Memória

“2/3″][vc_tabs interval=”0″ style=”tab-style-one”][vc_tab title=”2015″ tab_id=”1413887764-1-26″]

Dezembro

height=”10″][vc_toggle title=”2015/12/25 – Advento / Natal 2015″ open=”false”][dt_cell width=”1/2″]

Domingo I do Advento

Domingo I do Advento

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Domingo II do Advento

Domingo II do Advento

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Imaculada Conceição

Imaculada Conceição

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Domingo III do Advento

Domingo III do Advento

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Domingo IV do Advento

Domingo IV do Advento

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Domingo I do Advento - Crianças

Domingo I do Advento

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Domingo II do Advento - Crianças

Domingo II do Advento

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Imaculada Conceição - Crianças

Imaculada Conceição

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Domingo III do Advento - Crianças

Domingo III do Advento

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Domingo IV do Advento - Crianças

Domingo IV do Advento

[/dt_cell][/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/16 – Deus – conversas de Maria João Avillez com João Taborda da Gama” open=”false”]

Como João Taborda da Gama “saiu do armário” e entrou na Igreja

Foi já na Faculdade de Direito, onde procurou e não encontrou a infalibilidade das leis, que João Taborda da Gama começou a ler a Bíblia, uma versão em inglês que tinha lá em casa. E por aí começou o processo conversão deste especialista em Direito Fiscal que também é comentador e que em Novembro fez parte do Governo por três semanas. Um processo de conversão que que demorou alguns anos, que o levou a encontrar o seu lugar na Igreja Católica e que contou no último Conversas sobre Deus, que teve lugar esta semana na Capela do Rato, em Lisboa.

Nascido em 1977, filho do socialista Jaime Gama, ex-ministro e ex-presidente da Assembleia da República, e da professora Alda Taborda, João tinha em casa uma “atitude neutra” em relação a Deus. Filho único, criado no Lumiar, tem “poucas lembranças de reflectir sobre a existência de Deus na infância e adolescência”. Como contou na conversa com Maria João Avillez, não foi baptizado em bebé, mas os pais ainda “fizeram alguns esforços” e um deles foi inscrevê-lo na catequese, de onde foi expulso com um primo por apresentarem uma versão pouco canónica da Avé Maria.

“Não me apareceu Jesus Cristo de cachecol do Sporting, nem uma luz ou um trovão”, gracejou na noite de quarta-feira. Aos 21, 22 anos começou a ler a Bíblia. “Aquilo que li, sobretudo no Novo Testamento – as parábolas e os desafios de Jesus – começou a fazer cada vez mais sentido”, contou João Taborda da Gama. Depois, começou a sentir necessidade de aprofundar o conhecimento cultural e histórico, começou a interessar-se pela pessoa histórica e política de Jesus.

“Às tantas, esse processo interior começou a ser racionalizado” e teve uma pessoa – “há sempre uma pessoa nestas histórias” – que o ajudou no caminho que, rapidamente, percebeu que o levaria à Igreja. “Muito cedo, no meu processo de conversão, percebi que não seria só um processo interno da minha relação com Deus. A dúvida era: ‘eu não conheço a Igreja, será que a Igreja tem lugar para mim’”, recordou, definindo o seu percurso como “muito sereno”.

Renascença – para ler o artigo completo e ouvir a gravação clique aqui.

conversasDeus2015_capelaRato_noticia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/14 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]

Mais informações aqui.

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/13 – Chamamento à alegria” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

Em tempo do Advento, em pleno tempo do Advento, nós sentimos este chamamento à alegria. A alegria, que parece uma coisa fácil, parece um mandamento simples de cumprir. Contudo, a alegria é um mandamento exigente. Os judeus diziam mesmo que de todos os Dez Mandamentos aquele mais difícil de cumprir era o mandamento da alegria, que mandava guardar as festas.
A alegria não é simples. E não é simples porquê? Porque a alegria muitas vezes é fugaz, sentimos que há uma grande preparação mas depois a alegria não permanece. E isso acontece, por exemplo, com o Natal, um certo Natal. Prepara-se tanta coisa, tanto caminho, tanta compra, tanto desejo para o Natal e depois o Natal são aquelas escassas horas que depressa passam, e depois mergulham num contraciclo, numa melancolia, porque afinal tivemos tanta espectativa e depois o Natal não realizou, não se satisfez aqueles desejos mais fundos que estiveram no nosso coração. A alegria é, por isso, uma coisa fugaz.

Depois, muitas vezes a alegria não depende de nós, ou sentimos que não depende só de nós. Podemos querer a alegria mas as situações, às vezes, são marcadas pelo sofrimento ou temos de comungar o sofrimento dos outros e isso não é possível. Ou então pensamos na alegria como um estado de isenção, é porque não nos dói nada que estamos alegres, é porque não nos falta nada que estamos bem, é porque tudo corre conforme imaginamos que nós vivemos a alegria. Ora, isso nunca acontece, ou raramente acontece, porque nós não fazemos uma experiência da vida neutral, é sempre marcada por uma questão, por uma sombra, por uma notícia que chega, por uma contrariedade, por uma contradição e parece que a alegria não é possível.

Contudo, como diz S. Paulo na Carta aos Filipenses, o Senhor pede para celebrarmos a alegria: “Alegrai-vos, de novo vos digo: alegrai-vos.” Então, isto que parece ao mesmo tempo acessível e tão difícil é um mandamento que vem até nós. Porque é que nos havemos de alegrar? Qual é o grande motivo de alegria que nós temos? O grande motivo de alegria é aquele que o profeta Sofonias hoje nos diz, e que também nos é repetido pela boca de João Batista: o motivo da nossa alegria é porque Ele está no meio de nós. É porque Aquele que nasce é o Deus connosco, é Aquele que, de facto, habita já a nossa própria experiência, mesmo na sua fragilidade, mesmo no que ela tem de mais precário, provisório, opaco, exigente, contraditório. Deus está connosco, há uma aliança que o presente já celebra. Nós podemos tocar a presença de Deus.

Um grande teólogo cristão do século XX e um grande mártir da fé cristã, Dietrich Bonhoeffer, dizia isto: “Deus, como é que vem ao encontro do homem? Deus vem ao nosso encontro não apenas num “Tu”. Não é um “tu”, como encontramos na rua, como encontramos uns com os outros. Deus vem não apenas como um “tu” mas Deus vem como um “isto”.” Isto é, Deus vem como esta vida que nós temos para viver, no meio dela o Senhor está. O tempo do Advento é também o tempo de um reconhecimento de que Ele está connosco, de que Ele está presente, de que Ele já está no meio de nós. E essa é a razão profunda da nossa alegria.

Como fazer isso? Penso que com uma disponibilidade para acreditar, com uma capacidade de ver não apenas com os olhos mas também ver com o coração, com uma capacidade de esperar, de esperar e muitas vezes esperar contra todas as evidências, esperar contra toda a esperança como diz S. Paulo. Confiar Nele, descobrindo-O, tateando-O, presente na vida que nós vivemos. E isso faz-nos perceber o repto que também nos é dito pelas leituras de hoje: “Não vos preocupeis, não temais.”

Nós vivemos, muitas vezes, o tempo do Natal como uma sobreocupação: é uma quantidade de tarefas e andamos como formigas, atarefadíssimos a preparar isto, a preparar aquilo, preocupados com isto e com aquilo. E, no fundo, a grande palavra é não preocupar-se. A grande tarefa é, de facto, acolher, desenvolver essa arte de acolhimento no seu coração, essa capacidade de perceber que o dom é mais do que a preocupação, do que o tráfico mecânico que nos empurra para isto e para aquilo num consumismo que nos consome.

O Natal verdadeiro passa por conseguir aquela paz de que nos fala também S. Paulo na Carta aos Filipenses. Como ele diz numa fórmula tão bela: “E a paz de Deus, que está acima de toda a inteligência, guarde os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus.” O objetivo de um cristão no Natal é precisamente avizinhar-se desta paz. Mais do que todas as preocupações que prendem o nosso coração, que o cristalizam, que o capturam muitas vezes em corridas que não levam a nada. Perdermos o medo para podermos acolher esta paz que vem de Deus e que excede tudo aquilo que podemos desejar, aquilo que podemos querer.

O Natal é assim um tempo de acolhimento, um tempo para a hospitalidade de Deus, um tempo para recebermos a sua alegria. É um tempo interior o Natal, é um tempo espiritual. Por isso, mais importante que todo o resto é este caminho interior que cada um de nós faz, no reconhecimento de que Deus vem no “isto” que é a nossa vida, que é aquilo que vivemos, que é o presente do mundo, que é a hora atual da pequena história de cada um de nós e da grande história da vida.
Mas, ao mesmo tempo, o Natal também se reconhece na pergunta que por três vezes ouvimos hoje ser feita a João Batista: “Que devemos fazer?” Perguntaram as multidões, perguntaram os publicanos, perguntaram os soldados: “Que devemos fazer? Que devemos fazer?” O Natal também é um fazer, mas o que é que devemos fazer? Se calhar já estamos a fazer muitas coisas, já temos um programa de ação que faz o dia transbordar, não cabe no dia tudo o que temos para fazer. E, contudo, fica a pergunta: que devemos fazer?

Será que nós estamos a fazer a coisa certa? Será que nós estamos a fazer aquilo que Deus espera que façamos? Será que nós paramos para escutar o que Deus nos pede que façamos? Será que tudo aquilo que fazemos não é uma desculpa, não é um adiar da única coisa que Deus nos pede, neste Natal, que nós façamos? Que devemos fazer? É uma pergunta que também nos prepara, nos prepara para o Natal.

Queridos irmãs e irmãos, continuemos este caminho com ânimo. Hoje acendemos a terceira vela, vamos rezar na ação de graças a oração de S. José, a figura do presépio que nos acompanha neste domingo em comunidade. Vamos pedir para que, passo a passo, dia a dia, nós sejamos capazes de mergulhar mais profundamente no mistério de Deus. E, assim como somos, pobres, inacabados, mas também inquietos, dispersos, encontremos no Menino que nasce uma possibilidade de unidade interior, uma cura das nossas feridas, das nossas mazelas, uma confiança reaprendida, uma esperança que em nós fica a brilhar como a estrela do presépio.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento

Clique para ouvir a homilia

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/12 – Atelier RESPIRA, para pais e filhos” open=”false”]atelierRespira_capelaRato_01

RESPIRA é um conto ilustrado para pequenos e grandes. É a história de um menino que não consegue dormir, porque a sua cabeça não pára de pensar, e da sua mãe que decide ensiná-lo a respirar.

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Ele pensa que já sabe respirar. Todos pensamos que sabemos respirar, porque para respirar não é preciso saber muito. Mas poucos paramos realmente para ver como respiramos.

Nascemos com uma inspiração, morremos quando expiramos pela última vez. No dia-a-dia continuamente inspiramos e expiramos, e nestes dois movimentos está a essência da própria vida: receber e dar. É o equilibro entre estes dois gestos que nos permite seguir em frente sem nos sentirmos sufocados ou desgastados.

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Nas diferentes tradições religiosas Deus (ou o Transcendente) é comparado muitas vezes ao vento, à brisa, ao sopro que dá vida. Tomar consciência da respiração é também conectar com a Vida que respira em nós, com o Deus que nos dá vida.

A partir de exercícios muito simples e visuais poderemos ensinar os mais pequenos a respirar como uma onda do mar, como uma árvore que cresce, como o vento que sopra as nuvens, como um gato ou um pássaro, um sino ou um balão… Sem se darem conta, as crianças estarão repetindo exercícios do ioga, do Tai Chi ou do Chi Kung, realizando respirações abdominais ou visualizações conscientes.

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Quando nos centramos por uns momentos na respiração deixamos de pensar no passado ou no futuro, no que nos assusta ou no que nos irrita. Estamos aqui e agora, em conexão profunda com a Vida. Controlamos as nossas emoções e serenamos o nosso corpo agitado. Aprendemos a ver as coisas que nos rodeiam tal como são.

Este tempo de Advento, de espera, pode ser uma boa ocasião para nos prepararmos interiormente para acolher o Mistério, para entrar devagarinho no silêncio e centrarmo-nos no essencial.

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RESPIRA é o segundo livro da nova coleção infantil Pequena Fragmenta, que Inês Castel-Branco apresentará em Lisboa no sábado dia 12, às 18h, na Livraria Ferin, acompanhada pelos jornalistas António Marujo e João Miguel Tavares. (www.fragmenta.pt)[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/09 – Deus – conversas de Maria João Avillez com Henrique Monteiro” open=”false”]

Dá “muito trabalho” ao maçon Henrique Monteiro explicar que não é católico

Na Conversa sobre Deus desta semana, o jornalista e escritor Henrique Monteiro explicou porque é que não é católico, mas defendeu uma visão crente do mundo e as raízes cristãs da Europa.

Um dia, à mesa, em casa de Maria João Avillez, como se pedisse “passa-me o vinho” ou “dá-me o pão”, Henrique Monteiro disse “Eu pertenço à maçonaria”. A história foi contada pela anfitriã na sessão desta semana das Conversas sobre Deus, em que o jornalista e escritor se assumiu como crente, contou como foram “ínvios” os seus caminhos até Deus e mostrou um conhecimento vasto da Bíblia.
Numa hora de conversa interessante e, em muitos momentos, divertida, Henrique Monteiro começou por deixar bem claro que não é católico, pelo que “muitas coisas” lhe “passam ao lado”. Não sabia, por exemplo, que o Jubileu da Misericórdia tinha começado na véspera. Mas, acrescentou: “A maior parte das vezes dá tanto trabalho explicar porque não sou católico que digo que sou.”

Ali, na Capela do Rato, frente a católicos, considerou, contudo, que tinha a audiência certa para explicar porque é que não é católico. E não é porque há “coisas” da doutrina católica em que não consegue acreditar “no fundo do coração”. Coisas como a transubstanciação ou a virgindade de Maria.

Renascença – para ler o artigo completo e ouvir a gravação clique aqui.

conversasDeus2015_capelaRato_noticia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/08 – Deus é o parteiro das nossas almas” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

Eu já falei aqui, penso que muitos conhecem, até já leram os diários e as cartas desta autora, Etty Hillesum. Etty Hillesum era uma rapariga judia, da burguesia de Amesterdão, que vivia uma vida um bocadinho dispersa. Tinha muitos talentos mas não sabia bem o que é que a vida havia de ser. Estudou Direito, depois abandonou Direito, gostava muito de literatura mas não sabia se era para ser professora, se queria ser escritora. Estava assim naqueles momentos da vida em que podemos ser tanta coisa e não sabemos bem qual é a nossa vocação.

Ela era judia de nascimento e de família, mas era também muito secularizada. A religião era uma tradição familiar, não era uma experiência vital para ela. E isto passava-se no período antes da Segunda Guerra. Quando começa a emergência do nazismo na Alemanha começam a chegar à Holanda muitos judeus fugidos da Alemanha e, entre eles, chegou um psiquiatra, discípulo de Jung, chamado Julius Spier. Era um homem com uma grande capacidade de perceber a linguagem simbólica, a linguagem da vida, um homem com um sentido religioso muito natural. Etty Hillesum conhece-o, primeiro como paciente, e depois mantêm uma relação amorosa. Este encontro vai mudar a vida de Etty Hillesum. Porquê? Porque, no fundo, ele vai, de certa forma, abrir a alma dela para a história que viria. Ela não sabia qual era o seu destino, qual era a sua vocação. Depois vai perceber que a sua vocação é dar a vida pelos outros. Depois oferece-se como enfermeira voluntária para o campo de concentração, e depois fica prisioneira e morre no campo de concentração. É uma história que nós podemos ver como uma história terrível, numa das horas mais negras do século XX, mas ao mesmo tempo é uma das histórias mais extraordinárias. Porque aquela mulher no campo de concentração, no meio da miséria, no meio da lama, rezava de madrugada na latrina do campo de concentração porque era o único lugar onde estava sozinha. Ela criava duas flores no meio do lixo porque ela precisava de beleza. Mas, no meio do tormento inimaginável que nós sabemos ser o de um campo de concentração, e isto é um escândalo, aquela mulher foi feliz. Etty Hillesum foi feliz, no meio daquela coisa medonha.

Ela no seu diário falando deste Julius Spier, deste primeiro encontro, usa uma expressão muito bonita, e foi por causa dessa expressão que me lembrei de falar dela hoje. Ela diz: “ Ele foi o parteiro da minha alma, o parteiro da minha alma, porque me preparou para um grande amor. O amor que eu vivi com ele preparou-me para um grande amor.”

Nós precisamos de parteiros para o nosso corpo, para nascermos, mas depois, ao longo da nossa vida, precisamos de parteiros para a nossa alma que nos ajudem a nascer. E muitas vezes nós somos instrumentos de Deus na vida uns dos outros, para sermos parteiros da vida uns dos outros.

Ainda ontem, por exemplo, fui ver o filme do Nanni Moretti “Minha mãe”. Um filme que eu recomendo muito e que, do meu ponto de vista, não é um filme sobre a morte da mãe mas é um filme sobre a transmissão da vida – como é que aquela mulher em fase terminal, numa cama do hospital, consegue transmitir vida à mistura com muitas lágrimas, com muito sofrimento, com muita dor. Ela transmitiu vida. Ela transformou a vida de cada um, transformou a vida da sua neta que passou a olhar para o latim de outra maneira, transformou a vida da sua filha, transformou a vida do filho. Aquela mulher na cama do hospital a morrer, a descobrir-se numa situação dramática, estava a ser a parteira da alma deles todos.

Não temos de imaginar uma situação ideal para pensarmos no nascimento e na transformação que acontece na nossa vida e na vida uns dos outros. Deus é o parteiro da nossa alma, Deus é o parteiro da nossa alma.

Hoje nós celebramos a Imaculada Conceição de Maria. O que é isso? É dizer isto: Deus preparou Maria para a história de amor e de dor, porque as histórias de amor são também histórias de dor, Deus preparou Maria para a sua história. Deus preparou-a para que ela pudesse ser mãe, para que ela pudesse ser mãe daquele Filho, para que ela pudesse entrar como protagonista no interior daquela história, uma história fascinante e exigentíssima como nós percebemos a olho nu olhando para o presépio.

Olhamos para o presépio e percebemos que aquela história não é uma história simples de viver, não é uma história simples de protagonizar. Como as nossas histórias não são simples de viver. O que nos é dado para viver não é simples, não é evidente. Mas Deus é parteiro da nossa alma, Deus prepara-nos, Deus prepara-nos para podermos viver o que nos é dado viver, e que muitas vezes nós não escolhemos, mas vem a o nosso encontro, é-nos anunciado.

Muitas vezes é-nos anunciado por um Anjo, outras vezes é-nos anunciado por um médico, outras vezes é-nos anunciado pelo nosso chefe, outras vezes é-nos anunciado por um irmão, por um amigo, outras vezes é anunciado por alguém de quem não gostamos, mas é-nos anunciado, é-nos anunciado. E nesse anúncio percebemos que alguma coisa na nossa vida se transforma. Mas é importante nós sentirmos, e é o motivo desta festa, sentirmos que Deus está-nos a preparar, está a preparar a nossa alma para tornar possível.

É muito belo o diálogo de Maria com o Anjo. Porque, no diálogo dela, nós temos as três etapas de todos os processos de nascimento da alma ao longo da nossa vida.

A primeira etapa é a etapa da surpresa, da surpresa. E uma surpresa que não é só surpresa é mixed feelings, tantos sentimentos ali: é surpresa, e é medo, e é desconcerto. Mas o que é isto? Um espanto. Mas, comigo? Mas, não houve engano? Mas, não se enganaram? É essa a primeira reação. Maria ficou perturbada com as palavras, mas a palavra do Anjo é a palavra que é dita a cada um: “O Senhor está contigo, o Senhor está contigo.” Podemos ficar perturbados, assustados, desconcertados mas é importante sabermos isso: naquele momento o Senhor está contigo, o Senhor está contigo.

O segundo momento é o momento da dúvida radical. Maria diz: “Mas como é que isso pode ser? Como é que isso é possível? Eu não vejo, eu não vejo como possa prosseguir.” Quando o Anjo lhe diz: “Não, a tua história vai prosseguir. Tu vais ser mãe, vais crescer, vais dar à luz, vais conceber, vais maturar.” Ela diz: “Eu não vejo como isso seja possível.” Porque entre aquilo que somos chamados e o conhecimento das nossas possibilidades e das nossas forças há um intervalo, há uma distância. E o que sentimos é a nossa fragilidade, a nossa incapacidade de corresponder. Porque o que nos é pedido é sempre um salto.

Por isso, a terceira palavra é: Maria ficou desconcertada, ficou assustada, Maria deitou contas à vida e disse: “Isso não vai dar. Isto não vai dar certo porque eu não sou capaz, e não estou a ver como é que isso aconteça.” E depois Maria confia, Maria abandona-se, Maria diz: “Faça-se em mim segundo a tua palavra.”

Este abandono confiado de quem, perante a vontade de Deus e perante os mistérios que Deus revela na nossa vida, se entrega, avança, diz que sim, confia. Mesmo não tendo a evidência, mesmo contando com a sua fragilidade, a sua vulnerabilidade, Maria confia.

E diz uma coisa muito importante, Maria diz: “Faça-se em mim, faça-se em mim.” Quando dizemos: “Deus é o parteiro da minha alma”, não é uma coisa que está acontecer através de nós, é uma mudança em nós, é uma vida em nós, somos nós que estamos em jogo, é alguma coisa que vai acontecer em mim. “Faça-se em mim segundo a tua palavra.” Então não é uma coisa que passa por nós, é uma coisa em nós, em nós.

Quando celebramos a Imaculada Conceição, podemos encarar esta festa de muitas maneiras: falar dos privilégios de Maria, falar da isenção de Maria. Eu penso que o mais importante é perceber que Deus prepara Maria, Deus prepara-a para a sua história singular como Deus nos prepara para as nossas histórias singulares, porque Ele é, de facto, o parteiro das nossas almas, Ele assiste ao nosso nascimento.

O importante é cada um de nós poder percorrer estas várias etapas, que são as etapas do nosso percurso, da nossa trajetória de fé, da biografia da nossa fé. Percorrermos estas três etapas e, no final, colocarmo-nos com a atitude de Maria. Porque é a atitude desta mulher que não sabe como mas confia, mas que acredita que aquilo que aos nossos olhos, tantas vezes e de muitos modos, nos parece impossível a Deus é possível, a Deus é possível. E, no fundo, é esta confiança naquilo que só em Deus é possível, só em Deus é possível.

Nós, nas duas leituras anteriores, tivemos o livro do Génesis, que é a construção de um embaraço, de um obstáculo, de uma falta original, e depois temos a leitura da Carta de S. Paulo aos Efésios que é dizer: “Não, nunca nos faltou a bênção de Deus, a santidade é uma chuva que nos inunda, que nos molha, Deus está sempre, desde o princípio, vede com que admirável amor o Pai do céu nos abençoou com todas as bênçãos espirituais.”

Quer dizer: nunca nada nos faltou, Ele esteve sempre connosco. Nós só compreendemos isto por debaixo da pele, por debaixo, às vezes, de muitas dúvidas, por debaixo de muito estremecimento, por debaixo de muito questionamento. Mas é importante sabermos isso, que Ele esteve sempre connosco, que nós somos seus filhos e que nós somos seus herdeiros. E que muitas vezes no limite, na dificuldade, no questionamento radical Deus transmitiu-nos alguma coisa.

Como aquela mãe do filme do Nanni Moretti, na cama do hospital ela transmitiu tanta vida àqueles filhos porque cada um pode recomeçar, reconstruir a sua história em relação com aquilo que estava a acontecer, em relação consigo mesmos, fazendo um balanço novo da sua própria história. Deus é o parteiro da nossa alma. O tempo do Advento é um tempo que fala disto, de gravidez, de espera e de parto. É por isso, perante o nascimento, perante o nosso nascimento que nós estamos colocados.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Imaculada Conceição

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/08 – Leitura comentada da 1ª Carta de João” open=”false”]

Na abertura do Ano Santo da Misericórdia, Luís Miguel Cintra lê a 1ª Carta de João, a que se seguirá um comentário sobre a mesma com o ator e o Pe. José Tolentino Mendonça. Será no dia 8 de dezembro, às 21h30, na Capela do Rato.

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/06 – Preparai, aplanai, endireitai” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

É muito forte este oráculo de Isaías, que nos apresenta uma imagem topográfica, geográfica. É como se fosse um movimento das terras. É como se fosse um aplanar, retirar altura aos montes, aplanar o próprio vale. Isto é: mover a terra da forma como nós a conhecemos para que toda a carne possa ver a Salvação de Deus.

Por trás do oráculo há esta convicção de que a Salvação de Deus se pode ver, que todos a podem ver. E que, no fundo, a nossa própria topografia, os montes que fazemos, os vales, os abismos, as colinas muitas vezes são obstáculos para que a Salvação de Deus se possa ver, se possa provar, se possa experimentar. E então este imperativo profético: “Preparai, aplanai, endireitai.” Este imperativo é em nome dessa convicção adventícia de que é possível ver a Salvação de Deus, de que é possível.

Mas isso passa por um refazer, um reconfigurar da nossa vida, da vida que nós diariamente construímos. Há uma reconfiguração que o Natal nos pede. Isto é: a vida de cada um de nós é também chamada a reconfigurar-se, a ganhar uma nova forma. Sermos um novo território com aquilo que já somos, com aquilo que caminhamos, com aquilo que possuímos mas darmos uma volta, constituirmos uma alternativa – é o desafio que o Advento nos deixa.

O Advento não é para confirmar, é para alavancar, para reconfigurar, para transformar a nossa vida. É muito significativo o modo como o narrador de S. Lucas dá um salto. Começa por aquele endereço histórico no tempo de Tibério, no tempo de Pilatos, no tempo de Herodes, no tempo de Filipe, no tempo de Lisânias, apareceu João Batista no deserto. Isto é: no tempo dos reis, no tempo do mundo formatado com a autoridade de todos os tempos, Deus aparece como um anúncio que é feito no deserto. Isto é: como uma alternativa, como num lugar outro, num ponto de fuga em relação à nossa vida.

Também naquilo que vivemos há um deserto. Isto é: há uma outra possibilidade, há um outro lugar a partir do qual podemos reconstruir a nossa vida. É muito belo que as leituras de hoje falam todas disso mas partindo de duas experiências diferentes.

O Advento pode-se viver como um regresso, como um regresso. É isso que nos fala o profeta Baruc. Israel está no exílio e Israel vai ser trazido para a terra. Então, nós, em cada Natal, somos arrancados dos nossos exílios e somos feitos retornar, somos feitos voltar ao centro. Nós todos sabemos o que é a experiência do exílio, todos conhecemos porque todos vivemos no concreto, na vida, uma situação de exílio existencial, de exílio interior.

Há aquele poema de Sophia de Mello Breyner Andersen:

“Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade
medindo o equilíbrio dos meus passos.

Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam,
e, quando eu um momento detida me esqueço, a força
perversa das coisas ata-me os braços e atira-me,
prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio
horror das voltas do caminho.”

Todos nós sabemos o que é estar prisioneiro de ninguém. Prisioneiro de ideias, prisioneiro de fantasmagorias, prisioneiros de coisas não cumpridas, prisioneiros não da verdade mas só de laços no vazio horror das voltas do caminho.

Pois o Senhor faz-nos voltar e este é também um tempo para sermos resgatados do exílio e sentirmos que Aquele que vem, Aquele que nasce na manjedoura, este Deus feito homem resgata a nossa vida dos seus exílios, das suas prisões, traz-nos colo com a alegria, com a consolação. Porque a palavra que Baruc diz a Jerusalém é: “Levanta-te, levanta-te dos teus escombros, das tuas ruínas, olha, vê a glória de Deus.” Então, de facto, um modelo é sentirmos que temos de voltar. E se calhar cada um de nós no seu coração sente: “Não, eu tenho de voltar, eu tenho de reavivar a chama, eu tenho de voltar a ser, eu tenho de voltar a sentir, tenho de voltar a dizer «sim» com mais convicção.” Então é como que um acordar, como que um regressar a casa, o próprio Natal. Não a casa de uma infância idealizada, mas a casa que é o coração de Deus. Temos de voltar.

Mas há um outro paradigma que é dado pela carta aos Filipenses. A comunidade de Filipos é um caso interessante na história de S. Paulo, porque se calhar é aquela comunidade à qual Paulo ficou afetivamente mais ligado. Há ali uma história de amizade muito bonita. Os Filipenses ajudaram imenso Paulo de todos os pontos de vista. Paulo estava preso e os Filipenses fizeram tudo para lhe garantir o sustento, a proteção. Há ali uma bela amizade que se vê explicitada quando Paulo agradece aos Filipenses na carta que lhes escreve.

Mas Paulo diz uma coisa: “A fé que eu semeei em vós e que já mostraste provas tão importantes, ela ainda é uma semente. Então é preciso crescer, é preciso continuar a crescer. Por isso, peço que a vossa caridade cresça cada vez mais em ciência, em discernimento para que vos torneis dignos do dia de Cristo.”

Então, se calhar, além da imagem do regresso há também esta imagem do crescimento, há uma semente no coração de cada um de nós. A nossa relação com Deus, o nosso desejo de Deus, o sim que já dissemos a Jesus é uma semente, mas este é o tempo para crescer, este é o tempo para sentir: “Eu posso fazer mais, eu posso comprometer-me mais, eu posso conhecer melhor, eu posso crescer em ciência, em discernimento, em oração.” Este é o tempo do grande apelo a uma maturação da fé, porque Deus faz-se pequenino para que cada um de nós possa crescer e possa verdadeiramente acolhê-lo.

Mas estas duas imagens são imagens para aqueles que já estão dentro, para aqueles que já foram tocados pelo mistério da fé. Quer os que regressam dos seus exílios, quer aqueles que são chamados a desenvolver aquilo que já lhes foi dado. Já estão dentro, já foram tocados, já conhecem a Salvação de Deus, têm é de despertar, têm é de fazer mais, mas já estão dentro.
Mas há um outro modelo que o Advento não deixa de fora: são aqueles que ainda não foram tocados pelo mistério da fé e que guardam no seu coração a fome de Deus. É importante rezar por aquilo que Deus pode fazer no coração de cada homem, no seu mistério, acreditando nesta palavra que vem no oráculo do profeta Isaías e que se torna uma chave no Evangelho de S. Lucas: “Toda a carne verá a Salvação de Deus.”

Esta universalidade da Salvação é alguma coisa pela qual nós somos responsáveis, pela qual nós temos de rezar. Temos de sentir no nosso coração o desejo muito grande de que Deus possa, do modo como Ele quer, da maneira que só Ele sabe, da forma como só Ele pode, possa iluminar cada coração, cada vida. E rezar pelo mistério da fé que existe em nós e existe nos outros de forma sempre diferente, de forma sempre única, para que Deus possa, como diz S. Paulo: “Ser tudo em todos.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II do Advento

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/06 – Poesia em tempo de Advento” open=”false”]O poeta João Moita fará uma leitura de poemas do seu último livro «Fome», na Capela do Rato, dia 6 de dezembro, domingo, às 10h30. João Moita nasceu em Alpiarça em 1984. Publicou O vento soprado como sangue (Cosmorama, 2009), Miasmas (Cosmorama, 2010) e Fome (Enfermaria 6, 2015). Traduziu uma antologia do poeta espanhol Antonio Gamoneda, Oração Fria (Assírio & Alvim, 2013).

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joaoMoitaLivro_capelaRato_noticia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/12/02 – Deus – conversas de Maria João Avillez com Carminho” open=”false”]

“Deus está antes do dom” e o de Carminho é “abrir portas”

Nas “Conversas sobre Deus”, moderadas por Maria João Avillez, a fadista Carminho falou do seu dom, explicou que a sua vocação não é cantar e confessou que quis ser carmelita.

“Nasce-se artista”, garantiu Carminho numa conversa numa noite fria em que a Capela do Rato se encheu para ouvir a fadista, não a cantar, mas a percorrer as suas memórias de infância e juventude e a mergulhar na sua fé.

Depois de batalhar com o microfone, Carminho foi respondendo às perguntas que a jornalista Maria João Avillez lhe colocou. Sobre a “luz da sua voz”, a fadista falou de um “dom” e explicou que tinha uma “bênção” de ter descoberto a sua vocação. Mas desenganem-se os que pensam que essa vocação é o fado. Carminho afirma que “a vocação não é cantar” e explicou que a sua vocação está na forma como, através do canto, chega aos outros e conclui: “A minha vocação é abrir portas”.

Questionada sobre se estava a falar de Deus, Carminho disse que sim porque “Deus está antes do dom, o dom foi dado por Ele”. Esta pré-existência manifesta-se através de “pistas” e é preciso “cruzar informação”. A fadista diz não acreditar em coincidências e sublinha que é preciso ler a Palavra de Deus.

Das memórias de juventude, Carminho recordou uma viagem que a levou por paragens tão distantes como a Índia, Timor ou Brasil. Da passagem por Calcutá lembrou que “quis ser carmelita” e riu-se ao concluir que “iria infernizar o Carmelo”. Foi na Índia que se encontrou consigo própria, foi essa a grande revelação dessa viagem que deixou sementes das quais disse ainda hoje estar “a colher frutos”.

Renascença – para ler o artigo completo e ouvir a conferência clique aqui.


Carminho: Deus é como uma «montanha russa»

Deus é como uma «montanha russa» que desinstala e desafia a ir mais longe, afirmou a cantora e compositora de fado Carminho, no ciclo de conversas sobre Deus organizado pela comunidade da capela do Rato, em Lisboa.

Entrevistada esta quarta-feira pela jornalista Maria João Avillez, em diálogo de que reproduzimos alguns excertos no vídeo publicado logo após este texto, a fadista reconhece que é uma «grande bênção» ter descoberto a «vocação».

Carminho entende que essa «vocação» vai para além do canto, embora a ele recorra, tendo como propósito final dar paz e alegria ao próximo, que tanto pode ser um menino de rua como o público que assiste aos seus espectáculos.

A volta ao mundo, e em particular o voluntariado que prestou na cidade indiana de Calcutá, com as Missionárias da Caridade, foi um dos principais temas da conversa.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – ler o artigo completo aqui.

conversasDeus2015_capelaRato_noticia[/vc_toggle] height=”30″]

Novembro

height=”10″][vc_toggle title=”2015/11/29 – Uma porta que se abre” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

O Santo Padre está, como sabemos, a realizar uma visita apostólica ao Continente Africano, visitando três países : começou pelo Quénia, passou pelo Uganda e agora chegou à República Centro-Africana. Um pequeno país, com cerca de cinco milhões de habitantes, mas completamente devorado pela violência e, em grande medida, uma violência e uma perseguição de natureza religiosa. O Santo Padre recebeu múltiplos avisos e sinais para não se deslocar àquele país, dizem que é a visita mais perigosa de sempre de um Papa, mas ele arriscou e, esta manhã, chegou já à República Centro-Africana.

Estamos a falar dessa visita porque o Santo Padre decidiu antecipar o gesto de abertura do Ano Santo numa semana. Pela primeira vez, a Porta Santa, a primeira Porta Santa a ser aberta, não será como é tradicional, a porta da Basílica de S. Pedro, mas será a porta da Catedral de Bangui, capital da República Centro-Africana. De maneira que, de certa forma, com esta antecipação é também o Ano Santo que começa. Começa, não no centro da cristandade, não no centro simbólico, mas numa periferia. E numa periferia cheia de complexidade, ferida pelo maior sofrimento. Ali há uma porta que se abre.

E nós, cristãs e cristãos, começamos a viver este Advento sob o signo do Ano Santo, sabendo que no coração deste Advento começa o Ano Santo, o Ano da Misericórdia. É-nos oferecido precisamente este símbolo: o símbolo de uma porta, de uma porta que se abre. É importante, cada um de nós sentir que esta porta que se abre na Catedral de Bangui, na Basílica de S. Pedro, que se vai abrir na Sé Patriarcal de Lisboa, esta porta antes de tudo tem de se abrir no coração de cada um de nós. É na nossa vida, é no fundo da nossa alma, é no concreto escaldante da realidade que somos e vivemos que uma porta se tem de abrir.

Temos de abrir uma porta onde possivelmente está um muro, temos de abrir uma porta onde possivelmente tudo está barricado, temos de abrir uma porta onde está o silêncio, onde está o vazio, onde está a solidão. Temos de abrir aí uma porta.

O tempo do Advento deste ano é por isso um grande desafio a cada um de nós a abrir uma porta para Aquele que vem, para Aquele que bate à nossa porta, segundo a belíssima imagem do Livro do Apocalipse: “Eis que Eu estou à porta e bato, se alguém me abrir Eu entrarei, cearei com ele e ele comigo.”

É fundamental, queridos irmãs e irmãos, que cada um de nós sinta isso, que Jesus está à nossa porta e bate, que este é o tempo da nossa libertação, que esta é a oportunidade concedida à nossa vida, que o tempo do Advento que nos prepara para o Natal é uma espécie de alavanca da nossa humanidade. Deus vem ao nosso encontro para que nós possamos ir ao encontro de Deus.

Deus humaniza-se para que a nossa vida se divinize um pouco mais. Para que cada um de nós receba, na sua carne humana, nesta vida de argila, de barro, de sangue, de sonhos, de lágrimas, para que cada um de nós receba com mais intensidade o sopro do Espírito. Esse Espírito que vem de Deus e vem do Filho que está junto do Pai, esse Espírito que em nós testemunha que Jesus está vivo, que Ele caminha connosco, esse Espírito que em nós nos prepara para o grande encontro com Cristo. Este tempo do Advento, sendo uma oportunidade, é por isso um tempo muito espiritual.

Nós, atravessando as ruas da cidade, entrando num centro comercial, já encontramos o Natal feito. E, sem dúvida, sentimos mixed feelings, sentimo-nos divididos. Por um lado, ainda bem que a cidade dos homens e que o comércio dá atenção a estas coisas e perpetua os símbolos cristãos. Mas, por outro lado, aquilo é tão pouco se não for acompanhado por um caminho de humanidade, de consciência, de um abrir de portas, de um abrir de portas mais profundo que a simples reativação ou intensificação do comércio.

O tempo do Advento é, por isso, para nós, uma responsabilidade. É um tempo de profundidade, um tempo de intimidade com Deus, um tempo para crescermos interiormente, um tempo para acender uma luz, e também ficar a olhar e preparar o nosso coração para Aquele que vem. Um tempo de esvaziamento, não um tempo para encher de todo o ruído simbólico. É um tempo de disponibilidade para acolher o Deus que vem.

Pensando nesta porta que cada um de nós é chamado a abrir, eu diria que temos de encontrar uma porta em três níveis da nossa vida.

Primeiro: encontrar uma porta na nossa relação com Deus, abrirmos a porta. Às vezes Deus está perto, mas está do outro lado da porta. Tem de haver uma porta que se abre na nossa espiritualidade, e abre-se porque nós sentimos aquilo que hoje o Evangelho nos diz: sentimos a promessa de Deus como uma promessa que nos é feita.

É muito belo porque, desde o profeta Jeremias até ao Evangelho de S. Lucas, todos falam no futuro, todos fazem uma promessa: “O Senhor vem ao teu encontro, levanta os teus olhos, levanta a tua cabeça porque o tempo está próximo, porque o Senhor vem ao teu encontro.” Quer dizer, há uma promessa de vida feita a cada um de nós.

A nossa vida não está capturada pela fatalidade. Eu não posso dizer: ”Bem, agora já não vai acontecer nada de novo, agora estou perdido, agora já sei como é, agora isto já perdeu toda a graça, agora já perdeu todo o mistério.” Não, a nossa vida é sempre cheia de graça, a nossa vida é sempre visitada pelo mistério. Nós somos visitados por anjos como Maria foi visitada, nós somos seres visitados pela promessa incondicional do amor de Deus na nossa vida.

Por isso, o tempo do Advento é também um tempo para nos sentirmos visitados, prometidos, prometidos à alegria, prometidos ao encontro, prometidos à plenitude e não simplesmente prisioneiros de uma vida rasa, de uma vida medíocre, de uma vida afundada nas suas complicações que já não vai levantar voo nunca. Não, nós vamos levantar voo, nós vamos levantar voo. E vamos levantar voo precisamente na medida em que abrirmos a nossa porta a este encontro com Deus.

Por isso o imperativo de Jesus: “Vigiai e orai.” Este tempo do Advento seja para cada um de nós um tempo para vigiar. Vigiar é um tempo para a atenção, para olhar verdadeiramente porque Deus passa pela nossa vida todos os dias, de tantas formas. O problema é que nós ao fim do dia, ou a meio do dia, não perguntamos mais vezes: como é que Deus hoje passou pela minha vida? Através de que pessoas? Através de que acontecimentos? Através de que pensamentos? Deus passou de forma muito concreta, muito viva, pela minha vida.

Nós temos de fazer esta pergunta porque Ele passa, Ele passa continuamente pela nossa vida e quando passa não nos deixa iguais, transforma-nos se nós abrirmos a porta.

Portanto, dedicarmos a Deus uma atenção, uma vigilância espiritual, termos o nosso coração iluminado, deixarmos uma luz acesa dentro do nosso coração ao Deus que vem.

E depois, a oração. Este é um tempo para multiplicarmos a oração, a oração em família. Por exemplo, juntamente com as crianças, junto do presépio, em cada noite, poder fazer um caminho até Jesus. E cada um de nós, mesmo vivendo sozinho, encontrar com a ajuda dos símbolos uma forma de fazer um caminho na oração, em que rezamos com as palavras tradicionais, com palavras novas, com gestos. Com símbolos encontrarmos uma forma de fazermos um caminho juntos, crescendo na oração.

Nós também aqui, em comunidade como é habitual, com a ajuda do artista plástico Rui Aleixo, vamos fazendo esses caminho em cada domingo do Advento: temos uma imagem e temos uma oração para rezarmos aqui e rezarmos ao longo da semana. Este caminho é um caminho em, que dia a dia, nós construímos o presépio, construímos o lugar para Ele vir, abrimos a porta do nosso coração. Mas sobretudo através da oração, que é aquele momento que nos dá a consciência de que estamos diante de Deus. Eu mulher, eu homem, eu criança, eu doente, eu sénior, eu com saúde, eu ativo, eu na reforma, eu estou diante de Deus. Diante de Deus com a minha pobreza, a minha esperança, eu estou diante Dele. Por isso abro as minhas mãos, abro o meu coração, abro a porta da minha vida.

Depois, uma porta importante para abrir é a porta connosco mesmos, a porta com a nossa vida. Sentirmos que a palavra que Jesus diz, “Levantai-vos, erguei a nossa cabeça”, é uma palavra para nós que muitas vezes ficamos a olhar para os nossos sapatos, quando não a olhar para o nosso umbigo, em vez de abrirmos a porta, em vez de abrirmos uma janela, em vez de olharmos mais longe. Este é o tempo para levantarmos a cabeça.

Isto é, para sentirmos que a esperança é maior, que o chamamento de Deus é maior, que a força de Deus é maior. E se estendermos a nossa mão frágil, se pusermos a nossa mão frágil do outro lado da porta a mão de Deus virá ao nosso encontro.

Sentirmos isso na vida de cada um de nós, e sentirmo-nos chamados ao acolhimento, sentirmo-nos protagonistas desta história. Nós não somos espetadores da Salvação, nós somos artesãos, criadores, artífices, coprotagonistas da Salvação. A Salvação escreve-se com as nossas vidas, com os nossos nomes, com o nosso temperamento, com as oportunidades que cada um de nós tem, e sabe quais são. A Salvação escreve-se aí.

Por isso, este tempo é um tempo também de agitação, é um tempo também para fazer alguma coisa, é um tempo também para sacudir rotinas, é um tempo também para cada um de nós fazer um pouco mais do que aquilo que faz, sabendo o essencial, não perdendo de vista o essencial, que é sempre a verdade mais profunda, que é sempre a autenticidade, que é sempre o abraço que nós sentimos que Deus nos dá e que nós somos chamados a dar aos outros. Porque a terceira porta que nós temos de abrir é esta porta para os outros. Sentindo que a nossa vida é não só uma obra dos outros, mas nós somos dom para os outros.

Nós estamos aqui, queridos irmãs e irmãos, à volta da Eucaristia. A Eucaristia é uma forma sacramental de dizer isto: “A vida é dom.” Nós servimos de alimento aos outros, nós somos o pão que os outros comem, nós somos o vinho da festa que os outros bebem, nós somos a palavra que segura a vida dos outros e é como um fio de luz na noite escura da vida. Nós somos isso uns para os outros e é quando a nossa vida é pão partido, que se distribui e se reparte, que a nossa vida se torna expressão da vida de Jesus, que a nossa vida também se torna Eucaristia.

Queridos irmãos, nós não estamos aqui em Eucaristia, não estamos a começar este tempo belíssimo do Advento para sermos pão que fica no saco e endurece de um dia para o outro, nós estamos aqui para ser dádiva, para aprender de Jesus o que é tornar a nossa vida dom.

O tempo do Natal, tradicionalmente, é um tempo de presentes, é um tempo de pensar nos outros. É muito importante pensar na forma dos presentes e naquilo que os presentes significam, dando, de facto, um sentido. Porque é tão fácil entrar na corrida, é tão fácil entrar no movimento cego, no tráfico sonâmbulo que o comércio nos impõe. O que quer que se venha a fazer, o que quer que cada um sinta no seu coração, qualquer que seja o modo de cada um exprimir o seu afeto, o seu dom, é importante que seja profundo, que seja autêntico, que seja iluminado por Jesus – que seja um abrir de porta, porque às vezes os presentes funcionam como fechar a porta: “Olha, toma lá e não me chateies. Toma lá, e já está. Toma lá e já cumpri a minha obrigação anual.” ou então “Toma lá e dá cá.” Abrir realmente uma porta, escancarar esta porta da misericórdia, neste Ano Santo.

Não podemos esquecer isso: este Advento tem de ser marcado pela palavra misericórdia, por aquilo que a misericórdia significa. Porque Jesus nasceu porque Deus teve misericórdia de nós e deu-nos o que Ele tinha de mais precioso: o Seu próprio Filho. Este Natal cada um é chamado a abrir uma porta santa na sua vida mas fazendo misericórdia, oferecendo misericórdia. Fazendo da misericórdia a nossa arte, a nossa ciência, a nossa sabedoria.

Pe. José Tolentino Mendonça, I Domingo do Advento

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/26 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]

Mais informações aqui.

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/25 – Deus – conversas de Maria João Avillez com Pedro Mexia” open=”false”]

“A Bíblia está cheia de instruções que não compreendemos”

A “Conversa sobre Deus” desta semana passou por vários poemas, filmes, livros, citações de vários autores, com predominância para Kierkegaard e T.S. Elliot. E por muitas referências ao Livro de Job, um livro sapiencial do Antigo Testamento que conta a história de um homem que mantém a fé em Deus, apesar de todas as duras provas a que é sujeito. Com este livro, o cronista e poeta Pedro Mexia aprendeu que Deus não dá as respostas a todas as perguntas.

“Nós esperamos respostas de Deus, mas há muitos livros que não são satisfatórios no sentido imediato de quem procura um Manual de instruções”, disse Pedro Mexia na conversa com Maria João Avillez, esta quarta-feira, na Capela do Rato, em Lisboa. E acrescentou: “A Bíblia está cheia de instruções que não compreendemos.”

