a frente não é o vazio, não é o nada mas sabemos que Ele é o ramo verde, que Ele é o anunciador da Páscoa, que Ele é o inaugurador de horizontes, é o Deus connosco que está a nosso lado, todos os dias até ao fim dos tempos.

Vamos viver esta Vigília sentindo que somos nós os implicados, sentindo que somos nós que a partir do nosso amor vamos ao sepulcro. Que lá somos desafiados a abraçar o nada, o nosso próprio nada, a alargá-lo mais, a dimensioná-lo mais, a escutar uma Palavra. Uma Palavra a que nos podemos agarrar, uma Palavra para confiar. “Ele ressuscitou e Ele vai à vossa frente, Ele preceder-vos-á na Galileia.” Sintamos que Jesus é o homem da frente, é Aquele que caminha a nosso lado como aquela luz que no meio da noite nos dá a força para endereçarmos os nossos passos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Vigília Pascal

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