Queridos irmãs e irmãos,

Nós começamos este tempo da Quaresma. Quaresma quer dizer 40 dias e nós sabemos como o número 40 é um número simbólico, é um número forte. Foram 40 os anos de travessia do povo de Deus no deserto, anos de aprendizagem, de escuta, de tentação mas também de caminho ao encontro da grande Aliança com Deus e da entrada na Terra Prometida. Formam também 40 dias os que Jesus passou no deserto, na memória desses antigos 40 anos mas também na preparação da Sua vida pública.

Nós, em cada ano, temos estes 40 dias que são um tempo de graça, um tempo oportuno. Este é um tempo de retiro coletivo que como católicos nós fazemos. É um tempo propício, um tempo de manobras espirituais, um tempo de revitalização interior, um tempo para quebrar aquela rotina, ou para romper com uma religião que é apenas para ser visto, para os outros dizerem: “Olha que bem, esta pessoa até faz isto e até aquilo.” Para romper, no fundo, com um mundo de aparências em que tantas vezes a nossa vida se resume. E para fazermos a experiência de uma vida autêntica, aquela experiência que passa por entrarmos em nós, no nosso quarto, trancarmos a porta. Isto é, não falsearmos o encontro, mas nos expormos com a nossa nudez, até com a nossa miséria, com a nossa dificuldade, com a nossa imperfeição, mas nos expormos com confiança ao olhar misericordioso de Deus.

Em todo o Evangelho que nós proclamamos Jesus repete a palavra “Pai”. Estamos diante do Pai. Cada um de nós está diante de um Pai que o ama. O que nós vamos fazer juntos estes 40 dias e individualmente não é um castigo porque nós não nos temos portado bem. Pelo contrário, é um estímulo de crescimento, é uma resposta amorosa, é uma resposta de autenticidade que nós damos, queremos dar, em diálogo com este Pai. Sentindo que temos de vencer a orfandade que às vezes nos caracteriza e olharmos para Deus como Pai, sentindo Nele que temos um Pai que nos ama e que nos oferece de uma forma incondicional.

Mas nós não podemos receber esse Amor em vão, foi isso que também ouvimos na leitura da Carta de Paulo que hoje nós lemos: “Não recebeis a graça de Deus em vão.” Nós sabemos que muitas vezes a recebemos em vão, muitas vezes vivemos a verdade como se ela não fosse verdade, muitas vezes ouvimos esta Palavra como se esta Palavra não determinasse nada de novo, não inspirasse, não suscitasse caminhos novos. Muitas vezes, comemos o pão, bebemos o vinho, e não é uma vida nova que entra dentro de nós a contaminar tudo à nossa volta, mas é apenas o rame-rame, é apenas o morno, é apenas o que não é frio nem é quente, é apenas a parte ritual, é apenas no fundo religião, religião, religião e não é vida transformada, não é este sobressalto de vida, não é uma primavera que acontece dentro de nós.

Por isso, o tempo da Quaresma, para nós, é um tempo de primavera, é um sopro de primavera  que tem de entrar pelas nossas vidas. Porque a primavera  não é apenas fora de nós que acontece: nós somos chamados a romper com o inverno gelado do nosso coração e a sentir que há um degelo. Alguma coisa é possível fazer. Porque o Cristianismo, sendo uma religião de paz, ele também é agónico no sentido que dá luta, Deus dá luta, esta Palavra dá luta, nós entramos também num combate espiritual. É uma expressão que a tradição cristã amou muito, o combate espiritual, e que hoje nós refletimos muito pouco sobre isso porque somos um bocadinho contaminados por esta sociedade instantânea. Parece que se carrega no botão e está tudo feito, e na vida de uma mulher e de um homem não é assim, não há botões para carregar, há caminhos, há sementes, há esforço, há morrer e nascer, há cair e levantar-se, há tomar consciência. Há um itinerário de maturação espiritual que nós precisamos praticar e esse itinerário chama-se combate espiritual. Porque não é apenas na linearidade que nós caminhamos, não, é com altos e baixos. Muitas vezes nós temos de perceber que se não lutarmos nada acontece na nossa vida, deixamo-nos ir, deixamo-nos levar e precisamos de facto de dizer não, não, não. Que o nosso “sim” seja um sim e que o nosso “não” seja um não. Não vivamos como troca-tintas interiores: o “não” até pode ser um “sim” e o “sim” pode até ser um “não”, e tudo vale a mesma coisa. Não, não é assim, tem de haver uma clareza dentro de nós, uma verdade dentro de nós.

A Igreja apresenta-nos três instrumentos de construção, de revitalização da nossa vida e que são propostas para este tempo da Quaresma, que em todo o mundo os cristãos vão pegar nelas e transformar as suas vidas.