Mas essa dimensão de incompreendido, de mistério é central na vivência cristã do ensaísta, para quem o cristianismo “é uma relação com o transcendente e não apenas um conjunto de regras, de crenças, de códigos éticos”.

“O cristianismo a que se retira a dimensão metafisica é um edifício respeitável, mas não passa de uma espécie de ONG”, disse Mexia, depois de explicar que “entre os homens de boa vontade” há a tendência para olhar para os crentes e pensar ou dizer “isto são tudo umas ‘patranhas’, mas, se estas pessoas são melhores por causa disto, ainda bem”. Essa não é contudo a sua visão. “Isso pode ser fonte possível de diálogo entre crentes e não crentes, mas não me diz muito”, afirmou o convidado desta semana, que, à semelhança de Fernando Santos, na semana passada, gosta de citar São Paulo e a máxima: “Se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé.”

Pedro Mexia reconheceu que o seu catolicismo é, em parte, fruto de um “percurso familiar”, mas não só, pois muita gente que conhece e que fez o mesmo percurso não tem hoje fé e saiu da Igreja. “Há uma certa transmissão de valores e de hábitos, nos quais, no meu caso, o catolicismo fazia parte, mas há um momento em que tem de se ficar em pé na bicicleta, sem as rodinhas da transmissão familiar”, disse. Ou seja, há um momento de decisão pessoal, acredita este cronista, que diz ter “uma espécie de pudor religioso” e prefere “viver a fé como um assunto íntimo”.

Renascença – para ler o artigo completo e ouvir a conferência clique aqui.

conversasDeus2015_capelaRato_noticia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/18 – Deus – conversas de Maria João Avillez com Fernando Santos” open=”false”]

Fernando Santos: «Ser católico é uma exigência muito forte»

«Sempre falei com Deus ao longo da minha vida», confessou esta quarta-feira o selecionador nacional de futebol, Fernando Santos, para quem «ser católico é uma exigência muito forte».

Antes de ser dado o apito inicial para a conversa com a jornalista Maria João Avillez, no âmbito do ciclo de encontros sobre Deus organizados pela comunidade da Capela do Rato, em Lisboa, já os repórteres o esperavam na zona mista para obter uma reação à crítica que o Futebol Clube do Porto lhe lançou devido à utilização de jogadores no jogo particular com o Luxemburgo, disputado na terça-feira.

«Não vou falar sobre essas questões, hoje vou falar sobre questões de fé, que é muito mais interessante», respondeu. Foi assim, como um aquecimento, que começou o testemunho de Fernando Santos, de que apresentamos alguns excertos, no vídeo abaixo publicado.

Rezar é a primeira coisa que faz quando acorda, e pouco depois segue-se a leitura dos trechos bíblicos proclamados na missa do dia, em que procura participar, quer esteja em Portugal ou no estrangeiro. Um compromisso que suscita curiosidade, pois não é todos os dias que se está ao lado, na Eucaristia, do selecionador nacional.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – ler artigo completo aqui.


Fernando Santos. Uma fé alimentada na Eucaristia

É junto ao sacrário que mais gosta de rezar, é na Eucaristia que alimenta a sua fé, é em S. Paulo que encontra as palavras para dar testemunho – é assim a fé testemunhada por Fernando Santos, seleccionador nacional de futebol, em mais uma sessão das Conversas sobre Deus, iniciativa que decorre semanalmente na Capela do Rato, em Lisboa, moderada por Maria João Avillez.

A conversa começou com a jornalista a contar que, há uns anos, numa missa semanal em Cascais, se cruzou com Fernando Santos. “Pensei ‘Que estranho!’ Percebi que só podia ser sinal de uma relação não rotineira com Deus”, contou Maria João Avillez. “Percebi que preciso alimentar a fé. Percebi que podia alimentar a fé na Eucaristia”, disse Fernando Santos, contando que, desde 1994, a primeira coisa que faz é rezar e ler as leituras da missa do dia.

Para o seleccionador nacional, ser católico é “uma exigência muito forte”, é “acreditar em Cristo vivo que ressuscitou” e dar testemunho disso é como que uma militância: “Não podemos deixar de dar testemunho independentemente da profissão que tenhamos.”

Fernando Santos contou que nasceu numa família cristã, mas que não tinha prática religiosa. Andou na catequese, foi crismado, mas depois foi-se afastando. “Sabia que havia Deus, não mais do que isso”, recordou. Mas nunca deixou de rezar ao Anjo da Guarda.

Renascença – para ler o artigo completo e ouvir a conferência clique aqui.


conversasDeus2015_capelaRato_noticia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/16 – O pacto das catacumbas” open=”false”]

Publicações: 50 anos depois do «Pacto da Catacumbas», Papa Francisco trouxe «novo impacto na vida da Igreja»

O cardeal-patriarca de Lisboa afirmou que recordar «O Pacto das Catacumbas» é dar “um novo realce e novo impacto na vida da Igreja”, 50 anos depois deste compromisso.

“O pacto com o radicalismo evangélico em torno da pobreza que teve e nos deixou é, mais uma vez, um daqueles estímulos que quase ciclicamente é dado à Igreja toda para voltarmos ao princípio que nos define como cristãos”, explicou à Agência ECCLESIA D. Manuel Clemente, que apresentou a obra esta segunda-feira, na Capela do Rato.

O livro ‘O Pacto das Catacumbas’, de Xabier Pikaza e José Antunes da Silva, recorda os 40 bispos que se reuniram nas criptas de Santa Domitila, Roma, a poucos dias do final do Concílio Vaticano II, em novembro de 1965.

O cardeal-patriarca de Lisboa disse que este compromisso que os bispos firmaram, de «viver um estilo de vida simples e a exercer o seu ministério pastoral de acordo com critérios evangélicos», é ainda “um bom sinal do Concílio Vaticano II”.

“Muito inserido numa certa linhagem correspondendo ao apelo do Papa João XXIII. Os pobres sociologicamente falando e a pobreza em sentido mais englobante ganharam uma grande prevalência e mesmo na tradição católica deixaram de estar tão ligados ao trabalho de algumas congregações religiosas”, recordou D. Manuel Clemente.

O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa sustentou que a “encarnação” deste pacto hoje é o Papa Francisco.

“Creio que para mim, como para todos os meus colegas do episcopado, é uma figura muito estimulante e desafiante para esse radicalismo evangélico. Creio que a melhor figuração do pacto, 50 anos depois, é a pessoa e protagonismo eclesial do Papa Francisco”, desenvolveu o cardeal-patriarca de Lisboa.

A nova publicação, da chancela da Paulinas Editora, foi apresentada na Capela do Rato e o seu capelão destacou que este pacto “é de facto evangélico” porque o bispos procuram fazer um “corte profético”, até com direitos adquiridos.

Agência Ecclesia – ler artigo completo aqui


Cardeal-patriarca apresenta “O pacto das catacumbas – A missão dos pobres na Igreja”

O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, apresenta esta segunda-feira, na capital, o livro “O pacto das catacumbas – A missão dos pobres na Igreja”, coordenado por Xabier Pikaza e José Antunes da Silva.

«No dia 16 de novembro de 1965, quando o Concílio Vaticano II já se aproximava do fim, 40 bispos reuniram-se nas catacumbas de Santa Domitila, em Roma, para celebrar a Eucaristia e assinar um documento em que expressavam o seu compromisso pessoal com os ideais do Concílio: viver um estilo de vida simples e a exercer o seu ministério pastoral de acordo com critérios evangélicos», explica o texto de apresentação do volume, publicado pela Paulinas Editora.

O “Pacto das Catacumbas” é «um compromisso pessoal de cada um daqueles bispos, mas é também, simultaneamente, um desafio para toda a Igreja e um instrumento para aferir a sua fidelidade ao Evangelho», continua a nota, acrescentando que a iniciativa remonta a três anos antes, no «momento em que se constituiu o chamado grupo “Igreja dos pobres”, na sequência do apelo radiofónico de João XXIII».

«Perante os países subdesenvolvidos, a Igreja mostra-se como aquilo que ela é e quer ser: a Igreja de todos e, sobretudo, a Igreja dos pobres», afirmou o papa que convocou o Concílio Vaticano II, a 11 de setembro de 1962, cerca de três meses antes do início dos trabalhos conciliares. Desde então, o grupo reuniu-se quase semanalmente para refletir sobre o que acontecia nas assembleias plenárias à luz do tema “Igreja dos pobres”.

Na crónica que assina semanalmente no jornal “Expresso”, José Tolentino Mendonça acentua que «a força profética e política dos 12 pontos desse pacto», assinado fará esta segunda-feira 50 anos, «e a exemplar fidelidade dos seus protagonistas» fazem desse acordo «um dos documentos fundamentais para entender algumas das horas mais luminosas do catolicismo contemporâneo».

«Que se propunham os bispos? A revolução da simplicidade.» A lista é longa, mas significativa: «Deixar os palácios episcopais e viver em casas iguais às das suas populações. Renunciar aos sinais exteriores de riqueza e à riqueza em si. Não possuir imóveis nem contas bancárias em seu nome. Confiar a gestão financeira e material das dioceses a comissões de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico; recusar-se a ser chamado, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder, preferindo ser chamado com o nome evangélico de padre».

Para Tolentino Mendonça, o pacto das catacumbas «recorda que o Deus em que os cristãos creem não plana acima das questões escaldantes da história: Ele aparece claramente comprometido com a justiça e uma ordem social de equidade, manifestando-se a favor dos mais pobres».

A sessão de apresentação do livro, de que oferecemos seguidamente um excerto, decorre na Capela do Rato, em Lisboa, às 18h30

Uma espiritualidade a partir do pobre para toda a Igreja
Maria Clara Bingemer
In “O pacto das catacumbas”

Ser pobre com os pobres: uma conversão pessoal

No texto assinado pelos bispos, há diversos elementos que dizem respeito a uma conversão pessoal, a uma mudança dos aspetos pessoais da vida de cada um. Em que consiste essa conversão?

Em primeiro lugar, em «ser como as pessoas», ou seja, em ser o mais humano possível, o mais parecido e semelhante a todos os irmãos e irmãs em humanidade, de um modo próximo e fraterno. Assim, segundo os signatários do Pacto, por exemplo, o episcopado deixa de ser uma dignidade que afasta e que requer elementos vivenciais de conforto e até de luxo, para se tornar a vida simples e humilde de um servo dos demais.

É isso que exprime claramente o ponto 1 do texto, ao dizer: «Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo o que daí deriva. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8-20.» Estamos perante uma opção de vida. Trata-se de abandonar os palácios episcopais para ir viver numa casa simples, como a maioria das pessoas; deixar para trás as refeições finas e requintadas, para se alimentar simplesmente, como a imensa maioria das pessoas; de usar os transportes públicos, em vez de veículos particulares.

Esse parágrafo implica uma determinação forte e profunda que leva realmente a uma mudança de vida de modo radical e profundo. E há muitos outros detalhes noutros parágrafos do Pacto que apontam para essa conversão radical e para essa vivência no mais profundo de cada um de uma espiritualidade evangélica de estar próximo e de viver como os pobres.

Por exemplo, a renúncia abarca não só a posse de bens, mas inclusivamente a aparência de riqueza no vestuário, nos símbolos usados (como a cruz peitoral, o báculo e a mitra). Isso implica que a figura do bispo já não deva ser uma figura que se impõe pelo seu aspeto, mas que se confunde com a gente simples. Nesse sentido, os bispos sentem-se chamados a ser como os primeiros Apóstolos, de quem são sucessores, e a não ter «ouro nem prata», mas Jesus, o Nazareno, como galardão e ornamento.

Quanto à posse de bens, o Pacto explicita que os seus signatários não possuirão bens «móveis ou imóveis», ou seja, não serão proprietários de nada, como os pobres do seu povo, que não têm onde reclinar a cabeça e que, por vezes, são forçados a ver a pobre casinha, que construíram com as suas próprias mãos, destruída por chuvas torrenciais, inundações, fogo, tempestades ou outras catástrofes. Afastam-se, de igual modo, do sistema financeiro capitalista em que vivem, quando declaram a sua renúncia à posse de contas bancárias e tudo o que das mesmas deriva: crédito, dinheiro fácil, multibanco, etc. Por fim, tudo aquilo que dá segurança num sistema que valoriza o dinheiro acima de todas as coisas, e que os pobres jamais poderão ter. Contudo, entendem, de forma realista, que por vezes talvez tenham de possuir algum bem. No entanto, nada deverá figurar em seu próprio nome; pelo contrário, sempre em nome da diocese ou das obras sociais ou caritativas.

Para fundamentar essa decisão de viver ao contrário do mundo e do sistema em que estão inseridos, citam os textos bíblicos de Mt 6,19 e Lc 12,33s, recomendando estes que não se acumulem tesouros aqui na terra, pois ficarão expostos à ação predadora do tempo e dos ladrões. É preferível vender o que se possui e dá-lo em esmola. O tesouro de um discípulo e apóstolo de Jesus Cristo deve estar no Céu, ou seja, no Reino do Pai. Só aí não se gastará, não se esgotará nem será destruído. Ou seja, deve ser oferecido, dado, aos que precisam, pois é aí que o quer Deus. Onde está o tesouro, aí também está o coração, e o coração de um pastor deve estar com as suas ovelhas, ser sensível às suas necessidades e solícito em assisti-las e satisfazê-las.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – ler artigo completo aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/15 – O sentido do provisório” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

A aproximação do final do ano litúrgico, que se conclui no próximo domingo com a festa de Cristo Rei, lembra-nos uma verdade que muitas vezes, engolidos pela experiência do tempo, nós esquecemos. Essa verdade é que a experiência cristã é também uma experiência apocalíptica.
Isto o que é que quer dizer? Quer dizer que a experiência cristã olha para o mundo enquanto construção, enquanto representação – esta construção e esta representação que nós conhecemos como provisórias. O cenário do mundo é passageiro. Isto é, tudo aquilo que nós vemos, que nós construímos, que nos serve como lei, como regra, como norma, como cultura, tudo isso tem uma dimensão provisória.

É como se vivêssemos nas verdades penúltimas. E depois, haverá as verdades últimas. Quer dizer, este cenário do mundo, esta ordem do mundo, tem de se confrontar com a verdade definitiva, com o Absoluto, com aquilo que não passa. Esse confronto, esse diálogo do provisório com o Absoluto, é um diálogo que faz estremecer o provisório, que mostra a insuficiência do provisório. Mostra como as nossas obras, as nossas construções, aquilo que nos apaixona, aquilo que nos parece a coisa mais importante e mais prioritária, muitas vezes é relativizado por uma outra ordem, essa sim mais importante.

A verdade é que nós no dia a dia esquecemo-nos muito disso e vivemos como se este formato do mundo fosse para sempre, como se as construções que vemos fossem durar eternamente, como se a nossa cultura, os nossos hábitos, passassem a ser uma regra para todos os homens de todos os tempos e de todas as gerações, e não é assim.

Muito daquilo que nós hoje absolutizamos é absolutamente provisório e será superado, será transformado. Porque isso tem a ver com as coisas penúltimas. E é o confronto, sempre necessário, com a verdade última, com a finalidade última, com aquilo que é eterno, que dá um verdadeiro sentido e uma verdadeira dimensão àquilo que nós vivemos, àquilo que nós somos, àquilo a que nós aspiramos.

Nesse sentido, o Cristianismo é, não apenas foi, uma religião apocalíptica. Porque ele não olha para aquilo que hoje nós temos e aquilo que hoje nós somos como definitivo – isso está em superação, isso será criticado, renovado, reavaliado, no encontro com o Eterno. Ser cristão é saber também isso, é olhar para o mundo, olhar para o presente, olhar para nós próprios, para o nosso próprio mundo, para o nosso próprio presente, e não perder uma dimensão crítica.

Isto é, perceber que isto é o que pode ser agora, ou isto é o que temos agora, mas nem sempre será assim. O último juízo, o último olhar, a última validação, a definitiva, será de Deus. E isso dá-nos um sentido de humildade muito grande. Eu não posso viver a absolutizar as coisas, tenho que manter o sentido do provisório, o sentido do crítico, o sentido da humildade. Sabendo que é assim agora mas poderá ser de outra forma. É o que eu penso, mas eu tenho que me submeter ao juízo de Deus e ao pensamento de Deus. É agora a Lei universal mas só Deus verá, só Deus decidirá o que é que há de restar de tudo isto que agora nós somos e nós vemos.

Para nós cristãos, o critério último de validação é aquele que Deus nos dá na pessoa de Jesus Cristo. Jesus, a sua vida, torna-se o critério da eternidade. Por isso é que nós vemos esta linguagem apocalíptica que diz: “Tudo cairá, tudo soçobrará, o sol já não será o sol, a lua já não será a lua, já não receberemos a luz, as estruturas do mundo todas se alterarão, virão os anjos de Deus e alterarão aquilo que nós vemos de uma forma radical, colocando tudo em causa.” É uma linguagem simbólica muito forte para dizer isto: o nosso presente, o nosso instante precisa ser criticado, iluminado pelo eterno.

Nós temos de construir uma vida que não seja uma vida fechada, trancada, intransigente na sua própria lógica, como se nós tivéssemos a vida na mão, como se nós fossemos os decisores finais. Não somos. Temos de fazer uma vida que ao mesmo tempo não seja uma vida cínica. Isto é, nós não vivemos no mundo desacreditando no mundo, nós não vivemos não gostando da vida, não gostando dos outros porque o nosso coração está noutro lado. Não é isso. Nós amamos a luz do mundo, nós amamo-nos uns aos outros, nós queremos construir alguma coisa com sentido. Sabemos que o Reino começa a ser vivido aqui, mas também sabemos que a chave do sentido não está na nossa mão. Sabemos que a estrutura do mundo é provisória nas suas formas, e sabemos que o último juízo, a última palavra, é a Palavra de Deus.

E isso, a começar por nós próprios, dá-nos uma liberdade muito grande, um desprendimento muito grande. Olhamos para o mundo sabendo aquilo que depois S. João há de lembrar, repetindo o dito de Jesus: “ Nós estamos no mundo mas não somos do mundo.” Este estar e não pertencer completamente, não coincidir completamente, obriga-nos a uma dimensão profética, a uma dimensão crítica em relação ao que temos, em relação ao que somos, em relação ao que fazemos no próprio tempo.

Mas viver criticamente o presente, abrir-se à alternativa de Deus, abrir-se ao juízo de Deus perceber que nós habitamos o tempo do fim leva-nos a duas coisas fundamentais que hoje as leituras também nos lembram.

Primeiro, leva-nos a um centramento na pessoa de Jesus. Nós estamos a ler, domingo a domingo, a Carta aos Hebreus que é um texto político muito forte, muito contundente e que diz, no fundo, o seguinte: Cristo é a superação da ordem política, da ordem religiosa, da ordem social, cultural como nós a conhecíamos. Jesus supera, Jesus é a própria alternativa ao que nós absolutizamos.

Isso obriga-nos também a deixar cair tanta coisa, a relativizar tanta coisa. Porque Jesus não apenas superou o Sacerdócio antigo, Jesus vai sempre à frente. Isto previne-nos da tentação de às vezes aprisionarmos Deus na nossa lógica, capturarmos Jesus – nós é que sabemos o que Deus pensa, nós é que sabemos o que Jesus julga. Não, nós não sabemos e o que sabemos é que Ele supera, que o juízo de Deus é sempre maior que o nosso.

Nesse sentido, nós crentes não nos substituímos a Deus. Ser crente não é ser dono de Deus, é ser um servidor humilde, é ser um enamorado de Deus, é ter a paixão, sentir o amor em si. Adorar quer dizer amar muito, mas amar não é prender, não é limitar Deus. Pelo contrário, é com a nossa pobreza, colocando-nos a nós próprios no lugar, ampliarmos o amor de Deus, ampliarmos a misericórdia de Deus.

Nós estamos às portas de começar o Ano Santo da Misericórdia, e um dos apelos do Papa Francisco tem sido esse continuamente: “A Igreja não pode ser um funil para a misericórdia de Deus.” Nós não podemos afunilar a história e as vidas dos outros numa lógica muito certinha, muito racional, muito prudente mas onde não se faz a experiência da misericórdia. Nesse sentido, é preciso cada um de nós deixar nas relações uns com os outros, na forma como estamos na vida, como estamos no mundo, como estamos perante nós próprios, Deus ser Deus.

Tu, cristão, deixas, permites que Deus seja Deus? Permites na tua vida, no teu comportamento, na tua maneira de falar, de julgar, de reagir aos acontecimentos? Permites que Deus seja Deus? Ou te colocas tu no lugar de Deus como se soubesses, como se esgotasses o pensamento de Deus?

Ora, a misericórdia, o Ano Santo da Misericórdia, pedem que olhemos para Jesus como Aquele que ultrapassa, como aquele que supera. Mas também como Aquele que nos supera. A misericórdia de Cristo é maior que a minha misericórdia. Seria terrível se a misericórdia de Cristo se esgotasse na pequenina, na ínfima provisão de misericórdia que eu trago. A sabedoria de Deus é maior do que a minha sabedoria. Seria uma tragédia absoluta se eu representasse a sabedoria de Deus, ou se eu pretendesse isso.

Aceitar que Jesus nos supera, que Jesus é maior que o nosso coração, que é maior que as nossas palavras. Isso obriga-nos a uma contenção, a uma liberdade muito grande e à liberdade mais difícil que é a liberdade face a nós próprios – face ao nosso eu, às nossas certezas, aos nossos tiques. Ganhar essa liberdade e perceber: Cristo é maior, Cristo é maior e eu tenho de me confiar a Ele, tenho de aceitar que Ele me supera, que Ele vai à minha frente. Tenho de ser discípulo, não mestre de Jesus, tenho de ser Seu discípulo – vivermos aceitando que Jesus nos supera.

De certa forma, aceitar que o Espírito Santo é maior do que a Igreja, que o mistério de Deus é maior do que aquilo que nós sabemos acerca Dele – essa é a verdadeira dimensão mística – e percebermos que somos servidores da sua compaixão, servidores da sua misericórdia.
Um segundo aspeto, que nos lembra o profeta Daniel. É dizer “Num tempo em que a provisoriedade, a fragilidade, a vulnerabilidade do mundo se acentuam.” (e nós olhamos para o nosso mundo e percebemos isso), o que é que está a emergir com esta violência toda? É a insuficiência do mundo, é a sua ferida, é a sua dor, é a sua guerra, é o seu desencontro, é a sua incapacidade de fazer pontes, é a sua loucura. Mas num tempo como este qual deve ser a nossa atitude? A que é que cada um de nós é chamado? O profeta Daniel lembra-nos o chamamento fundamental dizendo: “Os sábios resplandecerão como a luz no firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça brilharão como estrelas por toda a eternidade.”
Então, o que é que nos é pedido? Uma grande sabedoria, uma grande sabedoria. Este tempo que nós vivemos, um tempo tão difícil, com desafios tão exigentes, com cenários tão contraditórios, tão paradoxais, este é o momento de sabedoria. Não é o momento para perdermos a cabeça, mas é o momento para arrumarmos a cabeça, é o momento para fazermos um verdadeiro discernimento espiritual, é o momento para nos firmarmos naquilo que é importante, é o momento para buscarmos uma prudência que não é só nossa mas também vem de Deus.

Uma verdadeira sabedoria total, que não é apenas a sabedoria que a ciência, que o conhecimento nos dão, mas é também uma sabedoria humana, uma sabedoria espiritual. Este é o momento em que o mundo precisa de homens sábios, de mulheres sábias que no pequenino da vida, no pequenino da história e no grande, possam apontar caminhos de sabedoria.

Os caminhos de sabedoria que sejam ensinar a muitos o caminho da justiça. É essa capacidade de transmitir: transmitir valores, transmitir esperança, transmitir este sentido profundo de uma justiça que sem a caridade é sempre incompleta, fica sempre aquém da sua missão. Mas aqueles que souberem transmitir e ensinar uma justiça assim, esses permaneceram na eternidade como estrelas acesas no céu.

Queridos irmãs e irmãos, o cenário do mundo é passageiro. O mundo é agitado por uma violência muito grande. Nós sabemos que o mundo, na sua construção, é provisória, e tem de ser criticado por aquilo que é eterno, que é o que Deus nos mostra, este amor radical que Deus nos mostra na vida de Jesus Cristo.

Mas é-nos confiada uma missão, e essa missão resume-se bem nas palavras que hoje Daniel nos lembra: vivermos com sabedoria, procurarmos uma sabedoria do alto para a nossa vida. Não ficarmos a reagir apenas às nossas emoções, procurarmos uma verdadeira sabedoria e ensinarmos a muitos uma justiça que seja verdadeiramente justa, transformadora, iluminadora do mundo.
Porque, aquilo que nós fazemos com amor, aquilo que nós investimos de amor, de sagueza, de fraternidade, isso não é abalado, isso não passa, isso é o princípio da eternidade que nós colocamos no aqui e no agora da turbulência do mundo.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIII do Tempo Comum

Clique para ouvir a homilia

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/11 – Deus – conversas de Maria João Avillez com Maria de Belém” open=”false”]

«A Doutrina Social da Igreja é uma interpelação permanente», diz Maria de Belém

Maria de Belém, candidata à Presidência da República, considera que as propostas da Igreja católica no domínio social constituem uma «interpelação permanente», especialmente numa época em que a «instrumentalização» das pessoas é «absolutamente esmagadora».

A Doutrina Social da Igreja foi um dos temas mais amplamente tratados na conversa que a antiga Ministra da Saúde manteve com a jornalista Maria João Avillez, esta quarta-feira, no âmbito do ciclo de conversas sobre Deus, organizado pela comunidade da Capela do Rato, em Lisboa.

Na intervenção, de que apresentamos alguns excertos no vídeo abaixo publicado, Maria de Belém sublinhou a importância do ensinamento da Igreja em domínios como o direito ao trabalho, remuneração justa e propriedade.

«Os textos da Doutrina Social da Igreja ajudam-nos a perceber que estamos a regredir», vincou, após expressar a sua surpresa pelo facto de aquele corpo de documentos, com mais de um século, ser largamente desconhecido, inclusive em meios onde não o esperaria.

Questionada sobre o Sínodo dos Bispos, que em outubro debateu, no Vaticano, a questão da família, Maria de Belém afirmou que aguarda com «esperança» os resultados da assembleia, em particular a previsível exortação apostólica que o papa Francisco irá assinar.

A candidata presidencial está consciente de que a pluralidade de perspetivas na Igreja impõe que eventuais mudanças possam demorar: «O tempo tem o seu tempo», referiu, acrescentando que «o tempo longo também é necessário».

A Igreja tem errado ao preocupar-se mais com a «forma» do que com a «substância», além de que poderia estar muito mais presente na vida das pessoas, acentuou Maria de Belém, para quem o papa Francisco foi eleito num momento de «necessidade» e «oportunidade».

Das visitas que fez ao Vaticano quando era titular governamental da pasta da Saúde, no contexto dos encontros organizados pela Pastoral da Saúde, Maria de Belém guarda a imagem do papa João Paulo II como prisioneiro de um sistema, pelo que saúda a decisão tomada por Francisco de não habitar o apartamento reservado aos pontífices, no Palácio Apostólico.

Para Maria de Belém, o atual papa é uma «figura extraordinária» que está a tentar corrigir «erros colossais», ao mesmo tempo que, mesmo enfrentando «riscos», tem transmitido «mensagens muito fortes».

A relação com Deus, os excertos evangélicos marcantes, a ligação entre fé e política, a liberdade de escolha no domínio da religião e a espiritualidade foram também temas abordados por Maria de Belém neste encontro (cf. Artigos relacionados).

O ciclo de conversas com Deus prossegue na próxima quarta-feira, às 21h30, com o selecionador nacional de futebol, Fernando Santos.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura


Maria de Belém: «Sou profundamente cristã»

Maria de Belém, candidata a Presidente da República, declarou-se esta quarta-feira «profundamente cristã», no ciclo de encontros sobre Deus organizado pela comunidade da Capela do Rato, em Lisboa.

Na conversa com a jornalista Maria João Avillez, de que apresentamos em vídeo alguns excertos, a ex-Ministra da Saúde evocou as memórias de Deus na sua casa de infância, realçando a importância da figura do anjo da guarda.

Para Maria de Belém, a vivência da religião implica responsabilidade no agir, proteção, amor e afeto, sendo uma realidade «natural» com que convive «permanentemente»: «Deus é como o ar que respiro».

«Todas as decisões importantes da minha vida passam pela invocação de um poder superior a mim», afirmou quando questionada se Deus entrou na decisão de se candidatar à Presidência da República.

Ainda jovem, ouviu o reitor da igreja da Lapa, no Porto, a falar da ressurreição de Lázaro; ficou-lhe para sempre aquela interpretação, que configurou a sua relação com o catolicismo, marcada por dar prioridade à «razão e emoção» relativamente às normas da Igreja.

«Vou à missa quando acho que devo ir», afirma, acrescentando: «A minha religião é sentimento». Reza com as suas palavras, mas também com o Pai-nosso e a Avé-Maria, orações que aprecia especialmente.

A educação cristã sensibilizou-a para o cuidado pelos «humildes». Diz que a sua «prática de fé é mais feita de ação do que de formalismos» e afirmou a convicção de que «o mundo estaria muito melhor» se houvesse mais preocupação com a «substância» do que com as «rotinas».

Vive marcada pela narrativa evangélica do devedor que foi perdoado e que, como credor, recusou o perdão, atitude que diz testemunhar com frequência. Gostaria de não perder a sensibilidade para a justiça e para a injustiça.

Procura fugir aos conflitos entre a fé e o desempenho de cargos públicos e defende que não deve «exibir» as suas crenças religiosas. Desconfia de quem vai à Missa apenas para ser visto.

Tem a certeza de que a fé não lhe vai impor limites ao mandato de Presidente da República, se for eleita. Nos momentos de decisão, manda a consciência, mas no jogo político sabe que não chega para determinar os destinos do país.

O papa Francisco, o Sínodo dos Bispos sobre a Família e a Doutrina Social da Igreja foram também temas refletidos por Maria de Belém. Proximamente oferecemos uma síntese em vídeo dessas intervenções.

O ciclo de conversas com Deus prossegue na próxima quarta-feira com o selecionador nacional de futebol, Fernando Santos.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura


O Deus natural, sentimental e privado de Maria de Belém

“A Santa Madre Igreja é organização e a minha religião é sentimento” foi com esta frase e uma referência a Antero de Quental que Maria de Belém Roseira, ex-ministra e ex-presidente do PS, resumiu a sua fé e a sua relação com Deus.

No Conversas com Deus desta semana, na Capela do Rato, a agora candidata presidencial falou de religião e de política, dando testemunha de uma vivência de fé individual e de uma relação com Deus que diz ser “natural”, mas que tem dificuldade em “transformar em algo de figurativo”.

Na conversa dirigida por Maria João Avillez, Maria de Belém contou que nasceu numa casa de “católicos praticantes e onde a educação religiosa fazia parte da educação”, mas preferiu definir-se como “profundamente cristã” e disse que acredita no cristianismo “não só como religião, mas como filosofia de vida”.

Aprendeu da mãe “preocupar-se com as pessoas humildes porque as poderosas não precisam” e na família era muito valorizado o conceito do anjo da guarda como sinal de uma “relação de protecção”. Mas questionada sobre quando passou dessa vivencia mais infantil da fé para uma relação adulta com Deus, a candidata presidencial assumiu que tem alguma dificuldade em responder.

“A relação com Deus é uma relação em função de uma ordem universal. Há qualquer coisa que existe, mas que tenho dificuldades em transformar em algo figurativo. É algo como o ar que respiro, é natural, quase não sinto”, afirmou Maria de Belém, que, ao longo de quase uma hora de conversa, foi desfiando uma visão de Deus mais próxima dos conceitos New Age (designação genérica para correntes de espiritualidade que misturam conceitos espirituais e psicológicos e uma simbiose com o meio envolvente e com a natureza) do que do Deus Uno e Trino da Igreja Católica.

“Não sou dogmática”, afirmou várias vezes a ex-ministra da Saúde, acrescentando: “A minha prática de fé é mais feita em acção do quem em formalismo, sou mais sentimento do que forma, sou muito mais acção e substância do que forma.”

Clique aqui para ler o artigo completo e ouvir o áudio desta “Conversa sobre Deus com Maria de Belém”.

conversasDeus2015_capelaRato_noticia2[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/10 – MRAR – Os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX” open=”false”]A Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL) atribuiu esta terça-feira o Prémio Professor Manuel Tainha a João Alves da Cunha, que no ano letivo de 2013/14 obteve a melhor classificação em Dissertação no Doutoramento em Arquitetura.

A investigação do membro do Grupo de Arquitetura do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura foi recentemente publicada com o título “MRAR – Os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX”.

A obra da Universidade Católica Editora, que vai ser apresentada a 10 de novembro, às 18h30, na Capela do Rato, em Lisboa, pelos prefaciadores, João de Almeida, Diogo Lino Pimentel e José Manuel Fernandes, «procura dar a conhecer a história do Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR), fazendo um retrato detalhado da sua ação nas décadas de 1950 e 1960», refere a sinopse.

«Desejando tornar mais próximo e compreensível o percurso histórico deste movimento, considerou-se que a abordagem no estilo narrativo seria a mais adequada. Os acontecimentos estão deste modo apresentados e articulados segundo uma ordem cronológica, recorrendo-se frequentemente à citação de comentários, pensamentos e ideias expressas então, como forma de garantir a riqueza do discurso original», acrescenta a nota.

No texto intitulado “As origens do MRAR”, o arquiteto João de Almeida começa por recordar que conheceu João Alves da Cunha em 2001, quando entrou como estagiário no seu ateliê.

«Cedo se tornou um excelente colaborador e por lá ficou até 2008. Aproximou-nos o seu interesse pela história da arquitetura sacra em Portugal, já que sabia que eu fora nos anos 50 um dos fundadores do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, tema por ele escolhido para a sua recente tese de doutoramento, agora publicada em livro, e que ao longo dos anos foi objeto dum estudo exaustivo e muito aprofundado», assinala João de Almeida.

Por seu lado, Diogo Lino Pimentel, igualmente ligado à génese do MRAR, salienta, também à entrada da obra, que «a natureza, o alcance e a projeção» do movimento «estavam por tematizar, analisar e estudar».

O primeiro responsável pelo Secretariado das Novas Igrejas do Patriarcado de Lisboa acentua, ainda, que a investigação vem «colmatar essa falta», motivando «a avaliação do estado atual das artes na Igreja»: «A tese tornada livro interpela algum “adormecimento” pós-concílio, responsável por certa degradação dos termos plásticos, musicais e arquitetónicos em que se exprime a liturgia».

Para Diogo Lino Pimentel, «a par de escassas obras singulares de inegável mérito e qualidade, e de um reconhecível progresso do comportamento e da gestualidade rituais, a liturgia sofre de amputação plástica, por carência artística».

«Os artistas e criadores desinteressaram-se da Igreja e esta desinteressou-se dos artistas. A Igreja, liturgicamente exigente, esqueceu que a liturgia, para além de usar e cuidar a palavra, fala pelas artes visuais e musicais», sustenta.

José Manuel Fernandes, professor catedrático em História da Arquitetura na FAUL, assinala que a tese «consagra em termos científicos – e de forma brilhante» o reconhecimento do MRAR «como um instrumento que historicamente, nos anos de 1950 e de 1960, soube introduzir a plena modernidade nas artes e na arquitetura do campo religioso em Portugal».

O co-orientador da tese, com o arquiteto Nuno Teotónio Pereira, escreve que João Alves da Cunha analisa, descreve e mostra a «fascinante, rica e atribulada sequência de factos e obras, ocorridos no “momento crítico” do Portugal dos meados do século XX”, ligados ao MRAR.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – ler artigo completo aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/09 – Conversas à Capela – Sínodo sobre a Família: que caminhos?” open=”false”]karinWall_capelaRato_featureNa segunda-feira, dia 9 de novembro, pelas 21h30, terá lugar mais uma Conversa à Capela, desta vez dedicada ao tema “Sínodo sobre a Família: que caminhos?”.

Para nos ajudar nesta reflexão, convidámos Karin Wall, socióloga da família do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e o jornalista António Marujo, que acompanhou os últimos dias da assembleia sinodal. O padre José Tolentino Mendonça participará também no painel.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/08 – Crer é arriscar crer” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

O que é que a fé nos ensina? A que é que a fé nos leva? A onde é que ela nos conduz? A que gestos? A que atitudes? A que horizontes novos a fé nos coloca?

A fé contemplada no Evangelho é, sobretudo, uma arte do risco, uma arte de arriscar. Crer é arriscar crer, como amar é arriscar amar. Arriscar crer. Lembro-me de dois comentadores dos textos bíblicos, de pontos de vista diferentes, que sublinham precisamente isso e nos podem ajudar hoje a lermos a Palavra de Deus como um desafio para as nossas vidas.

O primeiro é uma psiquiatra e psicanalista, Françoise Dolto, que analisa uma das parábolas mais complicadas, um verdadeiro quebra-cabeças do ponto de vista moral, contada por Jesus que é aquela do administrador infiel. Aquele homem que era corrupto e sabendo que ia ser despedido começa a chamar os clientes do seu patrão a dizer “Olha, eu favoreço-te nisto: tu deves cinquenta, escreve aqui quarenta.”, para que ainda conseguisse, depois de ser despedido, uma boa aceitação junto daquela rede de fornecedores. Jesus conta esta parábola elogiando a esperteza do administrador infiel. Para nós que a ouvimos é um verdadeiro quebra-cabeças, porque como é que se pode elogiar a esperteza daquele ‘Chico esperto’?

Contudo, no comentário, na interpretação que Françoise Dolto faz, ela valoriza sobretudo a tomada de iniciativa. Aquele homem perante uma situação limite, que é o facto de ser despedido e a sua vida mudar radicalmente, ele faz alguma coisa, ele arrisca. Faz uma idiotice, continua no mesmo, mas ele arrisca. E o que ela sublinha é isto: o que Jesus nos ensina é a arriscar. Não arriscar fora da lei, ou fora da moral, fora da ética, mas valorizar o risco.

Na mesma linha, o escritor Chesterton valorizava aquela palavra de Jesus que é dizer: “Se queres seguir-Me renuncia a ti mesmo, toma a tua cruz todos os dias e segue-Me, porque quem quiser salvar a vida há de perdê-la, e quem aceitar perder a vida por Mim e por causa do Reino há de salvá-la.” Ele diz: “Esta Palavra podia estar inscrita num clube de socorro a náufragos.” É assim, o nosso barco está a naufragar. Temos duas escolhas: ou permanecemos no barco, temerosos, e arriscamos também o naufrágio, ou, sem ter certezas mas obedecendo ao chamamento da vida, ao risco da vida, nós atiramo-nos, e atiramo-nos ao mar largo. Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á. Se permanecemos agarrados ao navio perdemos a nossa vida. Mas é aceitando o risco de poder perder a vida que a salvamos verdadeiramente.

A fé é isto. Porque a fé não é caminhar num território cheio de garantias, onde está tudo certo, está tudo assegurado e a consequência mais lógica mais racional que eu tiro é esta, e é por isso que a sigo. Não, a fé não é do território da lógica. Santo Agostinho dizia: “É absurdo, por isso eu creio.” A fé muitas vezes é tomar a iniciativa da confiança, do abandono no meio de situações que são o absurdo, que são o contrário da lógica, o contrário da razão. Mas a fé é viver o risco de acreditar. Não é somar 2+2 são 4. Não, as contas da fé são sempre tudo ao contrário, tudo ao inverso. A fé implica sempre esse salto, esse abandono confiante. Crer é o risco de crer.

A mesma coisa nós podemos dizer do amor. O amor não é um caminho feito na evidência, não é um caminho feito na certeza de que vai ser assim ou vai ser de outra forma, tudo muito assegurado. O amor é a ousadia de amar, é a ousadia de atirar-se à frente.

Temos nas leituras de hoje dois exemplos de amor. De amor diferente, mas de amor enquanto dádiva, enquanto oferta de si, que é no fundo aquilo que concretiza o amor. Aquela viúva de Sarepta a quem o profeta Elias pede hospitalidade, e pede alguma coisa de comer, ela não tem mais nada, não tem mais farinha, não tem mais óleo na almotolia. Contudo, ela amassa a última amassadura e partilha com aquele estrangeiro, com aquele estranho que lhe pede de comer. E diz: “Depois venha o que vier.” No fundo, ser capaz de dar o último pão, é o risco de amar. Depois? Depois, não sei o que vai acontecer. Depois já não é uma coisa que eu controlo, já não está dentro das minhas possibilidades. Mas é esse risco de amar, é esse risco que torna o gesto daquela mulher um gesto de amor verdadeiro, um gesto também de fé.

A mesma coisa nesta viúva pobre que está perante o tesouro do Templo. Os outros dão do que lhes sobra, aquela mulher deu uma pequenina moeda e Jesus chama a atenção dos discípulos dizendo: “Ela deu mais do que todos os outros, porque todos os outros deram do que lhes sobrava, ela deu tudo quanto tinha para viver.”

E é, no fundo, isto que nos é pedido a cada um de nós. Se calhar este não é um discurso para o dia a dia, se calhar no dia a dia nós conseguimo-nos gerir e safar com a visão habitual, não é preciso um grande risco, deixarmo-nos levar, deixarmo-nos embalar pela própria vida. Mas há momentos na vida de cada um de nós, há ocasiões, há dias, há oportunidades em que aquilo que se decide é verdadeiramente pelo risco de acreditar, pelo risco de amar. E são esses dias, essas oportunidades, essas horas da nossa vida que nos estruturam, que fazem a diferença, que marcam o caminho.

Pensemos no que Jesus nos diz. Jesus olha para o gesto da viúva e diz: “Ela deu mais do que todos porque deu uma moedinha que era tudo quanto tinha.” E a nós pensamos: “Muito bem. Muito bonito. Mas se toda a gente desse só uma moedinha não se conseguia manter o tesouro do Templo, não se conseguia fazer todas as atividades que o Templo tem para fazer, não se conseguia construir, manter a beleza do Templo.”

E é aqui que Jesus faz uma transformação do nosso olhar, é aqui que o Cristianismo aparece como um discurso diferente, que nos modifica por dentro naquilo que nós consideramos importante, naquilo a que nós damos realmente valor, naquilo que nós consideramos decisivo. Na Carta aos Hebreus (esse texto do final do primeiro século da era cristã, que já é escrito depois do Templo de Jerusalém ter sido destruído, o sacerdócio extinto, os sacrifícios apagados) este autor cristão vai rever a vida de Cristo, a Sua mensagem, o Seu gesto, a Sua poética do ponto de vista do Templo. E vai dizer: “Mais importante do que o Templo, mais importante do que a linhagem sacerdotal, mais importante do que os sacrifícios é o próprio Cristo enquanto pessoa, no que Ele é.”, “Não construíste para mim um Templo mas deste-Me um corpo, fizeste de mim Sumo-sacerdote.”

É este investimento na existência, este investimento na pessoa que faz a diferença. Quem olha para este discurso de Jesus e o aceita, tem de viver de uma maneira diferente, tem de viver de uma forma diferente.

Esta semana, o Papa Francisco teve duas palavras consecutivas, uma numa entrevista a um jornal holandês a dizer que quem é discípulo de Cristo não pode viver à grande e à francesa. Isto é, tem de levar uma vida frugal – tenha o dinheiro que tiver, as condições que tiver, mas tem de levar uma vida frugal, uma vida exigente. Não pode viver uma vida como se não existisse à volta de si pobreza, necessidade, carência. Não pode viver uma vida só em função do seu narcisismo, da sua vontade e do seu prazer. Tem de viver uma vida frugal.

Este desafio a uma vida essencial é um desafio que é feito a todos, a todos os cristãos que, no fundo, percebem que o importante não é construirmos, não é fazermos, embora tudo tenha o seu lugar. Mas o fundamental é sempre a pessoa.

E ainda ontem, na Praça de S. Pedro, o Papa Francisco fez um discurso muito importante à Associação de Providência, à Caixa de Providência Italiana, onde falava do trabalho, do valor do trabalho, do valor do repouso, de garantir as condições não só do trabalho mas depois também da reforma como direitos humanos fundamentais. Dizia: “Não podemos perder de vista o imperativo fundamental que é a pessoa humana, que é a pessoa humana.”

É claro, se nós privilegiamos a pessoa humana diz-se: “Ah! Mas como é que vai ser os mercados! Como é que vai ser isto? Como é que vai ser aquilo?” Temos de encontrara um equilíbrio, temos de encontrar novos caminhos, temos de encontrar novas possibilidades na nossa sociedade. A Doutrina Social da Igreja nasceu precisamente num contexto de fatalismo, em que com a Revolução Industrial o valor do trabalho e o valor da pessoa humana eram absolutamente relativizados. A Doutrina Social da Igreja nasceu como a tentativa de encontrar um outro caminho, uma outra possibilidade em que o fundamental não era perdido de vista.

Hoje nós vivemos numa grande mudança da história, nós sentimos isso. Somos determinados por entidades que não sabemos quem são, tudo parece que tem de ser de uma maneira só. Se calhar também aqui precisamos de voltar à Doutrina Social da Igreja e perceber isto: o valor da pessoa humana.

É o modo de olharmos e de acolhermos no nosso coração a Palavra de hoje de Jesus que nos faz ver uma mulher pobre e dizer: “Ela deu mais do que todos.” A tradição da Igreja tem sido esta desde o princípio. Por exemplo, quando o imperador prendia os primeiros cristãos e lhes dizia: “Ide buscar o tesouro da Igreja.“, S. Lourenço, que era o administrador da comunidade de Roma, foi preso e mandaram-no: “Olha, vai buscar o tesouro da comunidade para resgatar os cristãos.” E S. Lourenço foi buscar os pobres e disse: “O tesouro da igreja são os pobres.”

Então, isto para nós, cristãos, é um desafio constante. O que é o nosso tesouro? O que é o nosso tesouro? O que é que nós consideramos que é dar mais? Que é dar mais? Há de facto uma visão, uma visão que o próprio Jesus nos ensina a construir. Uma visão onde a pessoa humana está no centro, a pessoa humana com a sua fragilidade, a sua dificuldade.

Às vezes penso em como podemos ser super exigentes para uma pessoa mais frágil, mais fraca, mais vulnerável. E achamos: “Ah! Mas ela não faz nenhum esforço.” Às vezes o pequenino passo que ela faz, e que para nós nos parece insignificante, é mais do que todos os esforços e todos os passos que nós podemos dar ou pensar que damos. Por isso, há aqui uma conversão do olhar, uma conversão do olhar. Crer é o risco de crer, amar é o risco de amar.

Hoje, as leituras da Palavra de Deus colocam-nos perante o risco de amar. É um risco que, aos diversos níveis, implica uma conversão para cada um de nós. Porque preferimos muito mais um amor assegurado, um amor garantido, um amor consolidado, um amor isto, um amor aquilo, um amor que nos compense. E este risco de amar por amar, que está no cerne do Evangelho, é alguma coisa que constitui de facto um chamamento para cada um de nós. Um chamamento, um desafio exigente, mas também uma oportunidade.