A primeira é a oração, porque não há conversão sem oração. A conversão não é: eu caio em mim e com grande esforço meu transformo-me. Isso não é a conversão cristã. A conversão é eu escutar a Palavra de Deus, eu deixar-me curar por Ele, como Jesus curou o cego de Jericó e lhe deu uma nova visão da realidade, permitiu-lhe ver o que ele ainda não tinha visto. Também é na oração que nós subimos àquela temperatura que nos torna maleáveis. Porque nós somos intransigentes, duros e para tornarmo-nos tenros e para se poder fazer alguma coisa connosco tem de ser à força da oração. Precisamos regar o nosso coração com a oração, transformar o nosso coração com a oração. Precisamos todos de rezar mais. A oração é talvez a coisa mais importante para fazer na Quaresma. Que cada um possa, no seu programa quaresmal, colocar a oração em primeiro lugar, descobrir Deus, descobrir isto de estar em silêncio diante Dele. Ler um livro bíblico, imaginem: agora vamos ler o Evangelho de S. Mateus nesta Quaresma e meditar nele. Se calhar vamos a uma missa durante a semana, não só à missa de domingo. Se calhar vamos rezar uma dezena ou um terço em cada dia. Se calhar vamos rezar um salmo, vamos rezar lendo um autor místico, um autor espiritual. Mas o importante é que rezemos, é que rezemos porque aquilo que nos transforma – é o poder da oração, o poder da oração. E a oração parece que é uma coisa inútil, parece que não serve para nada.

Porque é que não rezamos mais? Porque andamos de um lado para o outro? Nós que somos pessoas úteis e só fazemos coisas úteis, achamos que a oração é uma perda de tempo, porque há isto para fazer e há aquilo. O nosso coração dispersa-se e não percebe a força do inútil. Entre a ação e a contemplação nós achamos que devemos privilegiar a ação. E a contemplação? A contemplação dá-nos uma outra capacidade de agir, dá outra densidade à nossa ação, dá outra intensidade, não somos só nós, não somos só nós. Por isso, fortaleçamos a nossa oração nestes 40 dias, procuremos rezar mais em cada dia, procuremos rezar com mais intensidade, procuremos estar diante de Deus, escutá-Lo, ouvi-Lo, rememorar a nossa vida diante Dele, falar das nossas coisas, ouvir a Sua Palavra, ouvir o Seu silêncio, isso é sem dúvida o ponto de apoio, de transformação das nossas vidas. O que transforma as nossas vidas é a oração, o nosso segredo é a oração, é a oração. E assim, esta vida aquecida pela oração, este ferro forjado nas labaredas de uma oração simples, mas sincera, mas buscada, mesmo quando nos custa estar ali, como a lâmpada que permanece acesa junto do tabernáculo, é isso que nos vai ajudar a usar os outros dois instrumentos.

O outro instrumento é o jejum, o santo jejum. É um instrumento que não é tipicamente cristão porque outras tradições espirituais usam o jejum e às vezes pessoas que não têm nada a ver com religião usam o jejum, porque o jejum purifica, é purificador. Purificador porquê? Porque nós vivemos viciados, nós vivemos com demasiadas coisas, para nós o necessário é uma casa cheia de coisas e de razões, quando eramos capazes de viver com muito menos. E o jejum é uma forma de privação, começa por ser isso. Nós praticamos jejum em dois dias: hoje, esta Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa. São dias em que nos privamos do alimento para lembrar ao nosso corpo, para espiritualizar a nossa própria carne. E também, criando um vazio no estômago, cria também uma disponibilidade para Deus e ela percebe que é chamada também a outras coisas, que não vivemos só de pão, embora o pão nos seja tão necessário. Mas o jejum é essa privação voluntária, essa privação voluntária em nome de um valor espiritual, isso é o jejum.

Mas o jejum também é um símbolo, porque nós precisamos de fazer jejum de tantas coisas. Não é só dos alimentos, não é só das gulodices, não é só das bebidas, não é só no fundo de uma vida em que muitas vezes nós não temos de pensar naquilo que ingerimos, naquilo que são os hábitos da nossa existência. Temos de olhar de forma mais crítica, mais autocritica para os nossos hábitos, as nossas rotinas, aquilo que a gente gasta, aquilo que nos dá prazer. O jejum ajuda a olhar criticamente para isso de uma forma saudável. Porque o jejum não é para nos acabrunhar, um jejum até aumenta o nosso sentido de humor, aumenta a relativização de uma vida que nós percebemos que afinal não depende tanto daquilo que nós achamos de que depende a nossa alegria. Afinal a nossa alegria depende também de coisas espirituais, não apenas de coisas materiais.

Mas o jejum é esta privação do alimento e daquilo que nos alimenta. Por exemplo, nós vivemos numa sociedade da comunicação, vivemos dependentes do telemóvel, não sabemos já viver sem o telemóvel, sem o whats app, sem o facebook, sem essas coisas todas. E se nós olharmos criticamente para isso, de uma forma saudável, qual é a palavra que aparece? A palavra que aparece é dependência, estamos dependentes, viciados verdadeiramente. E aquilo que comunicamos já não é uma coisa de qualidade, não tem uma qualidade. É quase uma reação, é quase um estímulo que recebemos e uma resposta que damos, imediata, e perdemos um tempo, perdemos uma vida com coisas inúteis, a mandar mensagens que não são mensagem nenhuma, a usar palavras de que nos envergonhamos, que não é nada. Melhorar a nossa comunicação que fazemos com os outros, isso também é fazer jejum. Nós vivemos num mundo carregado de imagens e grande parte delas são pura poluição que entra dentro de nós, também precisamos fazer jejum dessas imagens, fazer silêncio.