Porque às vezes penso na maravilha do olhar de Jesus, nas coisas que Ele reparava. É como se Ele escrevesse a história do mundo de outra forma, de outra maneira. E no fundo, bem-aventurados os que têm o olhar puro, porque são capazes de identificar a presença do Reino, a chegada do Reino nas coisas mais pequenas e que para os outros são invisíveis.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXII do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/04 – Deus – conversas de Maria João Avillez com Marcelo Rebelo de Sousa” open=”false”]

«Não há nada em que o ser-se cristão diminua o ser-se governante», defende Marcelo Rebelo de Sousa

Marcelo Rebelo de Sousa considera que «não há nada em que o ser-se cristão diminua o ser-se governante», ou outra atividade, e defende que não se é mais nem menos do que outras pessoas por se ser cristão.

A posição do candidato a Presidente da República foi recolhida na intervenção que proferiu na última quarta-feira, no ciclo de encontros sobre “Deus”, organizado pela comunidade da Capela do Rato, em Lisboa.

Na conversa que manteve com a jornalista Maria João Avillez, de que reproduzimos excertos no vídeo abaixo publicado, Marcelo Rebelo de Sousa especificou que ser cristão não limita o exercício do cargo de Presidente da República, caso seja eleito.

Questionado por uma das pessoas presentes na sessão, o ex-comentador afirmou que ser cristão não constitui uma mais-valia na Presidência, embora implique uma responsabilidade acrescida.

O jurisconsulto sustenta que não há qualquer drama no facto de os cristãos serem uma minoria, pelo menos na região de Lisboa, e relata a estranheza de dois jornalistas a quem ofereceu pagelas relativas ao Batismo de dois dos seus netos.

Na conversa, Marcelo Rebelo de Sousa pronunciou-se também sobre aqueles que considera os maiores desafios da Igreja católica em Portugal: a juventude, a comunicação social, a cultura, cujos debates têm passado à margem do mundo católico, e o setor social.

O ciclo de encontros na Capela do Rato prossegue esta quarta-feira, às 21h30, com Maria de Belém, igualmente candidata à Presidência da República.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura


Marcelo Rebelo de Sousa: «Rezo o Terço todos os dias»

«Deus é para mim a razão de ser da vida», afirmou esta quarta-feira, em Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa, candidato à Presidência da República para quem a figura mais importante a seguir a Cristo é Maria.

«Rezo o Terço todos os dias», declarou o professor catedrático no ciclo de conversas sobre Deus organizado pela Capela do Rato, que na próxima quarta-feira recebe a candidata presidencial Maria de Belém Roseira.

Para o antigo jornalista, a quem não passa pela cabeça deixar de rezar diariamente a oração a Nossa Senhora, mediadora, misericordiosa, com capacidade de apagamento, o Terço «não é um mandamento» mas é «como respirar».

Na intervenção, de que apresentamos excertos no vídeo abaixo, o ex-comentador vincou por diversas vezes que a sua perspetiva de encarar a fé implica necessariamente uma relação comunitária que una oração e ação, como foi o caso do “Grupo da Luz”, que congregou figuras hoje bem conhecidas.

A vida eterna que começa já na Terra com pequenos gestos em favor do próximo, o exame de consciência às quatro ou cinco horas da manhã, as aparições em Fátima, a oração que se cruza com a vida e a perspetiva de Deus enquanto Trindade foram também questões mencionadas por Marcelo Rebelo de Sousa.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura


Marcelo. Um Presidente cristão “tem uma responsabilidade acrescida”

O candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa considera que o facto de um Presidente da República ser cristão em nada o limita no exercício do cargo. Dá-lhe, sim, mais responsabilidade.

“Eu acho eu é errado dar uma resposta deste teor: era bom que o Presidente fosse cristão, porque se fosse cristão, além das qualidades todas que têm os outros, tem mais uma. Isso não existe. Eu diria o contrário. Tem uma responsabilidade acrescida por ser cristão. Nós, por sermos cristãos, não temos mais direitos. Se temos alguma coisa é mais deveres. Quem mais recebe, mais tem de dar”, defendeu na quarta-feira à noite, durante o debate “Conversas com Deus”, que decorreu em Lisboa.

Marcelo Rebelo de Sousa respondeu a perguntas na Capela do Rato. Durante o evento, o candidato a Belém falou ainda sobre aborto e eutanásia.
Ser cristão pode limitar o cargo de chefe de Estado? “Nada”, respondeu. “Vivemos num país com uma Constituição – eu fui constituinte, portanto conheço-a bem – que consagra a liberdade religiosa. Significa que não há um Estado confessional, mas também não há um Estado que seja contrário à liberdade religiosa”, começou por explicar.

“A liberdade religiosa não é só a liberdade de culto, é também a liberdade de vivência da fé, nos lugares de culto e fora dos lugares de culto. Como dizia a Sophia de Mello Breyner, vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”, concretiza, dizendo também que denunciar a injustiça na sociedade é um imperativo cristão.

Clique aqui para ler o artigo completo e ouvir o áudio desta “Conversa sobre Deus com Marcelo Rebelo de Sousa”.


conversasDeus2015_capelaRato_noticia2[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/11/01 – Bem-aventuranças, programa da existência cristã” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

Se fizéssemos aqui como se fazia na catequese à antiga, que era uma espécie de exame de resposta rápida, e perguntássemos quantos são os mandamentos, eu acho que não havia dúvida, todos passávamos ao exame e dizíamos: “Os mandamentos são dez.” Mas se nos perguntassem quantas são as bem-aventuranças, eu não sei se nós conseguíamos ter aqui uma maioria que passava ao exame. E se nos perguntassem mais, se nos perguntassem “Então diga quais são as bem-aventuranças?”, aí então a dificuldade seria maior.

Isto diz muito de um desacerto, de um desencontro, porque as bem-aventuranças são a página mais importante do Evangelho. Santo Agostinho dizia que era o Evangelho breve, que era a síntese de todo o Evangelho. E não faltam, na tradição cristã e não só, autores que dizem: “As bem-aventuranças são o resumo de tudo.” É o resumo de toda a justiça, de todo o amor, de tudo aquilo que um cristão é chamado a fazer. Gandhi, que não era cristão, apaixonou-se pelas bem-aventuranças quando estudava e disse que se se perdesse toda a literatura do Ocidente e apenas permanecesse esta página das bem-aventuranças nós tínhamos o fundamental de tudo aquilo que foi dito, foi escrito, foi buscado, foi sonhado de melhor pela própria Humanidade.

Contudo, dá-se este caso: nós, católicos, sabendo isto, não fazemos da bem-aventurança o programa da nossa vida. E a palavra “programa” é uma palavra muito exata, porque as bem-aventuranças são o programa da vida de Jesus e são o programa da existência cristã. Lendo cada uma destas bem-aventuranças (a pobreza em espírito, a humildade, a capacidade de chorar com os que choram, o ter fome e sede de justiça, a misericórdia, a pureza de coração, a obra da paz, a construção da paz, a capacidade de sofrer por amor da justiça, de ser insultado em vez de insultar, de ser perseguido em vez de perseguir, de dizer a verdade mesmo em seu prejuízo, mesmo que outros mintam a propósito de nós) nós percebemos que cada uma delas desenha o rosto de Jesus.

As bem-aventuranças o que é que são para nós? São a biografia de Jesus, a autobiografia de Jesus. Nós vemos Jesus a viver, Jesus a agir, Jesus a ser. E quando Jesus nos diz “Se tu quiseres estar comigo, se tu quiseres ser cristão faz uma coisa: toma a tua cruz todos os dias, e segue-Me”, nós dizemos “Mas isto é uma coisa muito abstrata”.

O que é que é seguir Jesus? Como é que isso se faz de forma concreta? Como é que eu me oriento? Que mapa, que guia, eu posso ter? Que lei? Que decálogo? Que norma? Que código eu posso escrever, não na frieza da pedra, mas no ardor do meu coração? O que é que eu posso tatuar dentro de mim?

Não tenhamos dúvidas, as bem-aventuranças são aquilo que nos ensina no quotidiano, no dia a dia, nas pequenas e nas grandes coisas, nos momentos definitivos e nos momentos provisórios, precários ou ordinários. Aquilo que verdadeiramente nos guia, a mão estendida de Jesus no concreto da nossa vida, são as bem-aventuranças.

Por isso era tão importante que cada um de nós as redescobrisse e que esta festa de Todos os Santos fosse para nós um desafio muito grande a ir procurar as bem-aventuranças. Na versão de S. Mateus, que nos dá a versão mais completa, são oito bem-aventuranças. O decálogo são dez mandamentos, mas as bem-aventuranças, a Palavra de Cristo, o resumo daquilo que Cristo nos pede são oito coisas, oito bem-aventuranças.

Era importante cada um de nós as ter escritas, escrever. Uma proposta seria cada um de nós, nesta semana, escrever pela sua própria mão as bem-aventuranças, copiarmos, fazermos uma cópia das bem-aventuranças. E pouco a pouco, as rezarmos, as decorarmos, fazermos delas as metas da nossa vida, as metas que dia a dia nós procurássemos que fossem conformadoras da mulher e do homem que nós somos, e pouco a pouco sentíssemos que elas eram a nossa inspiração, que elas são a nossa vida.

Não é por acaso que as bem-aventuranças são oito. S. Mateus, que escreve talvez o Evangelho mais judeu, mais hebraico, porque o escreve num momento em que no interior do Judaísmo se empurrava para fora os cristãos, dizendo “Vocês não são judeus, vocês são uns judeus muito atípicos por isso não podem estar na Sinagoga”, escreve o Evangelho a explicar o que é o Cristianismo também para os judeus. Nesse sentido, todos os números que nos aparecem no Evangelho de S. Mateus não são apenas números, são símbolos, é a guemátria. Quer dizer, os números servem para dizer verdades simbólicas, servem para estruturar de uma forma iniciática o próprio caminho.

Porque é que as bem-aventuranças são oito, na versão de S. Mateus? Porque Jesus ressuscitou no oitavo dia. O oito, para nós, é o símbolo do Tempo Novo, do Tempo Pascal. Depois do Tempo, abre-se um outro tempo: o tempo da vida ressuscitada, da vida levantada pelo próprio Deus, da vida garantia pelo próprio Deus contra toda a morte que nos sitia, toda a morte que nos ameaça. Então, são oito as bem-aventuranças, sinal que há uma época nova da história que se abre com elas.

Bismarck, com o seu sentido prático, dizia que com as bem-aventuranças não se consegue conduzir um país. Eu não sei se se consegue ou não conduzir um país, mas sei que se consegue conduzir uma vida, conduzir uma existência, conduzir um modo de viver, conduzir um estilo de viver.

Nesta festa de Todos os Santos o que é a santidade para nós? Podemos pensar ”A santidade é uma coisa muito distante, é uma coisa muito bela mas também muito inalcançável, muito inatingível.” Não, a santidade é a coisa mais quotidiana que existe, é a coisa mais banal que existe, é a coisa mais trivial que existe. A santidade, todos nós a praticamos, todos nós a passamos uns para os outros.

O que acontece é que nós valorizamos tantas coisas na vida, mas não valorizamos o modo humilde, o modo escondido, o modo simples como a santidade, que é uma contaminação da vida de Deus em nós, do espírito das bem-aventuranças em nós, passa de uns para os outros. Como é que cada um de nós, chamado por Deus a ser santo, há de concretizar isso nas suas vidas? Não com o desejo de ser santificado ou canonizado, não é isso. Não é que eu quero ser modelo para os outros, não é isso, mas é procurar tornar a minha vida próxima da vida de Cristo, semelhante à vida de Cristo. Aquilo que S. Paulo dizia: “Escondermos a nossa vida com Cristo, em Cristo.” O ser cristão é isso.

Na Carta de S. João, S. João usa a palavra semelhança e diz assim: “A meta da nossa vida é tornarmo-nos semelhantes a Deus.” Como é que isto se consegue? Vivendo numa tensão, numa abertura permanente, num processo de renovação, de purificação, de transformação interior. Mas o objetivo não é ficarmos como estamos, é tornarmo-nos semelhantes a Deus, é passarmos para uma outra ordem da realidade. Porque Cristo fez-se homem para divinizar o humano, para tornar o humano capaz de Deus. Cada um de nós é capaz de Deus. Capaz de imitar, capaz de se tornar semelhante, capaz de expressar, capaz de ser a boca de Deus, as mãos de Deus, o olhar de Deus, a presença de Deus no meio do mundo. E isso acontece pelo caminho prático, pelo caminho simples das bem-aventuranças.

Vamos hoje fazer este compromisso de descobrirmos as bem-aventuranças, cada um de nós descobrir as bem-aventuranças. Está no capítulo 5 de S. Mateus. Abrir o capítulo 5, copiar as bem-aventuranças, ler as bem-aventuranças, decorar, mas sobretudo viver. Mais importante do que o decorar é viver. Porque esta é de facto a nova Lei, que não é uma Lei mas é uma inspiração para as nossas vidas.

Que esta pobreza de espírito, de coração, que esta humildade, que esta capacidade de chorar com as dores dos outros, a compaixão, que esta fome e sede de justiça, isto é, com o não nos conformarmos com a forma do mundo, mas o desejarmos um mundo melhor, um mundo transformado, mais justo, que esta prática da misericórdia, sermos misericordiosos uns com os outros, que esta pureza de coração, que esta promoção da paz, que esta capacidade de sofrer por aquilo que acreditamos por amor a Jesus seja de facto uma realidade na nossa vida.

O Karl Rahner, que foi um dos maiores teólogos do século XX, dizia “É errado dizermos que somos cristãos. Isso é errado porque parece que já está tudo feito, já está tudo acabado. Nós desejamos ser cristãos, nós estamos à procura, estamos a tentar ser cristãos.” E, no fundo, isso é uma grande verdade para nós. Nós estamos aqui, não para celebrar aquilo que já somos, aquilo que já trazemos, estamos aqui num processo, num caminho, somos a Igreja peregrina, a Igreja que caminha.

E o que é a Igreja peregrina? É a Igreja constituída por mulheres e homens que, na vida de todos os dias, não desanimam, não desistem. É a Igreja corpo de pecadores, que não desistem de acreditar, não desistem de aprofundar. Caindo não desistem de levantar-se, rompendo não desistem de religar, afastando-se, estando afastados de Deus, não desistem de voltar a Ele, um dia. Isso é a Igreja a caminho, a Igreja peregrina.

Que o espírito das bem-aventuranças seja como esta chuva benigna que cai sobre nós e alaga de esperança e de amor as nossas vidas.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Todos os Santos

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[/vc_toggle] height=”30″]

Outubro

height=”10″][vc_toggle title=”2015/10/27 – Deus – conversas de Maria João Avillez com Assunção Cristas” open=”false”]

«Peço ao Espírito Santo para me ajudar a escolher as palavras»

«Peço ao Espírito Santo para me ajudar a escolher as palavras necessárias para chegar ao coração das pessoas», revelou esta terça-feira a Ministra da Agricultura e do Mar, Assunção Cristas.

A seguir ao encenador Jorge Silva Melo, a jurista foi a segunda convidada do ciclo de conversas sobre Deus, com a jornalista Maria João Avillez, organizado pela Capela do Rato, em Lisboa.

Depois de recordar os primeiros passos na fé, transmitida «na ternura dos afetos familiares», Assunção Cristas evocou a infância, especialmente no período natalício, com mais Menino Jesus e menos Pai Natal, e no colégio.

«Meninas, onde está a caridade?» era uma pergunta recorrente da Mãe, que também a sensibilizou, assim como às três irmãs e um irmão, para a necessidade de fazer render os talentos.

Detendo-se no Deus Trindade, Assunção Cristas contou como a sua visão de Deus Pai, Filho e Espírito Santo evoluiu com a idade, sublinhando a proximidade com Jesus, «companheiro de vida», e o Espírito Santo.

Qualifica a relação com Deus como natural e marcada pelo desejo, embora não faltem momentos de dúvida, e talvez por isso afirma: «O que peço mais para a minha família é fé».

Do envolvimento na argumentação contra o aborto até ao Governo percorreu um caminho inspirado por Jesus, que a ajudou a pesar os prós e contras de entrar na política, que classifica como uma das formas mais nobres de serviço público.

Após destacar o primado da consciência na ação governativa, Assunção Cristas referiu-se ao modo como fala aos filhos de Deus e da política, terminando a conversa, de que apresentamos excertos em vídeo, a falar sobre o seu «bom combate».

O ciclo prossegue na próxima quarta-feira, às 21h30, com Marcelo Rebelo de Sousa.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura


“Inspirei-me em Jesus, que nunca teve medo de se meter com gente pouco recomendável”

“Faz parte de ser católica aceitar outros caminhos” e, por isso, quando se colocou a Assunção Cristas a proposta de seguir o caminho da política, a agora ministra fez o que costuma fazer na vida: procurar em Jesus Cristo o exemplo e a fonte de discernimento. E não teve medo das más companhias. “Inspirei-me em Jesus que nunca teve medo de se meter com gente pouco recomendável”, afirmou a ministra da Agricultura na segunda sessão das Conversa sobre Deus, na Capela do Rato, em Lisboa.

A conversa, moderada por Maria João Avillez, começou pela infância da dirigente do CDS, quando “a fé foi transmitida na ternura dos afectos familiares”. Um tempo em que a avó assumiu um papel de transmissora de fé e de tradição, em que o que valia era o Menino Jesus e o Pai Natal só foi aceite como “ajudante”, e a mãe teve sempre como que um papel de alerta de consciência, com o “hábito de chamar a atenção para a responsabilidade na aplicação dos talentos” e para a prática da caridade.

Depois, no Colégio do Bom Sucesso, Assunção Cristas foi evoluindo para a imagem de “um Deus amigo, acolhedor, que perdoa todos os nossos pecados”.

“Ao longo do tempo e da vida, fui tendo uma relação diferente com as três pessoas da Santíssima Trindade”, afirmou a ministra, assumindo que “foi o Espírito Santo o que chegou mais tarde”, já na adolescência e muito por influência de um professora de Físico-química.

Para Assunção Cristas, Jesus é “um companheiro de vida, um exemplo e um filtro de acção” e o Espírito Santo é “um companheiro mais íntimo” a quem pede “muita sabedoria, iluminação e discernimento”, a quem recorre sempre que fala em público para que lhe dê as palavras que cheguem ao coração de quem a ouve. “Deus é o Pai, aquele que desejo, aquele que está à nossa espera e um dia vou poder aninhar-me no colo d’Ele. Deus alimenta-nos num desejo de chegar a Ele”, continuou a ministra, que não se imagina sem fé.

Fé como “caminho de felicidade e alegria”

Claro que tem dúvidas, assumiu Assunção Cristas perante o auditório, que claro se questiona se tudo isto não passa de uma ilusão. Não importa, responde: “Se nada disto for verdade, eu sou muito feliz assim.”

Por isso, e porque acredita e experimenta que “a fé é, de facto, um caminho de felicidade e de alegria”, o que mais pede para a sua família é a fé.

Clique aqui para ler o artigo completo e ouvir o áudio desta “Conversa sobre Deus com Assunção Cristas”.


conversasDeus2015_capelaRato_noticia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/10/25 – “Levanta-te, que Ele está a chamar-te“” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

Nos Evangelhos temos a presença da cegueira que Jesus cura como sinal daquela transformação que Ele faz acontecer nas nossas vidas. É muito interessante o lugar e o cuidado com que os evangelistas colocam estas cenas de cura da cegueira no próprio Evangelho.

Por exemplo, no Evangelho de Marcos, que hoje nós lemos, há a cura de um cego no início e no fim de uma secção muito importante, central, que é a secção chamada do caminho. É aquele intervalo entre a missão de Jesus em Galileia e a Paixão de Jesus em Jerusalém, em que Jesus no caminho está apenas com os discípulos. É um período muito importante, muito favorável de formação, de iniciação dos próprios discípulos.

No início e no fim desta secção do Evangelho de Marcos está a cura de um cego, quer dizer: todos nós precisamos de ser curados por Jesus, precisamos que Ele nos dê uma visão nova sobre a realidade, precisamos que Ele nos ajude a vencer a trave, a parcialidade, a dificuldade que nós temos em ver claro. Jesus é o mestre de uma visão nova, de uma visão renovada.

Nós hoje temos o encontro de Jesus com o cego de Jericó chamado Bartimeu, Timeu. É um nome simbólico que é dado a este cego, porque Timeu quer dizer precioso. Este cego colocado à beira do caminho não deixa de ser um filho precioso. É interessante que o cego aparece-nos numa situação de exclusão. Ele está colocado à margem, à margem do caminho, pedindo esmola, e há aqui uma dupla exclusão: por um lado ele é cego, e por outro lado ele é um pobre. Enquanto a multidão passa, escorre-se pelo caminho que vai de Jericó a Jerusalém, este homem permanece, fixo à beira do caminho, como se estivesse ali pregado por um destino cruel.

E quando Jesus passa este homem sente que é a sua oportunidade, sente que é a sua hora, sente que a sua vida se pode jogar por inteiro naquele encontro com Jesus e nada o cala. Ele começa gritando: “Jesus, Filho de David! Tem piedade de mim!” Este homem cego é um exemplo para nós crentes porque, ao contrário dele, muitas vezes a questão de Jesus na nossa vida não é que não seja uma questão importante, mas não é a questão decisiva. Nós não apostamos tudo o que temos, tudo o que somos, no encontro com Jesus. Nós não sentimos ainda que a nossa vida está nas Suas mãos, e depende completamente de uma palavra, de um olhar que Ele lançar sobre a nossa vida.

O cego é um exemplo para nós crentes no sentido de que temos de vencer esta fé negociada, esta fé do mais ou menos, esta fé que não é quente nem é fria, esta fé morna, que é o contrário da verdadeira fé que faz o encontro com Jesus, que faz o milagre acontecer na nossa vida, na nossa história. Aquele homem grita com Jesus e nada nem ninguém o pode calar. É um exemplo da fé.

Os grandes exemplos de fé que o Evangelho nos dá são paradoxais porque são os doentes, são os pobres, são os pecadores, são aqueles marginalizados os grandes mestres da nossa fé. Porque eles dizem-nos a atitude fundamental que deve ser a de um crente, que é de sentir que a relação com Jesus é uma relação absolutamente decisiva, é uma relação onde tudo se joga e tudo se perde. É uma relação onde nos lançamos com tudo aquilo que somos, com a integralidade do nosso destino. E nada pode travar o movimento deste homem até que Jesus para e diz: “Chamai-o, chamai-o.”

É uma forma muito interessante e que nos aparece diversas vezes em ações que Jesus desenvolve, ações simbólicas no interior da narrativa evangélica. Por exemplo, no episódio da multiplicação dos pães, Jesus multiplica os pães e depois dá aos discípulos para os discípulos entregarem à multidão. Isto é, Jesus torna-nos a nós, Seus discípulos, participantes da Sua missão. Jesus podia ter chamado o homem: “Olha, vem cá.” Fez-se um silêncio para ouvir a Sua voz, mas Jesus encarrega-nos a nós de chamar o cego e diz: “Chamai-o.” Como nos diz a nós hoje, neste tempo do século XXI: “Chamai-os. Chamai-as.”

E então acontece uma transformação no coração daqueles que estão junto daquele cego, que primeiro diziam: “Calem-se! Cala-te! Cala-te! Não incomodes o Mestre.” Mas agora dizem-lhe uma outra palavra, dizem-lhe: “Coragem, confiança. Ele está a chamar por ti.”

É esta mudança de atitude que também deve acontecer no nosso coração, porque muitas vezes a nossa primeira atitude é de mandar calar os outros: “Cala-te, isso não tem dignidade, ou não tem legitimidade, ou não tem oportunidade, ou não tem isto ou não tem aquilo.” A nossa atitude é a de suster, de calar, de não querer escutar até ao fim. Transformar essa atitude de quem sacode a água do seu capote para a atitude diferente de quem exorta, de quem ensina a confiança, de quem ajuda, de quem se torna adjuvante, auxiliar: “Coragem, Ele está a chamar por ti, vai ao Seu encontro.” Esta transformação é uma transformação decisiva em cada tempo da vida da Igreja.

Ontem concluiu-se o Sínodo da Família e na grande homilia que o Papa Francisco fez no final do Sínodo são palavras semelhantes a esta que ele traça como recordação, como memória e desafio para a Igreja do nosso tempo, dizendo: “Aqueles que cumprem a Lei, não são aqueles que cumprem a letra da Lei, mas são aqueles que são fiéis ao espírito da Lei.”

No fundo, é esta questão que se coloca a nós: como ser fiéis ao espírito do Evangelho? Isso passa sem dúvida por ouvirmos, por escutarmos, por fazermos pontes, por dizermos uns aos outros, dizermos àqueles que estão na margem, dizermos: “Coragem, o Senhor está a chamar por ti.”
Porque o encontro é com Jesus, o encontro não é connosco, aquilo que nós temos de ajudar uns aos outros é a nos colocarmos perante Deus, a fazermos esse encontro com Jesus que é único para cada pessoa. Temos de colocar cada um com confiança diante do Deus que fala. Não somos nós que falamos em vez de Deus, não nos coloquemos no lugar de Deus, mas ajudemos cada mulher, cada homem, a colocar-se com confiança perante este Deus que é amor e que é misericórdia.

Quando o cego ouviu esta palavra (é muito sugestiva a forma como o narrador do Evangelho de Marcos relata esta atitude), atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus. Isto é, ainda não lhe tinha acontecido nada mas ele já tinha transformado a sua vida. Abandonou a capa de mendigo, deu um salto como se já visse e foi ao encontro de Jesus. Isto é, a fé transforma-nos, a fé transforma-nos, a fé transforma-nos.

Os Padres do Deserto, que comentaram muito esta passagem do Evangelho de Marcos, viam aqui a liturgia batismal. Porque no batismo no início eram batismos de adultos, os cristãos tiravam as suas roupas, entravam nus para a piscina probática, a piscina batismal, e depois eram revestidos com uma túnica branca. Deixavam as vestes do homem velho e assumiam a configuração do homem novo. É isso que também é chamado a acontecer na nossa vida, mas não apenas como um rito, não apenas como uma liturgia mas como um salto. Há um salto a dar na direção de Cristo. Há coisas a deixar para trás porque sentimos que uma vida nova começa quando nos lançamos ao encontro do Senhor.

E quando ele chega diante de Jesus, Jesus pergunta-lhe: “Que queres que eu te faça?” Maravilhosa pergunta que devolve ao homem a palavra, a liberdade, a interpretação da sua história. Porventura podemos dizer: “Mas ele está a dizer o óbvio. O que é que este homem quer que Jesus faça? Que cure a sua cegueira, toda a gente sabe isso.” Não, nós não sabemos, nós não sabemos se não escutarmos. Nós não sabemos se não devolvermos ao outro a sua liberdade fundamental de expressar-se, de contar a sua esperança, a sua dor, o seu desejo, a sua expectativa. “Que queres que eu te faça?”

Às vezes os pobres, os marginalizados, são tratados como uma menoridade. Nós sabemos do que eles precisam, nós administramos a sua vida, nós é que dizemos o que é o bem e o que é o mal, e como deve ser e como não deve ser. Se nós estivéssemos colocados numa situação de fragilidade, de vulnerabilidade fundamental em que tantos estão colocados… porque na nossa sociedade não há igualdade de oportunidades, basta visitarmos uma prisão para percebermos que o princípio daquelas vidas era de tal modo vulnerável, de tal modo frágil que é quase uma fatalidade a continuação dos ciclos de sofrimento, de violência, de pobreza endémica.

Nós sabemos tão pouco, tão pouco, e precisamos de uma humildade, de uma humildade muito grande. “O que queres que eu te faça?” E o homem diz: “Mestre, que eu veja.” Ele diz a Jesus aquilo que é a palavra que trás para lhe dizer. E Jesus trata-o como um sujeito, não lhe dá uma esmola às escondidas, não, é um homem que fala com outro homem olhos nos olhos, dá-lhe a dignidade de ser, de aparecer. “Mestre, que eu veja.” E Jesus diz-lhe uma coisa maior, diz-lhe: “Vai, a tua fé te salvou.”

O caminho que o homem fez é um caminho já de desejo, é um caminho já de fé, é um caminho em que o próprio cego está implicado na sua prece, na sua súplica. Por isso, Jesus diz: “Tudo aquilo que tu fizeste para vir ao meu encontro, tudo isso já é salvação em ti. Vai, a tua fé te salvou.”

Depois, pelo final do Evangelho que é muito significativo, nós percebemos que o homem ficou curado de uma dupla cegueira. Ele ficou curado da cegueira física, o homem recuperou a vista, mas depois a última frase é “E seguiu Jesus no caminho.”, no caminho para Jerusalém, no caminho da vida cristã. Quer dizer, este homem não ficou apenas curado de uma carência física, este homem recebeu a luz da fé e por isso ele tornou-se discípulo de Jesus no próprio caminho.

Queridos irmãs e irmãos, durante esta semana pensemos muitas vezes no cego de Jericó. Identifiquemo-nos com ele na súplica, no desejo pelo Senhor. Identifiquemo-nos com aqueles a quem Jesus deixa a missão “Chamai-o.” e lhe dizem: “Coragem, ele está a chamar por ti.” Identifiquemo-nos com essas palavras, com essas personagens.

E depois, sintamos que o Senhor cura a nossa dupla cegueira. O Senhor vem ao encontro da nossa carência, da nossa dificuldade, mas o Senhor reforça a nossa fé, o Senhor dá-nos a capacidade de O seguir no caminho. Que este texto batismal seja para nós um guia de vida e nos ajude a viver no quotidiano, no dia a dia, na nossa circunstância concreta, o nosso caminho crente, o nosso caminho de fé.

Os padres sinodais escreveram um documento final que foi entregue ao Santo Padre, e o Santo Padre agora há de decidir o que fazer com ele e se vai ou não escrever uma carta, uma exortação pós sinodal sobre a família. Mas nas questões difíceis que se colocam hoje a família e às novas realidades familiares, e numa questão que tem sido muito dolorosa no interior da comunidade cristã e que a tem fraturado interiormente, que é a questão da comunhão dos recasados, a perspetiva que venceu, que ganhou consenso no interior do Sínodo, foi a de valorizar o chamado forum internum.

O forum internum é este caminho que cada um faz perante Deus na sua consciência, ajudado pelo seu diretor espiritual, pelo seu confessor, um caminho a partir da verdade da sua existência mas abrindo-se à misericórdia de Deus. Nós não podemos julgar por fora. Só olhando para o coração, só olhando para a circunstância, só olhando para a biografia, para a história concreta de cada um, nós podemos ajudar cada um no seu processo de integração no interior da Igreja.

Mas a grande palavra foi de facto uma palavra de integração, uma palavra de misericórdia que sai deste sínodo. Nós esperamos agora a palavra do Santo Padre, mas de facto foi uma experiência maravilhosa este ano de caminho, ou estes dois anos de caminho na Igreja para sentirmos isto precisamente: que o que nós temos de valorizar é o caminho que cada um faz ao encontro de Jesus, esse grito que está no coração de cada um e que é preciso acompanhar, que é preciso orientar, que é preciso esclarecer, que é preciso integrar. Mas a misericórdia de Deus prevalece sobre o nosso pecado e sobre o nosso limite.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXX do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/10/21 – Deus – conversas de Maria João Avillez com Jorge Silva Melo” open=”false”]

Jorge Silva Melo e a questão de Deus: «A ideia do amor é o que me ganha»

O encenador Jorge Silva Melo foi o primeiro convidado do ciclo “Deus – Conversas de Maria João Avillez”, nove encontros que a Capela do Rato, em Lisboa, apresenta até dezembro.

Filho de pai republicano, com a mãe a manter um catolicismo social, Jorge Silva Melo (Lisboa, 1948) encontrou na desobediência da irmã a inspiração para a sua procura do religioso.

Foi no colégio católico onde estudou até aos 14 anos que o cofundador da companhia de teatro Cornucópia ouviu a narrativa bíblica que lhe marcou a existência, a transfiguração de Jesus, em que humanidade e divindade se cruzam. Seduziu-o a suspensão do tempo, em que o esplendor da flor é perene.

O amor, o perdão e o recomeço são a fonte do seu «sim» à Igreja, onde encontrou João Bénard da Costa e a sua geração de católicos que atravessou os anos 60.

Em Londres, onde estudou cinema, Jorge Silva Melo viveu um catolicismo minoritário que tinha como programa a recusa da moda e do sucesso.

Antes da capital britânica, foi uma redação sobre os «novos mártires» que lhe abriu horizontes: suspenso da escola durante três dias, devido à subversão do texto, ganhou do pai a possibilidade de descobrir a Sétima Arte, e nela revelou-se-lhe o cristianismo pobre das origens, de que nunca tinha ouvido falar em casa ou no colégio, mais tarde acompanhado por S. Francisco de Assis e Simone Weil.

Falando de teatro, saber ouvir é o segredo maior, sublinha Jorge Silva Melo, que pede «tempo» para que à luz se desvele o oculto. E Deus está lá sempre, nos textos e atores que escolhe.

Na conversa com a jornalista Maria João Avillez, de que apresentamos excertos no vídeo abaixo publicado, houve ainda oportunidade para falar do esplendor do divino, que se acha no despojamento e no silêncio – longe vai a infância – e da ideia que Jorge Silva Melo tem de Deus.

O programa do ciclo “Deus – Conversas de Maria João Avillez” inclui entre os intervenientes dois candidatos à presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa (4 de novembro) e Maria de Belém (11 de novembro).

O selecionador de futebol Fernando Santos (18 de novembro), o escritor Pedro Mexia (25 de novembro), a fadista Carminho (2 de dezembro), o jornalista Henrique Monteiro (9 de dezembro) e João Taborda da Gama, professor de Direito (16 de dezembro) participam também na iniciativa.

Na próxima sessão, a 27 de outubro, a convidada é Assunção Cristas, ministra da Agricultura e do Mar. Os encontros, com entrada livre, realizam-se sempre às 21h30.

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura


“Gosto do Deus do amor e do perdão, não da culpa”

A infância de Jorge Silva Melo marcou boa parte da primeira “Conversa sobre Deus” que encheu a Capela do Rato, em Lisboa. O cineasta contou como foi despertando para a fé católica. Numa família onde o pai “era o tradicional republicano, jacobino e mata-frades”, e a mãe mantinha “um catolicismo social, de baptizados, casamentos e festa”, acabou por ser influenciado pela rebeldia da irmã, 12 anos mais velha, e que era profundamente católica.

A passagem pelo colégio dos maristas, para onde foi com seis anos, não lhe deixou boas recordações, mas foi aí que ouviu pela primeira vez a história da transfiguração, que o marcou até hoje. “Deus fez-se homem, e há uma altura em que o homem vai revelar o seu esplendor divino”.

“É uma história que me encanta”, diz, e que também o fez amar o teatro: “Isto foi uma cena de teatro fantástica, lá no alto da montanha, Jesus chamou dois profetas, Moisés e Elias, ou seja, não só fez o teatro de si próprio, como fez o teatro histórico, trouxe as personagens históricas, aqueles que vieram antes dele, que O anunciaram.”

“Também é por causa desta história que a minha profissão nunca foi muito bem vista na Igreja, porque nós ousamos fazer aquilo que só Jesus pode, que é tranfigurarmo-nos”. E acrescentou: “Criador é só Deus e os artistas. Nós roubámos essa palavra, por isso nunca somos muitos bem vistos. Nós, os do teatro, somos sempre olhados um bocadinho de soslaio”.

O cineasta e encenador contou como também o marcou ter visto, ainda miúdo, o filme “Quo Vadis”: “Fiquei fascinado com aquele catolicismo primitivo, era uma religião que se opunha à religião dos poderosos que me era ensinada no colégio, castigadora, da culpa. Eu fiquei encantado com os pobrezinhos que estavam nas catacumbas”.

Houve também livros que considera fundamentais na sua vida, como as “Florinhas de São Francisco” e os de Simone Weil, que já lia em francês. “Percebi que era tudo muito diferente da religião que me era ditada, martirizada e crucificada no colégio”.

Clique aqui para ler o artigo completo e ouvir o áudio desta “Conversa sobre Deus com Jorge Silva Melo”.


conversasDeus2015_capelaRato_noticia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/10/18 – Quem é que aceita ser o último?” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

Nós na natureza, entre os outros animais, encontramos a lei do mais forte como nas nossas sociedades, mas há uma coisa que é típica do ser humano que é a vingança. Os animais não se vingam uns dos outros. Nós temos esse impulso dentro de nós. Temos o impulso não só individualmente mas como sociedade de descarregar a nossa fúria, o nosso medo, o nosso temor, a nossa fragilidade. Descarregarmos em cima de uma vítima que nós mandamos para fora dos nossos olhos.

É aquilo que um filósofo de inspiração fortemente cristã, René Girard, trabalhou muito no esquema do bode expiatório. Ele diz que é muito fácil embarcarmos nesta lógica e dá o exemplo de S. Pedro. S. Pedro, que conhecia Jesus muito bem e que devia defendê-lo, quando no momento da Paixão estão ali à volta da fogueira e Jesus é preso já se percebe que aquilo tudo vai acabar muito mal. Há uma criada do Sumo Sacerdote que diz: “Olha lá, tu não és um deles?”, ele diz: “Não, não sou, não conheço esse homem.” E nega Jesus por três vezes.

René Girard diz que este é o desejo mimético, nós ficamos com o desejo de imitar a multidão, a massa e não temos a força de cortar e dizer: “Não, é preciso fazer outra coisa. Não, ele não tem a culpa toda.” Nós não podemos descarregar a nossa responsabilidade num bode expiatório que escolhemos para ser ele a carregar com as nossas culpas e com aquilo que todos tínhamos a responsabilidade de fazer e não fazemos.

Nesse sentido, a tradição bíblica e cristã vai noutra linha, que é dizer assim: em vez de transferir a responsabilidade, nós assumimos a culpa, nós assumimos a transgressão, nós assumimos o pecado. Nós vemos isso quer no profeta Isaías, nesta figura misteriosa do servo do Senhor, quer no autor da carta aos Hebreus, que faz uma belíssima teologia, mas que ao mesmo tempo é quase impenetrável, difícil para os nossos conceitos, que é a teologia de Jesus Sumo Sacerdote, Jesus como aquele que faz o sacrifício da sua própria vida, e que, no fundo, é isto que nós repetimos em cada Eucaristia.

O que é que está por detrás disto? Está aquilo que para nós é mais fácil: é transferir, é culpar o outro, é dizer “Se não fosse isto, se tu não tivesses dito aquilo.” É sempre o outro que tem a nossa culpa. E este, o Servo, Jesus é aquele que assume sobre Si o peso de muitos, aquele que assume voluntariamente sobre Si as culpas, os pecados, as fragilidades.

Por isso Jesus inverte esta lógica, a lógica que nos coloca como adversários uns dos outros, a lógica da competição, a lógica que nos faz querer salvar a nossa pele – queremos lá saber de como o outro fica ou não fica. Jesus ensina-nos a quebrar com esta lógica e a dizer: “Não, sou eu que carrego a culpa, e sou eu que dou a minha vida pelos outros.” Esta figura do servo sofredor que se oferece a si mesmo para ser espancado, para carregar sobre si os castigos todos, é a figura do justo, a figura da vítima da história – mas a figura da vítima que nós, na nossa cultura dominante, não queremos ver, não queremos saber, pois as vítimas não têm lugar, as vítimas que não nos incomodem.

A experiência bíblica e cristã coloca a vítima como um modelo para nós. Por isso é que Jesus é a vítima de expiação pelos nossos pecados, como vai dizer a carta aos Hebreus : “Mas é Ele, Jesus enquanto vítima, Jesus enquanto assume Ele próprio, enquanto aceita dar-Se, que Se torna para nós o grande modelo, que Se torna para nós o grande sinal, o grande ensinamento, a grande lição.

Como é que nós somos chamados a ter fé? Como é que nós somos chamados a viver? Somos chamados a viver à maneira de Cristo, cortando com este impulso que é tão forte em nós, o impulso de culpar os outros, o impulso de nos vingarmos, o impulso de nos sobrepormos e aceitarmos fazer o inverso. Fazer o inverso que é aceitar a lógica da dádiva, a lógica do dom, a lógica do sofrer pelos outros, a lógica do serviço aos outros.

Quando estes apóstolos vieram ter com Jesus a dizer “Senhor, senta-nos um à Tua direita e outro à Tua esquerda” quem não gostava? Quem de nós não gostaria de estar sentado à direita ou à esquerda do Senhor na sua glória? Mas Jesus diz: “Não é isso que é importante, o importante é tu tornares-te o servo de todos e o último de todos, porque o Filho do Homem veio para servir.” Nós identificamo-nos com Jesus na medida em que nos despojamos de nós próprios, na medida em que desconstruímos esta lógica que há em nós de agressividade, de autodefesa, de sobrevivência, de afirmação pessoa, na medida em que desconstruímos e nos colocamos a servir, a aceitar ser o último. Quem é que aceita ser o último?

Nós pensamos: “É o último quem não tem hipóteses de ser o primeiro”, porque no fundo o importante é ser o primeiro. Mas Jesus diz: “Não, o importante é ser o último.” É alguma coisa que nos faz tombar, é alguma coisa a que nós dizemos “É absurdo.” A nossa carne grita outra coisa, a nossa vontade quer outra coisa. Nós queremos o sucesso, queremos triunfar, queremos afirmar-nos, e Jesus diz: “Queres isso? Então o caminho é este: é o caminho do serviço, é o caminho do apagamento, é o caminho da humildade, é o caminho da aceitação vitimária. Aceita tu ser a vítima, coloca-te tu no lugar da vítima, no lugar do mais fraco, no lugar do mais pobre, no lugar do excluído, coloca-te aí, coloca-te aí. E então, receberás o batismo que Eu vou receber, e tomarás o cálice que Eu vou beber.”

É muito belo este trecho da carta aos Hebreus porque diz-nos o seguinte: “Por causa disto (por causa do gesto de Jesus, que é um gesto em rutura com aquilo que a carne e o sangue nos ensinam, e com aquilo com que a nossa cultura nos vacina), por causa de Jesus, cheios de confiança, nós podemos ir ao trono da graça a fim de alcançarmos a misericórdia.”

A partir do dia 8 de dezembro deste ano de 2015, nós cristãos vamos começar o Ano Santo da Misericórdia. Na bula de convocação da Igreja para o Ano Santo, o Santo Padre diz três coisas fundamentais, no meu ponto de vista.

Primeiro: Jesus é o mestre da misericórdia, Jesus é o rosto da misericórdia de Deus. Precisamos de colocar os olhos em Jesus. Isto é um desafio para cada um de nós porque, se calhar, nós já vimos Jesus, mas ainda não O vimos. Isto é, ainda não vimos um Jesus capaz de falar à mulher e ao homem que eu sou em concreto. Não é Jesus que todos nós amamos e adoramos, mas um Jesus que me ensina a viver nas pequeninas coisas. Não é nas grandes coisas, na vida eterna, na salvação da alma, não é nas grandes coisas, é nas pequeninas coisas que Ele é o Mestre, que Ele me ensina a viver. Então é descobrir Jesus como mestre, como mestre da misericórdia.

Depois, descobrir como a misericórdia torna credível a fé. Isto é, eu não posso dizer que sou cristão sem a misericórdia. Por isso, o Santo Padre diz: “A Igreja fala de Jesus e fala de Deus com credibilidade quando ela usa da misericórdia.” Então, a misericórdia torna credível a nossa fé. Se há um cristão no qual eu posso confiar é um cristão misericordioso, que usa de misericórdia, que sabe o que é a misericórdia.

E a terceira parte é um grande desafio para a Igreja, mas para cada um de nós, que é o que Jesus manda os discípulos fazer: “Ide aprender o que é «eu quero misericórdia e não sacrifício». Ide aprender o que é que isto significa.” Eu acho que é uma tarefa para cada um de nós nas nossas vidas, na nossa forma de viver, nos nossos passos, nas nossas relações: “Ide aprender o que é que isto significa.”

Na preparação para este Ano Santo da Misericórdia é tão importante centrarmo-nos em Jesus, é tão importante perceber que a misericórdia não é a cereja em cima do bolo, é o próprio bolo. Não é apenas um ornamento, uma coisa: “Ah, é tão bonito! Se tu fores misericordioso então é um plus.” Não, não é um plus, se tu não és misericordioso, és uma fraude. Tu só serás cristão na medida em que a prova da misericórdia for uma prova ganha na tua vida concreta.

Por fim, essa coisa em aberto, porque a misericórdia não é uma coisa com cinco pontos, fazer isto, fazer aquilo, fazer aquilo, fazer aquilo. A misericórdia é uma criatividade, há uma fantasia. A misericórdia é vivida por cada um de nós, há-de ter expressões muito diversas, muito singulares. E é a isso que nós também somos convocados pelo Papa Francisco neste Ano Santo, para aprendermos o que é a misericórdia.

Que cada um de nós sinta isto como um desafio às portas do Ano Santo. O que é que significa? O que é que vai ser para mim este Ano Santo da Misericórdia? O que é que vai ser? Porque é que é que ele se vai tornar decisivo nas nossas vidas? Temos de nos ajudar muito uns aos outros, temos de rezar muito. Temos de rezar muito uns pelos outros, para que a misericórdia seja de facto uma arte que todos nós praticamos em beleza, em liberdade, em esperança.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXIX do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/10/16 – Caixas ofertório” open=”false”]Objecto de cerimónia encomendado por José Tolentino Mendonça para servir nas eucaristias da Capela do Rato. Caixa sólida, sem pegas, sem lados, sem direcções desenhada para passar de mão em mão. A sua pequena abertura para colocação das esmolas reivindica a concentração no momento da oferta. A superfície lateral única e contínua procura o sentido de comunidade.

Autor:
www.joaocarmosimoes.com

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caixasOfertorio_capelaRato_04[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/10/11 – Desprende-te” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

Ouvimos muitas vezes dizer que na nossa época faltam os mestres. Nós temos tantos especialistas, mais do que nunca a técnica e a ciência evoluíram, ganhando um espaço, um protagonismo, nas nossas sociedades. Mas faltam-nos os mestres capazes de fazer uma síntese, capazes de nos ajudar de uma forma verdadeira, sapiencial, a encontrar o sentido para aquilo que vivemos, o sentido para os nossos caminhos, para as nossas procuras e para as nossas histórias.

Eu não sei se nos faltam mestres ou não. O que eu sei é que cada um de nós é colocado perante a questão da sabedoria. Cada um de nós é chamada e é chamado a encontrar uma sabedoria para a sua vida. Isto é, a vida não pode ser apenas a soma das possibilidades que eu já tenho e estar a descontar dias num calendário. A vida tem de ser mais do que isso. Aquilo que ilumina, argamassa, dá conteúdo e alicerça a vida tem de ser uma sabedoria.

Sabedoria significa uma visão global da própria vida, não uma visão parcial. Significa uma visão de conjunto que abarque não apenas o agora mas a globalidade da nossa vida, não apenas o que nós fomos, o que nós seremos. Uma narrativa que seja capaz de conter o nosso nascer e o nosso morrer, a nossa vida e a nossa morte. E forneça uma luz que seja credível para nos iluminar. Nós precisamos de uma sabedoria, senão vivemos às cegas. Senão vivemos ora dando uma importância excessiva a isto, ora agarrando-nos àquela paixão, ao último entusiasmo, e acabamos por ficar reféns ora das nossas ilusões, ora das nossas frustrações. Mas falta-nos um alicerce, falta-nos um caminho, um caminho seguro, um caminho claro que vamos encontrando, construindo, aprofundando em cada dia. As leituras de hoje falam-nos disso.

A carta aos Hebreus diz: “A sabedoria é a palavra de Deus que nós somos chamados a acolher nas nossas vísceras, na dobradiça dos nossos ossos.” Isto é, nos pontos mais verdadeiros da nossa condição humana, nós somos chamados a receber a Palavra. A Palavra não é apenas um dispositivo teórico e ideológico que nós vamos construindo, uma série de convenções rituais que nos ajudam confortavelmente a viver, mas a palavra argamassa a mulher e o homem que nós somos.

A primeira leitura do livro da Sabedoria usa um sinónimo, em vez de Palavra de Deus usa o termo “sabedoria” e apresenta-nos o Rei Salomão. É um texto muito belo este que nós lemos, porque Salomão foi o rei mais poderoso de Israel, aquele que construiu o Templo, que viveu numa condição de prosperidade e paz política como nenhum outro rei. Salomão diz: “Eu preferi às riquezas e aos cetros a sabedoria. Ela para mim foi sempre a estrela, a coisa mais importante.” E é, no fundo, essa questão que nos é colocada: Qual é o nosso fio condutor? Qual é o nosso fio condutor? O que é que nós seguimos? Qual é a finalidade que nós sentimos para a nossa vida? Porque é importante isso estar explicitado para cada um de nós.

Não pode ser apenas chegar lá por intuição ou às apalpadelas. Não, cada um de nós tem de dizer: “O sentido da minha vida é este, aquilo que eu procuro é isto. Mais ou menos, na incerteza das minhas possibilidades, mas é isto, é isto que eu procuro. E, se eu procuro isto, então eu vou viver numa coerência, eu vou dar consistência aos meus próprios passos. Não posso acreditar numa coisa e viver de uma forma completamente contraditória com aquilo que eu persigo, com aquela sabedoria que eu identifiquei. Mas as nossas vidas são chamadas a fazer uma coisa só com aquele núcleo de verdade fundamental que para nós é a nossa âncora, é a nossa chama, é a nossa estrela.

O Evangelho dá-nos um caminho e conta-nos este encontro de Jesus com este homem bom. Este homem que procurava cumprir, procurava realizar, procurava acertar desde a sua juventude, vivia energicamente a dizer um sim. Isso era verdade nele. Quando Jesus lhe diz:

“ – Tu sabes os mandamentos, cumpre-os. Isso é um caminho.”

Ele diz:

” – Eu já tenho cumprido tudo isso desde a juventude.”

Jesus olha para ele e olha com simpatia, vê que é verdade – há ali uma situação de empatia. Jesus estava perante alguém que fazia da sua vida uma obra sábia, uma obra sapiente, uma obra de respeito. E tem simpatia por ele. Mas diz-lhe esta palavra: “Falta-te uma coisa, falta-te uma coisa.” Porque mesmo nas vidas que parecem acabadas e completas falta uma coisa.

É interessante que muitas vezes no Evangelho, e aqui se vê o jeito sapiencial de Jesus, Jesus é um verdadeiro mestre das nossas vidas, muitas vezes Ele deixa-nos com uma frase assim. No episódio de Marta e Maria, por exemplo, Jesus vira-se para Marta atarefada, só a pensar no fazer, no fazer, e Jesus diz: “Marta, Marta só uma coisa é necessária.” E isto é uma chamada ao contrário das nossas dispersões. Fazemos isto e aquilo, e aquele outro, e só uma coisa é necessária. A pergunta é se nós estamos a fazer em cada momento a coisa necessária, e se nós estamos a optar pela coisa necessária, a dar-lhe a prioridade devida. Hoje, Jesus diz uma outra coisa, diz: “Falta-te alguma coisa.”

A verdade é que a cada um de nós falta alguma coisa. Falta fazer, falta sobretudo ser alguma coisa. Não podemos pensar na nossa vida como um parque de estacionamento onde já chegámos e vamos vivendo mais ou menos, com maior esperança, com maior inocência ou com maior cinismo. Vamos vivendo a nossa vida porque já sabemos tudo o que vai ser. Não, “falta-te uma coisa”, e se queremos levar esta aventura humana até ao fim falta-nos uma coisa. Jesus para aquele homem diz-lhe: “Falta-te uma coisa: vende tudo o que tens, dá-o aos pobres, vem e segue-Me com maior radicalidade.”

Porque não há liberdade sem desprendimento, não se pode pensar que a liberdade nos é dada. Não, a liberdade não nos é dada, a liberdade é conquistada, é conquistada. Ninguém nos dá a liberdade. Podem-nos dar uma liberdade de fora, um quadro da liberdade, mas nós podemos estar completamente presos e manietados num quadro de liberdade, ou num quadro libertário até. A liberdade é conquistada e a liberdade, antes de tudo, é uma atitude interior. Porque nós vemos na primeira geração dos cristãos, eles estavam presos, acorrentados e estavam livres. E S. Paulo escreve a Timóteo: “Ninguém põe grilhões na palavra de Deus. “ Isto é, nós podemos estar numa prisão e estar livres, porque a liberdade não é um condicionalismo exterior, a liberdade é uma conquista do nosso coração.

E como é que a liberdade se conquista? Eu não conheço outro caminho senão pelo desprendimento. Pelo amor, pelo abandono, pela entrega, pela convicção, pela fé, mas também pelo desprendimento. Para eu escolher uma coisa tenho de deixar outras, não posso levar tudo. A vida espiritual não é um grande carro de mudanças, é uma bicicleta. O homem e a mulher espiritual andam de bicicleta, não andam de camião a querer levar tudo atrás de si. Nós temos de carregar connosco aquilo que cabe numa bicicleta, a vida mínima, o essencial. Mas isso é uma escolha, é uma escolha difícil de fazer porque nos prendemos verdadeiramente, há prisões.
Nós vemos, por exemplo, com os ricos. Podíamos pensar que quem tem muito dinheiro a dada altura deixa de preocupar-se com dinheiro. É o contrário, quem tem muito dinheiro só pensa em dinheiro, e torna-se obcessivamente preso àquele dinheiro. Quem tem muito quer ter ainda mais, não quer partilhar, não quer fazer alguma coisa com aquilo – salvo raras, honrosas, generosas exceções. Mas isto que Jesus critica, estes ricos que podemos ser nós, que pode ser a riqueza material e as outras riquezas existenciais que transportamos, estes ricos são aqueles que ficam presos, fazem do que têm a sua prisão. Esta arte do desprendimento, como arte espiritual que nós temos de praticar, é fundamental.

Depois, o outro passo que Jesus nos ajuda a dar é o passo da dádiva, do dom: “Vende tudo o que tens.” Isto é, “desprende-te.” Cada vez mais radicalmente, e nós sabemos que é assim, temos que nos desprender mais para ser mais livres, senão não experimentamos uma verdadeira liberdade e uma verdadeira sabedoria.

Mas depois, nós desprendemo-nos para viver a experiência da dádiva, a experiência do dom, do dom. A nossa vida fica como o pão duro no saco, que acaba por ser deitado fora, se nós não colocamos esse pão sobre a mesa. Isto é, se nós não nos colocamos como o pão sobre a mesa para que os outros comam. Aquilo que nós não damos, perde-se. Nós só possuímos, nós só encontramos, nós só somos a vida dada, a vida partilhada, e é essa a grande lição de Jesus. Ele está todo neste pão que nos oferece como alimento. A vida de cada um de nós é chamada a ser dom, dom. Uma vida onde não há dádiva é uma vida que está a perder-se, é uma vida que é vivida sem a sabedoria de Jesus. Nós temos de redescobrir o dom na nossa vida – o dom, o serviço, a oferta, o comprometimento, o empenho. Aquele ícone do lavar os pés uns aos outros, que S. João nos dá na última ceia, deve ser a imagem que cada um de nós persegue.

Depois Jesus diz: “Dá aos pobres, aos pobres.” Há um encontro com os pobres que todos nós somos chamados a ter. A pobreza entendida de diversas formas, é verdade. Mas cada um de nós tem de ter um encontro com os pobres.

Eu lembro-me (penso já ter contado esta história) de uma pessoa que conheci que teve uma carreira política, internacional, académica absolutamente notável, distintíssima. Ele, quando se reformou, disse-me: ”Padre Tolentino, a minha vida tem sido uma vida realizada, cheia, só tenho a agradecer. Mas falta-me uma coisa, e que toda a vida, em todos estes cargos que eu tive, nunca tive a oportunidade de fazer: encontrar-me com os pobres.” Ele passou de um cargo internacional muito importante para a Conferência Vicentina da sua paróquia, para ir ao encontro dos pobres. E, neste homem, nós reconhecemos um cristão, reconhecemos um cristão. Porque é preciso uma liberdade enorme e um ouvir continuamente no seu coração esta Palavra de Jesus: “Falta-te uma coisa, falta-te uma coisa.” Ele sabia que lhe faltava ir ao encontro dos pobres.

Esse encontro não é um encontro que nós podemos não realizar. Há uma página do Evangelho que os pobres guardam, escrita nas suas vidas. E se nós a quisermos ler, temos de os servir, temos de os encontrar, temos de os acolher, temos de os ouvir para entender essa página do Evangelho.

Depois, Jesus diz: “Feito isto, vem e segue-Me.” O seguimento de Jesus é assim um seguimento que transforma a nossa vida. Nós não podemos pensar que estamos a seguir Jesus e a nossa vida contínua incólume, continua a mesma, continua a vida que a gente quis, a vida que a gente escolheu, a vida que a gente sonhou. Bem-aventurados aqueles a quem a vida deu o que eles não sonharam, que tiveram de viver o que eles não pediram, que tiveram de gerir aquilo que eles não estavam à espera. Mas a abertura, a hospitalidade, a esse inesperado da vida, a isso com o qual não contávamos mas temos de amar, temos de abraçar, temos de servir é que nos torna seguidores de Jesus.

Queridas irmãs, queridos irmãos, há uma sabedoria que é o próprio Jesus. Jesus é a sabedoria do Pai. Nós precisamos de olhar para Jesus não apenas como o nosso salvador que deu a vida por nós, que dá a vida por nós, mas temos de olhar para Jesus também como a nossa sabedoria. Isto é, o nosso mapa, o nosso mapa. Todos os dias nós somos viajantes, somos peregrinos, Jesus é o nosso mapa nas atitudes de viver, nas escolhas mais simples ou mais decisivas da nossa vida, Jesus dá-nos o critério, Jesus dá-nos a chave. Nesse sentido, passo a passo, todos juntos, caminhamos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVIII do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/10/04 – A família é um laboratório do nosso futuro” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

Esta manhã, em Roma, o Papa Francisco celebra a missa de abertura do Sínodo sobre a Família, que vai reunir 270 bispos do mundo inteiro, representando as igrejas do mundo, e vários peritos, especialistas, que vão assessorar os bispos, entre os quais dezoito casais.

Nós sabemos como este Sínodo é uma segunda etapa deste acontecimento que o Papa Francisco quis promover para aprofundar a teologia da família, o significado da família no mundo contemporâneo, e para pensar no interior da Igreja o que é a beleza da missão da própria família, ao mesmo tempo meditando sobre o modo como a Igreja há de exercer o seu ministério da misericórdia sobre as feridas, as vulnerabilidades, as fragilidades da própria família.

Ainda ontem o Santo Padre, na vigília na Praça de S. Pedro, dizia precisamente isso: “Este Sínodo é, por um lado, para todos termos mais claro a beleza da família. O que significa a família, a sua importância na história de cada um de nós, no futuro da Humanidade. A família é um laboratório do nosso futuro. Por isso a família tem de ser redescoberta, a família tem de ser celebrada na sua vocação e na sua missão. E ao mesmo tempo, termos uma atenção misericordiosa para com as fragilidades da família, as vulnerabilidades da família.”

E não há família que não seja atravessada pelo mistério da fragilidade humana. O Santo Padre dava como exemplo precisamente a família de Nazaré. José e Maria e Jesus, eles são o modelo da família. E é um modelo de uma família difícil, uma família com muitos problemas. Mas eles encontraram, na capacidade de estar uns com os outros, de se amarem, de se reconhecerem, de se descobrirem mesmo naquilo que não compreendiam uns dos outros, um caminho. Os Evangelhos dizem-nos, por exemplo, continuamente, que Maria e José não compreendiam o que Jesus estava a fazer. Mas aquilo que não se consegue compreender também é património da própria família, e é preciso amar e saber integrar isso.

De maneira que é uma etapa muito importante este mês de outubro, e nós somos todos chamados a rezar pelo Sínodo dos Bispos, a pedir o dom do Espírito Santo. Porque sabemos ao mesmo tempo como há as divisões e as dificuldades em encontrar um caminho comum que seja um caminho verdadeiro de comunhão.

E aí, de facto, a Palavra de Deus é uma palavra inspiradora para nós, porque Jesus tem uma palavra que coloca as coisas na sua verdade essencial. Reparem, segundo a Lei de Moisés, o homem, e só o homem, podia passar um certificado de divórcio para separar-se da mulher. Só o homem podia fazer isso. E não havia, no interior da relação conjugal, nenhuma paridade. Era uma sociedade patriarcal, quem mandava verdadeiramente era o homem. E quando fazem a pergunta a Jesus, Jesus estabelece uma paridade. Diz que o homem a mulher estão ao mesmo nível, estão numa equivalência no interior da relação conjugal.

E faz mais, retira o matrimónio da Lei. Não é a Lei de Moisés que decide sobre o matrimónio, mas Jesus vai à criação: Pergunta ao teu coração o que o matrimónio deve ser. Isto é, Jesus faz remontar à ordem da criação, ao gesto inicial do criador, o encontro que na família se vive. Essa é, de facto, a citação que Jesus faz do livro do Génesis que hoje nós lemos: O homem está no meio da criação, ele dá nome a todas as coisas, mas o homem sente-se só. Sente uma solidão fundamental porque o coração humano precisa de uma conjugalidade. E quando Deus interroga o homem, o homem diz a Deus que precisa de uma “ezer”. As traduções são sempre muito rebuscadas, desde “eu preciso de uma auxiliar” ou “eu preciso de uma assistente”. Mas, verdadeiramente, a palavra “ezer” o que quer dizer é “eu preciso de alguém que olhe nos olhos”. Isto é, o homem olha para a criação de cima para baixo, sente que é diferente dos animais, sente que é diferente das aves, mesmo tendo a missão de ser pastor de todas as coisas e não dominador. Mas o homem sente-se só porque precisa de alguém que olhe nos olhos.

E, por isso, a conjugalidade não é fruto de uma lei, antes de tudo é fruto de uma reivindicação, de uma incompletude que o homem vive no seu coração. Há essa imagem poética extraordinária em que Deus adormece Adão, e quando Adão acorda Deus coloca-lhe Eva, essa “ezer”, diante dele. Então ele diz esse que é um dos primeiros poemas hebraicos, e que é um poema de uma extraordinária beleza: “Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne.” É um poema extraordinário porque mostra o ligame vital que a conjugalidade é chamada a exercer.

Mas nós sabemos, queridos irmãos, que no Cristianismo primeiro vem a dogmática e depois vem a moral. Primeiro vêm as verdades da nossa fé e depois nós temos de fazer uma hierarquia das verdades da nossa fé. A coisa mais importante é acreditarmos que há um só Deus que é misericórdia, que Jesus é o Seu Filho enviado, que Ele veio para dar a vida por nós e não Se envergonha da nossa fragilidade, da nossa imperfeição, do nosso inacabamento, e que nos enviou o Seu Espírito que vive no meio de nós, que vivemos em Igreja e caminhamos no tempo e na história. Esta é a verdade fundamental da nossa fé. A ética deve ser uma expressão, uma tensão, para vivermos na nossa vida concreta esta fé que professamos. Mas Deus leva-nos ao colo em todas as situações.

E por isso, o debate é apenas uma parte do sínodo porque o fundamental é descobrir, aprofundar, o sentido da família, o seu significado, celebrar a família no mundo contemporâneo – onde nós sabemos que é tão difícil porque toda a nossa cultura é uma cultura muito mais instantânea, muito mais precária, onde tudo parece durar o tempo de duração de um iogurte. A tendência é levar isso, também, para as relações mais fundamentais da vida. Nós sabemos como é preciso contrariar uma cultura que nos desumaniza, porque se o homem não é capaz de eterno, o homem não é capaz da sua humanidade.

Nesse sentido, há uma tensão que o cristianismo introduz na nossa humanidade que é importante que permaneça, mesmo que isso represente uma espécie de contra cultura, um ir contra a tendência dominante. Mas, ao mesmo tempo, nós sabemos como as relações humanas e a nossa própria humanidade são uma humanidade ferida. Ela própria é um enigma, ela própria é um mistério e, como sabemos, antes de tudo o que a Igreja tem de testemunhar é o rosto misericordioso de Deus.

Aqui nós temos de rezar, temos de rezar porque as feridas existem, nós não podemos enxotá-las para debaixo do tapete. Os problemas em relação à família são problemas concretos. Se calhar, o discurso de uma época não serve para outra época. E temos de viver com verdade, com autenticidade, este ministério de compaixão e de amor que Jesus nos manda, nos pede viver. Só assim somos fiéis a Jesus.

E nesse sentido, todo este esforço por reconhecer como uma parte significativa dos casamentos que se celebram catolicamente não são válidos. E não são válidos simplesmente porque as pessoas não estão preparadas para assumir, as pessoas não têm consciência do que estão a fazer. Casam cedo de mais, precipitam-se, não fazem um discernimento espiritual. É preciso também reconhecer que muitos casamentos falharam porque tinham tudo para falhar. E é preciso ir em socorro, é preciso perceber essa situação, e esclarece-la do ponto de vista do Evangelho.

Nesse sentido, esta agilização que o Papa Francisco faz da anulação do matrimónio, reconhecendo que o bispo local, o bispo de cada diocese, tem também um poder de juiz, e por isso os processos de verificação do casamento e da anulação passam a ser sobretudo diocesanos, na maior parte dos casos. Isso é um gesto muito importante da Igreja e de adequação à própria realidade. Quer dizer, a realidade é assim, é assim. E quando ouvimos as histórias de fracasso do matrimónio nós vemos aquele homem e aquela mulher que não tinham condições para viverem amplamente aquela missão que aceitam naquele dia, se calhar com a verdade que podiam naquele momento, mas não era a verdade capaz de sustentar as dificuldades e a complexidade de uma vida conjugal.

Por isso, é preciso ir ao encontro das vidas feridas, é preciso ir ao encontro com misericórdia. Nós sabemos que hoje a realidade, o fenómeno, a experiência, a condição da homossexualidade feminina e masculina ganhou nas nossas sociedades uma visibilidade que nós não podemos ignorar. As pessoas têm de viver e temos de escutar a voz das pessoas, temos de escutar o que elas vivem e temos de aprender, temos de acolher e temos de aprender, fazer um caminho com as pessoas. Porque, no fundo, nós muitas vezes pomos o dedo: “Este é este, aquela é aquela.” E nós ignoramos tanto da vida dos outros, do sofrimento dos outros… A verdade é que muitas vezes impomos cargas aos ombros dos outros que nós nem com um dedo as levamos.
Nesse sentido, temos de fazer silêncio e escutar. A Igreja também precisa de escutar, também precisa de ouvir a voz daqueles que muitas vezes não têm voz no meio de nós, e encontrar formas de diálogo, de acompanhamento. Isso é tão importante.

Aqui, na nossa comunidade, há uma experiência de cristãos homossexuais que se reúnem para rezar uma vez por mês na nossa capela. É tão importante dar esse espaço para que as pessoas rezem as suas vidas, para que as pessoas se confrontem com a palavra de Deus de uma forma que não seja para as julgar, para as condenar à partida. Mas, pelo contrário, para dizer que os homossexuais são nossos filhos, são nossos irmãos, são nossos amigos, são nossos companheiros de trabalho, são cristãos como nós, estão na nossa comunidade. Nós temos de encontrar um modelo pastoral, porque também é disso que se trata. Temos de encontrar um modelo pastoral onde a integração seja uma realidade mais vivida, e este ministério da compaixão que Jesus Cristo confia à Igreja seja um ministério praticado por todos nós.

Vamos por isso rezar ao Senhor, é uma hora muito importante da vida da Igreja este mês de outubro, não é um mês qualquer, é um mês importante, jogam-se coisas decisivas. O Santo Padre pediu aos bispos para falarem com liberdade. A palavra grega é uma palavra que vem muito no Cristianismo, que é “parrésia”. “Falem com parrésia”, isto é, falem com desassombro, falem com abertura, falem com verdade, digam o que pensam. Foi isso que o Santo Padre pediu aos bispos, aqueles 270 que estão ali, e pede à Igreja. Falemos com esta abertura, com esta simplicidade, com esta verdade para encontrarmos um caminho comum que tem de ser o caminho da comunhão.

A força da Igreja é a força da comunhão. Uma comunhão que se faz de diferentes ritmos, de diferentes experiências, mas uma comunhão que é um caminho comum à volta de Pedro, à volta daquele que é o que o Senhor colocou na linha da sucessão apostólica e que é o primeiro garante da unidade da nossa fé, da unidade daquilo que todos vivemos.

Queridos irmãs e irmãos, é assim um outubro muito belo este que temos pela frente, mesmo com a sua dificuldade, a sua cruz, mas onde é que há ressurreição sem se passar pela cruz?

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVII do Tempo Comum

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Setembro

height=”10″][vc_toggle title=”2015/09/27 – Mas tu, o que é que vais fazer?” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos,

Nós começamos a Palavra de Deus pela leitura do Livro dos Números, num texto muito curioso que tem a ver com uma teologia nem sempre dominante nas nossas perspetivas. Muitas vezes olhamos para a história como se o Espírito Santo fosse um monopólio de alguns, um dom especial que alguns têm. Muitas vezes, na forma de encararmos a história do mundo, a história da Igreja, o próprio presente, nós achamos: Ah, fulano é que tem o Espírito, aquele é que tem o Espírito, aquele outro é que tem o Espírito.

É interessante que esta teologia exodal dos Números faz eco. Diz-nos que o Espírito Santo é um dom muito democrático. Isto é, é repartido pelos setenta e dois anciãos de Israel. Isto é, o dom do Espírito Santo não é o dom apenas do sacerdote, ou não é apenas o dom do profeta, não é apenas Araão e Moisés que recebem o Espírito Santo. O Espírito é distribuído a todos os anciãos de Israel. E mais, aqueles que não estavam no momento da oferta, da grande oblação quando os setenta receberam ao mesmo tempo o Espírito e ficaram por alguma razão no acampamento, o Espírito Santo também desceu sobre eles para lá das fronteiras do Sagrado.

Isto dá-nos uma visão muito mais rica do que é a vida, do que é a história. Porque, de facto, o Espírito Santo está derramado em todos nós, sem exclusão. E, cada um de nós é chamado a viver a sua vida exercendo esse dom do Espírito Santo que está em nós.

A própria espiritualidade cristã fala continuamente, por exemplo, da paternidade espiritual, da maternidade espiritual. Não é apenas a figura do padre que tem o monopólio da paternidade espiritual. A paternidade espiritual é a forma como somos amigos uns dos outros, como estamos próximos, como somos capazes de dar um bom conselho, como somos capazes de escutar, de acolher, de abraçar, de corrigir, de avançar, de alertar. Tudo isso é a paternidade espiritual. É uma missão que todos nós somos chamados a ter na vida uns dos outros. Maternidade espiritual o que é? É a capacidade de acolher, a capacidade de ouvir, mas também é a capacidade de por a caminho, a capacidade de fazer ver as coisas de outra forma, de nascer, de perceber aquilo que é importante e aquilo que é acessório.

Esta tarefa, que é a tarefa de trazer o Espírito ao mundo, gerar no mundo o Espírito, é uma missão que nos é confiada a todos, sem exceção. E não é sequer apenas aqueles que estão aqui no momento em que o Espírito desce. Há pessoas que estão nos acampamentos dispersos que são o mundo e neste momento estão a receber o Espírito Santo como nós estamos a receber. E têm de fazer alguma coisa com Ele.

Ainda ontem o Papa (que está neste momento em Filadélfia para o encerramento do Congresso Mundial das Famílias) falou na catedral de S. Pedro e S. Paulo em Filadélfia, numa homília muito breve mas lembrando uma das santas daquela diocese, Santa Catarina Drexel. É uma santa contemporânea que viveu o grande momento da Revolução do Proletariado e o nascimento da Doutrina Social da Igreja. Ela foi a Roma quando jovem militante católica e teve um encontro com o Papa Leão XIII. Expôs ao Papa a situação dos E.U.A, como é que ela via as coisas. Depois o Papa Leão XIII, um homem exercendo a sua paternidade espiritual, faz-lhe a pergunta chave. E a pergunta chave é esta: “ E tu, o que é que estás a pensar fazer?” Esta foi a pergunta de que ela não estava à espera. E foi esta a pergunta o ponto de partida para uma vida toda ela transformada, toda ela habitada pelo Espírito.

É assim, nós somos ótimos no diagnóstico. Todos nós temos um diagnóstico sobre a nossa família, sobre nós próprios, os nossos amigos, a nossa sociedade, a política, este e aquele… Somos ótimos no diagnóstico. Mas tu, o que é que vais fazer? O que é que te propões fazer?

No fundo, é este apelo muito grande a cada um de nós ser profeta. E ser profeta não é apenas: Ah, mas eu não sei nada de exegese bíblica, como é que eu vou ser profeta? A profecia desenvolve-se nos campos mais diversos, e em todos eles é preciso profetas.

Por exemplo, S. Tiago: quando nós comparamos Tiago com Paulo parece que se está a comparar uma águia a uma galinha. Porque Paulo voa, Paulo sabe de teologia, Paulo vai para trás e para a frente no Antigo Testamento, Paulo inventa palavras. Paulo é um génio! Paulo é uma águia! S. Tiago parece que só anda ao rés da terra, parece que não consegue levantar voo. Lutero dizia que aquilo é a carta da palha, porque aquilo de teologia, quando nós vamos ali à procura de um grande pensamento, não encontramos. Mas a carta de Tiago é uma carta fortíssima do ponto de vista profético e é um grande manifesto de um cristianismo social. Na vida social o que é que nós podemos fazer?

Por exemplo, na forma como lidamos com o dinheiro. Como é preciso profetas na forma como se lida com o dinheiro! Porque nós sabemos como o dinheiro é por um lado importante, como ele é um instrumento necessário. Mas sabemos como o dinheiro se torna um deus, como o dinheiro ocupa o lugar do fundamental no coração. E sabemos como o dinheiro corrompe. Porque nós pensamos: aqueles que têm muito dinheiro chegam a um ponto e tornam-se generosos. Não, não se tornam. Porque o dinheiro dá vontade de ter mais dinheiro e depois é uma lógica infernal. É uma lógica infernal. E é preciso saber parar. É preciso saber sempre perceber como o dinheiro é um instrumento para uma vida protegida, para uma vida assegurada – “assegurada” entre aspas, “protegida” entre aspas, porque vivemos todos no desabrigo da vida, mas pronto, dá possibilidades de desenvolvermos tantas coisas importantes. Mas não é só aquilo, aquilo não basta. E, sobretudo, se for apenas para viver em função de nós próprios, para reforçar o nosso egoísmo, o nosso narcisismo, a nossa incapacidade de ir ao encontro dos outros, o dinheiro foi uma oportunidade perdida, foi uma oportunidade perdida.

E por isso, as palavras de Tiago são palavras muito fortes. Nós vemos na nossa sociedade, neste crash a tantos títulos que é vivido, nós descobrimos que o dinheiro serviu para quê, àquela pessoa? Não a tornou melhor pessoa, tornou-a um joguete nas mãos de paixões tão mesquinhas, tão vulgares. Para que é que lhe serviu aquilo? No fundo, essa pergunta, é uma pergunta para nós. Para que é que nos serve aquilo que temos? Para que é que nos serve? Que destino nós estamos a dar? Que finalidade?

Porque é preciso dar uma finalidade, e é preciso perceber aquilo que o Papa João Paulo II dizia muitas vezes: “Sobre os nossos bens recai uma hipoteca social.” Isto é, o que eu possuo não é só para mim. Eu tenho de perceber que uma parte é legítima, temos direito a isso, é bom, é um dom que Deus nos deu, que a vida nos deu. Mas não é para nos trancarmos nele, é para fazermos dele um caminho que tem de ser um caminho evangélico, tem de ser um caminho de amor. E tu, o que é que vais fazer? Nós precisamos de profetas neste campo. No campo da economia, no campo da vida social, no campo dos bens, no campo da gestão. Precisamos aí de profetas, de gente que seja capaz – precisamos de profetas na vida.

Hoje Jesus fala numa linguagem muito clara de como nós somos a nossa própria obra e como temos de ter uma transparência na nossa vida. Jesus quando diz: “Se a mão é para ti ocasião de pecado corta-a, se o olho é para ti ocasião de pecado arranca-o.” Não é para tomar do ponto de vista literal, não é para cortarmos a mão, cortarmos o pé e nos cegarmos. Mas é: corta aquilo que parece que é a tua mão, que tu consideras a tua mão, e no fundo te está a levar por um caminho de perda, de queda, de dispersão. Ser capaz de tomar decisões, é no fundo isso que Jesus está a dizer. Decisões humanas, decisões morais, decisões éticas que tornem a nossa vida alguma coisa onde nos reconhecemos, onde olhamos e percebemos que há uma coerência, que há um sentido.

É claro que isso é muitas vezes como cortar um pé. Por exemplo, em relação aos nossos vícios, apegamo-nos tanto a eles, seja um vício idiota qualquer que nós tenhamos, mas habituamo-nos tanto a ele como se fosse o nosso olho. É um terceiro olho, é um terceiro pé. E cortar aquele vício muitas vezes dói como se cortássemos a própria mão, mas é uma libertação. Podemos dar a volta ao mundo e voltar mas só há uma maneira de nos libertarmos: é aceitarmos morrer para nós próprios. Só há uma forma de liberdade, é alguma coisa política, mas antes de tudo é alguma coisa pessoal. Como é que eu vivo com liberdade a vida?

Não tenhamos dúvidas, não há liberdade sem desapego, não há liberdade sem morte para o próprio eu, não há liberdade sem relativização de si, não há liberdade sem deixar coisas para trás. Não há, não há. Se eu quero carregar tudo, eu fico amarrado àquilo.

No fundo isso que Jesus nos diz: “Sê profeta na tua própria vida, sacode a poeira, não fiques preso a coisas idiotas, coisas que não ajudam ninguém a crescer. Se calhar tu já percebeste isso mas é uma bengala que te dá jeito, mas se calhar a vida começa quando tu deixares isso.” É profetas assim, no concreto da vida, no concreto da história, que nós somos chamados a ser.
“Quem me dera que todos no meu povo fossem profetas.” Esse grito de Moisés é um grito para nós, para cada um de nós. Porque o Espírito é-nos dado abundantemente, abundantemente: e nós, o que vamos fazer?

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXVI do Tempo Comum

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Julho

height=”10″][vc_toggle title=”2015/07/12 – Celebração do XXV Aniversário de Ordenação Presbiterial do Pe. José Tolentino Mendonça” open=”false”][dt_cell width=”1/2″]

Aniversário de Ordenação do Pe. Tolentino - Pagela

Postal

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Aniversário de Ordenação do Pe. Tolentino - Música

[/dt_cell][/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/07/12 – Aquilo que somos traz alguma coisa de único” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

É com muita alegria que estamos aqui a celebrar a Eucaristia e a viver este momento da nossa comunidade. Eu quis celebrar aqui de uma forma explícita os 25 anos do meu ministério.
Por um lado, porque todos precisamos do amor uns dos outros, do afeto uns dos outros e de ser reconhecidos pelo olhar uns dos outros. Precisamos disso, e um padre também precisa. Mas também para podermos juntos assinalar o que é o lugar do padre, de qualquer padre, no meio da sua comunidade.

Isso é também muito importante porque ao celebrar o padre, o pai da comunidade, aquele que testemunha a comunhão, é a própria comunidade que se celebra a si mesma: a sua vocação, a sua missão, a sua natureza, o seu lugar. Ela que é uma comunidade que se constrói, que é uma comunidade de perdão, de escuta, de aprendizagem, é importante que também seja uma comunidade de festa, um lugar onde a alegria se celebra com muita simplicidade e com muita naturalidade.
Eu agradeço a Deus este ministério para o qual Ele me chamou. A vocação de cada um de nós é a forma que cada um tem de expressar o seu maior amor. E a mim o Senhor chamou-me para desta forma expressar e viver o meu maior amor, com aquilo que viver o amor significa de paixão, de encantamento, de sofrimento, de dor e delícia. É assim que o Senhor me chamou. E o Senhor continua fiel a cada um de nós, Ele chama cada um de nós, porque a Igreja não vive de um ministério só, senão ela é muito pobre. A Igreja vive na diversidade, na riqueza, na complementaridade dos ministérios.

É importante dizer que um padre é um homem feliz, é importante testemunhar que um consagrado pode viver uma vida de grande plenitude, de grande consciência e de grande plenitude. E não por mérito seu, mas por aquilo que Deus dá, pela forma como Deus é fiel. Deus é fiel à sua palavra, à sua ternura, na vida de cada um de nós, de uma forma para lá do que nós esperamos, do que nós contamos. Deus é fiel, e é isto que gostaria de testemunhar à vida de cada um de vós: Deus é fiel, podemos acreditar no Seu amor. Deus é credível na forma como nos ama, na forma como acompanha a vida, a pobreza de cada um de nós. Deus é credível, e por isso cada um de nós pode verdadeiramente confiar Nele.

Vinte cinco anos depois da minha ordenação eu penso que há duas coisas fundamentais que aprendi e que são as lições do meu meio da vida.

A primeira tem a ver comigo próprio, e não é orgulho mas é aquele entendimento que cada um de nós vai fazendo na sua vida, que é assim: Deus não quer que eu seja um padre a imitar outros padres. O que Deus me pede é que eu seja um padre a partir do que sou, a partir da minha originalidade, pelos dons que Ele me deu. Não me deu outros, e por isso eu tenho é que por a render aquilo que sou.

Acredito profundamente que Deus quer-nos cristãos originais, que cada um tem, de facto, a sua originalidade. Não há dois cristãos iguais, não há dois padres iguais. E essa diversidade é uma riqueza muito grande, que expressa a grande riqueza do povo de Deus e do amor de Deus. Nesse sentido, a maturidade é quando não temos medo de ser nós próprios. Somos, ou procuramos ser, com humildade mas também com naturalidade aquilo que somos. Porque aquilo que somos traz alguma coisa de único, porque Deus criou-nos assim, e único para a comunidade.

Nesse sentido, estes 25 anos também foram uma aprendizagem de que vale a pena ser eu próprio, vale a pena em cada lugar dizer o que penso, vale a pena em cada lugar não esconder a minha sensibilidade, a minha forma de sentir, de ver, o meu temperamento. Mas tenho é de expressar aquilo que sou, e viver, e perceber que esse é que é o contributo que eu posso dar à Igreja, que eu posso dar em nome de Deus.

Nesse sentido, eu penso que um padre não se faz numa forma. Temos aqui o padre João Norton, o padre António Pedro, cada um deles, e isto nós olhamos para eles e vemos, um padre não se faz numa forma, segundo uma tipologia própria. Mas aquilo que se quer é dar asas a cada um para que, na verdade de uma tradição e de uma comunhão, ele possa a partir dos dons que Deus lhe deu irradiar, ser aquilo que é. No fundo, aquilo que Deus pede a cada um de nós: “Olha, sê aquilo que tu és e sê com confiança, sê com alegria. És apenas uma parte, é preciso complementar com outros olhares, mas sê aquilo que tu és.”

E isso é alguma coisa muito, muito, importante. Acho que é uma descoberta muito importante na nossa vida e quando conseguimos fazer com verdade e com naturalidade eu penso que nos tornamos adultos, adultos na fé. Adultos também na fé. Porque às vezes somos adultos em tanta coisa e a nossa relação com Deus ainda é assim a medo, ainda achamos que Deus está sobretudo a nos culpar, a nos castrar, a nos pesar, e é o contrário, é o contrário. Deus está a alegrar-se com aquilo que somos, porque foi Ele que nos fez.

A outra coisa, igualmente importante a par desta, que descobri por cada dia, é que um padre é uma obra dos outros, é uma construção dos outros. Quer dizer, é claro que é uma vida original, é uma vida individual, mas um padre é a expressão da comunidade, e é cada dia. Ele vai sendo, vai-se tornando, a partir dos encontros que tem, das pessoas que conhece, das preocupações que lhe trazem, das histórias que lhe contam, das propostas que lhe fazem, do amor que lhe dão, dos silêncios, das partilhas, daquilo que testemunha. E, nesse sentido, um padre vai-se construindo como uma obra dos outros.

Eu olho para estes 25 anos da minha vida e, claramente, me sinto uma obra dos outros. Não seria o mesmo, não estaria aqui desta forma se não fosse cada um dos encontros, cada uma das pessoas, cada uma das vivências. E isso é tudo dom, isso é tudo graça, não é invenção é graça, é graça recebida.

Nestes 25 anos eu queria partilhar convosco quatro coisas, e quatro coisas para os próximos 250 anos do Cristianismo, não os próximos 25 anos. Eu penso que nestas datas temos sobretudo de olhar para a frente e dizer o que vemos. O que é que eu, Tolentino, vejo aproximar-se como Cristianismo no futuro? Eu vejo quatro coisas.

Eu penso que, a partir disto que nos é proclamado hoje na Carta aos Efésios, nós vamos dar muito mais importância ao alçado de Deus. O alçado de Deus é aquela parte superior dos edifícios que cada um de nós não vê. Normalmente os maus arquitetos atiram para lá o lixo todo, a maquinaria. Como ninguém vê, só Deus vê, eles chamam o alçado de Deus, atiram para lá toda a desorganização do construído. Mas os verdadeiros arquitetos desenham o alçado de Deus, e sabem que aquele alçado, que só Deus vê, é um lugar fundamental do próprio edifício.

Eu penso que, nos próximos 250 anos, nós vamos descobrir e dar muito mais valor ao alçado de Deus na nossa vida. Essa parte que não se vê, essa parte que cada um de nós tem como invisível ao longo da vida, mas que está lá e pode ser vista, e em momentos decisivos cada um de nós vê, e percebe que a parte mais importante do edifício é verdadeiramente essa.

Isto que S. Paulo nos diz, na frase mais comprida do Novo Testamento, e praticamente de toda a Bíblia, em que costura 23 verbos, este arranque da Carta aos Efésios para dizer: nós somos amados, Deus espera por nós, Deus deu-nos toda a riqueza, Deus formou-nos, Deus pensou em nós desde a criação do mundo. Esta certeza, esta confiança que eu chamo o alçado de Deus vai-se tornar cada vez mais decisivo nas nossas vidas.

Depois, um segundo argumento e que tem a ver com aquilo que Jesus hoje nos diz no Evangelho de S. Marcos, Jesus manda os discípulos em missão e diz: “Não leveis nem pão, nem alforge, nem dinheiro, apenas vestidos com uma só túnica. E andai de casa em casa.”

Eu diria que o futuro da Igreja está no caminho. O futuro da Igreja estará na medida em que nós formos capazes de relativizar o nosso sedentarismo, porque também somos muito sedentários, e aceitar o desafio que hoje nos faz o Papa Francisco em nome de Cristo que é de vivermos em saída, vivermos numa dinâmica exodal. E não há saída que não corresponda a uma essencialidade.

Quer dizer, nós arrastamos muita tralha que se torna um obstáculo ao anúncio, nós próprios precisamos da lição do viajante. Se eu carrego a mala com muito peso não vou dar um passo. Tenho de colocar na mala apenas aquilo que eu preciso e, sobretudo, tenho de encher a mala de confiança em Deus, de confiança na Providência, naquilo que Deus fará por mim quando eu acho que não tenho, que não posso. Se nós queremos partir em viagem carregando todas as eventualidades, preparado para tudo o que nos possa acontecer, não saímos da porta. Temos de sair levando, sobretudo, a leveza de uma confiança total na ação de Deus.

Nesse sentido, a Igreja precisa sair, precisa sair. Nós precisamos ser uma Igreja missionária, uma Igreja missionária. E uma Igreja missionária que fala sobretudo pela atração. Os momentos mais fortes do Cristianismo foram quando o anúncio se fez por atração. Aquilo que Jesus diz de forma misteriosa no Evangelho de João: “Quando Eu for elevado da terra atrairei todos a Mim.” É preciso que a Igreja se torne atraente, atrativa, e isso acontece quando? Quando ela sobretudo vive do testemunho, não vive a moralizar, não vive a carregar, não vive a dar lições, não vive a cantar de alto. Mas sobretudo dá um testemunho de alegria, um testemunho de simplicidade, um testemunho de beleza.

A beleza tem isso, a beleza atrai-nos. Nós não sabemos porquê, porque é que este Anjo de Berlim da Lurdes de Castro nos emociona, nos toca, nos diz sempre alguma coisa nova. Porque ele atua pela atração, não pela retórica, não por estar a nos dar uma lição.

Nesse sentido, nós precisamos tornar-nos missionários do testemunho, aceitando que vamos ter de ser muito mais leves, de ser muito mais essenciais.

E nesse sentido é o terceiro desafio e que tem a ver com a história do profeta Amós. Amós era um profeta e foi, imagine-se, pregar para o Santuário, para o Templo. E o sacerdote do Templo diz: “Olha lá, no Templo não há profetas, vai lá pregar para a estrada onde é preciso, o Santuário não precisa de profetas.”

Ora, eu acho que um grande desafio é nós percebermos que o Santuário precisa de profetas. Isto é, que nós, na Igreja, precisamos de nos abrir a uma palavra que nos desinstala, a uma palavra que nos desacomoda, a uma palavra crítica, a uma palavra que transporta o Espírito e nos abre a novas linguagens, a novas gramáticas. Nós não podemos, comodamente, representar os que podem estar aqui, não podemos dizer: “O Povo de Deus são estes fiéis, e o resto são os infiéis.”

Nós temos de encontrar outra dinâmica interna e viver numa desinstalação, deixarmo-nos ler, reinterpretar criativamente pelo Espírito da profecia. E, nesse sentido, a Igreja terá, de facto, a força para encarar as feridas, coisas que são difíceis hoje de ver, coisas de que não se fala no interior da comunidade, coisas que são um tabu interdito. Se calhar nós precisamos de conversar sobre tudo isso com espírito de profecia, e não podemos achar que por estarmos no Santuário nós temos de mandar embora os profetas do nosso seio, pelo contrário, precisamos acolher, nós próprios, os profetas no nosso interior.

O quarto desafio que eu vejo para o futuro do Cristianismo, e da Igreja em particular, é aquilo que o Salmo 84 que hoje nós proclamamos nos diz, que eu diria assim: acreditarmos no poder do coração, acreditarmos na força da compaixão, na força da misericórdia, na capacidade que a Igreja tem de curar, de reconciliar, de dar paz, de estabelecer laços, de aproximar, de romper fronteiras, isto que o salmo diz tão bem: “Encontraram-se a misericórdia e a fidelidade, abraçaram-se a paz e a justiça, a fidelidade vai germinar da terra e a justiça nascerá do céu.”

Eu penso que é esta missão que nós precisamos de adotar, de adotar para nós. É na medida em que colocarmos no meio da vida da Igreja também o afeto, o poder do coração, a misericórdia, o abraço, o encontro que, de facto, nós podemos testemunhar aquilo que Jesus Cristo faz na vida de cada um de nós.

Queridos irmãs e irmãos, vamos com confiança celebrar a Eucaristia, que é sempre expressão do mistério da Igreja. Só nós podemos celebrar a Eucaristia, mas nós somos fruto, somos consequência da Eucaristia. Que os desafios que esta Eucaristia em particular coloca à vida de cada um de nós possam ajudar cada um neste processo de nascimento que não acaba nunca.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XV do Tempo Comum

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[/audio][/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/07/11 – Lourdes Castro recebe Prémio Árvore da Vida” open=”false”]A sessão de entrega, aberta ao público, decorre a 11 de julho, às 11h00, na Capela do Rato, espaço que exibe, por trás do altar, “Anjo de Berlim”, sombra exposta em grande painel criado pela autora madeirense.

http://www.snpcultura.org/lourdes_castro_recebe_premio_arvore_da_vida_na_capela_do_rato.html

http://www.snpcultura.org/lourdes_castro_o_facto_de_a_igreja_me_dar_este_premio_surpreendeu_me.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/07/05 – Quando sou fraco, então é que sou forte” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Nestes últimos quinze dias, como se aperceberam, não estive cá, estive em viagem pelo Brasil e pela Argentina. No Brasil tive um retiro com o clero da diocese de Belo Horizonte, Minas Gerais, é a terceira cidade do país a seguir a S. Paulo e Rio de Janeiro. É uma paisagem muito bonita, uma paisagem de montanhas. O Oscar Niemeyer, o arquiteto, diz que se inspirou para fazer aquelas curvas fantásticas da arquitetura dele na paisagem de Minas Gerais, que parece desenhada por um lápis muito fino.

Estive lá essa semana, primeiro trabalhando na universidade de Minas Gerais que é a maior do mundo. É uma universidade enorme para a dimensão das católicas, tem cerca de 60 000 alunos, tem 11 campos universitários diferentes, tem um magnífico museu de história natural e só para uma quantidade imensa de professores e pessoal administrativo. Nos primeiros dias estive a colaborar na formação anual que eles fazem, foi uma experiência muito bela de imersão naquela realidade.

Nesse domingo celebrei missa, há quinze dias atrás, celebrei eucaristia no santuário de Nossa Senhora da Piedade. É um santuário que fica num ponto muito alto do Estado, fica a 1 700 metros de altura, um lugar absolutamente deslumbrante, uma vista fantástica, um frio enorme porque lá é inverno. Uma coisa que me tocou imenso foi o despojamento do lugar. Às vezes os santuários têm aquele cinto de comércio que dispersa imenso o nosso olhar, às vezes as nossas intenções mais profundas. Ali era, de facto, um lugar onde se respirava, um lugar de Deus. Era muito bonito ver as pessoas dependuradas das varandas das esplanadas, lá de cima a olhar a paisagem, e aquele olhar era já uma forma de oração. A contemplação que fazemos do mundo, esta contemplação gratuita, admirativa da própria criação é também uma forma de oração.

Pude ali celebrar a missa com os peregrinos, às onze horas da manhã, e foi de facto uma experiência muito bela de comunhão, sentindo que a nossa língua portuguesa é um veículo de comunhão extraordinária, também com aquele povo. Foi uma experiência muito bela.

Depois, comecei o retiro com o clero da diocese. Foi muito bonito ver uma centena de padres, gostei muito de ver a serenidade da relação entre eles e a alegria com que estavam juntos, a verdade com que procuravam viver aquele momento de paragem a meio do ano pastoral e de procura de Deus nas suas vidas. Foi para mim uma experiência muito enriquecedora.