Então, de facto, o jejum o que é? O jejum é esta liberdade de dizer “não”, é esta privação voluntária. E nós não tenhamos dúvidas, se nós não dissermos “não” nunca conseguiremos dizer “sim”. Por trás de cada “sim” há um “não”. Nós facilmente nos tornamos dependentes, viciados, sequestrados, reféns. Nós facilmente perdemos a nossa liberdade, e o jejum é um instrumento de liberdade. Sermos livres, e muitas vezes sermos livres em relação a nós próprios, porque somos uns tiranozinhos, à nossa escala, à nossa medida, só fazemos os nossos apetites, a nossa vontade, só seguimos as nossas paixões, o nosso eu, eu, eu, eu, eu, eu. E há que batalhar, há que dizer: alto lá menino, alto lá menina, põe-te lá no teu lugar, reduz-te a tua insignificância, calma, não tens de ter o primeiro lugar, não tens de ter a última palavra. E isto é muito saudável, e não é outro que nos diz, somos nós que dizemos a nós mesmos, vigilantes em relação a estes excessos que nos caracterizam.

Por isso, a Quaresma é um tempo para fazer caminho e caminho muito concreto em relação à requalificação da nossa vida interior que está intoxicada, intoxicada. É tempo para olharmos com realismo o que é que é tóxico? De que é que eu me vou libertar? E pedir a Deus a força para fazer isso durante estes 40 dias, que é um tempo para chegar mais leve de muita coisa. Porque só assim é que a Páscoa do Senhor vai ser morte e ressurreição dentro de nós.

Mas não é apenas um exercício interior a Quaresma. É um grande momento de retiro interior, é um grande momento para sacudir coisas dentro de nós, é um grande momento para reconquistar mordendo os dentes a nossa liberdade, é um grande momento para dizer “não”, é um grande momento e privação, de jejum.

E ainda um aspeto importante que não queria esquecer: nós fazemos o jejum na Quarta-feira de Cinzas e Sexta-feira Santa, mas todas as sextas-feiras é um dia de combate espiritual forte e em que há a tradição da abstinência. A abstinência é não comermos carne, e o que é não comer carne? Não comer carne é não derramar o sangue, não cortar outra vida para nós termos vida. Há quem diga: não é nada importante isso de ser carne ou de ser peixe, hoje em dia o peixe é mais caro que a carne. Eu acho que estas coisas têm um grande sentido. Na sexta-feira da quaresma, a abstinência tem esse sentido literal de não comermos carne e comermos outro tipo de alimentos que não impliquem o derramamento de sangue. Mas, claro, esses alimentos têm de ser marcados também por uma frugalidade, porque este tempo é um tempo frugal. Isso compreende-se muito bem: se é um tempo em que nós estamos a caminhar, quem caminha não anda em banquetes, quem caminha leva uma sandes no saco e toca a andar porque o que importa é a viagem. Então, estes 40 dias são dias de viagem, não são dias para estarmos parados com grandes festejos porque isso só impede e distrai do caminho que temos de fazer. Por isso, tem de predominar neste tempo um sentido de frugalidade.

E depois, claro, tudo isto é para ampliar a nossa capacidade de amar, de servir e de cuidar. Por isso, neste tempo, a dimensão da esmola é uma dimensão fundamental. Não é apenas eu, com Deus, aqui a minha luta, o meu combate interno, não, é na expressão da minha relação com os irmãos – ela tem de ser requalificada, tem de ser transformada em gestos de amor, de cuidado, de atenção, de caridade, em multiplicar os atos de caridade. E renunciar até – e a Igreja diocesana pede que façamos isso – por exemplo, se eu bebo três cafés há um que eu renuncio e aquele dinheiro, no fim da Quaresma, é entregue como renúncia quaresmal para uma instituição ou para uma causa que o nosso Patriarca indica. É o nosso contributo, é o meu estilo de vida mas desse estilo de vida eu retiro qualquer coisa para pensar nos irmãos. É só um exemplo daquilo que deve ser uma atenção e uma atitude que nos ajuda a viver este tempo.

Queridos irmãs e irmãos, vamos continuar a nossa celebração, vamos agora abençoar estas cinzas e recebê-las na nossa cabeça. Que estes 40 dias sejam dias bem vividos por cada um de nós, porque é uma oportunidade para a nossa vida. Sintamos como uma necessidade, nós necessitamos deste tempo, nós precisamos renascer. Precisamos mesmo, cada um de nós precisa mesmo. E por isso, recebamos esta cinza como um desafio a uma transformação, a uma aceitação de que somos pecadores e precisamos fazer um caminho. Mas, ao mesmo tempo, com a responsabilidade das cinzas que parecem apagadas, eu tenho de fazer surgir o fogo novo da ressurreição, tenho de reacender esta vida com a graça de Deus em mim.

Pe. José Tolentino Mendonça, Quarta-feira de Cinzas

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