Gostei muito também da relação com o bispo. É um dos bispos auxiliares que é reitor da Universidade Católica de Minas, D. Joaquim Mole. É um homem que esteve à frente da comissão de direitos políticos e cidadania da conferência dos bispos brasileiros, e que tem lutado muito por uma consciência civil dos Direitos Humanos. Porque a Igreja brasileira é uma Igreja muito atenta aos problemas do país, muito interveniente. Ainda agora, em abril, acabaram de publicar uma nota sobre a situação económica no Brasil e as grandes disparidades, assimetrias. Um texto muito forte, muito profético. Foi também muito belo receber o testemunho deste bispo que está num compromisso muito fiel com o seu povo, sobretudo com os mais pobres.

Depois, no final do retiro, ainda tive oportunidade de ir visitar Inhotim, que é o principal centro de arte contemporânea no Brasil. É uma coleção enorme de arte internacional, e em grande medida brasileira, só que com um conceito novo, parece mais um mosteiro do que propriamente um museu. Há os pavilhões para cada um dos artistas, e depois há uma floresta luxuriante, e nós para caminharmos de um pavilhão para o outro (são onze pavilhões, não os consegui visitar todos) andamos no meio de uma floresta, num caminho de silêncio. É, de facto, uma maneira muito diferente de viver a relação com a beleza, a relação com a arte, e foi também uma experiência muito boa.

Depois dali romei para Montevidéu onde domingo passado celebrei missa na catedral. O Uruguai é um país pequenino no meio de dois gigantes que são o Brasil e a Argentina, mas é um país com uma personalidade muito grande ali na foz do Rio da Prata, que parece um mar imenso. Gostei muito de estar na catedral a celebrar a eucaristia com os “uruguachos”, como eles se dizem, um povo que mantém muito ainda as tradições camponesas, e isso é muito bonito, vê-los viver no seu lugar e exprimir a sua fé.

E depois, então, tive possibilidade de ir até Buenos Aires, e lá conhecer também a Igreja de Buenos Aires, os sítios por onde o Papa esteve, o Bairro das Flores, onde ele nasceu e cresceu, a catedral, e depois as paróquias. Ver o modo de ser Igreja naquele lugar é muito educativo, é muito belo.
E, de facto, a exterioridade tem isso, quando nós fazemos uma viagem ou recebemos alguém de fora parece que temos uma disponibilidade maior para acolher a profecia, para acolher os sinais. Isso é uma grande oportunidade que Deus nos dá, fazer uma viagem, ter um tempo de férias, conhecer outra realidade.

Mas o evangelho de hoje fala-nos do contrário. Fala-nos, às vezes, da nossa dificuldade de perceber na vida de todos os dias, e com os interlocutores que nos são mais próximos, perceber como Deus se manifesta, como Deus nos visita. Jesus visitou Nazaré, e lá fez vários sinais, mas porque Ele era o filho do tal e da tal, e porque Ele era o parente do outro e da outra, não o quiseram escutar. E isso para nós constitui um desafio muito grande que é: como valorizarmos, naquilo que é mais próximo, nas vozes que já nos são mais habituais, no mundo mais conhecido, no nosso espaço doméstico, na nossa vida quotidiana, como valorizamos o Deus que nos visita? E como manter o nosso coração aberto?
Porque, às vezes, o que acontece é que antes da pessoa abrir a boca nós já sabemos, já nem queremos ouvir, já percebemos tudo, ou achamos que percebemos tudo. E a verdade é que perdemos muito se trancamos o coração a este Deus que nos visita não só no extraordinário, mas que nos visita também no ordinário, na vida de todos os dias, e às vezes, no difícil dos dias, no difícil dos dias.

A história de S. Paulo, da Segunda Carta aos Coríntios que hoje nós lemos, é um texto verdadeiramente admirável porque Paulo estava em dificuldade. Ele escreve metaforicamente dizendo que era como um “anjo de Satanás que o esbofeteava”. Era uma situação difícil que ele estava a sofrer e, contudo, Deus diz-lhe: “ Mantém-te forte, descobre a graça de Deus mesmo no meio da dificuldade, mesmo no meio da crise.” Deus não diz: “Não, não estás a viver isso.” Não, estás a viver, a dificuldade existe, a dificuldade existe, a dificuldade existe, o problema está aqui. A questão é: “Conta com a Minha graça aí, no meio da tua dificuldade e no meio do teu sofrimento, a Minha graça revela-se.” E isto parece um oximoro, uma coisa que nunca se vai compreender, que é o oposto: a fraqueza e a força.

O que parece um oximoro torna-se o caminho da nossa vida: “Quando sou fraco, então é que sou forte.” Isto é: descobrir nesta experiência da fragilidade, da vulnerabilidade – que é no fundo uma experiência que todos temos de fazer, faz parte das nossas vidas, por uma razão ou por outra, em todas as idades nós fazemos esta experiência da vulnerabilidade – como torná-la também uma oportunidade para compreender melhor a presença de Deus na nossa vida, compreender melhor a graça de Deus, perceber que não é o fim mas há coisas importantes que se vivem também em ocasiões que são muito difíceis de suportar e de viver.

Como nos lembra o profeta Ezequiel: “Deus não desiste, Deus não desiste.” Nós somos visitados por Deus, Deus não desiste das nossas vidas. E não é a rebeldia, ou a dureza de coração, ou a nossa cabeça dura que impede Deus continuamente de enviar-nos a Sua graça, enviar-nos os Seus profetas que toquem o nosso coração e deixem uma palavra de esperança.

Vamos pedir nesta eucaristia que o Senhor nos dê por um lado o olhar para o extraordinário, para um desejo muito grande de ir além do nosso quintal, do nosso mundo. Mas também que Ele nos ajude a olhar para o nosso pequeno mundo, para a nossa vida de todos os dias, para o nosso universo habitual com os olhos de quem se deixa surpreender e tocar.

Que o Senhor não permita que sejamos impermeáveis em relação aos outros que nos estão próximos e à vida que vivemos, mas nos dê um olhar de quem olha a vida pela primeira vez, de quem repara nos detalhes, de quem mantém um coração muito grato, muito agradecido, por aquilo que em cada dia e com os interlocutores habituais da nossa vida recebe. Porque é sobretudo através desses canais que Deus nos fala. Que no fundo do nosso coração sintamos que Deus não desiste. Deus não desiste de manifestar o Seu amor, de manifestar a Sua ternura, de manifestar a nossa esperança, manifestar a esperança nas nossas vidas.

Vamos colocar no altar as razões da nossa gratidão. Hoje a nossa comunidade tem também a alegria de poder juntar-se em oração e ação de graças pelos 90 anos da Ester, agradecer muito a Deus a sua vida, tudo aquilo que através dela o Senhor tem feito chegar à sua família, aos seus amigos. Pedir que o Senhor a conserve na saúde e na graça. E agradecer o dom da vida de cada um de nós que é o lugar extraordinariamente expressivo do amor e da misericórdia do Pai.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XIV do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/07/04 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle] height=”30″]

Junho

height=”10″][vc_toggle title=”2015/06/18 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/06/14 – O que é uma parábola?” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

As parábolas de Jesus são uma das formas muito originais da comunicação do Evangelho, porque as parábolas são alguma coisa que nós podemos enquadrar dentro da tradição judaica. Isto porque os rabinos, os mestres da chamada Halachá, do comentário quer à lei que é Halachá, quer à vida que é Agadá, faziam-no através de histórias chamadas machal em hebraico, que são histórias onde se mistura o humor, o desconcerto para nos fazer pensar, nos deixam assim intrigados: mas o que é que isto será? Era um uso dos mestres em Israel, este uso da machal. E, de certa forma, nós podemos aproximar as parábolas de Jesus desta tradição de onde Jesus provém, que é a tradição judaica.

Mas Jesus empresta muito de Si, tornando as parábolas um caso sério, mas ao mesmo tempo muito pessoal, de comunicação. Durante muito tempo achou-se que as parábolas eram sobretudo um discurso didático de Jesus, em que Jesus tentava dizer em palavras simples numa história ou desmontar um bocadinho coisas que para nós são difíceis. Então, aquilo que se sublinhava era sobretudo o caráter didático.

Os Padres da Igreja, que são os primeiros grandes teólogos do Cristianismo, valorizavam sobretudo a dimensão alegórica. Diziam: todas as palavras de Jesus têm um segundo significado. Então, é preciso ler de forma alegórica. Não ler o que está lá, mas ler o que aquilo pode significar, o que aquilo pode querer dizer em termos da linguagem espiritual de Jesus.

O século XX é um século interessante para o estudo da Bíblia, é chamado o século de ouro, em que houve uma paixão enorme pelos estudos bíblicos, pelas línguas bíblicas, pelos géneros literários da Bíblia. E, de facto, nós podemos fazer tantas avaliações ao século XX: um século péssimo, um século de horror. Mas também houve tantas coisas boas, e uma das coisas extraordinárias foi, sem dúvida, que hoje nós temos com a palavra bíblica uma outra sensibilidade. Num século que deu uma enorme atenção à linguagem, à comunicação, aos géneros literários, nós temos hoje um outro entendimento das parábolas.
Já não valorizamos tanto a dimensão didática ou a dimensão alegórica, mas olhamos para a parábola em si como uma forma de colocar em crise a nossa visão habitual do mundo.

O que é uma parábola? Uma parábola é uma história, uma história que em princípio começa por fazer sentido mas, a um dado momento, deixa de fazer sentido à luz dos nossos conceitos ou da nossa lógica, para revirar, para revolver a nossa forma de pensar.

O exemplo do Filho Pródigo faz sentido. Um pai tem dois filhos, há um problema familiar, um conflito, o mais novo vai embora. Isso faz parte da vida das famílias. Contudo, quando o filho volta o pai toma uma atitude absolutamente inédita, que não é o normal acontecer. Então estão a ver: há uma parte que é a vida normal no quotidiano, a existência, e depois há sempre uma parte na parábola de Jesus que descola da realidade e do mundo tal como nós o construímos, precisamente para nos mostrar que o Reino de Deus é diferente, e pede de nós uma atitude de vida diferente, um modelo de vida diferente.

Nas parábolas nós percebemos bem como Jesus nos quer abrir o coração a uma novidade, nos quer passar um novo olhar, uma nova forma de pensar, nos quer abanar, agitar, dizer: “A vida não é só isto, a vida não é assim. Procura uma outra perspetiva sobre a realidade.” As parábolas são isso, são um ponto de fuga da realidade para que nós possamos olhar para o mundo, para a vida, para nós próprios não apenas com os nossos olhos mas com os olhos de Deus.

O filósofo Paul Ricoeur foi um dos grandes filósofos que trabalhou muito a Bíblia. Ele era um cristão evangélico que dizia: “As parábolas são o discurso extravagante de Jesus.” Jesus é extravagante nas parábolas. Extravagante porquê? Extravagante porque ele dá a ver o mundo como nós nunca o vimos, nunca o vimos. Mostra-nos o mundo, mostra-nos a fé e mostra-nos a nossa humanidade com uma liberdade que nós não temos.

Nós até podemos pensar: “Somos pessoas muito abertas, somos mentes muito para a frente.” Mas verdadeiramente nós acabamos por funcionar dentro de um quadro tão estreito, tão limitado da realidade. Sem darmos conta, é o nosso eu que está em primeiro lugar. Sem darmos conta, estamos sempre a julgar, sempre a julgar, sempre a julgar. Ora, Jesus é de uma liberdade que nos arrasta com Ele e diz: “Não. É preciso abrir janelas nesta vida. É preciso olhar para as coisas de outra forma. “
Jesus, por exemplo, conta neste passo do Evangelho de Marcos duas parábolas. A primeira parábola podemos dizer que é uma parábola sobre a fé. E o que é que Jesus diz sobre a fé? Diz do Reino de Deus em nós, como é que ele se desenvolve.

Se nos perguntassem isto nós dizíamos: ”Bem, desenvolve-se com o nosso esforço, o nosso trabalho, a nossa atenção, o nosso compromisso, aquilo que podemos fazer, a nossa devoção, a nossa espiritualidade.” Tudo coisas muito certas, mas Jesus diz que se desenvolve de outra maneira. Jesus diz: “O Reino de Deus é como uma semente que um homem lança à terra, ele dorme e levanta-se, noite e dia, e a semente cresce sem ele saber como.“

Nós estamos sempre a fazer contas da vida, não é? A vida para nós é uma conta de somar, ou uma conta de multiplicar, de qualquer forma é uma conta que nós controlamos. E Jesus, nesta parábola, vem dizer: “Meu amigo, tu não controlas nada. Tu deitas-te e levantas-te, noite e dia, e a semente cresce em ti sem tu saberes como.”

Isto é, se calhar há dimensões fundamentais da nossa vida, e da nossa vida interior, que crescem em nós sem nós sabermos como. Nós não sabemos, nós não controlamos, nós não somos senhores, nós não somos donos da vida. Somos mediadores, somos servos, somos instrumentos, somos a terra, somos a noite e o dia onde as coisas crescem. Mas a energia, o que faz crescer, se cresce, se não cresce, não depende de nós. Não depende de nós. E nós temos de aceitar isso, temos de aceitar isso. E para aceitar isso tem de haver uma pobreza espiritual, tem de haver um desprendimento, tem de haver, no fundo, uma grande sabedoria interior.

“Está bem, eu não controlo a vida. Então o que é que eu posso fazer?” Posso aceitar, trabalhar a aceitação, posso integrar, posso louvar, posso corrigir. Mas atenção às correções, diz também Jesus. Porque é assim, é preciso não arrancar demasiado cedo a semente. Só quando a semente cresceu e amadureceu é que se mete a foice. E isto para nós que começamos a nossa história com um juízo. Jesus diz: “Não! Deixem lá o juízo.”

A maior parte da vida é uma coisa que nós ignoramos, que nós não sabemos, que nós não sabemos. Só se pode confiar. Quer dizer: nós não temos, em relação ao Reino de Deus em nós, outra hipótese senão confiar. E abandonarmo-nos à confiança. Se queremos controlar, perdemos a semente. Porque se o semeador que lança a semente vai atrás dela escavar para ver se já cresceu um bocadinho, compromete o crescimento da semente. A semente tem de ser lançada à terra e tem de ficar lá, e só quando tiver crescido é que nós a podemos julgar.

Então, a primeira parábola é sobre a confiança, e como nós precisamos trabalhar nas nossas vidas a confiança. Nós que à medida que os anos passam cada vez estamos mais desconfiados. Desconfiamos da nossa própria sombra, desconfiamos de tudo, de todos, perdemos a capacidade de entrega, de abandono. Ora, é isso mesmo que nós perdemos tão facilmente que é preciso ganhar em ordem ao Reino de Deus, ganhar essa confiança.

A segunda parábola é uma parábola que vai precisamente noutra dimensão, é uma parábola também sobre a confiança, mas é sobre o risco que nós temos de correr.

Jesus conta a parábola, que é uma das mais conhecidas, que é a do grão de mostarda. Há um homem que semeia um grão de mostarda na sua terra. O grão de mostarda é uma semente, uma sementinha de nada, uma coisa insignificante. E depois cresce, e estende os seus ramos, os seus braços e todas as aves do céu vêm pousar naquela árvore.

Nós dizemos: “Que bela parábola.” Uma coisa muito bonita de como do pequeno se faz grande. A parábola tem muitas leituras.

Mas a parábola também tem esta leitura: quando nós passeamos nos campos vemos os espantalhos que os agricultores fazem precisamente para afugentar os pássaros. Um grande inimigo dos campos é a passarada, e os agricultores querem-nos longe das suas sementes porque eles vêm e é uma infestação.
Ora, o que é que faz este agricultor? Lança uma árvore inútil, que é a mostarda. Ela cresce para atrair os pássaros para o seu campo. Isto é: mas quem é que vai fazer isto? Quem é que de bom senso vai trazer tudo o que é arriscado para o seu campo? Isso é um desatino, é desaconselhável. Mas Jesus diz: “O Reino de Deus é como isso.”

Quer dizer, se nós também não estamos dispostos a correr riscos, também nós não permitimos que o Reino de Deus cresça em nós. Se para nós a fé é tudo seguro, é tudo assegurado. Se nós não damos um passo em que não esteja tudo controlado e calculado, também não sabemos o que é o Reino de Deus. Porque o Reino de Deus é criatividade em nós, é fantasia de Deus em nós, é liberdade de Deus agir, é liberdade de Deus refazer, recriar a nossa história.

Nesse sentido, um cristão também tem de correr riscos, tem de correr riscos. E a fé é um grande risco.

“Mas eu não entendo tudo, eu não sei tudo.” Está bem, em última análise, o Kierkegaard dizia isso, a fé é um salto. É um salto no escuro.

“Mas eu não vejo como é que há uma ponte.” Meu amigo, não há ponte nenhuma. Na fé tu tens de te atirar para o outro lado. Não há ponte, entre uma coisa e outra há um vazio, há uma incompreensibilidade, uma incognoscibilidade. Não dá para ser de outra forma. Quer dizer, a fé, na sua essência, é um risco, mas o viver da fé também é um risco. O risco de sair de mim próprio, o risco de sair da minha zona de conforto, o risco de me expor, o risco de comunicar, o risco de ir ao encontro dos outros, o risco de me colocar ao serviço e muitas vezes não ser bem compreendido ou não ser bem aceite. Mas a fé é esse risco, e se nós não corremos o risco também o Reino de Deus não cresce em nós.

Este é o discurso de Jesus, um discurso que nos desafia, um discurso que podemos dizer que é extravagante, e é. Mas a fé não é para nos deixar onde nós já estamos. A fé é uma viagem, a fé é um nomadismo.

Deus diz a Abraão: “Abraão, sai da tua terra e vai para o lugar que eu te indicar.” Isso é o que Deus diz a todos os crentes: “Sai da tua terra e vai para o lugar que eu te indicar.” Na vida de cada um de nós há esse lugar, que é certamente um lugar diferente, porque respeita aquilo que nós somos. Mas é um lugar que pede de nós confiança e risco, confiança e audácia, confiança e coragem de ser, confiança e abandono nas mãos de Deus, confiança e multiplicação do amor e das possibilidades do amor e da graça na nossa vida.

Vamos pedir ao Senhor por cada um de nós, para que esta palavra não seja em vão mas que, acolhida nos nossos corações, ela, como diz Jesus noutra parábola, dê frutos, dê cem por um.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XI do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/06/07 – A existência como lugar de encontro” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Nós celebramos hoje a solenidade do Corpo de Deus, a festa do Santíssimo Corpo e Sangue de Jesus, a festa da Eucaristia – esta refeição que tomamos diariamente ou dominicalmente juntos, que é uma refeição ritual, sacramental, mas que é também uma verdadeira refeição e é o grande manifesto da presença de Jesus nas nossas vidas.

Nós podemos dizer, em verdade, que cada um de nós é uma consequência desta refeição, que nos alimentamos dela. Somos construídos e gerados pela Eucaristia. Sem Eucaristia não haveria Igreja, sem Eucaristia não haveria cristãos. Porque é da persistência deste gesto, deste acontecimento, desta memória (que não é só memória do passado, mas é presente e futuro), desta anamnese de Jesus, é a partir daí, que nós somos verdadeiramente gerados, que nós vivemos.

Por isso, há razão para fazer festa. Há razão para hoje a Igreja se ornar, cantar, sentir uma alegria muito especial por esta festa que para nós é tão significativa, é tão fulcral, tão essencial.

A Eucaristia assinala a mudança de regime no quadro religioso. Porquê?

Nós temos essa primeira leitura do livro do Êxodo, que conta a Aliança de Deus com Israel. Essa Aliança, que é uma aliança extraordinária, que foi de certa forma o arranque da história da Salvação, é contudo uma aliança baseada na exterioridade do símbolo. Baseada na exterioridade de uma Lei que é codificada, é escrita na pedra e dá origem a uma Nação – dá origem a um Povo escolhido, dá origem a uma história nacional que é a história de Israel.

Os sacrifícios que se fazem são sacrifícios simbólicos – é o sangue dos cabritos, é o sangue dos cordeiros que é aspergido sobre o povo. A partir daí constrói-se toda a máquina, a dinâmica sacerdotal com o Templo. E constrói-se a partir daí a Torá, a Lei com todas as prescrições que é preciso guardar, que é preciso obedecer. A partir daí, constrói-se todo o sistema de pureza ritual, que teve de facto um papel pedagógico na história da Salvação. Nós sabemos como a religião também vive disso, também vive dessa exterioridade, também vive desse símbolo. Eu diria, também vive dessa aliança que cada um de nós é capaz de tecer, de estabelecer com Deus, a partir das coisas, a partir da matéria.

De facto, as coisas ligam-nos a Deus. O criado liga-nos a Deus. A própria lei, os textos, as palavras escritas, os grandes códigos que a Humanidade foi construindo como esforço de progressão no sentido do amor, tudo isso é uma espécie de Aliança com Deus que nós celebramos.

Contudo, o Cristianismo aparece numa época em que se chega ao fim dos sacrifícios. O fim dos sacrifícios porquê? Porque, pouco tempo depois destes acontecimentos da vida Jesus (em princípio a Páscoa acontece por volta do ano 30/33), no ano 70 o Templo de Jerusalém é arrasado, é destruído. E, de certa forma, o próprio Judaísmo tem de encontrar uma nova configuração. E a nova configuração que encontra já não é a partir dos sacrifícios, porque o sacerdócio acabou porque já não há Templo, já não há Templo.

O próprio Cristianismo tem também de fazer uma reflexão sobre a forma de ligação a Deus. Como é que nos ligamos a Deus agora que já não oferecemos touros, animais, já não trazemos o fruto das colheitas para queimar sobre o altar? O que é que nós colocamos aqui sobre o altar?

O Cristianismo, de facto, nasce como uma religião pós sacrificial. Há um texto cristão, cujo autor nós não conhecemos, sabemos que não é S. Paulo, é posterior a S. Paulo, é um texto cristão de grande densidade, que é este da Carta aos Hebreus, que vai fazer uma coisa sobre as ruínas do Templo de Jerusalém. A Carta aos Hebreus vai dizer isto: “Cristãos, não fiquem a chorar o que foi. Não fiquem a chorar uma religião de sacrifícios, não fiquem a chorar a beleza do Templo, as pedras, o sacerdócio antigo. Não. Cristo é o novo e verdadeiro sacerdote, Cristo é o verdadeiro Templo. Jesus tem um corpo e esse corpo é que é o lugar onde Deus se revela, e Cristo é o Sumo Sacerdote.”, Ele que nunca foi sacerdote, Ele que nunca foi considerado como tal. Jesus é o Sumo Sacerdote, é Aquele que faz uma Aliança entre o Homem e Deus.

A Carta aos Hebreus ajuda-nos a perceber qual é o lugar do Cristianismo nesta nova configuração religiosa, onde há uma deslocação fundamental que acontece: deixamos de ser uma religião sacrificial, uma religião exterior, uma religião fundada à maneira de santuário, uma religião fundada no conjunto dos ritos, uma religião fundada no exercício de um certo tipo de sacerdócio que fazia a mediação entre o Homem e Deus, e passamos a uma religião existencial. Uma religião existencial.

Agora já não temos um santuário, temos um corpo, agora já não temos uma Lei, temos uma consciência, agora já não temos toda a máquina sacrificial, temos a nossa vida. Temos a nossa existência como lugar de encontro, de relação, de experiência, de aliança com o próprio Deus. Nesse sentido, enquanto a velha Aliança fundou um Povo, a nova Aliança funda uma humanidade. Uma humanidade nova, em cada um de nós, e uma humanidade que agora não conhece fronteiras. Não se é cristão por ser judeu ou por ser português, é-se cristão em todas as latitudes, em todas as situações. Porque Cristo não veio trabalhar uma ideia de Povo, Cristo veio trabalhar uma ideia de humanidade. A noção de eleição é substituída pela noção de chamamento. Todos somos chamados.

Como é que Cristo faz isto? Faz isto da forma mais encarnada, da forma mais Sua, através do testemunho do Seu amor, através da dádiva da Sua vida e naquela refeição, na última que Ele tomou. Ele teria tomado muitas refeições dia a dia com os Seus discípulos e com os pecadores refeições abertas que os Evangelhos nos contam. Teria feito refeições consideradas absurdas mas que eram refeições performativas, que sinalizavam a emergência do Reino de Deus – como é a multiplicação dos pães, que é uma refeição feita com uma multidão e que é um grande sinal da mensagem do próprio Jesus e do Seu projeto. Mas esta refeição é uma refeição íntima, a última, aquela que Jesus toma com os Seus Discípulos na véspera da Sua Paixão. E essa refeição é a condensação de tudo, é o resumo de tudo e é a antecipação do próprio destino de Jesus.

Então, os gestos de Jesus tornam-se muito gráficos, nós podemos seguir o curso do Seu gesto. Ele pega no Pão e diz: “Isto é o Meu Corpo que será entregue por vós”, pega no Cálice e diz:” Este é o Meu Sangue, que será derramado por vós e por todos como sinal de uma Nova Aliança.” E é a partir destas frases que em cada dia nós recordamos, que em cada domingo nós recordamos que nós temos a garantia, a certeza de que Ele está sempre connosco, todos os dias até ao fim dos tempos.

Porque, aquele pão se faz Corpo de Jesus, e se faz corpo de uma história que nós vivemos, uma história de relação com Ele, aquele vinho faz-se sangue de uma Aliança que nós experimentamos de tantas formas ao longo da nossa vida mas sabemos que é um laço vivo que nos une a Deus.

Mas quando Jesus diz “ Isto é o Meu Corpo, isto é o Meu Sangue” nós temos de perguntar: O que é isto? O que é isto?

Um primeiro significado é que “isto” é mesmo “isto”. É o que Ele tinha na mão, que é um bocado de pão, um bocado pobre de pão, uma migalha de pão e diz: ”Eu estou neste ínfimo pão.” Quer dizer: Eu estou no ínfimo, Eu estou no mínimo. E se Eu estou no mínimo, estou também no máximo. Eu estou aqui. E, se quisermos, há uma leitura literal que é isto: Eu estou neste vinho que se torna o Meu sangue.
Mas este “isto” certamente é mais, é mais. Porque cada um de nós, quando come o Corpo e quando bebe o Sangue do Senhor, não se liga a Jesus apenas a partir daquele pão e a partir daquele vinho. O que é que nos liga a Jesus? É este “isto” que no fundo é a Sua vida toda, é a história que Ele nos dá a partilhar, é a relação que Ele nos permite, é o que Ele faz no nosso coração, são os sinais que Ele nos dá, são as parábolas que Ele contou onde nos sentimos atores, são os encontros que Ele teve e que hoje nós sentimos que estamos lá dentro desses encontros: que Ele cura a nossa cegueira, que Ele transforma a nossa lepra, que Ele nos coloca a andar de novo, que Ele nos ajuda a viver numa plenitude de ser.

Quando Jesus diz: “Isto é o Meu Corpo, tomai e comei” quer dizer: mergulhai, mergulhai naquilo que Eu sou, mergulhai naquilo que Eu vos dou, mergulhai nesta história de amor e de relação que Eu mantenho com cada um de vós porque aí encontrareis a vida, aí encontrareis a plenitude, tereis este encontro comigo.

Queridos irmãos, celebramos hoje a Ceia do Senhor, esta refeição. Aquilo que nos define: são homens e mulheres de muito lado, de muita família, que se juntam como um só corpo à volta de uma mesa. Esta mesa é uma mesa que representa o passado, representa este gesto, esta refeição de Jesus que se torna não uma refeição mas a Refeição. Mas esta mesa é também o nosso presente, porque ao celebrarmos a Eucaristia sabemos que Ele está vivo no meio de nós, e que as nossas vidas, as nossas vivências, os nossos caminhos, as nossas inquietações, as nossas dilacerações são relevantes, são oportunidades, são caminhos para esta mesa e dialogam com esta mesa. Nós dialogamos com esta mesa.

Nada, nada pode impedir um cristão, qualquer que seja a sua situação, de dialogar com esta mesa. A nossa vida tem de dialogar com esta mesa. Ou a Igreja acredita que os cristãos nascem desta mesa, ou então, se calhar, a Igreja precisa de abrir de novo esta mesa, precisa de encontrar uma largueza – muitas vezes a estreiteza de certos entendimentos doutrinais acabam por limitar esta mesa a alguns. E, nesse sentido, o Papa Francisco tem recordado incessantemente que esta mesa não é um prémio para ninguém, não é um prémio. Esta mesa é o lugar onde o Homo Viator, a mulher e o homem que caminham, os peregrinos da vida, os pecadores, os incertos que nós somos nos alimentamos.

Esta mesa é consolação, esta mesa é reforço, esta mesa é ponto de partida. Esta mesa não pode ser exclusão, esta mesa não pode ser rejeição. Não pode ser a partir da Eucaristia que nós limitamos no corpo dos cristãos os regulares e irregulares, os bons e os maus, os certos e os errados. Não pode ser a partir desta mesa, seja a partir de outra coisa qualquer. Mas não a partir desta mesa, que na intenção de Jesus é a mesa do acolhimento, a mesa que é o nosso berço, que é a nossa manjedoura, a mesa onde nos sentimos consolados pelo amor de Deus, que em Jesus se torna presente para as nossas vidas.

Mas esta mesa, queridos irmãos, é também um lugar do futuro, é também um lugar utópico, é também aquilo que caminha à nossa frente. Porque esta mesa faz-nos antecipar aquilo que ainda não somos. Nós estamos aqui reunidos (infelizmente a Capela do Rato não é um lugar muito interclassista, tem uma predominância de uma classe média-alta, e pronto é o que é) mas esta mesa não é uma mesa que está capturada por um determinado grupo social, esta mesa é transversal, esta mesa é uma máquina de fazer irmãos, é uma máquina de fazer irmãos. É uma máquina de dissipar desigualdades, é uma máquina de aproximar, é uma máquina de fazer comunhão. É uma máquina de criar uma humanidade nova, onde os muros, as assimetrias, as distâncias são todas vencidas a partir desta mesa.

É claro que na vida hoje, no nosso hoje, isso ainda não acontece, mas esta mesa não é uma mesa capturada, sequestrada pelo nosso hoje. Esta mesa é o nosso amanhã, nesta mesa nós colhemos a inspiração para a cidade nova a construir. Nesta mesa nós lavamos os nossos olhos do nosso pecado da divisão, do conformismo, da aceitação de tanta coisa que é um pecado contra a pessoa humana. Nesta mesa nós lavamos os olhos e percebemos que o mundo pode ser de outra forma, o mundo pode ser de outra forma. E o mundo só será de uma forma justa, perfeita, quando os homens todos se puderem sentar à volta de uma mesa e puderem partilhar o mesmo pão, partilhar a mesma carne e o mesmo sangue, partilhar a mesma vida, a mesma existência.

Nesse sentido, esta mesa desassossega-nos, desassossega-nos. Ao mesmo tempo que esta mesa nos consola, que esta mesa nos dá paz, esta mesa não nos dá descanso, esta mesa desinstala-nos. Porque ela diz: “Como é que tu tens tornado este futuro presente? Como é que tu tens aproximado esta mesa? Como é que tu tens moldado a tua vida com as medidas desta mesa?”

Queridos irmãos, esta mesa é o critério da nossa vida, é o critério da nossa vida. Por isso, esta mesa é um programa. Um cristão não tem outro programa de vida senão esta mesa. Por isso, os primeiros teólogos do Cristianismo diziam: “Os cristãos que vão à Eucaristia tornam-se eucaristificados.” Isto é: nós temos a missão de nos tornarmos eucaristia, com o que isso significa, com o que isso quer dizer.

Nesse sentido é que o Cristianismo acende a sua luz e deixa de ser apenas um rito, mais um carneiro que nós imolamos, mais um sangue de cabrito que nós derramamos sobre as nossas cabeças. Não. É a nossa existência. “Tu deste-me um corpo.” E como diz a Carta aos Hebreus, Jesus disse: “Eis-me aqui Senhor para fazer a Tua vontade.” É isso que cada um de nós é chamado à sua maneira a dizer no seu coração.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade do Corpo de Deus

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Maio

height=”10″][vc_toggle title=”2015/05/31 – A forma perfeita da comunhão” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Celebramos hoje a grande solenidade da Santíssima Trindade. Muitas vezes, o mistério da Santíssima Trindade é expresso numa linguagem filosófica que mais parece um daqueles problemas insolúveis da matemática. Como é que Deus é único e ao mesmo tempo é trino? Como é que Deus é uma única natureza em três pessoas distintas? Como é que se articula a singularidade e a unicidade de Deus com esta tripartição de Deus pela pessoa do Pai, pela pessoa do Filho e pela pessoa do Espírito Santo?

É sem dúvida um mistério. E nós temos de aceitar que o mistério é mistério. Sentimos isso muitas vezes na nossa vida: que a nossa razão toca apenas a fímbria, a borda do manto de um mistério que é muito maior do que a nossa razão e do que a nossa própria existência. O mistério de Deus está para lá daquilo que podemos pensar, dizer, medir, calcular, compreender. Deus é também incompreensível, Deus é também incognoscível, Deus também é secreto, é segredo, é silêncio.

É importante abraçarmos isso, sem medo e sem suspeita. É importante abraçarmos isso com amor e com confiança, abraçarmos o que não entendemos, mas abraçarmos. Porque, o homem não é a medida de todas as coisas e a nossa pequena razão não é a chave de entendimento para o Universo. Nós somos apenas fragmentos, partículas, pequenas existências. Aquilo a que somos chamados é a contemplar, a aceitar, a buscar uma relação. Porque uma coisa é compreender, outra coisa é conseguir uma relação.

Nós temos isso até porque o mistério vem ao nosso encontro. Temos a possibilidade de construir uma relação de confiança, de fé, de amor com uma realidade, uma verdade que é tão maior do que nós e que nós nunca conseguiremos abarcar, esgotar completamente nos nossos conceitos, nas nossas definições. Deus é, por isso, incognoscível, está para lá, por detrás, tão para lá das nossas imagens e das nossas palavras.

Porventura, o discurso verdadeiro sobre Deus é um discurso negativo. Negativo no sentido de: sem atributos, sem imagens. É, como diz a tradição cristã, um discurso despido de qualquer imagem ou sinalização. A teologia negativa é a teologia dos místicos, é dizer: “Deus é o que eu não sei. Deus é um não sei quê. Deus é um silêncio. Deus é uma presença que eu não consigo descrever.”

A aceitação disso acaba por ser uma coisa muito grande na nossa vida, dá-nos também um sentido muito grande da nossa própria realidade e faz-nos aceitar a nossa pobreza com uma grande liberdade, com um grande desprendimento.

Mas Deus, sendo difícil de entender, é muito fácil de entender. Há que dizer, também nesta solenidade da Santíssima Trindade, que o mistério da Santíssima Trindade é fácil, é fácil. Qualquer um de nós pode chegar lá, qualquer um de nós pode entendê-lo. Porque se Deus é amor, Deus não pode ser uma solidão, tem de ser uma comunhão. Se Deus é amor, Deus não pode estar sozinho, porque se nós dizemos que a nossa vida é amor, não podemos estar sós. Temos de ser nós, tem de haver o eu, e tem de haver outras coisas, outras pessoas, outras existências, outras formas na nossa própria vida.

E quantas formas há de haver? A forma perfeita da comunhão, aquela que é o símbolo de toda a comunhão é o ‘três’. Porque nós podemos amar-nos a nós próprios e é um dever, e é uma arte que temos de aprender a vida inteira, amarmo-nos a nós mesmos, mas o amor que dedicamos a nós próprios é um amor incompleto, é um amor que precisa de outro amor, precisa de outra complementaridade.

E encontramos isso no ‘dois’, quando amamos o outro. Quando o amante, o amigo realizam essa forma de amor, de amizade. Isso é uma forma de encontro, é uma forma de amor, é uma forma de plenitude que é fundamental. Porque todo o coração aspira por esse lugar que há no coração do outro. E essa busca do amor, a busca da amizade, a busca de uma relação privilegiada faz parte das ânsias mais profundas do nosso coração. De maneira que é muito natural que o ‘um’ anseie pelo ‘dois’. Mas, ao amor do ‘dois’ é sempre um amor especular, é um amor que é uma espécie de espelho, é o amor onde me revejo, é o amor onde eu procuro uma retribuição, onde eu procuro uma equivalência, uma reciprocidade, uma paridade. Essas são as características do amor do ‘dois’.

Então, o amor do ‘dois’ ainda é incompleto. O amor do ‘dois’ só se completa quando é capaz de integrar o ‘três’. E o ‘três’ traz outras coisas para dentro do amor e torna a comunidade do amor uma comunidade perfeita, uma comunidade parecida à Trindade. Porque o outro é o estranho, é o diferente, é aquele que não entra na relação de reciprocidade ou de paridade, mas que eu acolho numa forma de radical hospitalidade, de radical amor. E quando nós somos capazes de integrar o terceiro, então nós sabemos o que é o amor.

Hoje as nossas sociedades vivem a recusar o terceiro. Nós vemos, por exemplo, com os imigrantes. Nós somos cidadãos, temos os nossos papéis, os nossos impostos, está tudo bem. Mas quem não tem papéis, e é mulher, e é homem, e está sobre esta terra, como é que faz? O que é que vai ser dele? Nós temos uma dificuldade muito grande de integrar o ‘três’, aquilo que outro mais outro significa. Temos essa dificuldade na nossa vida concreta.

Por exemplo: muitas vezes reduzimos a família a um clube de egoísmo. Esgotamos o nosso amor na nossa família. Isso é tão pobre, tão pobre. Porque uma mãe que é só mãe dos seus filhos é tão pouco mãe. E um pai que é só pai dos seus filhos é tão pouco pai. E um irmão que é só irmãos dos seus irmãos é tão pouco irmão.

Se nós não somos capazes de aliar terceiros, três, nós não sabemos o que é o amor trinitário. Sabemos o que é o amor a dois, não sabemos o que é o amor trinitário. E o amor trinitário é este amor misterioso, este amor maior, este amor que me leva para lá das minhas fronteiras, para lá até daquilo que eu preciso, deste dar e deste receber. O ‘três’ faz do amor um jogo completamente diferente, que é um jogo de hospitalidade gratuita. Amar por amar, ponto final.

E esse é o amor de Deus, é o amor de Deus. Este amor que nós temos de contemplar, adorar e fazer dele a chave da nossa vida. Um cristão tem de ter o número ‘três’ como o número sagrado.

S. Cecília (há uma escultura belíssima dela, é uma das grandes peças do barroco) foi degolada e ela está vendada. Naquele momento da degolação ela está a fazer a confissão de fé. E a confissão de fé é fazer ‘três’, ‘três’.

Se nós não somos capazes de fazer ‘três’, de dizer: “A minha fé é ‘três’, a minha vida é ‘três’.”… Porque a fé não é uma coisa e a nossa vida é outra. A nossa vida é ‘três’. Para nós o número ‘três’ é o objetivo, é aquilo por que nós temos de lutar. A nossa vida fica uma vida pobre e inacabada se nós não experimentamos o amor do ‘três’: a capacidade do amar por amar, da hospitalidade gratuita, ir além do amor (que é a nossa obrigação e a nossa felicidade e tudo) mas buscar um outro amor. Aquele amor que nos obriga a andar pelas ruas e a acolher os pobres, aquele amor que nos ajuda a acolher mais um, a integrar mais um na nossa vida, na nossa mesa, no nosso trabalho, no nosso dinheiro, no nosso tempo.

Esse é o amor de Deus. Todos são o amor de Deus. Mas esse ‘três’ dá-nos uma medida muito exata daquilo que é a Santíssima Trindade.

Queridos irmãos, a Santíssima Trindade não é um conceito filosófico que lembramos uma vez por ano, a Trindade é a nossa forma de viver, é o nosso estilo de viver. Um cristão, se tem de morrer por alguma coisa tem de morrer por ‘três’, por ‘três’, por este amor que é um amor trinitário, e que representa aquilo que a nossa vida pode ser na sua plenitude.

Hoje vamos celebrar com a Leonor os ritos de iniciação cristã. Ela vai receber o sacramento do Batismo, o sacramento da Confirmação e o sacramento da Eucaristia. É um momento de graça para a nossa comunidade. Eu estava ali a acolhe-la à porta e a fazer-lhe estas perguntas, e confesso que as lágrimas vieram-me aos olhos porque aquilo que se diz à entrada é: “Esta vida eterna e o batismo, tu não os pedirias hoje se não conhecesses já a Cristo e não quisesses tornar-te sua discípula. Diz-me pois: Já ouviste a Palavra de Cristo? Já te decidiste a guardar os seus mandamentos? Já tomaste parte na vida da comunidade dos cristãos e na sua oração? Já fizeste tudo isto para te tornares cristã?”
Queridos irmãs e irmãos, isto que nós fazemos todos os dias é nisto que a Leonor vai ser batizada. Vamo-nos unir, vamos rezar por ela, vamos rezar por nós próprios, rezar por esta experiência que fazemos aqui, na comunidade do Rato, onde procuramos viver este amor trinitário de Deus domingo a domingo.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo da Santíssima Trindade

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/28 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/24 – O sopro que nos faz ser” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Hoje celebramos a festa do Pentecostes, do Espírito Santo, que é o Deus connosco, que é o Deus que nos acompanha nos itinerários da nossa vida. Mesmo se, na nossa devoção, na nossa relação, muitas vezes nos esquecemos do Espírito Santo. Porventura, o Espírito Santo é o Deus esquecido das nossas vidas e da nossa oração.

Porque, quando pensamos em Deus pensamos em Deus Pai, pensamos em Deus Jesus Cristo que viveu entre nós, que nos revelou o Seu amor, mas esquecemo-nos do Espírito Santo. Este Espírito Santo que Jesus pediu ao Pai para enviar de junto Dele, quando subiu até ao Pai. Este Espírito Santo que é a grande promessa de Jesus aos Seus Discípulos, que promete que enviará Aquele que defenderá a fé no nosso próprio coração, Aquele que atestará a existência de Deus e o amor de Deus ao nosso próprio coração, Aquele que virá como O Consolador, Aquele que virá como O Exortador, Aquele que vem ao encontro da nossa fragilidade. Como diz S. Paulo na Carta aos Romanos: “Aquele que vem gemer dentro do nosso coração, ensinando-nos a rezar.” Que é uma coisa que não seríamos capazes de fazer sem a ação do Espírito Santo nos nossos corações.

Cada um de nós, como batizado, é uma consequência do Espírito Santo. A Igreja verdadeiramente nasce no dia do Pentecostes. Porque a Igreja não é apenas uma associação cheia de méritos, uma associação cultural e religiosa para lembrar um grande acontecimento: a passagem de Jesus entre nós. A Igreja não é um grupo de militantes que há dois mil anos se reúne para fazer memória de um acontecimento passado. A Igreja é fruto do Espírito Santo.

Isto é, nós não vivemos do passado, vivemos do presente. Nós não vivemos de uma memória, nós vivemos de uma gestação que, abraçando a memória, ela é completamente presente e completamente futuro. Nós não somos simpatizantes de Jesus, partidários de Jesus. Nós fomos feitos um com Ele, no Espírito Santo. O Espírito Santo liga-nos a Deus porque é o próprio Deus, acende em nós o Espírito divino.
Tal como essa primeira imagem, essa primeira metáfora que acontece nas páginas primeiras de Bíblia, quando Deus, à maneira de um oleiro, amassa o ser humano do pó da terra, e depois sopra das suas narinas o vento, o hálito, o sopro interior e o homem torna-se vivente, nós também sem o Espírito somos apenas um corpo de barro, somos apenas uma coisa exterior, somos apenas alguma coisa aquém da própria vida. É o Espírito o sopro que nos faz ser.

A palavra “espírito”, que o grego traduz por “anemos “, que quer dizer ânimo, como nós utilizamos, mas que quer dizer “vento, sopro”, no hebraico diz-se “néfes”, e néfes é a vida. E o que é a vida? A vida é este sopro vital sem o qual nós não podemos viver.

Ora, o sopro vital não é apenas o oxigénio de que nós precisamos para existir neste instante. O sopro vital é este Sopro de Deus de que cada um de nós é objeto para poder ser e ser plenitude. E, por isso, é tão importante tomar consciência da presença do Espírito Santo nas nossas vidas, rezar ao Espírito Santo, pedir que Ele venha, pedir que Ele nos ilumine, pedir a Sua interceção, pedir que Ele permaneça connosco, pedir que Ele nos encha de todos os Seus dons.

Porque o Espírito é uno e é múltiplo. O Espírito é fantasioso, é criativo. O Espírito, sendo apenas um só, Ele está em todos de uma maneira única, de uma forma diferente. Ele distribui os carismas, Ele distribui os talentos, as qualidades, as potencialidades, a originalidade do próprio ser. É o Espírito o defensor ao mesmo tempo da unidade e da originalidade. Cada um de nós é um cristão original no Espírito Santo, e traz para a comunidade um dom que é único. Por isso precisamos tomar consciência e pedir ao Espírito Santo que nos renove, que nos recrie.

Aquela expressão que muitas vezes usamos do “desalmado”, ou então do “desanimado”, quer dizer isso muitas vezes, que é o modo como nós vivemos: vivemos sem alma, vivemos sem ânimo. Isso é efetivo, é real nas nossas vidas. Ora, o entusiasmo, o Deus que nos faz dançar, que nos faz ser, que nos enche, que nos dá o fulgor, a intensidade, que nos faz brilhar, é o Espírito. É o Espírito. E, por isso, precisamos acolher o Espírito Santo nas nossas vidas.

Uma Igreja conformista, uma Igreja parada, de onde não nasce nada, uma Igreja que vive a satisfazer os mínimos é uma Igreja sem Espírito Santo. É uma Igreja que deixa o Espírito Santo como um estranho, à porta. É o Espírito Santo que acorda em nós a paixão, a vontade, a criatividade para exprimir em novas linguagens, em novas gramáticas o coração da nossa fé.

Em Itália há um mosteiro, o mosteiro de Bose (já tenho falado dele de vez em quando), que é uma comunidade monástica jovem. Eles têm uma parede da qual eu me lembro muitas vezes. Numa parede têm o que eles chamam os nossos pneumatóforos. Pneumatóforo quer dizer condutor do Espírito Santo, aqueles que nos trouxeram o Espírito. Então, os pneumatóforos são os visitantes proféticos que passaram pela comunidade como hóspedes e a desafiaram, a inspiraram a ser.

De facto, nós precisamos de nos inspirarmos uns aos outros. Precisamos de ser luz, de desafiar. Quantas vezes nós achamos que ser cristãos é ser condescendentes uns com os outros. É dar palmadinhas nas costas e dizer: “Deixa lá. Afinal, podia ser pior.” Claro que podia ser pior, mas também podia ser muito melhor. Nesse sentido, há um dever de inspirar a vida uns dos outros, de sermos pneumatóforos, de levarmos o Espírito, de abrir horizontes, de apontar estrelas, de levantar os olhos mais longe, de dizer: “Tu és capaz. Tu consegues, no Espírito Santo.” E é assim que nós, irmãos, acordamos e percebemos que o Pentecostes não foi um acontecimento do passado, mas é um acontecimento de presente.

Nós precisamos do Espírito Santo, precisamos que Ele venha, precisamos de contagiarmo-nos uns aos outros com o fogo do Espírito Santo. E se encontramos um irmão/uma irmã mais desanimada, mais cansada, o que nós temos a fazer é de lhe passar o Espírito Santo. Na Igreja das origens os cristãos viviam a impor as mãos uns aos outros. Esse impor as mãos era essa passagem efetiva do Espírito Santo. Ora, com um abraço, com uma palavra, com uma presença, nós também impomos as mãos, nós o que fazemos é passar vida de um coração para o outro.

Queridos irmãos, sejamos bons condutores de vida, desta vida espiritual. Porque sem o Espírito Santo nós somos só o pó, nós somos só a terra, nós somos só o barro, nós somos só isto que se vê daqui, e isto que morre aqui, todos os dias, a todas as horas. É o Espírito que nos torna maiores, é o Espírito que nos projeta. O Espírito Santo é a alavanca da Igreja e é a alavanca da história. O Espírito Santo é o mestre, é o mapa, é o oceano, é a viagem. Por isso, acolhamos o Espírito Santo, neste dia para as nossas vidas, para este momento preciso que cada um de nós está a viver, e que há de ser um momento de traduzir o Espírito Santo de uma forma pessoal e nova nas nossas existências.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Pentecostes

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/21 – «João Bénard da Costa – Outros amarão as Coisas que eu amei»” open=”false”]Dia 21 de maio, quinta-feira, às 21h30, há cinema e homenagem a João Bénard da Costa, na Capela do Rato. O cineasta Manuel Mozos apresenta o seu filme «João Bénard da Costa – Outros amarão as Coisas que eu amei».[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/20 – Religião, antropologia do quotidiano, política e comunicação” open=”false”]Dia 20 de maio, quarta-feira, às 21h30, o antropólogo Lluís Duch, monge de Monserrat e Professor na Universitat Autonoma de Barcelona, estará numa conversa livre, sobre religião, antropologia do quotidiano, política e comunicação, na Capela do Rato. Uma oportunidade imperdível![/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/17 – Viver a presença de Jesus na sua ausência” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Celebramos hoje a solenidade da Ascensão de Jesus. Como se lê no livro dos Atos dos Apóstolos, há um momento em que Jesus nos é tirado do nosso olhar, como que uma nuvem agora oculta a visão do próprio Jesus. E os Discípulos têm de aprender uma coisa que até aí não sabiam, que é viver a presença de Jesus na sua ausência. Viver em Jesus não O vendo, não O encontrando, não contando com Ele, com a Sua presença física e visual no dia a dia.

Mas entretanto um processo havia acontecido, e é esse processo que também a nós nos funda como cristãos, também a nós nos sedimenta a nossa identidade cristã. E que nós podemos, de certa forma, comparar àquilo acontece na vida de cada um de nós em relação aos nossos pais. Essas figuras determinantes da nossa vida interior, daquilo que cada um de nós é, da confiança com que investimos ou não na própria vida. E o que aconteceu com os nossos pais numa idade muito tenra, numa idade de colo, foi uma internalização. Nós passamos a contar com os nossos pais não só fora de nós mas dentro de nós. Essa presença dentro de nós passou a ser fortalecedora e, a um dado momento, como que passou a ser suficiente para que começássemos a viver autonomamente. É claro que uma criança de colo precisa de muito pai e de muita mãe, e precisamos sempre, mas precisam daquela presença, daquela forma de presença. Por isso os miúdos não passam de colo para colo, e precisam de estar de mão dada e precisam ver, precisam mostrar e olhar. E, aos poucos, não é que se desliguem ou amem menos os pais, mas os pais passam para dentro deles a palavra, a presença. Eles sabem que podem ir agora ao fim do mundo e que os pais estão dentro deles, que essa ligação não é ameaçada pela distância ou pela ausência.

Esse processo, que é o processo fundador da autonomia de cada um de nós, também é, de certa forma, o processo que acontece no crescimento da vida cristã. Os Discípulos começaram com Jesus, partilhando 24 horas por dia a sua existência com Ele, comeram e beberam com Ele, ouviram a Sua palavra, escutaram os Seus silêncios. E, agora, Jesus está-lhes oculto por uma nuvem. Mas isso não quer dizer que eles perderam Jesus. A Igreja não perdeu Jesus na Páscoa. Nós ganhamos Jesus de outra forma, ganhámos a Sua presença em nós.

Por isso é tão importante aquilo que S. Paulo nos diz: “Que o Senhor ilumine os olhos do vosso coração para compreenderdes a esperança a que sois chamados.” Precisamos olhar com os olhos do coração para compreender a qualidade e a dimensão da esperança a que cada um de nós é chamado.
Em vez de sentirmos que a nossa vida se desmobiliza, pelo contrário, a Igreja sente neste tempo pascal que esta é a nossa hora, chegou a nossa vez, que agora temos de ser nós a assumir a beleza e a radicalidade da proposta cristã. Por isso este é o momento do envio, este é o momento do mandato em missão: “Ide por todo o mundo e anunciai.”

É muito bela a fórmula que S. Marcos utiliza: “E o Senhor cooperava com eles.” O Senhor coopera connosco. Isto é: Deus vem em nosso auxílio, Deus socorre-nos, Deus ampara-nos para esta missão de sermos agora nós os protagonistas, os atores deste Evangelho a anunciar ao mundo. Nós podemos contar com essa ajuda efetiva de Deus para a nossa vida.

Queridos irmãs e irmãos, muitas vezes a ausência de Deus, o silêncio de Deus é um embaraço para nós. Muitas vezes sentimos que Ele nos descorçoa, nos faz cair os braços, nos desalenta, não nos dá a força. Ora, a Igreja que surge que é formada na Páscoa, pelo contrário, é uma Igreja mobilizada, é uma Igreja que sabe interpretar a ausência e o silêncio como lugares a preencher com uma comprometida presença da nossa parte. Por isso este tempo pascal, que é um tempo privilegiado para a construção da própria Igreja e para a consciência que cada um de nós é chamado a ter, da sua identidade, da sua missão; este é um tempo para mobilizar, este é um tempo para sentir, este é o tempo para descobrir, este é um tempo para compreender. Compreender, descobrir, mobilizar o quê? Perceber que agora sou eu, que em Cristo agora é a minha vez de ser.

Porque Cristo não nos veio substituir, Cristo veio motivar-nos, Cristo veio possibilitar-nos, Cristo veio dar-nos a capacidade de, mas temos de ser nós a lançar-nos nesta experiência que é sobretudo uma arte de ser, uma arte de ser.

O Cristianismo não é apenas uma verdade que nós mantemos na história. É antes de tudo uma cultura, um modo de ser, um conjunto de atitudes, um conjunto de escolhas que fazem realmente a diferença na nossa vida. Nós, verdadeiramente, não nos sentimos dignos do nome de cristãos enquanto o ser cristãos na nossa vida não faz a diferença. Por sermos cristãos acontecem determinadas coisas na nossa vida. Há passos, há rumos, há trilhos que nós fazemos em nome da nossa fé.

É claro que isto é um trabalho interior de grande vigilância, é um trabalho paciente que acontece. Sto. Agostinho lembrava: “Nós não nascemos cristãos, nós tornamo-nos cristãos.” Muitas vezes, com surpresa, nós cristãos de há muitas décadas descobrimos que não somos cristãos, ou que naquela circunstância precisa não fomos cristãos, ou que naquela reação, naquele modo de pensar, naquele juízo nós não fomos cristãos. Mas, de certa forma, não temos que nos espantar porque o Cristianismo não é natural em nós, não é natural. É um tornar-se, é uma transformação, é uma metamorfose, é uma mudança que tem de acontecer em nós.

Por isso, nós precisamos desta ligação a Cristo, precisamos da força da oração. Sem oração nós não conseguimos. Precisamos de reencontrar a força e o sentido da oração, que é o grande estímulo neste processo de transformação em que nós estamos. Por isso, um cristão não navega com o piloto automático, isso não existe. Um cristão tem de estar sempre atento, e ele com as mãos no leme, sabendo que Deus coopera com ele. Mas sabendo que cada passo, cada gesto precisa ser levado a Cristo. Temos que levar a nossa vida a Cristo para que Cristo a ilumine, para que Ele nos revele aquilo que a nossa vida é e o que ela pode ser.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Ascensão do Senhor

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/14 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/10 – A arte de traduzir Deus” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Neste sexto domingo da Páscoa, a Palavra do Senhor coloca-nos perante duas questões fundamentais.

A primeira é: a compreensão de que aquilo que nos é pedido por Jesus é o amor. É o resumo de tudo aquilo que Ele nos pede mas também que, neste longo discurso do adeus, de que nós lemos apenas uma parte, o termo do amor e o mandato do amor é a vontade explícita de Jesus a nosso respeito. O que Ele pretende é colocar-nos a amar, é tornar-nos especialistas no amor, é ampliar a nossa capacidade de amar, é reforçar a nossa vontade, a nossa imaginação, o nosso empenho, a nossa disponibilidade para que o amor verdadeiramente marque as nossas vidas.

É claro que o amor, e este mandamento do amor, é um mandamento difícil. De certa forma, nós não conseguimos pedir, a quem quer que seja, que ame. Podemos pedir muitas coisas mas não podemos pedir o amor. Porque, no nosso entendimento, o amor é gratuito, o amor brota, o amor nasce de uma empatia, o amor constrói-se, o amor surge, ou não surge, o amor às vezes é muito difícil e muitas vezes parece-nos impossível. Porque ficamos secos, porque estamos distantes, ou simplesmente porque na nossa liberdade nós não queremos amar, não queremos amar aquela pessoa, não somos capazes. E, contudo, o Senhor diz-nos: “O que Eu vos peço, e o que Eu vos mando é que vos ameis, vos ameis uns aos outros como Eu vos amei.”

Não há nenhuma constituição, não há nenhuma lei. Há leis para todas as coisas, mas não há nenhuma lei que mande uma pessoa amar. Porque isso, de certa forma, é pedir-lhe o impossível, é ir além daquilo que é o razoável. E, contudo, nós temos de nos perguntar o que é que Jesus nos pede, quando nos pede isto que aparentemente é irrazoável, isto que aparentemente é impossível. O que é que Jesus nos está a pedir quando coloca como síntese, e como indicador do que Ele nos pede, a proposta do amor, o mandato do amor?

Aqui a leitura de S. João, que hoje também lemos, vem em nossa ajuda, lembrando-nos que Deus é amor. Que quando se fala do amor não se está a falar de uma realidade distante de Deus. Pelo contrário, nós só tocamos em Deus se compreendermos o que é o amor e se praticarmos o amor. Só quem pratica o amor, diz-nos S. João, conhece a Deus e nasce de Deus. Porque Deus é isso, Deus é amor.

Então, a nossa habitação de Deus, tornarmos Deus a nossa experiência, a nossa morada, a fé que temos em Deus outra coisa não é do que o aprofundamento do que significa o amor. Se um cristão, uma cristã, adultos, não têm como grande objetivo, grande finalidade dos seus quotidianos das suas vidas o aprofundamento do amor estão longe, estamos longe do mandato de Jesus e da compreensão daquilo que Jesus nos pede.

Eu lembro-me, na primeira paróquia de que eu fui pároco (também só fui de uma): Foi muito interessante porque eu tinha acabado de me ordenar, tinha 25/26 anos, e pensava que a minha vocação e a minha palavra eram sobretudo para os jovens. E, depois, com grande surpresa minha, eu percebi que os seniores escutavam-me talvez com maior atenção. E lembro-me perfeitamente de uma pessoa, uma mulher, muito avançada nos anos, já com mais de 80 e que, no fundo, domingo a domingo, ouvia falar do amor, da importância do amor, o amor acima de todas as coisas, o mandato do amor; ela veio falar comigo a dizer: “Olhe, está-me a dar uma grande novidade. Eu tenho vivido a minha vida toda, tenho sido uma mulher religiosa, uma mulher de fé, tenho cumprido tudo. Mas, olhando para a minha vida, eu tenho que dizer que não sei o que é o amor, não sei o que é esse mandamento do amor.”

A mim tocou-me, tocou-me imenso esta mulher ter a capacidade de olhar para a sua vida e perceber como estava longe daquilo que é o central que Jesus nos pede. Para dizer a verdade, não é fácil nós vivermos uma vida inteira e permanecermos longe deste núcleo vital da Palavra de Jesus que é, no fundo, a única proposta que Ele nos faz, que é: ama, amem-se uns aos outros como Eu amo cada um, como Eu vos amei.”

De maneira que é muito fácil nós passarmos ao lado. E, contudo, passar ao lado é não ter mergulhado no mistério do próprio Deus, naquilo que Deus nos pode dar. Passar ao lado é não ter sido transformado por esta experiência que é, no fundo, o Cristianismo, é ele não ter feito unidade com a nossa própria vida, é não ter sido ele a marcar o nosso rumo, a marcar as nossas prioridade, a marcar a nossa agenda. Por isso, precisamos, de facto, de refletir muito seriamente no que fazemos a este mandamento de Jesus e como o cumprimos. Nós não o podemos cumprir apenas como um mandato, apenas como um mandamento. Mas temos de cumpri-lo como um modo de existência, como uma experiência.

Porque se Deus é amor, então o amor é permanecer em Deus, como explica S. João. Então, toda a nossa vida espiritual outra coisa não é do que o mergulho neste oceano de amor que é o próprio Deus. E, depois, a nossa vida não é senão uma arte de traduzir Deus, de refletir Deus, de passar Deus, de comunicar Deus em cada momento da nossa vida.

Quando S. João diz que Deus é amor, e que só conhecem a Deus aqueles que amam, e que só nascem de Deus aqueles que amam, S. João está a dizer-nos uma coisa muito importante. Porque a religião pode ser uma distração muito grande do essencial. E nós podemos viver uma vida muito agarrados às coisas de Deus e muito longe de Deus. Muito agarrados aos arredores, aos ornamentos, aos ritos e muito pouco mergulhando, escondendo, afundando a nossa vida completamente em Deus.

S. João diz: O importante não é a gramática do religioso. O importante não é esta expressão toda, que para nós é tão significativa, e ainda bem que é, mas não pode ser só isto, não pode ser só isto. Nós não sabíamos viver sem a missa dominical. Somos consequência deste momento das nossas vidas, mas não pode ser só isto. No sentido de que isto tem de dialogar com uma realidade maior e essa realidade é de que: só quem ama conhece a Deus e só quem ama nasce de Deus. Então, o nosso caminho, a nossa estrada, a nossa verdade, a nossa vida tem de ser de facto o amor.

Isto pede-nos, a nós cristãos, um exercício muito grande de humildade, reconhecendo aquilo que Pedro reconheceu, com surpresa, mas também com compromisso, quando ele percebeu que, antes de ele batizar os gentios, já o Espírito Santo havia sido derramado sobre eles. Quer dizer: o Espírito Santo vai à frente da Igreja. A Igreja chega depois do Espírito Santo ter chegado. Quer dizer: nós temos também de ter a humildade. A Igreja não é tudo, para lá da Igreja tantos crentes de outras religiões, tantos não-crentes, tantos mulheres e homens de boa vontade são assinalados, também, pelo Espírito. Onde a Igreja não chega, ou ainda não chegou, o Espírito Santo já fez a Sua sementeira.

E como é que nós vemos a sementeira do Espírito Santo? Vemos em tantas mulheres e tantos homens uma capacidade de amar, uma disponibilidade para amar, para estar ao lado dos outros, para servir, para acompanhar, para fortalecer, para exortar, para compartir, para partilhar, para solidarizar-se verdadeiramente. Isso é sinal de uma sementeira que está no mundo e que, para nós cristãos, deve ser uma marca que nos faz refletir, que nos dá um otimismo histórico. Porque nós percebemos que não contamos apenas com as nossas fracas forças. O Espírito vai adiante de nós e já está a semear, no mundo, esses gestos de amor.

De facto, os justos que salvam o mundo, e muitas vezes não sabem que o estão a salvar, são aqueles que multiplicam na sua vida os gestos de amor. Muitas vezes gestos pequeninos, gestos escondidos. Mas nessa vida minúscula, nessa vida sem história, está o sublime de Deus, está o eterno de Deus no empenho, no compromisso com que vivem. Sintamo-nos assim chamados a colocar o amor, a refletir sobre o lugar que o amor tem nas nossas vidas. Nós tantas vezes insistimos em tantas coisas e desistimos do amor. Que coloquemos o amor, e este mandamento do amor que Jesus nos deixou, como centro, como traço axial de aquilo que no tempo nós construímos.

Nesta Eucaristia eu queria rezar por um amigo que não conheci, que se chamava Ricardo, que faleceu há pouco mais de um mês. Hoje a sua família (os seus pais, os seus irmãos, a sua namorada, os seus amigos, familiares) estão aqui connosco, na nossa comunidade, para rezarmos pelo Ricardo. Um homem de boa vontade com o coração cheio de amor e que, muito limitado pela doença, não tinha prisões no seu coração. Não tinha prisões na sua sensibilidade, na sua capacidade de amar, de esperar no outro, de tentar inspirar o mundo também pela sua palavra, pelos seus projetos, por aquilo que ele fazia, tornando a sua doença um lugar habitado pela amizade, habitado pela esperança.

Vamos dar graças a Deus pela sua vida nesta celebração. Vamos perguntar não apenas porque é que ele partiu, que é a pergunta que nos enluta – é uma pergunta natural daqueles que amam. Porque é que aqueles que amamos partem? E partem tão cedo, como foi o caso do Ricardo. Mas, no nosso coração, perguntemos porque é que ele veio? O que é que ele trouxe? O que é que ele mudou em nós? O que é que ele iluminou? O que é que ele contribuiu, por exemplo, para que o amor seja mais forte em nós, e para que este mandamento do amor nós o compreendamos melhor. Porque ele nos indicou talvez aquilo que é essencial, a nós que andamos tão distraídos.

Vamos por isso juntar-nos a esta família, a este grupo de amigos, e rezar juntos, pedir ao Senhor que tenha o Ricardo junto de si, que o leve aos seus ombros de bom pastor e que, na comunhão dos santos e na comunhão da esperança, nós sintamos a presença do Ricardo ao longo das nossas vidas.

Pe. José Tolentino Mendonça, VI Domingo da Páscoa

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/07 – Encontros Interreligiosos – Viver o Islão, hoje” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/05/03 – Somos chamados a ser fecundos” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Hoje, neste passo do Evangelho de S. João que proclamamos, aparece-nos uma interpretação da palavra “discípulo” que é importante nós tomarmos para a nossa reflexão. Porque nós damos por descontado que somos discípulos de Cristo, porque o nosso próprio batismo tornou-nos isso. Consideramos o discipulado como a categoria de base, a categoria que é ponto de partida.

Esse entendimento continua certo, há que dizê-lo. Antes de toda a nossa ação, todo o nosso mérito, de toda a nossa construção, nós somos em Cristo. Recebemos a Sua força, o Seu vigor, é Ele que nos ilumina, recebemos a Sua graça, a Sua presença nas nossas vidas. De maneira que nós somos à partida discípulos de Cristo. Mas há um outro entendimento que emerge das palavras do Senhor que hoje escutamos. Esse entendimento coloca o termo “discípulo” não como ponto de partida, mas como ponto de chegada de uma vida que tudo faz, que em tudo se empenha, que se compromete autenticamente para se tornar uma vida semelhante à de Jesus.

Nós não somos discípulos porque começamos um caminho. Nós somos discípulos porque ao longo do nosso caminho, um caminho necessariamente demorado, complexo, paciente, um caminho necessariamente feito de tantos, de múltiplos recomeços, a verdade é que, no final desse caminho, há alguma coisa em nós que sem palavras nos liga à pessoa de Jesus, à lição de Jesus, ao modelo de Jesus. Então é a forma de viver, é a modalidade da nossa própria existência, é a forma, a configuração que damos à vida que nos faz ou não ter este nome de discípulos de Cristo.

Só numa vida de permanência em Jesus e numa vida fecunda nós podemos dizer que somos discípulos de Cristo. Esta dupla aceção que a palavra “discípulo” tem no discurso do Senhor introduz, sem dúvida, uma tensão na nossa vida. Não podemos estar parados, não podemos estar de braços cruzados a achar que tudo está adquirido, e que basta o que temos, e que podemos estar satisfeitos com o que fazemos.

Nós somos chamados, na Páscoa de Jesus, a um sobressalto, a uma transformação. A vida não pode ficar a mesma. Nós somos chamados a dar fruto, somos chamados a uma fecundidade interior. Que só vem também quando nos dispomos, verdadeiramente, a multiplicar os talentos, a dar outros passos, a abrir as nossas mãos, a adensar a nossa experiência espiritual. Somos chamados a ser fecundos. Como diz o Senhor: “A glória do Meu Pai é que deis muitos frutos.”

Num domingo como este, o V domingo da Páscoa, em que a questão é o fruto, que fruto nós damos? Qual é a fecundidade das nossas vidas? A nossa fé serve para quê? Enche o nosso coração de que coisas? Num domingo como este, em que esta é a questão decisiva das leituras da palavra de Deus, é muito importante que cada um, no seu coração, possa de facto sentir que somos chamados a passar da escassez e da retenção à multiplicação da vida. Que não podemos estar a diminuir, a subtrair o significado da vida, mas todos nós somos chamados a multiplicar a vida que nos é dada. E multiplicar a vida é torna-la fecunda, é sentir que a nossa participação em Cristo atua em nós muito fruto. Fruto de vida.

É interessante que nas Cartas de S. João nós temos um critério muito prático, mas também muito seguro, do ponto de vista espiritual, para olharmos e fazermos um balanço, um exame de consciência da nossa vida. A Carta de S. João coloca, de facto, o centro deste balanço naquilo que diz o nosso coração. O que é que me diz, hoje, o meu coração em relação à minha vida? Ele pede-me mais? Ele pede-me outras coisas? O meu coração está em paz com a vida que eu vivo? Se o meu coração tem reivindicações, se o meu coração me põe perguntas, se o meu coração me pede mais eu tenho de ouvi-lo. Eu tenho de ouvi-lo. O critério numa vida espiritual é: há paz no teu coração? Há paz nessa consciência que é o santuário íntimo onde o homem e a mulher se encontram com Deus?

Eu estou em paz ou sinto que estou parado, ou sinto que faço pouco, sinto que fico aquém, sinto que não dou o fruto que podia dar? E se eu sinto essa insatisfação em mim, eu tenho o dever de escutá-lo, tenho o dever de escutá-lo. Porque é pelo meu coração que Deus fala. É pelo meu coração, antes de tudo, que Deus fala. Eu posso ouvir muitas coisas e isso ser importante, mas a grande mensagem de Deus é-me dita pelo meu coração. Se o nosso coração não tem paz, temos de tomar a sério, temos de colher as implicações, temos de fazer um discernimento. Sabendo que, mesmo quando o nosso coração é pequeno e pobre, Deus é sempre maior que o nosso coração. Deus pode tornar sempre maior o nosso coração.

Nesse sentido há aqui uma confiança fundamental que é preciso trabalhar ao mesmo tempo que trabalhamos o nosso sentido de justiça, de autenticidade, de verdade.

Porque, como diz a Carta de S. João, não podemos ficar a amar Jesus e a amar os irmãos, não podemos ficar apenas a ser discípulos de Jesus por palavras e pela língua, temos de o ser também pelas obras. E todos sabemos como isso é mais difícil. É muito mais fácil dizer que sim e depois logo se vê, se sim se não. Outra coisa é ter a vida hipotecada à palavra do Senhor. Sentir, no fundo do coração, que nos entregamos, que nos damos e que concretizamos, que fazemos, que praticamos a Ressureição, que praticamos a fé na Ressureição. Não é apenas uma verdade que anunciamos mas é uma verdade que praticamos. Torna-se não apenas uma ortodoxia, mas também uma ortopraxia, a Páscoa de Cristo, porque nos empenha a fazer coisas.

Aqui é importante sabermos que não há obstáculos, que ninguém está excluído desta tarefa de tornar fecunda a vida, uma vida multiplicada pelo espírito do Ressuscitado.

O exemplo que os Atos dos Apóstolos hoje nos dão é do apóstolo Paulo. Ele que era o rival, ele que era o inimigo, ele que era o perseguidor torna-se o vaso de eleição. Deus pega nele e transforma-o, e torna-o um braço da Sua videira, torna-o um lugar onde a vida acontece, onde a vida jorra, torna-o uma nascente de vida. Por isso nenhum de nós pode dizer: “Ah, estou já demasiado estéril”, “Já é demasiado tarde” ou “Nunca vou chegar isso.” Não, todos somos chamados, permanecendo em Cristo, a dar esse fruto. É o próprio Espírito que conspira com a nossa fragilidade para que essa fecundidade aconteça nas nossas vidas.

Queridos irmãs e irmãos, neste tempo santo da Páscoa nós não estamos apenas a celebrar a Ressurreição de Jesus, nós estamos a celebrar a nossa ressurreição. Estamos a colocar aqui sobre a mesa, como assunto, como questão a ressurreição das nossas vidas, a transformação das nossas vidas.

Esta transformação não é uma utopia, não é apenas uma questão de palavra ou de fé, é uma questão de prática. O que é uma vida ressuscitada? O que é uma vida nova?

Penso que as duas grandes palavras de Jesus que nos aparecem no Evangelho são palavras que temos, de facto, de levar para as nossas vidas. Uma palavra é: permanecer. O desafio a permanecer. “Permanecerei em Mim e eu permanecerei em vós.” Este desafio a radicar, a esconder, a colocar, a ligar a nossa vida à vida de Cristo. E a outra palavra é a palavra “fecundo”, o dar fruto. Há uma exigência que é feita aos discípulos do Senhor. Nós temos de merecer também esse nome. Esse nome é um dom mas também é uma tarefa, também é uma missão. Merecer o nome de discípulo de Jesus.

Acreditemos, queridos irmãs e irmãos, que não há nome mais belo que nós possamos conquistar, não há título de maior luminosidade que nós possamos ganhar na nossa vida do que a de termos sido e a de sermos humildes e fiéis discípulos de Jesus.

Pe. José Tolentino Mendonça, V Domingo da Páscoa

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Abril

height=”10″][vc_toggle title=”2015/04/30 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/04/19 – Jesus dialoga com a descrença” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

A verdade da Páscoa é uma verdade inacreditável. A verdade que aconteceu com este homem, Jesus de Nazaré, este profeta filho de Deus, este Messias de Israel, a verdade que aconteceu na Sua vida é uma verdade que nos deixa em sobressalto.

E perguntamo-nos se devemos ou não acreditar. Se podemos ou não acreditar em Jesus. Porque se nos vierem dizer que um homem venceu a morte (esta morte que parece o limite natural de todas as coisas e de todos os seres), se nos vierem dizer que um homem rompeu o cerco e saltou para lá da linha, e levanta-se agora como aquele que está vivo no meio dos seus, nós esfregamos os olhos, beliscamos os braços para ver se é verdade, se pode ser verdade.

A Igreja neste tempo pascal é isso que se pergunta: pode ser verdade isto que nos está a ser anunciado?

É importante que nos debatamos com este problema. Porque a Ressurreição, queridos irmãs e irmãos, é a maior das verdades cristãs. Em certo sentido, é a única das verdades cristãs. Porque é ela que rompe com tudo aquilo que conhecíamos até então, é ela que nos coloca perante um dia novo, perante um tempo novo, perante um lugar absolutamente inédito na História. E mais: é-nos pedido a cada um de nós que seja a partir da Ressurreição, a partir da fé neste acontecimento absolutamente singular da História, que seja a partir deste acontecimento que moldemos agora as nossas vidas, os nossos dias, o tempo que nos cabe viver. Seja a Ressurreição, o acontecimento pascal, que seja o critério, a regra, a medida, o mapa, a certeza, a convicção, o espanto que nos move na vida de todos os dias.

Por isso é tão importante que agarremos a fundo o problema, inclusive na sua dificuldade. Porque o sobressalto com que as mulheres vieram dizer aos companheiros de Jesus (eles foram ao túmulo e viram), o sobressalto que os de Emaús tiveram quando encontraram aquele terceiro viajante no caminho de Emaús e perceberam que era Jesus (e voltaram para Jerusalém e agora estão a contar) é o sobressalto dos doze que estão reunidos, e é o nosso próprio sobressalto.

Nós podemos acreditar na Ressurreição de Jesus. Mas acreditar não como uma verdade sobrenatural, que está no fundo da história, mas acreditar como uma verdade material que perfura o tempo que eu vivo, que perfura e argamassa a história que eu construo. Eu posso acreditar nessa verdade da Ressurreição.
Nós estamos a ler nestas oitavas da Páscoa, o tempo pascal, as narrativas da primeira comunidade cristã, e como a comunidade se debate com a questão da Páscoa.

Há dois elementos que sobressaem em todos os textos:

Primeiro, as dúvidas. É uma verdade tão grande que nos é colocada no coração que nós não temos instrumentos para perceber. Não é uma verdade como as outras, a verdade pascal. É uma verdade tão nova que nos sentimos balançar, nos sentimos duvidar. Jesus aparecia no meio dos discípulos e eles diziam: “É um fantasma. Estamos a sonhar. Não é o que estamos a ver. Não pode ser.” Porque é o impensável, é o contrário de tudo o que sabemos e sentimos. E não acreditavam, e resistiam a acreditar.

Então, temos um dos elementos que caracterizam a aparição do Ressuscitado é: a persuasão que o próprio Ressuscitado faz aos seus discípulos de que Ele está vivo. É Jesus que os convence da Sua vida. É Jesus que nos convence de que Ele está aqui no meio de nós, vivo e presente. E Jesus, perante as dificuldades dos discípulos, não os crítica, não diz: “Essas dificuldades são incompreensíveis, são de todo ilegítimas.” Pelo contrário, Jesus dialoga com a descrença, com a dúvida, com a interrogação que está no coração dos discípulos. E mostra-lhes as mãos e o lado e diz-lhes: “Tocai-Me, vede-Me.” E quando as dúvidas não se dissipam, Jesus diz: “Trazei-Me alguma coisa para comer.” E come diante deles. Há assim como que um processo de persuasão, de convencimento de que podemos de facto acreditar, como uma verdade credível na Ressurreição do Senhor.

Mas, se este caminho de persuasão não nos basta, há o segundo elemento, que é típico destas narrativas do Ressuscitado, e que é o processo a que todos somos convidados neste tempo pascal.

Diz-nos o Evangelho de S. Lucas: “Abriu-lhes então o entendimento para compreenderem as Escrituras.”
A compreensão da Ressurreição, a compreensão da Páscoa não é alguma coisa que cheguemos somando dois mais dois. É compreensão profunda, existencial, espiritual desta que é a mais decisiva das verdades da nossa fé. É um dom do próprio Deus, é no Espírito, é na força do Espírito em nós que o nosso entendimento se abre, e nós tateamos o mistério que nos é dito, que nos é declinado pela Palavra do Senhor. É o próprio Espírito que nos abre a essa compreensão profunda, não é obra nossa é obra de Deus em nós.

Por isso, queridos irmãs e irmãos, nós devíamos estar aqui espantados, trémulos. Podemos acreditar ou não? É ou não verdade? Porque se for verdade muda tudo. Se for verdade que Ele ressuscitou, que Ele está vivo no meio dos seus, isso transforma completamente a nossa vida. Porque Jesus não é o único. Ele quis ser, no meio dos seus irmãos, o primogénito. Não o único, não o exclusivo, mas o primeiro, o primeiro, o primeiro de uma geração. E, nesse sentido, de facto a Igreja nasce no acontecimento da Ressurreição, os baptizados nascem a partir do acontecimento da Ressurreição. É a partir deste acontecimento que nós nos situamos na vida, que nós nos situamos no mundo.

O professor Eduardo Lourenço tem um prefácio a um dos seus livros (Heterodoxia I), denominado Prólogo sobre o Espírito da Heterodoxia, em que ele diz o seguinte: “Em Atenas, quando S. Paulo anunciou aos atenienses, aos filósofos gregos, que Jesus tinha ressuscitado, eles levantaram-se e foram-se embora.” Porque não estavam para ouvir coisas impensáveis. E ele diz: “Contudo, nós cristãos ouvimos esta verdade que é capaz de incendiar o mundo, mas ouvimo-la de uma forma completamente passiva, adormecida.”

Queridos irmãos,

A Ressurreição, a fé na Ressurreição tem de ser o motor de transformação das nossas vidas. Há um antes e um depois da Páscoa. A Páscoa é o limiar de uma Humanidade nova que eu começo a viver em mim, na minha história, na minha vida. Porque Ele ressuscitou, porque Ele ressuscitou a nossa vida tem de ser uma vida outra, tem de ser uma vida outra, tem de ser uma vida que transporta no seu cerne esta verdade. E que faz de nós, como dizia Pedro e como dizia Jesus, discípulos: faz de nós testemunhas desta verdade.

Com a Páscoa a nossa vida passa a valer mais. Porque nós trazemos na nossa carne, impresso na nossa carne, o relato de uma verdade capaz de mudar e salvar o mundo. Trazemos impresso no nosso coração e na nossa carne, não só a verdade da Cruz, mas a verdade do túmulo vazio, a verdade da manhã de Páscoa. Esta verdade que custa dizer, porque é tão grande, é tão maior do que tudo aquilo que até aqui sabíamos.

Na Páscoa começa uma ciência nova, uma sabedoria nova, uma filosofia nova, uma política nova, uma economia nova, uma religião nova, uma vida familiar nova, uma vida de amor nova. Na Páscoa começa uma Humanidade nova, porque parte-se, agora, daquilo que com o Seu corpo o Ressuscitado levantou para nós. E nós não podemos não ver, nós não podemos não viver a partir desta verdade, fica agora bem presente, bem nítida na nossa história.

Queridos irmãs e irmãos,

É esta responsabilidade que nos é pedida: a responsabilidade de fazermos este caminho interior de aceitarmos o problema, de aceitarmos que seja o Espírito a abrir-nos o entendimento e aceitarmos viver este tempo num regime espiritual intenso. Para que o próprio Deus nos ajude a compreender o que é que Ele quis dizer, o que é que Ele nos quis dizer com a Ressurreição do Seu filho. E depois, nós próprios sermos um povo de testemunho, um povo que é capaz de levar esta boa notícia, esta boa-nova, esta palavra que transforma a vida. Há um túmulo que ficou vazio, porque há um homem que ressuscitou. E a partir desta notícia nós redesenharmos, nós recriarmos, nós reinventarmos a nossa relação com o mundo.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III da Páscoa

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/04/16 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/04/11 – Encontros Interreligiosos – Descobrir o Zen: um diálogo interreligioso” open=”false”]No dia 10 de fevereiro, a Comunidade do Rato e o Dojo Zen de Lisboa reuniram-se numa noite memorável para aprofundar juntos A Via do silêncio.

Este encontro tem agora um proposta de continuidade no Dojo Zen, que organiza uma manhã de descoberta do Zen no sábado, 11 de abril, na sua sede da Rua Luciano Cordeiro, 49 CV, em Lisboa.

Programa:

  • 9h 30 – Chá de boas-vindas
  • 10h 00 – Introdução à prática da meditação zen (zazen)
  • 11h 00 – Sessão de zazen e cerimónia (canto de um sutra)
  • 12h 15 – Momento de convívio

Inscrições na Capela do Rato ou via site.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/04/05 – A ausência como um mistério de presença” open=”false”]Queridos irmãos

Hoje acordamos celebrando a maior das verdades cristãs, aquela sobre a qual a nossa fé se cimenta, se enraíza. É verdade que há um sepulcro vazio e que Ele não está ali, porque Ele está vivo, porque Ele caminha à frente dos seus, porque Ele, junto do Pai, nos envia o Seu Espírito. Porque Ele é a certificação de um amor de Deus que é maior do que a própria morte, que vence aquilo que parecia uma fatalidade: o invencível da morte.

Hoje nós acordamos cantando Aleluia e acordando no nosso coração a maior das esperanças. Porque Ele está vivo, Ele está aqui no meio de nós, Ele continua a caminhar no meio dos seus.

E por isso, como aos discípulos, o nosso coração arde. Hoje é esse dia, em que o coração se enche desse entusiasmo, desse ardor. Porque compreendemos que na Ressurreição de Jesus é a nossa vida que se amplia, é a nossa vida que se ilumina, é a nossa vida que ganha uma outra forma. Ela passa a ser mais de Deus, ela passa a ser o triunfo de Deus.

E experimentamos isso na vulnerabilidade, na fragilidade, no inacabamento, na hesitação da nossa carne. Experimentamos a maior das verdades, aquela que nenhum homem ousou sonhar e que em Cristo nós palpamos, nós tocamos, nós verificamos.

É tão belo este Evangelho de S. João que nós lemos. Porque é como uma cenografia, um momento dramático, uma peça de teatro. Vai esta mulher ao sepulcro e encontra, com as outras mulheres, a pedra rolada, e não sabem o que aconteceu.

A experiência do não-saber é uma experiência que acompanha a vida dos crentes, sempre, sempre. Muitas vezes nós não sabemos e achamos que a nossa ignorância é um obstáculo intransponível que nos separa absolutamente de Deus – ignorarmos, não sabermos como, não percebermos, não entendermos nada. E quando nós lemos as narrações pascais nós percebemos que a ignorância é um traço da própria fé. Temos de olhar para a nossa ignorância como um componente essencial da própria fé.

Porque, se soubermos tudo, não entendemos nada. E é, precisamente, este não saber que abre as portas a uma outra compreensão. Por isso, a ignorância, a dificuldade de entender, a incompreensibilidade que tantas vezes nos fere, para nós deve ser vista como o barro onde a fé se molda verdadeiramente.
As mulheres viram aquela pedra e não perceberam o que é que tinha acontecido. Sabiam que Jesus não estava ali, mas o que tinha acontecido não sabiam, não sabiam, não entendiam.

E foram dizer aos discípulos. Pedro e João vêm a correr.

É interessante que as primeiras testemunhas da Ressurreição são as mulheres, mas o testemunho das mulheres não tem valor no tribunal, não vale, não valia no tempo. E então, ao lado das mulheres tem de haver o testemunho dos discípulos. Mas é interessante que é o amor daquelas mulheres, que vão piedosamente levar, como uma ternura, os perfumes para perfumar a sepultura, é o amor daquelas mulheres que as torna as primeiras testemunhas da Ressurreição. O testemunho não vale juridicamente, mas vale para a estrada da fé que elas estão a percorrer. A Ressurreição não é uma verdade tutelada juridicamente, é tutelada existencialmente. E por isso, as mulheres são as primeiras videntes do mistério do Ressuscitado.

Aquilo que elas veem não entendem, não entendem, e vão chamar dois homens: Pedro e João. O testemunho de um só também não vale, e por isso vêm dois varões, a correr, para testemunhar. E é interessante que João que é mais novo, corre mais depressa do que Pedro, e chega, fica de fora. Isto é, ele sabe que Pedro deve ser o primeiro, que Pedro é aquele mandatado por Jesus para selar a fé dos cristãos, para dar força, dar unidade à fé dos cristãos.

À beira da Ressurreição cada um de nós percebe alguma coisa, e sente alguma coisa. Mas é Pedro, a verificação de Pedro, que vai dar a confirmação necessária ao mistério da própria fé. Por isso, também hoje, a fé de Pedro continua a ser a rocha onde a nossa fé também se segura, mesmo que a gente corra primeiro e se adiante.

João foi, e de fora olhou para dentro. E encontrou os sinais que envolveram o corpo de Jesus, mas não entendeu nada.

Há muitas maneiras de olhar para o sepulcro, há muitas maneiras de olhar para o mistério da Ressurreição. A maneira das mulheres que viram a pedra rolada; a primeira forma de João que viu de fora, olhou de fora para dentro, e não entendeu nada; de-pois chegou Pedro, e Pedro entrou no sepulcro. E é, no fundo, isto que Pedro nos ensina: nós temos de mergulhar na morte de Jesus. Nós só entenderemos o mistério da Ressurreição se entendermos, se entrarmos no mistério da morte, no mistério da Paixão do Senhor.

Que morte foi aquela? Qual é o sentido daquela Paixão? Porque é que Jesus morreu? Porque é que Ele deu a sua vida? Só entrando, só meditando, só aprofundando o mistério, o lugar da morte se sente os primeiros sinais, espantosos, desta verdade de vida.

E Pedro vai, e começa a olhar, a encontrar os sinais, que são tão importantes para esta espécie de interpretação do luto, interpretação da ausência. Ele não está aqui, mas deixou os Seus sinais. E os sinais que Ele deixou são como uma espécie de trampolim para atirarmos o nosso coração para mais longe, para abrirmos os nossos olhos de uma outra forma, para tatearmos na ausência o mistério de uma fantástica presença.

E depois vem João, o discípulo amado, que é o símbolo do crente. E ele acompanha o trabalho de Pedro. E há esta coisa espantosa: ele também entra no sepulcro. E ele vê e acredita.

E, no fundo, o que é que a Ressurreição nos pede? Pede-nos estes dois verbos: ver e acreditar. Nós somos chamados a ver, a ver que um sepulcro foi vazio, ver a ausência de Jesus. Jesus foi-nos tirado por aquela morte mas foi-nos dado pela vida que Deus acendeu Nele, de uma forma absolutamente inédita, absolutamente nova. João viu e acreditou.

E aqui começa a história do Cristianismo, na fé que naquele sepulcro vazio nasceu, como uma primavera que irrompeu naquele jardim. Uma primavera que não é apenas a da natureza, mas é a primavera da história, é a primavera do mundo. Tudo começa naquele sepulcro vazio.

Queridos irmãs e irmãos

Quando olhamos para o mundo, para a vida, para a história, muitas vezes ela se parece a um sepulcro vazio. Estão os sinais mas Ele não está.

S. João diz, no princípio do seu Evangelho: “A Deus nunca ninguém o viu.” Nós não encontramos Jesus em lado nenhum. Vamos a correr e é o Seu silêncio aquilo que tateamos. Encontramos as marcas, encontramos os sinais, mas o nosso coração é chamado a interpretar a ausência como um mistério de presença.

E, naquele silêncio, que é o silêncio do mundo ainda, nós somos chamados a tatear o primeiro dos mistérios, e aquele que dá fundamento a todos os outros, que é o mistério da Ressurreição do Senhor. Ele está vivo, Ele está vivo. Mesmo se não O sentimos, mesmo se não O vemos, mesmo se não nos aparece na curva da estrada, nós sabemos que Ele está vivo no meio de nós. E é essa vida que torna tudo diferente, torna tudo diferente.

Para nós, a manhã de Páscoa é o primeiro dia do mundo, é a primeira manhã do mundo. E a Igreja toda, estes dois mil anos de Cristianismo, acontecem numa manhã. Nós não somos o crepúsculo, nós não somos os pós-cristãos, nós não somos os que vivem numa sociedade secularizada, nós não somos os cristãos agora perseguidos. Nós somos a manhã, somos a primeira manhã. A nossa vida inteira cabe na primeira manhã de Páscoa. Ainda é manhã e cada um de nós está a correr em direção ao sepulcro. É esta a história da nossa fé.

E se levamos dúvidas, se levamos interrogações, se levamos respostas por encontrar é normal. Maria Madalena, Pedro e João, levaram no seu coração a grande expectativa de Deus. E a fé é a grande expectativa de Deus, a grande espera pela revelação de Deus.

Queridos irmãs e irmãos

Aleluia. Como dirá o autor da Carta aos Colossenses: “Nós morremos, e a nossa vida está escondida com Cristo em Deus”, essa vida nova, que agora se vai revelar num tempo novo, marcado por este acontecimento inamovível da história que é a Ressurreição de Cristo.

Hoje, em muitos lugares do mundo, há mulheres e homens a derramar o seu sangue, que oferecem o seu sangue, que são perseguidos por esta verdade. Sejamos dignos desta verdade, sejamos dignos desta palavra “Aleluia”, que de nenhuma maneira é uma palavra banal, que não é uma palavra das nossas línguas, mas é uma palavra recebida.

A grande palavra humana: “Aleluia!” Aquela certeza que o alto se fez baixo. E que, tomando, abraçando o rés da terra, de novo se elevou até Deus.

Aleluia.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor

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Março

height=”10″][vc_toggle title=”2015/03/29 – O grande abraço de Deus” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

A escritora Marguerite Yourcenar conta que um amigo dela, que tinha sido combatente, soldado na Guerra de Indochina, uma vez lhe tinha dito: “Se Jesus tivesse morrido fuzilado em vez de ter morrido crucificado, eu acreditaria Nele.”

E ela escreve um texto a contar esta narração que hoje nós proclamamos, a grande narração da Paixão, para mostrar como nós somos chamados a ver para lá das aparências, para lá das formas, e a descobrir sempre a atualidade desta história.

Jesus morreu crucificado, mas também morreu fuzilado, mas também morreu num canto de estrada, mas também morreu num pelotão de fuzilamento, mas também morreu na cadeira elétrica, mas também morreu na cama de um hospital, mas também morreu com cancro, morreu com sida, também morreu abandonado, morreu a morte de todas as vitimas da história.

Porque, se há uma palavra que define a grande narrativa da Paixão, essa palavra é: solidariedade. Jesus morre de forma solidária com a nossa dor, com a nossa humanidade, com a nossa própria morte. Não é por acaso que a última palavra que Jesus diz é este grito, que é uma palavra de um dos salmos do Antigo Testamento: “ “Eloí, Eloí, lemá sabactáni?”, que quer dizer: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” Ou, como traduzem alguns: “Meu Deus, meu Deus, a que me abandonaste?”

Parece um paroxismo, uma contradição total: como é que o Filho de Deus, como é que o Messias de Deus, como é que Este que é a expressão do próprio Deus, pode viver o abandono de Deus? Mas aí percebemos que, de facto, tudo na vida de Jesus acontece para que possamos reconhecer, na Sua humanidade vulnerável, ferida, oprimida, esmagada pela dor, pela traição, afogada naquelas lágrimas e naquele silêncio, torturada por este sistema judiciário que fez tudo para o eliminar da forma mais tortuosa, que Jesus viveu cada instante da Sua vida em solidariedade com a nossa vida, abraçado à nossa vida.
Por isso, não há nenhuma dor humana, nenhuma, que não tenha expressão nas dores de Cristo crucificado. Não há nenhuma solidão humana, não há nenhum silêncio, não há nenhuma experiência de abandono que não possa ser aproximada do silêncio e do abandono com que Jesus morreu. E por isso, estes braços da cruz que Jesus abre são o grande abraço de Deus à nossa humanidade.

Sintamo-nos, por isso, queridos irmãs e irmãos, a começar esta semana maior, esta Semana Santa que é uma semana em que vamos dia a dia reviver os passos desta grande, infinita narração, que hoje proclamamos. Que esta semana seja vivida para nós numa intimidade espiritual com a pessoa de Jesus, tendo a capacidade de perfurar as aparências, de ir além daquilo que é a cultura, a história e os símbolos de cada tempo. Mas sentindo, sentindo no fundo do nosso coração, que Ele está connosco, que Ele está connosco. A Paixão de Cristo é a paixão do homem e a nossa paixão está expressa na Paixão do Senhor. Ele viveu-a por nós, para nós, em vez de nós.

Uma última palavra: aquilo que emerge no nosso coração quando proclamamos esta história, que resume a grande história pascal, a grande questão é o que fazer com esta história? Cada um de nós, que está aqui presente, é herdeiro desta história, tenha um ano ou noventa. Cada um de nós é herdeiro desta história. Esta história é nossa. O que fazer com esta história? O que fazer com esta narrativa que recebemos de Jesus? Como é que olhamos para a Cruz e sentimos que esta história nos funda, esta história nos edifica, esta história é a raiz da nossa própria história? E isso é também aquilo a que somos chamados, de novo, nesta Páscoa de 2015, a celebrar, a viver, a rezar na esperança e no silêncio, fazendo nossa a vida do próprio Senhor, a Sua vida e a Sua morte.

“Eloí, Eloí, lemá sabactáni?”

Meu Deus, meu Deus, a que me abandonaste? Nós não temos uma resposta. O que sabemos é que, sempre que nós dissermos esta oração, estamos sustentados, amparados pelo Seu abraço.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo de Ramos

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/03/28 – Retiro aberto” open=”false”]Um retiro aberto em tempo da quaresma vai ser orientado pelo Pe. José Tolentino Mendonça, no dia 28 de março, das 10h às 17h, nas Monjas Dominicanas, no Convento de Santa Maria no Lumiar, junto à Praça Rainha Dona Filipa. A organização é da Comunidade da Capela do Rato. O retiro é de silêncio. Cada pessoa trará o seu almoço. As inscrições e o pagamento da inscrição poderão ser feitos no final da missa de domingo, na Capela.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/03/28 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/03/26 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/03/25 – Mulheres, Igreja e Família” open=”false”]Em colaboração com o movimento «Nós somos Igreja», a Comunidade da Capela do Rato realiza uma conferência debate sobre o tema «Mulheres, Igreja e Família», com a participação de Anália Torres e de Maria do Rosário Carneiro, moderada por António Marujo, no dia 25 de Março, às 21h, na Capela do Rato.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/03/22 – “Senhor, nós queremos ver Jesus“” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

É muito curioso o início deste passo do Evangelho de S. João, que hoje proclamamos. Há uns gregos que estão por ali, de visita a Jerusalém, peregrinos que ouviram falar de Jesus e tinham curiosidade por Ele. E foram falar com dois discípulos, que pelo nome percebemos que também teriam uma linhagem grega, eram dessa etnia: Filipe e André, nomes clarissimamente gregos. Foram ter com eles, que eram o seu contacto, e disseram esta coisa espantosa: ”Nós queríamos ver Jesus.” E um fala com o outro e vão ambos ter com Jesus e dizer: “Olha Senhor, há aqui gente que te quer ver.”

A questão que aqui se coloca, não só a quem pela primeira vez se abeira de Jesus, mas a nós que nos sentimos perto Dele, que sentimos que Ele é a referência central das nossas vidas, a questão que se coloca é: o que é ver Jesus? O que é ver Jesus?

Porque, olhar para Jesus, ouvir o Seu nome, repetir a Sua palavra, sentir que há uma proximidade, uma comunhão, isso cada um de nós, à sua maneira, ao longo do tempo vai experimentando de formas diversas. Mas, o que é ver Jesus? E será que eu já vi Jesus? Será que eu já despi as cascas, já deixei para trás o ruído, já fiz cair aquilo que são os pretextos, aquilo que são os arredores do rosto, e já olhei, olhos nos olhos, para Jesus? Será que eu já O vi verdadeiramente? No sentido de que eu já compreendi o Seu caminho, já compreendi a loucura e o escândalo da Sua Cruz? Será que eu já olho para a Cruz de uma forma completamente clara? No sentido de perceber a natureza do Seu gesto, a dimensão e as implicações do Seu gesto na minha vida?

“Senhor, nós queremos ver Jesus.” E se calhar, no nosso coração, de uma forma ou de outra, este desejo está muito presente, nós queremos ver Jesus. E é esse desejo que explica que, domingo a domingo, nos encontremos nesta circunstância, na cena litúrgica, para ver, tentar palpar o Seu rosto, tentar ir além das evidências, desterrar essa costura.

“Senhor, nós queremos ver Jesus.” Talvez esta seja a prece mais persistente, este desejo que não se apaga, esta inquietação por ver o Seu rosto. Talvez esta inquietação seja a nossa maior prece, a nossa única prece. Senhor, nós queremos ver o Seu rosto. E Jesus mostra-nos o Seu rosto.

Este caminho quaresmal que estamos a fazer, outra coisa não é do que uma aproximação do nosso rosto ao rosto de Jesus. Para olhá-Lo de perto, para vê-lo no detalhe, para perceber como Ele é semelhante e diferente do nosso. Para perceber como do Seu rosto irradia uma luz que torna o nosso rosto escuro e mal iluminado num rosto luminoso, transparente. A Quaresma outra coisa não é que nos avizinharmos, radicalmente, de Jesus. Para viver a Páscoa, que é o momento em que o Seu rosto se revela na Sua plenitude, na Sua inteireza, nós possamos acompanhá-Lo, vendo-o verdadeiramente. Não apenas as coisas a acontecerem, mas nós a olharmos para Jesus.

Queridos irmãs e irmãos: uma das críticas que outras Igrejas cristãs fazem aos católicos é que nos dispersamos muito. E às vezes essa crítica colhe, é verdadeira. Que nos dispersamos nos símbolos, nos ritos, nas imagens, nos santos, nos papas. Andamos um bocadinho dispersos e distraídos e ocupados com coisas que são de Deus, mas que não são o essencial. E perdemos de vista a centralidade crística que a nossa vida deve ter. Perdemos de vista este centro que nos deve atrair radicalmente com todos os traços da nossa história. Que é nos colocarmos, olhos nos olhos, com a figura de Jesus e com a pessoa do crucificado. Por isso, é também importante purificarmo-nos de uma religiosidade dispersiva. Que nos acorrenta a isto, nos faz acender velinhas àquilo e nos distancia da grande lição do Crucificado. Que é sempre nova, tem ressonâncias sempre atuais no nosso coração.

A palavra espantosa que Jesus hoje diz no Evangelho é uma palavra que nós nunca acabaremos de meditar e de colher o seu significado profundo: “Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a Mim.” E diz o evangelista S. João que Jesus falava da forma como havia de morrer. Claramente, quando Ele for levantado da Cruz, atrairá todos a Ele.

É interessante o verbo que Jesus utiliza: o verbo atrair. Porque o verbo atrair é um verbo de uma grande ambiguidade de sentidos, de uma grande abertura semântica. Atrair é uma coisa que nós ligamos ao desejo, ao erotismo, ao coração, à beleza, não tanto à razão. Às vezes sentimo-nos atraídos pelo que vemos, sentimo-nos colados, sentimos que há coisas no nosso coração, há desejos, há expectativas no nosso coração que, de repente, estão ali presentes e sentimo-nos puxados, puxados para ali. Então, este verbo – “Quando Eu for levantado da terra atrairei todos a mim” – quer dizer que a nossa relação com Jesus não é apenas uma relação racional, não é apenas esta compreensão que a grande ortodoxia nos faz dizer. Que Cristo é o Senhor, que Cristo é o Deus connosco, que Cristo é o Filho de Deus. Essas verdades do dogma sustentam a nossa fé. Mas não é apenas a arquitetura racional dos dogmas que nós somos chamados a viver na relação com Jesus.

Nós somos chamados a viver uma relação para cá e para lá da própria racionalidade. Uma relação que é afetiva com o próprio Jesus. Sentindo que Ele nos emociona, que Ele nos toca, que Ele é também o inexplicado de Deus que vem ao nosso encontro. Que Ele, sem nós podermos explicar como, sem nós podermos dizer porquê, Ele realiza tudo, mas tudo o que nós queremos da vida, que Nele nós vimos tudo aquilo que sonhamos.

É aquele poema tão belo da Sophia de Mello Breyner: “Vimos o lume aceso nos Seus olhos, e foi por o termos olhado que ficámos penetrados de força e de destino, Ele deu carne àquilo que sonhamos, e a nossa vida abriu-se iluminada pelas imagens de ouro que Ele viu.” E, de facto, é esta relação vital que nós precisamos de construir com a pessoa de Jesus. Isso não se faz sem abandono, sem silêncio, sem nos jogarmos – e a palavra é essa – sem nos jogarmos para os pés de Jesus. Sem nos atirarmos para os Seus pés. Se estamos com as nossas reservas mentais, as nossas seguranças, a manter o nosso campo, se queremos manter a respeitabilidade que cada um merece a si próprio, se cada um de nós quer manter apenas uma relação intelectual com a figura de Jesus, também é possível porque é uma figura absolutamente fascinante. Mas não é isso que nos é pedido. O que nos é pedido é que, por palavras, atiremos a nossa vida para os pés Dele, o que nos é pedido é que nos ajoelhemos em silêncio olhando para o Seu corpo, para o Seu rosto, para aquilo que, sem nenhuma palavra, apenas com o exemplo, Ele nos diz.

O importante é que cada um de nós se meta no meio na multidão, atrás Daquele que vai ser crucificado no Gólgota. O mais importante é que cada um de nós se sinta seu discípulo, discípula e que isso meta em perigo a nossa vida. Eu sou discípula, discípulo de um crucificado, de alguém que é um condenado. Mas é isso que me define.

Por isso, queridas irmãs e irmãos, a Páscoa que nós estamos perto de viver tem de ter uma intensidade na nossa vida. E é isso que nos transforma. O verbo que Jesus usa é um verbo poderoso – até pode parecer um bocado estranho, mas não: Jesus atrai-me, atrai-me no sentido que me enche de um amor, toca as cordas afetivas mais recônditas do meu ser. Faz-me estar com Ele, não tenho vontade de me distanciar, de me separar. E isso é um mistério da Cruz, é um mistério da Cruz. Sem esta dimensão que chamamos mística e cada cristão, cada cristã tem de viver, nós ainda estamos como os gregos que vieram ter com os discípulos a perguntar: “Senhor, faz-nos ver Jesus.”

Precisamos de mergulhar, mergulhar. E é desse mergulho que nos fala, de forma tão bela, a passagem do livro de Jeremias que hoje lemos. Ele diz: “Vai haver um momento em que…” A nossa fé é feita de muitas perguntas, de muito debate, de muita discussão, de muita coisa que não compreendemos, de muitas interrogações. E vai ser assim até ao fim, não tenhamos ilusões. Vai ser assim até ao fim. Porque nós somos incompletos, inacabados, nós somos entreabertos, nós não nos vamos realizar completamente aqui, nós vamos morrer com fome e com sede, nós vamos continuar a sentir o peso da nossa nudez. Isso é o que é o ser humano, esse é que é o enigma humano, isso é que nos torna a impressão digital do próprio Deus.

Mas uma coisa é certa: nós somos chamados a experimentar, a viver uma outra realidade. Como nos diz Jeremias, já ninguém tem de nos dizer: “Olha, vem aprender alguma coisa sobre Deus. Olha, vem estudar. Olha, vem ouvir falar sobre Deus.” Já não precisaremos de nada, porque todo o conhecimento de Deus estará inscrito no nosso coração. E isto é verdade, isto tem sido verdade na história da Igreja, na história dos crentes. Porque ao mesmo tempo precisamos de saber tudo e já sabemos tudo. Porque quando o Crucificado nos olha, o Seu olhar permanece em nós. Quando O Crucificado nos olha, o Seu olhar depois não nos abandona, ele continua impresso no nosso coração. E mesmo que nós depois nos sintamos em solidão, é uma solidão diferente, porque é uma solidão em que permanecem connosco os olhos de Jesus Cristo.

Pe. José Tolentino Mendonça, V Domingo da Quaresma

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/03/15 – A tudo Deus dá futuro” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Esta semana tivemos a grande alegria de celebrar dois anos de pontificado do Papa Francisco. Nesse dia, ele quis anunciar a toda a Igreja a convocação de um ano santo, que irá de dezembro deste ano de 2015 a novembro de 2016. E será um ano santo especial.

Os anos santos foram criados para assinalar, precisamente, a experiência do perdão e da misericórdia. Durante muito tempo os anos santos chamavam-se a perdonança porque é o grande tempo da reconciliação. E celebravam-se de 50 em 50 anos ou em momentos especiais. O século XX foi um século muito rico em anos santos. Este será, em pouco mais de 100 anos, o nono ano santo. Este ano santo será convocado sob o signo da misericórdia. É a primeira vez que vamos ter um ano santo para sentir a misericórdia.

De facto, uma cristã, um cristão são especialistas em misericórdia. Especialistas, não porque seja uma competência que nós tenhamos, mas especialistas porque todos somos uma consequência da misericórdia de Deus. Penso que uma mulher, um homem cristãos são chamados a entender a sua própria vida como uma consequência da ternura de Deus, da Sua misericórdia, que não cessa nunca.

Porque, como S. Paulo nos diz hoje neste passo da Carta aos Efésios: “Deus é um Pai rico em misericórdia.” E toda a nossa vida nós declinamos, nós aprendemos. Na prática, no significado desta imagem tão rica: Deus rico em misericórdia. Deus, que ama de tal maneira o mundo que lhe dá o seu próprio Filho, como nos lembra Jesus no Evangelho de João. Deus que não quer condenar o mundo, mas que quer que o mundo seja salvo pela misericórdia revelada em Jesus. Nesse sentido, precisamos, de facto, de ensopar a nossa vida da misericórdia de Deus. Fazer a própria experiência da misericórdia.
O tempo da Quaresma outra coisa não é que um tempo – mesmo na sua exigência, na sua tensão transformadora, no seu impulso de conversão – outra coisa não é que a possibilidade de saborearmos mais amplamente, mais autenticamente a misericórdia de Deus. Sintamo-nos, por isso, tocados por esta misericórdia. Sintamos que a graça de Deus tudo cura, tudo salva, tudo entende, tudo acolhe. A tudo Deus dá futuro; não há nada na nossa vida a que Deus não dê futuro. Porque o que é próprio da misericórdia é, exatamente, a reversibilidade. Nada é completamente irreversível, nada está perdido, ninguém é deixado para trás.

No livro das Crónicas nós meditamos numa etapa da vida do Povo de Deus. Uma etapa difícil, porque o Povo de Deus desviou-se do culto ao verdadeiro Deus, entregou o seu coração aos ídolos, esqueceu-se do Senhor e foi para o exílio. É interessante aquilo que o autor do livro das Crónicas diz: “Já não havia remédio.” Não parecia haver já remédio, Jerusalém foi destruída e o povo foi para o exílio. E o tempo de exílio é o tempo também para experimentar o desejo de Deus, a saudade de Deus.
Verdadeiramente, a ausência de Deus não existe, não existe. Mesmo quando nós falamos com ateus, com pessoas muito distantes, e que não se sentem tocadas pelo dom da fé, há ali como que uma nostalgia, como que uma saudade, como que uma abertura, como que uma disponibilidade. Porque essa marca, essa impressão digital de Deus está tatuada no coração do ser humano.

Deus é fiel ao ser humano. Deus é fiel. Mesmo quando nós não vemos como, não sabemos como, não conseguimos tratar a Deus por “tu”, Deus não deixa de ser este Pai rico em misericórdia que está diante de nós. Por isso, o tempo do exílio, o tempo do silêncio é também um tempo de saudade, de saudade de Deus.

A verdade é que a nossa cultura, em tão grande medida, em tantos parâmetros, parece uma cultura tão distante de Deus, que silencia tanto a procura de Deus. Ela não deixa de ser um lugar onde o ser humano, na aspereza da vida, experimenta o que é este desejo de Deus, esta saudade de Deus. Lembro-me de um filme de Manoel de Oliveira, O Convento: a dada altura há um diálogo, há uma personagem que vive um “mal de vivre”, uma grande inquietação interior, que não tem remédio, e a outra pergunta:

“- Mas o que é que tu tens? O que é que tu tens?

E ela dá esta resposta:

– Tenho saudades de Deus.”

A saudade de Deus quer dizer que o que responde às inquietações do nosso coração é uma medida alta, a medida do amor, a medida da ternura de Deus. E Deus surpreende-nos sempre. Deus surpreende-nos sempre.

Tantas vezes na história do Povo de Deus o amor de Deus, a Sua misericórdia foi uma grande surpresa. Por exemplo, o povo de Deus está no exílio, e quem é que o livra do exílio e reconstrói Jerusalém? Um imperador pagão: Siro, rei da Pérsia. E esta palavra das Crónicas é uma palavra que nos acorda, que nos sobressalta. Porque diz assim: “Deus inspirou a Siro, rei da Pérsia.”

– O quê? Então os pagãos também são inspirados por Deus?

– Sim, os pagãos são inspirados por Deus.

Isto obriga-nos a ler a história de outra maneira, a ler a vida de outra maneira. Porque às vezes olhamos o caminho de fé muito como um Benfica-Sporting. E não é bem assim, não é um clássico de rivais, de competidores. Mas, esta procura, mesmo na dúvida, mesmo na diferença irmana-nos profundamente.

Sintamo-nos convocados a ser testemunhas da misericórdia de Deus. Uns para os outros, sermos transmissores da misericórdia. É verdade que é tão mais fácil transmitirmos um juízo, uma crítica, e isso também há de ter o seu lugar, mas não nos esqueçamos da misericórdia, não nos esqueçamos da misericórdia. Porque também, como diz S. Paulo, a misericórdia triunfa do juízo. E, no fundo, a misericórdia é esta arte de Deus que não desiste, que sabe que é o amor que pode recompor o vaso quebrado, que sabe que é o amor que reconstrói a própria vida a cada momento. E por isso, Ele é o Pai rico em misericórdia.

Ainda recentemente o Papa usava uma imagem muito forte e muito comprometedora para nós cristãos. Ele dizia: “Há dois modos de pensar a Igreja, há dois tipos de evangelização. Um é pensar a Igreja como um lugar onde já estamos salvos e temos de fazer tudo para não nos perdermos. Mas centramo-nos nos que estão aqui, para não nos perdermos. E outro modelo de Igreja, que é o modelo que o Papa diz que Jesus pede que sejamos, é perguntar: e os que não estão aqui? E onde estão os que não estão aqui? E termos a capacidade de ir ao encontro. Ora, nós só podemos ir ao encontro dos outros com a misericórdia. Não é com o bastão da autoridade. É só com a ponte, essa ponte que vai direta ao coração que é a ponte da misericórdia. Por isso, nós somos chamados, neste tempo da Quaresma, a fazer a própria experiência da misericórdia de Deus.

Tantas vezes temos uma imagem de Deus que não é o Deus da misericórdia. No fundo de nós achamos que Deus nos vai tramar, no fundo de nós achamos que Deus não vai esquecer, no fundo de nós achamos que Deus é impiedoso e nos dará aquilo que nós merecemos. Ora, Deus não nos dá o que nós merecemos. A salvação não é mérito nosso, como nos lembra S. Paulo na Carta aos Efésios, nós somos salvos por graça. Deus é gratuidade, Deus é ternura, Deus é amor, e amor incondicional, Deus é misericórdia. Fazermos, cada um de nós, esta experiência da misericórdia de Deus e, depois, sermos capazes de refletir essa misericórdia na nossa vida, nos nossos gestos, na nossa maneira de estar, na nossa relação, arriscando levar a misericórdia, celebrar a misericórdia. Não nos esqueçamos da misericórdia.

Aquela oração tão bonita, tão forte, que nós rezamos hoje no Salmo – “Se eu me esquecer de ti Jerusalém, a minha língua fique presa, a minha mão deixe de funcionar. Que eu não consiga caminhar se não fizer de Jerusalém a maior das minhas alegrias.” – que essa jura seja de facto, pela misericórdia; que essa promessa, que nos empenha profundamente, seja em relação à misericórdia. Que eu não me esqueça de ti, misericórdia.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV da Quaresma

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/03/01 – A transfiguração é um reforço da confiança” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Deus colocou Abraão à prova.

Abraão é o pai dos crentes, é o primeiro dos crentes, é aquele que, inclusive para as três religiões monoteístas – o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo – é, verdadeiramente, o primeiro, o pai dos crentes.

Na história exemplar, na história paradigmática, de Abraão nós vemos, à maneira de um espelho, aquilo que é a experiência crente, a experiência de fé que todos somos chamados a viver.

Uma coisa é certa: não há fé sem prova, não há fé sem provação. Não há fé sem aquela situação dilemática em que Abraão se encontra, e em que, num momento ou outro da nossa vida, também nós nos encontraremos. Porque, o que é a fé? A própria palavra “fé”, fides, quer dizer confiança.

Mas que condições nós temos para confiar? Porque a confiança pode ser mais fácil ou mais difícil. Se, por exemplo, a mim me são dadas garantias visíveis, concretas, para confiar, o ato de confiar é um ato relativamente plausível, verosímil – é-me fácil confiar. Pensemos na história de Abraão, este homem já idoso, casado com uma mulher, Sara, que sofria, padecia de esterilidade. Não tinham filhos e é-lhe prometido um filho, e uma descendência e, de facto, ele vê isso acontecer: ele tem um filho. De maneira que, neste momento, para Abraão acreditar é relativamente simples porque ele vê na sua vida, olhando ele consegue interpretar, as marcas positivas de Deus no seu caminho.

Percebe que há uma aliança, há uma correspondência da confiança que ele tem em Deus, Deus também o recompensa. E porventura, nós, interpretando a nossa história, percebemos as marcas de Deus. Se calhar, para cada um de nós não é difícil acreditar, porque faz-nos sentido. Olhando nós vemos, nós encontramos o dedo de Deus, a marca de Deus em tantas coincidências, em tantas convergências, em tantos acontecimentos que de outra maneira não se explicariam na nossa vida, a não ser a partir da misericórdia de Deus, do amor de Deus por nós. Então, nós olhando para a nossa vida, é natural que a nossa resposta seja uma resposta de confiança e de fé.

Mas acreditar não é isso. Acreditar não é acreditar quando nós temos as seguranças. Acreditar é confiar quando nos é tirado o tapete. Isto é, acreditar pelo absurdo, através do absurdo e contra o absurdo. Porque a confiança é cada vez mais exigente, Deus vai pedindo cada vez mais nesta relação de confiança, e nós não confiamos em Deus pelas coisas que Deus nos dá, mas confiamos em Deus pelo próprio Deus e, nesse sentido, tudo o que Ele nos dá é relativo, ainda que Ele não nos desse coisa nenhuma, nós continuaríamos a acreditar Nele.

Para nós crentes, por exemplo, Santa Teresinha do Menino Jesus dizia isso: é muito fácil acreditarmos em Deus porque toda a nossa perspetiva de vida, aquém e post mortem, é uma vida em que recebemos tantos dons de Deus. Se eu penso que vou morrer e depois vou para o céu, de certa forma são tantas as garantias que me seguram neste caminho de fé, que eu vou como que embalado, sem nunca ter sido para mim um drama, sem nunca para mim ter sido um dilema, uma questão de vida ou de morte, eu ter acreditado em Deus.

Às vezes os não-crentes o que criticam aos crentes é a facilidade com que nós acreditamos. Para nós é fácil acreditar, está tudo enquadrado, está tudo sistematizado, de maneira que é quase um automatismo, é como se fosse um tique nós acreditarmos em Deus, é mais uma coisa que está entre todas aquelas que enquadram o nosso modo de viver.

Ora, a fé é também prova, é também provação. E a prova, no fundo, nasce desta questão: eu estou disponível para acreditar em Deus sem garantias? Eu estou disponível para acreditar em Deus indo para lá das garantias e relativizando-as completamente? É o caso que se pôs a Abraão. Abraão tinha aquele filho, Isaac, era o único filho e recebe esta proposta absolutamente absurda.

Deus diz: “Abraão, sacrifica-me o teu único filho.” Naquele momento, quando Abraão sobe o Monte Moriá para imolar o seu próprio filho. Nós podemos sentir o que era o coração de Abraão, o que é a fé de Abraão, quer dizer: ele não percebia nada, ele não compreendia nada, ele sabia que o que estava a fazer não tinha chão debaixo dos pés, mas continuou a subir aquela montanha, seguro unicamente pela Palavra de Deus e pela certeza que, de alguma maneira, uma maneira que ele não sabia, que ele não entendia, que ele não chegava lá, Deus havia de se manifestar de alguma maneira. E, com o coração todo colocado nessa louca esperança, como diz Kierkegaard comentando este texto do livro do Génesis, com o coração todo atirado para essa esperança que nada sustenta, Abraão subiu o Monte Moriá e ouviu as palavras do Anjo do Senhor: “Abraão! Não me sacrifiques o teu filho, não é isso que Eu quero, o que Eu quero é a tua fé, a tua fé, capaz de ir até ao ponto máximo.”

Queridos irmãs e irmãos:

Nós estamos em tempo da Quaresma e o tempo da Quaresma é um tempo para exercitar a fé, é um tempo muito prático, muito concreto. Porque nós dizemos que acreditamos em Deus, porquê? Porque estamos bem, porque nada nos dói, porque não temos grandes dilemas, porque não somos assaltados por grandes dúvidas, porque não somos ameaçados, não somos perseguidos, porque somos poupados, no fundo.

Nós acreditamos em Deus, porque somos poupados? É isso a nossa fé? Ora, como lembra S. Paulo, na Carta aos Romanos: “Deus não poupou o Seu próprio filho.” Isto é, a fé não é um casulo, não é uma capsula, não é eu sentir-me defendido. A fé, muitas vezes, é eu passar para o meio da luta, é eu, pelo contrário, sentir-me exposto, é eu, pelo contrário, sentir que o meu coração está em carne viva, que não tenho respostas, que não consigo, que não chego, mas é aí, no meio desse duelo que tantas vezes travamos connosco mesmos, com o mundo, com a existência, é aí que a fé se reforça, que a fé se constrói. Não como um caminho amparado por muletas, mas como um caminho trilhado na confiança de que Deus Se há de manifestar. Aquilo que Abraão respondeu ao filho Isaac, quando o filho lhe perguntou: “ Pai, nós vamos imolar ao Senhor, fazer um holocausto, mas onde é que está o animal?” Não havia animal, só havia o pai e o filho, “mas onde é que está o animal?” E Abraão responde ao filho: “No cimo do monte, Deus providenciará”.

E no fundo, queridos irmãs e irmãos, a fé é isto, é esta certeza que no cimo do monte, isto é, no fim de um caminho, cujo sentido nós só tateamos, só entrevemos, não conseguimos agarrar, no final desse caminho Deus providenciará, Deus proverá.

Nesse sentido, Abraão, de facto, é um exemplo de fé, de fé para todos nós, e uma fé que aceita a prova, uma fé que aceita a provação.

O caminho que estamos a fazer, um caminho ao encontro da Páscoa do Senhor, desta Páscoa 2015, mas da grande Páscoa do Senhor que é, no fundo, o grande encontro da nossa vida, é um encontro que pede muito de nós. Os discípulos começaram a história da sua relação com Jesus, começaram por muitas razões, começaram porque queriam o Messias, porque queriam um salvador, começaram porque estavam num período das suas vidas em que precisavam de uma grande causa, uma grande palavra, iam com Jesus porque também eles tinham ambições, também eles estavam à espera de uma recompensa, e quando perceberam que, no fundo, a grande lição de Jesus é a lição da Cruz, é esse paradoxo que a Cruz significa, toda a vida encerrada naquilo que uma cruz significa, e o abraçar a Cruz, eles tinham medo, e pensavam: “Mas nós vamos acompanhar este homem, numa empresa, numa aventura que a gente não sabe o fim? Ou percebe que tudo isto vai acabar mal, tudo isto não pode dar certo.”

E pensavam deixar Jesus, e é precisamente neste momento de dúvida, de dificuldade, de escândalo em relação à Cruz, que se dá o momento de transfiguração. E a transfiguração o que é? A transfiguração é um reforço da confiança. Os céus abrem-se e ouve-se a voz de Deus: “Este é o meu Filho muito amado, escutai-O. Isto não é uma palavra louca, é a minha palavra. Ele é o meu Filho, tenham confiança Nele.” E, no fundo, a transfiguração o que é? É uma prova que reforça a nossa confiança em Jesus.

Queridos irmãs e irmãos:

Nestes exercícios quaresmais, é fácil nós cairmos, é fácil nós termos feito os nossos propósitos de Quaresma, de caminho, e perante as dificuldades nós soçobramos, e desistimos, e achamos que não vale a pena, e conformamo-nos, no fundo, a uma vida, que é uma espiritualidade de sofá, uma espiritualidade completamente acomodada, que não nos dá luta.

É fácil nós deixarmos cair os braços, e é fácil nós olharmos para a Cruz como um acontecimento da vida de Jesus, não como um acontecimento da nossa vida, que serve de modelo para a nossa vida. Nesse sentido, esta festa da Transfiguração, que nos celebramos neste segundo domingo da Quaresma, é precisamente para reforçar a nossa confiança e dizer: Tu que calçaste as sandálias de caminhante, tu que tomaste o bordão dos peregrinos, tu que olhaste para a tua vida não com desânimo mas com esperança, tu que te prometes a uma coisa maior do que a vida comezinha e banal e que já te é tão fácil, tu que insistes em renovar, tu que acreditas que é preciso renascer, tu que aceitaste a palavra de conversão na tua vida, tu que ouviste na Quarta Feira de Cinzas “converte-te e acredita no Evangelho”, tu acredita porque é o próprio Deus que diz: “Esta é a voz do meu filho muito amado, escuta-O”.

Nesse sentido, esta festa da Transfiguração é, para toda a Igreja, um reforço de que vale a pena caminhar, de que neste segundo domingo da Quaresma nós estamos fortalecidos, estamos chamados, comprometidos a fazer um caminho, no fundo, de fidelidade a Jesus, que nos abra a uma sincera, a uma autêntica celebração da Páscoa.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II da Quaresma

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[/vc_toggle] height=”30″]

Fevereiro

height=”10″][vc_toggle title=”2015/02/26 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/02/22 – A Quaresma é um tempo de mobilização interior” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Todos os grandes acontecimentos da nossa vida requerem uma preparação. E quanto mais significativos eles são, mais uma preparação, um caminho eles pedem de nós. É verdade que o inesperado, a surpresa, também têm o seu lugar, mas se queremos tomar uma grande decisão, celebrar uma grande festa, realizar um grande encontro, o nosso coração e a nossa vida têm de preparar-se para isso. Preparação é a palavra deste arranque da Quaresma, porque Quaresma quer dizer isso. Quer dizer preparação para a Páscoa, para a grande passagem, para a grande travessia. Quaresma são estes 40 dias que são memória dos 40 dias que Jesus passou no deserto, segundo a narração evangélica que ouvimos. Mas também dos 40 anos que o Povo de Deus fez de caminho, de preparação, de reencontro consigo mesmo, até entrar na Terra Prometida.

Nós olhamos para a natureza à nossa volta, e sentimos que alguma coisa está a acontecer: as árvores estão mais verdes, sentimos que primeiro surgiram as flores amarelas, agora surgem as flores brancas, depois vão surgir as flores de todas as cores, e daqui a pouco o tempo já está a mudar. Sentimos que há uma temperatura diferente, mesmo se faz frio. Sentimos que a própria natureza se prepara para uma estação diferente. E esta preparação não pode ser apenas exterior a nós, não pode ser apenas um impulso, um anelo, um desejo que a natureza sente. A nossa vida também precisa de primavera, precisamos acordar o fogo debaixo da cinza, precisamos, também, depois do inverno, sentir que a nossa vida acorda para aquilo que é essencial. Porque, como dizia Tchekhov num dos seus contos, “O coração humano é um mar gelado, é um oceano gelado.” E pode acontecer que o inverno se prolongue na nossa vida. Numa indecisão, num deixar andar, numa incapacidade, no fundo, de descobrir e de habitar a própria vida, pode acontecer que a primavera, verdadeiramente, nunca chega, nunca rebenta em nós.
Nessa preparação para o grande acontecimento pascal, para esse levantamento, esse colocar-se de pé, essa espécie de insurreição espiritual que a Páscoa do Senhor prefigura na nossa própria vida, a Páscoa pode-nos encontrar perfeitamente desmobilizados.

Nesse sentido, a Quaresma é um tempo de mobilização interior, de uma forma muito simples porque tem de ser, porque também é de uma forma muito objetiva, de uma forma muito concreta que eu tenho de me por aberto àquilo que Deus pode fazer em mim. E, neste tempo da Quaresma, nós somos chamados, de facto, a calçar as sapatilhas, a nos colocar à estrada, a tomarmos a trouxa do peregrino, a sentirmos que nos temos de dar ao trabalho. A espiritualidade não é uma zona de conforto, é um caminho, é o desafio, é o desafio a uma estrada que nós temos de abraçar.

Os três meios que nos são dados, que nos são apontados, são meios muito simples, mas como dizia o Papa Francisco na sua mensagem, “São meios que formam o nosso coração.” E nós precisamos disso, formar o nosso coração na caridade, no amor, na esperança, na fé.

Por isso, o primeiro meio é a oração. Temos de nos tornar mulheres e homens para quem a oração é relevante, existe, cabe no nosso horário, está no nosso dia a dia uma oração que seja pessoal e também comunitária. Precisamos intensificar a oração. E intensificar a oração quer dizer apenas isto: intensificar a relação com Deus.

Porque a oração é sobretudo isso: relação. Não é cumprir um rito, não é dizer muitas palavras, mas é uma coisa de coração a coração, é sentir que a nossa vida, em cada dia, está diante do olhar de Deus, é sentir que é no diálogo com esse olhar que a nossa vida se constrói, que a nossa vida, dia a dia, responde às suas próprias expectativas.

Nesse sentido, somos chamados a um esforço de rezar mais, até porque a grande transformação da nossa vida é um dom de Deus, não é apenas um exercício de autocorreção, mas é, sobretudo, acolher o dom de Deus que nos transforma. Nós somos transformados pelo Espírito, não apenas pela nossa vontade. Somos transformados pelo Espírito e por isso é que aquilo que a nós nos parece impossível, Deus pode tornar possível em nós.

Aquelas transformações, que nós não vemos como podem acontecer, Deus permite que elas se realizem em nós. Mas precisamos abrir o nosso coração a essa chegada de Deus, a essa vinda de Deus à nossa vida, através da oração. Tal como o ferro só se dobra a altas temperaturas, e fica como que mole, nós também só atingimos graus de amor, de esperança, de fé nas altas temperaturas da oração – que não tem de ser uma oração especial, que eu não sei fazer, não.

Deus está perto da nossa boca e do nosso coração. Cada um de nós há de encontrar a sua própria oração, o seu próprio caminho, o seu modo de rezar, o seu modo de relacionar-se com Deus, de dizer: “Senhor, eu estou aqui. Senhor, vem. Senhor ajuda-me.” E não dizer mais nada. Neste silêncio, neste eu olho para Deus, Deus olha para mim, crio o espaço para que a comunhão, a comunicação, a relação, verdadeiramente aconteçam. Por isso, que este tempo de Quaresma seja um tempo para descobrir o vigor da oração, a novidade da oração nas nossas vidas.

Depois nós temos o caminho do jejum. E o jejum é um caminho de privação. Nós temos, por vezes, um sentido crítico muito apurado em relação a todos, exceto em relação a nós próprios. Somos capazes de ver o argueiro, o pequeno mato, no olho do nosso irmão, mas não vemos a trave que esconde a nossa própria vista. Nesse sentido, o jejum desenvolve o sentido crítico, porque diz assim: “Eu até tenho direito a isto mas não vou fazer. Ah, mas apetece-me.” Mas eu retraio-me perante aquilo que me apetece, para que o meu eu também não se torne tirânico, não seja caprichoso mas possa seguir uma linha verdadeiramente fundamental. E isto em relação à comida, às coisas que nos dão prazer, mas em relação a tantas outras dimensões da nossa vida, que nós podemos encarar assim, desde a nossa forma de comunicar com os outros, a nossa língua, a facilidade com que falamos dos outros, mas também a dispersão do nosso tempo, o consumismo. Que, de facto, o jejum introduza dinâmicas de sobriedade, que é o mais importante na nossa vida, dinâmicas de frugalidade. Aprender e treinar-se a viver do essencial, é isso que o jejum significa. Neste tempo da Quaresma, todas as sextas-feiras nós somos chamados a fazer abstinência, a não comer carne. Isso também tem um sentido espiritual, porque a carne dos outros seres que nós comemos é derramar sangue, é dizer: “A minha vida é mais importante que as outras vidas.” E pronto, essa é uma decisão. Deus colocou-nos no centro da criação, mas é preciso também temperar a nossa voracidade e o modo mecânico como nós achamos que temos direito a tudo. Por isso, o não comer carne às sextas-feiras é fazer-nos pensar, é dizer: “Eu não quero derramar sangue, eu se calhar posso viver uma vida mais simples, uma vida mais pobre. Posso viver uma vida mais pobre e isso em mim abre espaço para uma riqueza espiritual muito maior.” Por isso era tão importante que, de facto, também a nossa dieta expressasse o tempo da Quaresma que estamos a viver.
E por fim a esmola. A esmola é o encontro com o irmão, nós sermos capazes da condivisão, sermos capazes da partilha. Da partilha do nosso tempo, da nossa vida, porque o verdadeiro dar é dar-se, é dar-se, não é apenas dar uma coisa, é dar-se, estar disponível, estar aberto, ir ao encontro dos outros, e sobretudo do outro que me é mais difícil, que me custa mais. Mas ir ao encontro e estabelecer formas de relação, e também efetuar isso numa partilha material, numa partilha de dons, para que não fique só uma coisa abstrata mas que, de facto, toque todas as dimensões da nossa vida.

Queridos irmãos,

Neste tempo da Quaresma era muito importante que cada um de nós tivesse o seu programa de vida, e em cada uma destas dimensões – oração, jejum, esmola – nós tivéssemos um ponto de esforço, um ponto de caminho, para podermos ir trabalhando. Um ponto que seja pequeno, porque não são grandes coisas que nós podemos fazer e, às vezes, o idealizar é uma espécie de fuga da própria realidade. Uma coisa pequena, que esteja ao nosso alcance, que nós sintamos que conseguimos, realmente, fazer. Claro, com esforço, com decisão, com combate, mas que está de facto ao nosso alcance. E que seja pessoal, não vamos fazer planos para os outros fazerem, para todos fazerem na nossa casa, mas vamos, com muita humildade, traçar um plano de vida, nesta Quaresma, que seja de facto só para nós, mesmo que também outros ao nosso lado também estejam a fazer uma coisa semelhante, mas que nos envolva de facto a nós. Porque, com muita facilidade, achamos que é o outro que precisa, e a Quaresma ajuda-nos a perceber que somos nós que precisamos de revitalizar, de revitalizar. Porque, se calhar, nem nos damos conta como o inverno tomou conta do nosso coração e precisamos desta primavera, que a Páscoa de Jesus acorda na nossa vida.

Jesus preparou-se antes da sua missão. Esteve aqueles 40 dias, e esses 40 dias não foram um passeio. Nós não pensamos: “Ah, vou tomar esta regra de vida, fazer isto, tentar fazer isto, aquilo, e aquilo.” e depois vamos mesmo conseguir. Não, nós dizemos aquilo e depois vamos para a luta, caindo, levantando, esmorrando, tentando, não conseguindo, conseguindo. Jesus esteve neste debate com o Demónio, sendo tentado, mas “Os anjos serviam-no”.

Que nós sintamos que Deus vem em socorro da nossa fragilidade, que Deus vem em socorro da nossa vida vulnerável, e que Ele é capaz de dar consistência espiritual à vida que cada um de nós vive. A Palavra do Senhor é uma palavra forte, exigente, comprometedora, mas também é uma palavra libertadora. Também nós precisamos de liberdade, de libertação. Tanta coisa nos escraviza. Estamos prisioneiros, capturados por tanto egoísmo, tanto individualismo, tanta condescendência, tanta facilidade, tanta autocomiseração. Estamos capturados por tanta coisa que temos de sacudir. A Palavra de Jesus é uma palavra que nos liberta, que nos liberta. Quando Ele diz: “Cumpriu-se o tempo,” e “Está próximo o Reino de Deus, arrependei-vos e acreditai no Evangelho” esta é uma palavra para fazer mulheres e homens novos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo I da Quaresma

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/02/18 – O tempo da Quaresma é um tempo prático” open=”false”]Queridos irmãos,

Começamos hoje o tempo da Quaresma. São 40 dias que representam uma oportunidade especial, de preparação para a grande celebração, para o grande acontecimento da Páscoa de Jesus, nas nossas vidas. São 40 dias que recordam os 40 anos que o povo de Deus fez na travessia do deserto até entrar na Terra Prometida, e representam também esses 40 dias em que o próprio Jesus se preparou no deserto para a Sua vida pública. Isso quer dizer: os grandes encontros de Deus na nossa vida são encontros preparados. É claro: tantas vezes encontramos Deus de surpresa, e isso é muito bom. Mas encontramos Deus, também, por um ato de preparação, por uma abertura sincera de coração, por uma conversão interior, que nos aproxima de Deus, que nos abre à Sua presença e nos faz viver de uma forma mais sincera, mais objetiva, o “sim” que, como discípulos do Senhor, nós dizemos a Jesus.

Há uma frase de Kafka, que nos impressiona muito e descreve, em grande medida, o que é a nossa cultura contemporânea, o que é a nossa experiência, de mulheres e de homens, que atravessam este tempo: “Existe a meta, mas não há um caminho.” Existe a meta. Nós somos cristãos, batizados há sete ou há setenta anos, sabemos que há uma meta, olhamos para Jesus, ouvimos a Sua Palavra dominicalmente ou diariamente, alimentamo-nos dela e sabemos que sim, há uma meta, um ideal, sabemos aquilo a que somos chamados. E, contudo, como Kafka, também dizemos: “Mas não vemos um caminho. Não há um caminho.” E o que acontece quando há uma meta mas não há um caminho? Acontece um divórcio muito grande, entre o ideal e o real, entre a teoria e a prática, entre o que sabemos ser a vontade de Deus e, depois, a forma quotidiana, concreta, como vivemos ou deixamos de viver segundo essa vontade de Deus.

O tempo da Quaresma é um tempo prático, não é um tempo teórico. A Igreja, nestes 40 dias, entra para retiro, entra para exercícios, entra para manobras, para reconstrução, entra para conversão. E é assim que nos devemos sentir nestes 40 dias. Há uma expressão, um entendimento da vida que hoje está um bocado fora de moda, mas que ouvíamos em parte atravessando as leituras da Palavra de Deus, que hoje lemos, e que é o combate espiritual. Isto é: não há cristão sem combate espiritual. A fé é um dom, claro, mas também é um trabalho, uma fadiga, um compromisso, também é uma conquista, também é uma luta. E a divisão entre o bem e o mal, entre Deus e a sombra, não acontece apenas no mundo, acontece antes de tudo dentro de nós. Por isso mesmo, um cristão vive em luta, vive num desassossego, vive numa inquietação, porque sabe que é dentro de si que a verdade do reino começa por se construir. Não é fora de nós, é dentro de nós. Nesse sentido, toda a Palavra de Jesus é muito clara. Ele dizia tantas vezes: “Não é o que entra de fora do homem que o atinge, mas é do interior do homem que sai todo o mal.” Há no nosso interior tantas contradições, tantos paradoxos, tanta indecisão, tanta sombra que nós temos de olhar. Nós cristãos não temos nenhuma superioridade moral em relação aos outros homens e mulheres, nós somos pecadores. Nós estamos aqui porque somos pecadores chamados à santidade, tocados, feridos pela santidade de Deus, iluminados pela santidade de Deus, mas na vulnerabilidade, na fragilidade das nossas histórias.

Aquilo que diz S. Paulo, na Carta aos Romanos, é tantas vezes o que sentimos: “Quem me livrará deste corpo de morte? Que não faço o bem que quero, mas faço o mal que odeio.” Tantas vezes a nossa vida é assim, não fazemos o bem, que sabemos que é bem, mas fazemos o mal, as coisas mesquinhas, vivemos uma vida banal, recebemos tesouros que não pomos a render, adiamos, continuamente, a nossa vida para depois, achamos que é para o outro, que não é para nós. E este tempo da Quaresma é um tempo que pede de nós um cristianismo sério, uma adesão profunda de coração. Exige de nós este combate, esta luta, porque a conversão não é apenas uma palavra bonita, a conversão é um osso duro de roer. A conversão é uma fadiga, é um trabalho que precisamos de abraçar, sabendo que não há outra maneira de expormos a nossa vida no caminho pascal.

A Igreja, neste tempo santo da Quaresma, pede-nos três caminhos ascéticos, três caminhos de subida.
O primeiro deles é a oração. Um cristão, uma cristã, são mulheres e homens de oração, e nós precisamos de redescobrir a oração na nossa vida. A coisa mais urgente que cada um de nós tem para descobrir é o lugar da oração, o sentido da oração, a experiência de oração nas nossas vidas. Na mensagem do Santo Padre para esta Quaresma, o Papa Francisco diz: “Cristãos, deixem-se servir por Cristo, deixem-se tocar por Cristo.” A oração é isso: expor a minha vida a Cristo, dar tempo a Cristo, dar lugar a Cristo. Oração é estabelecer uma relação, não é apenas tratar Deus como uma ideia, como alguém distante, como um princípio filosófico, que nós até aceitamos. Não, na oração nós tratamos a Deus por “tu” ou por “vós”, mas tratamos a Deus numa segunda pessoa. Porquê? Porque Ele é um interlocutor da nossa vida, mantemos com Ele um diálogo vivo e esse diálogo anima-nos. Nós expomos a nossa vida, rezamo-nos, não apenas rezamos, nós rezamo-nos e Deus acolhe-nos, Deus ouve-nos. Há quanto tempo não falamos com Deus? – é a pergunta. Há quanto tempo não O ouvimos? Há quanto tempo não lhe damos um espaço real, um espaço concreto nas nossas vidas? Este tempo da Quaresma é um desafio muito grande à nossa oração pessoal, à nossa oração familiar, à nossa oração comunitária. Precisamos redescobrir a oração nas nossas vidas, porque às vezes a nossa vida é seca, seca. Cheia de tantas coisas, mas, no fundo, vazia, deste fio condutor que a oração representa nas nossas vidas. Por isso, que a Quaresma seja para nós, um grande laboratório de oração, e que no dia a dia nós privilegiemos também um tempo de oração.

“- Ah, mas eu gostava de rezar melhor.”
“- Começa por rezar, começa por rezar.”
“- O que é a bela oração?”
“- Não. Reza muito, reza muito. Porque no meio das coisas que a gente diz ou não diz, Deus é que escolhe, Deus é que escolhe a parte.”

Lembro-me sempre de um diálogo com um jovem – penso que já o contei aqui. Ele tinha descoberto, tinha-se convertido, tinha exposto o seu coração a Deus. E dizia: “Padre Tolentino, tenho rezado como um porco.” E, para mim, é das mais belas definições de oração, nunca ninguém me disse uma coisa tão bela sobre a oração. Porque o porco não escolhe, reza tudo, come tudo, devora tudo. Se a gente escolhe “vou rezar isto, ou vou rezar aquilo”, verdadeiramente não reza. Nós temos de rezar tudo, o importante e o banal, o próximo e o distante, o que é meu e o que é dos outros, o que está perto e o que está longe, temos de rezar tudo. Isto é: A capacidade de fazer de tudo oração, isso é que nos torna uns verdadeiros orantes. Há um poeta contemporâneo, Armando de Silva de Carvalho, que tem um livro chamado: O Cão de Deus. A oração dele é um ganir. Pode acontecer que a nossa oração não seja bem oração. A gente não tem palavras, só tem dores, só tem coisas que queria dizer e não consegue. Então, é a oração do cão, é a oração do ganir. Mas seja, é essa. Que o tempo de Quaresma seja, de facto, um tempo de exposição da nossa vida a Deus.

A outra via é o jejum. E o jejum é um meio muito importante no meio espiritual, que também é usado por outras tradições religiosas. Mas, no fundo, o jejum é a renúncia de uma coisa a que eu tenho direito e que eu posso. Mas renuncio a isso para relativizar o meu próprio eu. Nós temos um sentido crítico apurado em relação a tudo e a todos, exceto a nós próprios. Sem darmos conta, podemos até ser muito adultos, mas vivemos como miúdos caprichosos e mimados e, pior, conseguimos ter tudo o que queremos ou desejamos ou nos dá na gana. E, de repente, somos pequenos tiranos. O nosso eu é tirânico, tirânico em relação aos outros, tirânico em relação aos que vivem mais perto de nós, aos que vivem longe. Só nós existimos, só nós contamos, só nós sabemos, só nós podemos, só nós temos o direito. O jejum é o exercício de morrer para si próprio, dizer: “É meu” mas abdicar, isto de uma forma concreta na alimentação, sermos capazes de transformar a nossa dieta alimentar tornando-a muito mais sóbria do que é. Viver estes 40 dias com sobriedade, sobriedade. Claro que temos direito a isto e aquilo, mas dizemos que não. E, nas sextas-feiras desta Quaresma, nós não apenas vamos intensificar a sobriedade, porque é o dia desta prática ascética. É toda a Quaresma, mas as sextas-feiras são um dia especial. Nesse dia não vamos comer carne, não vamos derramar sangue. É um sinal, é um símbolo, mas a verdade é que nós alimentamo-nos dos outros e matar mais isto ou matar mais aquilo, para nós é completamente indiferente. Ora, vamos não derramar sangue, não dizer “a minha vida é mais importante que a tua”. Não. Vamos calar, calar a vida, morrer um pouco para nós próprios. E isso, claro que é um gesto simbólico mas é um gesto com muito significado. Não vamos dizer “eu quero comer carne, não posso pagar uma taxa?” “- Não, não vais pagar taxa nenhuma. Não vais comer carne.”

Fazer esse esforço para nos unir a uma tradição cristã, que tem séculos e séculos é, no fundo, perceber também o que é a carne, o que é o sangue, perceber o que é a vida, perceber que todas as vidas têm valor – mesmo a vida da vaca ou do frango que compramos no supermercado. Essa vida que alimenta a minha vida tem um valor e isso para nós é uma espécie de pedagogia: se eu dou atenção a esta pequena coisa ou vou dar maior valor às vidas daqueles que me rodeiam e não vou ser tão intolerante, não vou ser tão cheio de mim, ocupando o espaço que devo dar aos outros. Mas o jejum não é apenas esta contenção, esta moderação alimentar. O jejum é tudo aquilo que serve para relativizar o meu eu.

Muitas vezes, o jejum que nós precisamos é da língua. A facilidade com que falamos, com que julgamos, com que dizemos, com que matamos os outros com a nossa língua – no fundo, ser um tempo de silêncio, um tempo de contenção, um tempo para não falar, um tempo para não dizer. E como isso pode ser purificador da nossa vida, e como nós precisamos disso! Mas o jejum pode ser também de um pensamento, de um hábito, de um vício, de um costume que tenho, de uma coisa que me dá muito prazer fazer e que não tem mal nenhum, mas, precisamente neste tempo, vou abdicar disso para ser mais livre. O jejum custa, não há jejum que não custe, mas o jejum é uma máquina de criar liberdade. Porque, sem darmos conta, andamos cheios de chocalhos e de amarras, de algemas, disto e daquilo, prisioneiros, dependentes, ancorados, a achar que precisamos de uma lista enorme de coisas para ser feliz ou para estar em nós próprios. E, de repente, o jejum é cortar um bocadinho esses pesos e isso dá-nos uma liberdade muito grande, liberdade para ser, liberdade para viver, liberdade para acreditar.

Tudo isto culmina na terceira via, que a Igreja nos aponta nesta Quaresma, que é a via da esmola. Nós somos chamados, à imagem de Jesus na Eucaristia, a fazer da nossa vida um dom. A nossa vida só se realiza quando se torna dom, quando se torna Eucaristia. Isto é: quando se torna serviço, quando se dá aos outros. Então a esmola, antes de tudo, é um dar-se. Dar-se mais aos outros, dar mais tempo, ir falar a um amigo que não vejo há muito tempo, ir visitar uma pessoa a um lar, um parente a um lar, ir visitar um doente. Gastar do tempo da minha vida para os outros, dar-me, dar-me, repartir-me aos outros. E, depois, também dar das coisas que possuo, repartir o que ganho, ter isso em atenção, dar uma esmola, pensar numa instituição, juntar-me à renúncia diocesana, que a Igreja toda neste tempo faz em vista de uma obra comum. É muito importante que nos privemos de pequenas coisas para podermos ajudar, para podermos perceber o que significa a caridade. A caridade – que Deus tem tanta para connosco e, por vezes, nós temos tão pouca para com o nosso próximo. No fundo, é no dom, é na esmola, que pode ser uma coisa um bocadinho difícil de entender culturalmente, mas a esmola tem um sentido espiritual muito forte. Quer dizer: Não é dar uma coisa do alto do meu porta-moedas ou da minha conta bancária, mas é partilhar daquilo que eu vivo, partilhar do meu trabalho, partilhar do que eu tenho, e ter esse sentido muito profundo da comunhão. Porque os bens escravizam-nos e, se a gente fecha a nossa mão sobre o que julga possuir, somos possuídos por isso. O dinheiro é um brinquedo muito complicado num caminho espiritual, porque é uma barreira dificílima de vencer. E nós, cristãos, temos de ganhar uma liberdade muito grande face aos bens, porque a verdade é que os bens têm de ser simplesmente instrumentais, têm de servir – e isso de uma forma clara.

Queridos irmãs e irmãos, este tempo da Quaresma é, assim, um tempo que nos coloca perante o Deus que vê no segredo. Não podemos viver uma vida só de aparente virtude, de quem olha para nós e diz “sim, senhor, fulana de tal, muito boa pessoa; sim senhor, fulano de tal uma pessoa muito respeitável” – mas, depois, dentro de nós é uma confusão, é um embaraço, um desnorte.

A Quaresma é uma bússola para afinar a nossa vida pela vida de Jesus, por aquilo que recebemos Dele. Vamos pedir ao Senhor que nos dê este espírito de conversão. É importante que cada um de nós faça o seu programa de Quaresma, que defina: “Nesta Quaresma decidi fazer isto, isto e aquilo.” Não tem de ser muitas coisas. Pode ser uma, duas, três, mais não, senão depois ficamos irreconhecíveis e isso também Deus não quer. Mas fazer aquilo que é pequeno, coisas pequenas, porque as coisas grandes depois não as conseguimos fazer. Fazer coisas pequenas e fazer coisas pessoais. Isto é: A Quaresma não é para os outros. Eu não posso decretar: “A partir de agora só se come batatas lá em casa.” E os outros, que não gostam de batatas? Não, é para mim, não é para o outro. É para mim, vou dizer o que é para mim e deixar a liberdade para o outro ser. E serem coisas possíveis, porque às vezes entusiasmamo-nos e queremos coisas impossíveis. Não, há uma arte dos pequenos passos, das pequenas coisas, a arte dos possíveis – e isso é também fundamental numa vida espiritual. Vamos por isso, com este espírito, pedir ao Senhor que desça sobre nós, que seja o Seu Espírito a transformar-nos, a abrir o nosso coração, e a tornar-nos discípulos autênticos do Senhor.

Pe. José Tolentino Mendonça, Quarta-feira de Cinzas

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/02/12 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/02/10 – Encontros Interreligiosos – Ao encontro do budismo” open=”false”]Ao longo de 2015, em linha com a dinâmica sinodal que a nossa Diocese de Lisboa está a viver, a Comunidade da Capela do Rato vai realizar um conjunto de encontros com outras tradições religiosas. Convivem juntos no mesmo perímetro urbano, cristãos, judeus, muçulmanos, budistas e outros e desconhecemo-nos mutuamente. Os encontros interreligiosos são uma proposta para aprofundarmos uma pacífica convivência com base no conhecimento, no respeito e na amizade. O primeiro encontro será no dia 10 de Fevereiro, na Capela do Rato. E vamos ao encontro do budismo.

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[rev_slider encontrosInterreligiososFevereiro2015][/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/02/08 – O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas” open=”false”]Queridos irmãos

Hoje, a primeira leitura é retirada do livro de Job. Sabemos que o livro de Job representa um momento muito importante na revelação bíblica, porque Job representa o homem, a experiência humana, a vida, também como lugar de dúvida, também como lugar de pergunta (e ardente pergunta), também como lugar de interrogação. Job é o homem inconsolável, é o homem que diz: “As respostas religiosas do meu tempo não me servem. Aquilo que a teologia diz não é suficiente. Eu quero falar face a face com Deus, eu quero colocar perguntas a Deus.” O que é fascinante é que Deus aceita este diálogo com Job, este diálogo sem rede, e Job fala com Deus. O livro de Job é quase um livro ateu, quase um livro agnóstico, porque é o homem em carne viva, no seu sofrimento, na sua angústia, que procura um sentido, que procura um significado.

No livro de Job todos nós estamos representados, crentes e não-crentes. Todos nós fazemos nossa a dor, a pergunta, o espinho na carne que Job tem. Todos nós sentimos a dificuldade das palavras de ocasião, circunstanciais, das receitas. E há um momento em que sentimos que nada nos consola se não colocarmos a nossa nudez, a nossa verdade diante de Deus, e é isso que Job faz, e é isso que Deus aceita. Repito, que o protesto de Job seja para nós também uma catequese, porque tantas vezes encontramos mulheres e homens ao nosso lado que vivem a sua existência como uma procura, como uma pergunta. Nós temos a fé, mas a fé não é um sofá, a fé não é um calar todas as questões. Nós sentimo-nos irmãos e irmãs de todas as mulheres e de todos os homens que, no fundo, colocam a grande questão do sentido. A dor maior, o sofrimento maior que cada um de nós pode passar não são as dores físicas; essas doem-nos muito, massacram-nos, torturam-nos, mas esse não é o sofrimento maior. O sofrimento maior é o de não encontrar sentido para a vida, não encontrar significado naquilo que fazemos, nos nossos ritmos; não encontrar um sentido para nos levantarmos da cama, para fazer, para amar, para sonhar. Sentir que, no fundo, a vida é uma paixão inútil – esse é o grande sofrimento humano. E é com esse sofrimento que Jesus vem dialogar e é com esse sofrimento que Jesus nos ensina a dialogar.

Quando preparava as leituras, fiquei muito tocado pelo Salmo 146, e sobretudo por esta estrofe, a estrofe segunda, que diz isto: “ O Senhor sarou os corações dilacerados e ligou as suas feridas.
Fixou o número das estrelas e deu a cada uma o seu nome.” Sensibilizou-me muito esta coisa, um bocado espantosa, que o poeta do salmo faz aqui, que é: está a falar de feridas e de repente começa a falar de estrelas. E diz: O Senhor cura o nosso coração dilacerado, liga, ata as nossas feridas, mas também é o Senhor que cuida das estrelas. Então a prece, a oração, liga a dor, a nossa pequena dor, a dor vivida nesta escala íntima, só nossa, que nos parece (quando olhamos para o universo sentimo-nos como um grãozinho de poeira) como um nada, um quase nada. O Senhor liga este quase nada que cada um de nós é às estrelas, à imensidão, ao infinito, ao incontável, àquilo que nos deslumbra, àquilo que está tão alto desta terra onde às vezes nos sentimos prostrados, o Senhor faz essa ligação. E como é que Ele faz essa ligação? Tocando-nos, chamando-nos pelo nome, colocando-nos em pé. Quando o Senhor entra na casa da sogra de Simão Pedro e ouve dizer que ela está doente Ele vai, dá-lhe a mão e levanta-a, e ela fica restabelecida. E sentado na porta da casa, com a cidade toda reunida à sua beira, trazendo todos os doentes, o Senhor toca cada um deles, toca as vidas de cada um deles. E como é que Ele os cura? Cura-os também ligando a sua vida a uma dimensão maior, dizendo: “A vida não é só isto, a vida não é só o que tu vives, a vida não é só a nossa dor, a vida é um para lá, um para além, a vida é um passar, a vida é um atirar-se mais para longe, a vida é um encontrar sentido nas estrelas.”

Nós não somos a solução para a nossa vida, não somos a resposta para a nossa vida. Se calhar nós seremos sempre como Job, não encontraremos resposta. Mas este gesto de Jesus, de nos levantar, de nos atirar o olhar mais para longe, de ligar o presente ao futuro, de ligar o humano ao divino, esta passagem, que é uma passagem pascal, é verdadeiramente uma passagem que verdadeiramente nos salva. Sintamo-nos, por isso, queridos irmãs e irmãos, tocados por Jesus, sintamos que Ele toca a nossa mão e que Ele nos levanta. Sintamos que isto em nós que não tem resposta, isto que em nós é noite e sede, isto que em nós é procura e fadiga, isto que em nós é um exercício, às vezes exasperado, de espera, isto em nós que é uma capacidade de rezar ou uma incapacidade de rezar – o Senhor toca, toca nisso.
O Senhor é capaz de fazer disso uma história de esperança, uma história de sentido, uma história de vida. Jesus, quando a cidade está toda reunida à sua volta, não fica ali, os discípulos de manhã procuram e não O encontram, e Jesus diz: “Não podemos ficar só num lugar, temos de ir mais longe, temos de atirar o nosso olhar mais para longe e, no fundo, há um ensinamento tão forte nestas palavras de Jesus. Nós temos de sair da nossa zona de conforto também, e temos de experimentar criar vida, criar relação, criar encontro, noutras zonas, noutros territórios, fazendo outras experiências. Às vezes fazemos outras coisas demasiado cedo e sentimos que tudo acabou, que tudo está feito, que agora é só aqui, e o Senhor pede-nos sempre um mais além, pede-nos sempre para sair de nós.

Hoje, por decisão do Papa Francisco, é a primeira jornada de oração e de consciência, a primeira jornada mundial contra o tráfico humano, as várias formas de tráfico humano. Nós sabemos também em Portugal que um grande número de pessoas está sem os seus direitos, sem as suas condições: são vendidas no seu trabalho, são vendidas no seu corpo através da prostituição; sabemos que há redes terríveis ao nosso lado, que nós só não vemos porque não queremos, que nós não vemos só porque não queremos. São redes de estupro, são redes de atropelamento da dignidade, da dignidade humana. Ganhar consciência, também da dificuldade, da pobreza, da miséria, do sofrimento dos outros. E isso é também uma missão que o Senhor Jesus nos dá.
E
u estive em Roma esta semana – e hei de falar do encontro do Pontifício Conselho para a Cultura que foi sobre a mulher, as culturas femininas e também sobre o lugar da mulher na Igreja. Nesse encontro, uma das oradoras, que deu um belíssimo testemunho, foi uma freira. Esta mulher, assim uma mulher forte, já quase com os seus oitenta anos, mas com uma capacidade profética imensa, em Itália é responsável pelas Suore di Strada, que são freiras da estrada: são freiras, são mulheres que se dedicam a ajudar outras mulheres, sobretudo as que estão nas redes de prostituição. Os números que ela refere são números impressionantes. Em Itália, por exemplo, ela diz que há dez milhões de prestações sexuais por mês. E a pergunta que ela faz é: “O que é que havemos de pensar dos nossos pais, dos nossos maridos, dos nossos filhos, dos nossos amigos, dos nossos companheiros de trabalho e de nós próprios se alimentamos este comércio, esta rede que acaba por ser um atentado tão devastador à vida humana?” Ela deu um testemunho fortíssimo e a dada altura ela começou a dizer: “E há paróquias, há comunidades cristãs que se reúnem e que estão mesmo ao lado de zonas das cidades europeias onde essas coisas acontecem e não fazem nada, não olham para essas realidades.” E eu enfiei o barrete e disse: “Ai Jesus! Esta mulher vem para me destruir!” E de facto, a gente está aqui neste coração da cidade e o que é que a gente faz para o que está para lá das paredes?

Uma iniciativa desta jornada de oração contra o tráfico humano é acender uma luz: há um mapa do mundo e as pessoas de cada país inscrevem-se e acendem uma luz, e o mapa do país, que está branco, torna-se vermelho, como se houvesse um incêndio de esperança naquele país. No fim da reunião eu fui falar com ela, senti-me muito interpelado, e disse: “Olhe, o que é que eu posso fazer?” E ela disse: “Podes começar por fazer uma coisa, podes já acender uma luz no teu país e podes fazer com que esta semana o teu país fique completamente aceso.” Isto é a consciência.

No site da capela (www.capeladorato.org), está uma mensagem e nós podemos entrar no site desta jornada que é slavesnomore.it , inscrevermo-nos, e acender em Portugal mais uma luz. Neste momento há 47 luzes, eu gostava de ver se no próximo domingo éramos pelo menos duzentas, duzentas luzes, e cada luz quer dizer: alguém que pensou um minuto naquilo, alguém que pensou um minuto nesta situação.
Vamos acender esta luz e deixar que o Senhor nos inquiete. O Senhor tem de nos inquietar, tem de nos colocar o coração a arder, a querer mais, a querer mais e em todas as idades – temos aqui pessoas seniores, temos jovens,… Jesus tem de nos colocar o coração a arder e dizer: “O que é que eu posso fazer? O que é que daqui vai sair?”

Que o Espírito Santo fecunde, fecunde o nosso coração e nos dê esta capacidade de atenção, de atenção ao outro, de atenção à vida. Porque, no fundo, a questão do sentido, isto de ligar a ferida, a nossa ferida, às estrelas, também passa pela nossa capacidade de doação, pela nossa capacidade de entrega, e sentirmos que a nossa vida encontra o seu sentido também quando ela se apaixona, se enamora por uma causa, por uma razão que é maior do que nós próprios, maior do que o nosso pequeno conforto, do que a nossa tarefa, do que o nosso quintal. Quando nos apaixonamos por uma coisa maior, então a vida também ganha outra respiração, ganha outra luz. Acendamos uma luz, esta luz que o Espírito traz aos nossos corações.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo V do Tempo Comum

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[/vc_toggle] height=”30″]

Janeiro

height=”10″][vc_toggle title=”2015/01/25 – “O tempo foi abreviado“” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Hoje, na leitura do Evangelho de S. Marcos, nós temos a primeira palavra de Jesus, a palavra inaugural. É uma palavra que dá que pensar, Jesus diz: “Cumpriu-se o tempo.” O tempo chegou à sua plenitude, ao seu cumprimento : “Está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho.”

É uma palavra que dá que pensar porque Jesus começa com uma reflexão sobre o tempo, com uma declaração sobre isto no qual a nossa vida está, isto que é a nossa vida, porque nós somos feitos de tempo, e temos, para viver, uma determinada conceção, uma determinada ideia de tempo.

A ideia mais corrente que temos de tempo é aquela que o relógio marca, um segundo a seguir ao outro, um minuto, uma hora a seguir à outra, um dia a seguir ao outro, anos, séculos. É essa a ideia do tempo. Os gregos representavam-no como um deus que come os seus próprios filhos, Chronos.

É em parte essa a ideia que temos do tempo: ninguém consegue parar o tempo, o tempo está sempre a correr, o tempo é umas coisas a seguir às outras. De certa forma, esta conceção cronológica do tempo acaba por marcar muito a visão do que é a nossa vida e do que deve ser, de como construímos a nossa felicidade, ou como tomamos consciência da nossa fragilidade, da nossa vulnerabilidade.

Tempus fugit, diziam os romanos. A experiência que fazemos como mulheres e homens é que não possuímos o tempo, não conseguimos agarrar o tempo, ele foge de nós. E então, a nossa vida é uma corrida, é uma aceleração, é um galope, queremos apanhar alguma coisa mas parece que a estrada, debaixo dos nossos pés, corre mais do que a nossa corrida. Por isso, muitas vezes, a sensação profunda que nos vem de uma vida vivida é de um vazio, uma coisa que não se consegue agarrar, uma coisa que não se consegue realizar, uma coisa que não se consegue tocar na sua plenitude.

E, contudo, Jesus diz: “Cumpriu-se o tempo.” O tempo chegou à sua plenitude. Sem dúvida que Jesus fala do tempo com outro olhar. Com outro olhar porque, para Jesus, o tempo claramente não é este tempo que corre, este tempo que passa e que os relógios medem. O tempo, na conceção de Jesus, é o tempo oportunidade, o tempo ocasião para ser. Este momento nós temos de olhá-lo não apenas como uma porção de vida que passa, que foge, mas temos de olhá-lo como uma oportunidade. Ela está aqui, diante dos nossos olhos. E nós temos de agarrar a oportunidade, temos de agarrar o momento, temos de colher este instante como lugar de recriação da nossa própria vida, como lugar de encontro profundo connosco mesmos, como lugar onde a plenitude não é uma utopia inalcançável, mas onde a plenitude é uma experiência, é um sabor, é uma promessa. Nesse sentido, esta primeira palavra de Jesus constitui, para nós, um ponto muito importante de conversão.

Porque é que nós somos chamados a mudar o nosso olhar sobre o tempo? Nós somos chamados a fazê-lo porque veio o Messias. Com Jesus começa um tempo novo, começa o tempo messiânico.

Hoje, 25 de janeiro, nós celebramos da conversão de S. Paulo. Não celebramos liturgicamente, porque estamos a celebrar o terceiro domingo comum. E Paulo foi, talvez, aquele que primeiro compreendeu todas as consequências concretas, históricas da pessoa de Jesus, do acontecimento de Jesus. Paulo percebeu isto à luz da sua mentalidade judaica e da sua capacidade de cruzar mundos, o mundo helénico, o mundo romano. Paulo percebeu isto: que, chegado o Messias, a lei antiga, o tempo antigo, cessou. Porque a lei existe para regular o tempo e a vida enquanto não chega a plenitude. Mas se a plenitude, que é a pessoa do Messias, chega, então a Lei já não é a nossa forma de viver. A Lei já não é aquilo que nos marca. Já não vivemos segundo a Lei, vivemos segundo um acontecimento que é o da pessoa de Jesus, que nos inspira o novo estilo, uma nova maneira de ser, uma nova visão das coisas, um novo entendimento, uma nova compreensão, uma nova compreensão do mundo.

Nesse sentido, é muito importante a pequena passagem do capítulo sétimo da Primeira Carta aos Coríntios, que hoje lemos. E que a tradução passa um bocadinho por cima das brasas, porque ouvimos ler: “O tempo é breve.” Verdadeiramente, o que está lá escrito é: “O tempo foi abreviado.” O tempo foi tornado mais pequeno, mais breve. Quer dizer, houve uma intervenção no tempo. Por Jesus ter vindo, o tempo passou a ser outra coisa, passou a ser visto de outra maneira, e passou a ser breve. Breve, no sentido de sentirmos que é agora, é este o momento, é esta a oportunidade, é este o lugar. Por isso, S. Paulo retira consequências dizendo: “Aqueles que têm, vivam como se não tivessem, os que choram vivam como se não chorassem, os que andam alegres como se não andassem, os que compram como se não possuíssem.” O que quer isto dizer? Que, agora, a nossa vida já não é determinada pela experiência do tempo, já não é simplesmente uma consequência do tempo; mas a nossa vida é chamada a desprender-se das malhas do tempo, das malhas da Lei e a assumir plenamente esta novidade, esta possibilidade que Jesus traz à vida de cada um de nós. Por isso eu sou chamado a viver neste mundo, no esquema deste mundo, na forma deste mundo, sabendo que ele já foi relativizado. E foi relativizado por quem? Foi relativizado pela pessoa de Jesus, pela figura de Jesus.

Queridos irmãs e irmãos

Isto pode parecer um bocadinho abstrato, um bocadinho conceptual, mas toca o âmago da realidade de cada um de nós, que andamos tantas vezes escravizados pelo tempo, reféns, capturados na nossa esperança por um tempo que nunca é o nosso, que nunca nos pertence, que nos foge completamente. E Jesus vem dizer: “Não. Não é o tempo que te domina. Tens que te libertar do tempo. Tens de viver neste tempo como se não dependesses dele.” Porquê? Porque a plenitude já chegou, porque a promessa já se realizou. Porque Jesus liberta-nos da escravidão, da fatalidade da Lei e dá-nos a possibilidade de viver segundo a liberdade, segundo a promessa, segundo essa plenitude de que Ele se torna o grande transmissor.

Sintamos esta palavra de Jesus como um verdadeiro chamamento. A vida não é uma coisa adiada. O tempo leva-nos a adiar talvez as coisas mais importantes da nossa vida. Nós temos tempo para tudo mas não temos tempo para o mais importante, não temos tempo para o amor, tempo para ser feliz, tempo para a gratuidade, tempo para o encontro.

Temos tempo para tudo mas não temos o tempo, o tempo que era capaz de nos dar o sabor da salvação. Ora, é preciso inverter esse olhar, é preciso anunciar que nós não vivemos escravizados neste tempo e na lei do tempo, mas que somos chamados a olhar cada instante como um lugar, como uma oportunidade, como ocasião por onde esta voz de Jesus passa, nos chama e nos congrega para vivermos uma história.

É muito belo este arranque do Evangelho de S. Marcos porque Jesus passa pela vida daqueles homens e mulheres concretas e diz-lhe: “Olha, vem e segue-Me, vem e segue-Me, vem e segue-Me.” O que é que está a acontecer? Está a acontecer a relação. No fundo, o que vai ser o caminho de cada um dos discípulos? Colocar o que eles são numa relação viva, criativa, confiada com a pessoa de Jesus. É isso que também, no início de um ano, nós somos chamados a fazer. O tempo não é só o tempo, o tempo não é o relógio que o marca, tem de ser marcado pela fé. Pela fé na pessoa de Jesus e na capacidade que Ele tem de transformar a minha vida. Se assim for, nós vamos olhar para este momento como uma oportunidade, vamos viver o tempo como um lugar não condenado, o tempo não como lugar onde experimentamos o vazio, a condenação e o juízo, mas o tempo pode ser reversível – como Nínive na pregação de Jonas: Deus volta atrás, há uma reversibilidade na própria palavra.

Quando olhamos para o tempo de outra forma, percebemos que ele não é um funil onde estamos cada vez mais afunilados e vamos sair na nossa morte, somos expelidos do tempo. Mas, pelo contrário, que o tempo, este tempo da minha vida, este tempo que eu vivo, este tempo que é o meu, este tempo com as suas fragilidades, com as suas esperanças, com os seus impasses, este é um tempo aberto. É um tempo aberto porque é um tempo onde Deus coloca o seu perdão, a esperança que Ele tem na mulher, no homem que nós somos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/01/22 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/01/11 – “Tu és o meu filho muito amado“” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Ontem estava num jantar, numa mesa de amigos e, a dada altura, o tema era a parábola dos talentos, que para alguns que estavam ali constituía uma das palavras de Jesus mais enigmáticas: como é que se vai castigar aquele homem que, tendo recebido menos talentos que os outros, foi enterrar o seu talento na terra para assim ter garantido alguma coisa para dar ao senhor quando ele regressasse? E ele acabou por ser castigado, e Deus, o senhor que representa Deus na parábola, retirou o talento dele e foi dar àquele que tinha mais talentos. É uma parábola estranhíssima.

Há muitas palavras de Jesus assim, que nós não conseguimos resolver no nosso coração e que constituem uma pergunta, um espinho na carne, uma interrogação, uma dificuldade, um obstáculo. E caminhamos com essa palavra vida fora, todos nós. Jesus é uma pergunta para todos. E é importante fazer um caminho também com a dificuldade, porque Jesus não é fácil. Nós não domesticamos o Evangelho, esta é uma palavra que nos sacode, que nos desafia. Temos uma grande adesão de coração mas continuamos a colocar perguntas, porque nós, mulheres e homens, somos assim. A fé não é contra a nossa razão, mas a fé é um caminho que fazemos às apalpadelas, mas também com silogismos, mas também com raciocínios, mas também com pergunta e resposta.

No fundo, qual é o problema do homem que recebeu só um talento? A parábola é muito realista, porque conta a diversidade do mundo: não há duas coisas iguais, não há duas pessoas iguais, não há dois talentos iguais, cada um recebeu porções diferentes. Basta olharmos para nós próprios e uns para os outros e perceber que é assim a vida. A questão é: o que é que cada um de nós faz com aquilo que recebeu? Quais são as condições que nos levam a fazer render, a apostar, a arriscar, ou a prender, a esconder, a ficar travado, a ficar enrolado no nosso medo, na nossa insegurança?

Quando lemos a parábola dos talentos, ouvimos o raciocínio, a voz interior, do homem que vai esconder o seu talento na terra. E ele diz: “Eu tenho medo do meu senhor, porque ele quer, ele tem expetativa de coisas que não faz e quer retirar onde não semeou. Sei que ele é um homem severo, por isso vou esconder o que ele me deu para, quando ele me pedir, eu lhe entregar intacto.”

Qual é o problema deste homem? Porque é que ele não aposta? Porque é que ele não corre o risco? Porque ele tem medo, e porque ele sabe que o seu senhor é um homem severo, que ele não entende, na sua lógica, no seu modo de atuar. Esta compreensão que ele tem do senhor trava, bloqueia, amarra a sua vida. Podendo fazer do seu talento outros talentos, outras coisas, ele acaba por enterrar, antecipadamente, o seu talento, atirar a toalha ao chão, dizer “não jogo, não quero, prefiro não fazer, prefiro não ser”.

O que é que acontece no Batismo de Jesus? De certa forma, é a antiatitude deste homem da parábola dos talentos. É interessante Jesus ser batizado por João Batista. Jesus desce lá de Nazaré, que fica um pouco mais a norte, e vem para esta zona do deserto, perto de Jerusalém, mas onde se constrói, de certa forma, uma religião alternativa, reformista em relação a Jerusalém. João Batista é um pregador. Está no deserto, é alguém que quer renovar Israel, reconduzindo a um espírito original. O que é interessante é que Jesus vem para, de certa forma, se ligar a este movimento.

O que é que nós percebemos deste jovem chamado Jesus? Que Ele tem inquietação no seu coração, que Ele tem desejo de mais, que Ele quer outra coisa da vida, que Ele não se satisfaz. Nesta ligação de Jesus ao reformismo de João Batista nós percebemos um coração tão parecido com o nosso, na sua intranquilidade, no seu “ainda não basta, não é só isto, tem de haver outra coisa”. As perguntas que habitam o nosso coração são as perguntas que habitam o coração de Jesus.

Ele vem, como vêm tantos que o Evangelho descreve, para ouvir a pregação de João Batista e fazer-se batizar por ele. Mas quando Ele sobe da água, os céus abrem-se e Ele escuta uma voz. Quer dizer, Jesus tem a compreensão de si mesmo, do que Ele é. Porque, nas grandes batalhas da nossa vida, as verdadeiras são aquelas que nos dão a compreensão do que nós somos. Não é uma ideologia, não é lutar por uma coisa fora de nós, mas é uma coisa total, integrada. O que é que eu sou no meio disto tudo? O que faço aqui? Porque é que eu estou aqui? Para onde é que eu caminho? O que é que me move verdadeiramente?

Aquele momento da juventude de Jesus é um momento chave em que Ele tem a compreensão do seu mundo interior, do seu mundo interno, daquilo que Ele transporta. O Evangelho de Marcos mostra-nos esse mundo e, com surpresa, nós ouvimos a voz do Pai dentro do coração de Jesus. E a voz do Pai diz: “Tu és o meu filho muito amado, em ti Eu coloco todo o meu amor.”

Queridos irmãs e irmãos:

A grande diferença da vida é que voz é que nós ouvimos no nosso coração. Que voz é que nós ouvimos? Porque podemos viver a ouvir a voz do Senhor severo, daquele que tem expetativas desmesuradas em relação a nós, aquele cujo fantasma nos esmaga, nos trava, nos bloqueia. E a única coisa que fazemos é dizer: “Bem, deixa-me lá esconder isto para dar o que Ele me deu e está tudo resolvido e não me meto em problemas.” E há outra coisa completamente diferente que é cada um de nós sentir, previamente, que isto não tem a ver com méritos, com virtudes, com recompensas. Tem cada um de nós de ouvir previamente no seu coração a voz de Deus que diz: “Tu és a minha filha muito amada, tu és o meu filho muito amado, em ti coloco o meu amor.”

Então, o nosso ponto de partida não é o medo, mas é a confiança. O nosso ponto de partida não é: “O que é que eu posso fazer para que Ele não me caia em cima, o que é que eu posso fazer para que Ele não me julgue, o que é que eu posso fazer para que Ele não me destrua”. Não é a imagem de um Deus insaciável, que encontra em nós sempre coisas erradas – porque Deus olha para nós e pode encontrar sempre coisas erradas. Esta imagem é uma imagem que nos destrói completamente, é uma imagem de Deus que nos trava, que nos prende, nos captura.

Há uma imagem de Deus amor, que está dentro de nós e nos diz: “Tu és o meu filho, tu és a minha filha. Amados.” E, se ouvirmos esta voz no nosso coração, a nossa vida será outra, será uma vida semelhante à vida de Jesus.

Queridos irmãs e irmãos:

Hoje celebramos o Batismo de Jesus e, no Batismo de Jesus, celebramos o nosso próprio batismo. E o que é o Batismo de Jesus? É a compreensão da vida, do ponto de partida da vida. Qual é o teu ponto de partida? O nosso ponto de partida tem de ser este: a compreensão do amor de Deus. Deus que me ama como eu sou, Deus que se maravilha comigo, Deus que se encanta com a mulher e com o homem que eu sou, tal como sou. Deus que se encanta, Deus que não quer que Eu seja o que eu não posso ser, o que eu nunca vou ser, o que eu devia ser e não sou. Deus que me ama como eu sou e que deposita em mim, de forma incondicional, o seu amor. A grande questão da nossa vida não é o que é que eu faço para saciar um Deus insaciável, mas como é que eu respondo a esta dádiva incondicional de amor que Deus já me deu, que Deus já depositou no meu coração.

Uma coisa é estar a responder a um Pai severo, insaciável e intransigente; outra coisa é estar a receber um Pai que nos diz: “Aconteça o que acontecer, Eu estou contigo, tens o meu amor, Eu estou a teu lado, Eu suporto-te, Eu trago-te aos meus ombros, Eu confio em ti, tu és o meu filho, tu és a minha filha.” Esta certeza do amor de Deus é a nossa razão de viver.

Queridos irmãs e irmãos:

Nós mantivemos o presépio até este dia. Podíamos já tê-lo arrumado, domingo passado, depois da festa dos magos, mas quisemos trazê-lo até este dia porque este é o momento do nosso nascimento. O batismo também é um nascimento, também é um presépio e este é o momento em que cada um de nós tem de nascer do amor, calando as vozes erradas que também nos habitam. É importante não deixar falar a escuridão no próprio coração, é importante ter a confiança de dizer ao próprio coração: “Não me enganes, não é assim.” Porque o que está no centro da vida, no centro desta vida revelada por Jesus de Nazaré, é de facto a experiência do amor.

E isto pede de nós uma conversão, uma transformação, uma redescoberta, uma reviravolta. Se calhar, temos de dar a volta neste grande útero que é a própria Igreja, revirarmos por dentro para podermos nascer, purificar-nos de imagens de Deus que não são aquelas que habitaram o coração de Jesus e que Ele nos revelou. Os céus abriram-se e a voz de Deus pôde-se ouvir: “Tu és o meu filho muito amado, em ti coloquei todo o meu amor.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo do Batismo do Senhor

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/01/08 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/01/04 – “Voltaram para casa por outro caminho”” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Deus manifesta-Se em Jesus que nasce. Mas a grande questão é: Como se reconhece? Como se reconhece a passagem de Deus pela nossa história? Como se reconhece a sua Epifania quotidiana? Com que gramática, com que roteiro, com que guia nós podemos reconhecer a fantástica presença de Deus na nossa vida? Porque Ele está e, grande parte do tempo, nós não O vemos, nem temos capacidade de O reconhecer.

Herodes estava muito melhor colocado do que os magos, para saber que tinha nascido o rei dos judeus. E, contudo, ele não sabia de nada. Aconteceu uma coisa nas suas barbas, aos olhos dele, e ele não viu, não foi capaz de enxergar. Ele tinha os sábios da sua corte, tinha a Escritura que dizia: “O Messias vai nascer em Belém.” O que é que lhe faltava então? Ele tinha tudo. Tinha todos os referentes, toda a sabedoria, todo o conhecimento, mas Jesus nasceu e ele não soube. Essa notícia foi-lhe dada por estranhos, por gente que vinha de longe.

O que é que faltava a Herodes e o que é que nos falta a nós? Perguntemo-lo com franqueza. Falta-nos essa atenção. A atenção, a atenção espiritual, é essa expectativa de Deus, essa espera de Deus, que nós temos de manter no nosso coração, no dia a dia. Nós não vemos Deus na nossa vida, porque não estamos à espera dele. Porque não é por Ele que nós esperamos. Nós não vemos Deus mais perto de nós porque não temos sede, não temos fome dele. Não é por Ele que nós sofremos, não é por Ele que nós nos entusiasmamos, não é por Ele. O mundo e a nossa vida, mesmo uma vida de cristãos, tornam-se uma espécie de deserto, uma espécie de lugar vazio onde há uma música em surdina. Mas onde não se vê o desenho, não se toca a carne de Deus na vizinhança de nós.

Falta-nos a atenção. Como dizia Simone Weil: “Falta-nos essa grande capacidade espiritual, que é a grande oração que nós podemos fazer, que é precisamente essa atenção.” Essa pobreza que tem quem espera, quem vive na iminência, quem percebe que cada instante não é apenas o tempo que corre, mas é a iminência de alguma coisa, a iminência de uma revelação. E falta nós deslocarmos a nossa vida para o interior dessa eminência, habitarmos o tempo como espectativa, como lugar de espera. O tempo como advento.

Os magos: nós sabemos pouquíssimo deles, são figuras que vêm de outro mundo, de outra referência, de outra paisagem, de outro território mental, até de outra religião possivelmente. Mas eles vivem esse advento. Eles veem a estrela porque eles vivem, com o seu coração, à espera da manifestação da estrela. E quando se vive na espectativa vê-se como eles viram e tiveram a disponibilidade de seguir, sabendo muito pouco. O que é extraordinário é que a quantidade de Escritura, de promessa, que Israel tem, no fundo, tornou-se um peso, e não se tornou uma força para caminhar, não se tornou uma força para partir.

Estes magos têm tão pouco, veem uma estrela, um rei que não lhes pertence, mas eles querem vir adorá-lo. E os outros têm tanto e não mexem uma palha. Estão ali em Jerusalém, Belém é a doze quilómetros, e não perceberam nada do que aconteceu.

E nós temos de perguntar: e para nós? As Escrituras para que é que nos servem? As promessas, para que nos servem? O conhecimento, a fé, a experiência, a tradição, todos os apoios que recebemos para a vivência da fé, isso para que nos serve? Que vida eu dou a isso?

Porque, muitas vezes, são coisas para estar, são coisas ornamentais, que ornamentam a nossa vida. Mas será que me definem como homem, como mulher? Será que me colocam no mundo num determinado lugar, de determinada maneira? Será que marcam o meu estilo? Será que me definem, que são a minha identidade?

E é no fundo isto que se joga: os magos vieram de longe, atrás da estrela. E tiveram a humildade de ir perguntar, a estrela apareceu e desapareceu, eles foram perguntar ao rei, esperaram pela resposta, voltaram a reencontrar a estrela, foram, adoraram o Menino e, como diz S. Mateus, “No final, voltaram para casa por outro caminho.”

E é, no fundo, isso que também nos é colocado, no final deste tempo do Natal. Nós celebramos o mistério da encarnação do Verbo e agora estamos a chegar ao fim do tempo de Natal. Nós vamos voltar a casa como? Vamos voltar a casa pelo caminho de sempre, pelo caminho habitual, por aquilo que já trazíamos ou vamos voltar a casa por outro caminho, porque o encontro nos renova, porque o encontro nos coloca de uma outra forma, nos acende por dentro, nos dá uma capacidade de atenção?

Hoje, na festa da Epifania, celebramos a universalidade da relação de Deus. E, se há alguma coisa que marca a identidade cristã, é precisamente a universalidade.

A grande luta que o apóstolo S. Paulo manteve e que foi, de certa forma, uma luta fundadora do que é hoje o cristianismo e da nossa hermenêutica de Jesus de Nazaré, é que a salvação, a promessa, a graça, não é só para os judeus, não é só para o povo da eleição do Antigo Testamento, mas que a salvação é para todos, para judeus e para gentios.

Esta afirmação faz tremer o mundo. Porque, se eu começo a construir uma lógica de vida em que já não é apenas para uns, mas o que eu vivo é para todos, isso obriga-me a uma largueza de coração, a uma largueza de horizontes, a uma capacidade de abraço, a uma capacidade de inclusão, a uma deslocação e uma relativização das fronteiras que não é fácil. Não é fácil.

Quando nós vemos, no Cristianismo das origens, uma tensão, um conflito latente e muitas vezes explícito, entre os judeus-cristãos – aqueles cristãos que dizem “para se ser cristão, tem de ser-se judeu, os homens têm de se circuncidar, as mulheres têm de viver determinadas práticas, não há outra maneira de ser cristão senão ser judeu, primeiro” – e quando Paulo vem dizer: “Não, para ser cristão não é preciso primeiro ser judeu. Para ser cristão pode-se vir de qualquer condição. Ser cristão consiste em definires a tua vida, definires profundamente a tua vida, não já pela raça, não já pelo sangue, não já pelo lugar do teu nascimento, mas pela tua ligação ao acontecimento Jesus, ao Seu nascimento e à Sua Páscoa”, esse é que se torna o teu momento fundador, o teu momento identitário, sejas homem, sejas mulher, sejas judeu, sejas grego, sejas escravo, sejas homem livre. O que passa a definir a tua vida é a tua relação com a pessoa de Jesus Cristo, com o acontecimento de Jesus Cristo.

Queridos irmãos, isto foi uma revolução. Mas esta é a revolução cristã, no sentido de dizer que a proposta de salvação é sempre uma proposta em aberto, é sempre uma proposta que toca a todos. Nós não somos o novo Povo de Deus, com novas fronteiras, semelhantes às do Povo de Deus antigo, nós não viemos substituir Israel, não somos os substitutos dos judeus. Não, os judeus continuam a ter o seu papel, mas o cristianismo veio alargar as prerrogativas de Israel a todo o mundo, a toda a gente, a todos os povos, a todas as culturas, a todas as condições. Nesse sentido, o universalismo tem de ser uma arte que cada um de nós pratica. O universalismo tem de ser alguma coisa que nos abrasa. Porque eu percebo que estou perante um cristão quando esse cristão pode, é chamado, deve, comer de tudo com todos. É uma coisa muito simples, ritual, não tem um interesse decisivo. Mas, por exemplo, enquanto os judeus têm, de facto, restrições alimentares e restrições de mesa – não comem o seu Shabbat com impuros, podem convidar alguém, mas não comem – e, da mesma forma, a outra religião monoteísta, o islão, e fazem, à volta da mesa, um lugar de afirmação identitária, os cristãos são os que estão disponíveis, que estão abertos a fazer comunhão, a fazer comunidade com qualquer pessoa, em qualquer lado, em qualquer latitude.

E isto, queridos irmãos, não é uma bela teoria, não é uma bonita abstração, não é um interessante ideal, tem de ser alguma coisa que no quotidiano nós vivemos, porque isso é que é a Epifania. Porque é que nós falamos do eclipse de Deus? Deus desapareceu, Deus não se vê, Deus não está em lado nenhum, não encontramos Deus nas escolas, nas universidades, nas empresas, na economia, nos media, nas famílias – é o eclipse de Deus. Porque é que Deus não está? Não está porque nós não o mostramos, porque nós não o trazemos, porque nós não o fazemos vivo, porque nós não nos colocamos nesta perspetiva universalista.

Dois mil anos depois, este continua a ser o tema da agenda cristã: o universalismo. Porque é aqui, de facto, que, cada vez mais, vamos aprofundando a mensagem de Jesus, a pessoa de Jesus, a poética de Jesus e procurando traduzi-la nas nossas vidas. Que cada um de nós se sinta responsável para que a luz, a estrela, possa brilhar em todos os corações, em todos os corações.

Aquilo que o Papa Francisco tem dito incessantemente, e de tantas maneiras – não desistir de ninguém, não descartar ninguém, não considerar o outro, quem quer que seja, descartável, mas poder voltar a colocar o outro na roda da vida – isso é o presépio a acontecer, isso é o cristianismo a maturar.

Queridos irmãos e irmãs, que maravilha é podermos viver o Natal, anualmente termos este tempo de Advento e Natal, que nos recentra naquela verdade essencial, que nos faz trabalhar interiormente, que nos deixa em sobressalto, nos treina para a atenção, para a escuta, para o Deus que vem e nos lembra que nós temos é de abrir as portas para receber de Deus o próprio Deus. E isso é uma coisa maravilhosa que, anualmente, a liturgia torna presente nas nossas vidas. Mas é muito importante que, como diz a frase final do Evangelho de Mateus, nós regressemos à nossa terra por outro caminho, pelo caminho que o Presépio nos ensina, pelo caminho que Jesus nos mostra. Porque, queridos irmãs e irmãos, não há só o caminho que nós estamos já a viver, há um outro caminho. Que outro caminho é este, do qual Jesus é o guia para a minha vida, para a tua vida? Possivelmente são caminhos com traduções muito diferentes. Mas, há um outro caminho, pelo qual cada um de nós é chamado a regressar.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo da Epifania do Senhor

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2015/01/01 – “Onde está o teu irmão?”” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Neste primeiro dia do ano, sentimos a grande bênção que é a vida e a expressão da vida em cada um de nós. Este é o dia para nos sentirmos abençoados, para abençoarmos os outros e o mundo em nosso redor.

É tão extraordinária a palavra “bênção”, que quer dizer “bem dito”, “dizer bem”. No fundo, podermos dizer bem da vida, podermos dizer bem deste mistério que Deus manifesta em nós, podermos sentir o bem de Deus em nós.

É maravilhosa esta bênção que Deus pede a Aarão que dê a cada um dos membros do povo de Deus: “O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor faça brilhar sobre ti a Sua face e te seja favorável. O Senhor volte para ti os Seus olhos e te conceda a paz.”

Que cada um de nós sinta que esta bênção é para si, que o Senhor volta para cada um de nós, para a nossa vida, os seus olhos e faz brilhar, sobre a nossa frágil vida, o Seu rosto e nos enche de paz. Este é o dia para darmos graças, é o dia para louvarmos. A própria palavra de Deus desafia-nos ao louvor.

É muito significativo o modo como os pastores vêm, olham para o Menino na manjedoura e voltam louvando a Deus. E nós pensamos: “Mas o que é que eles viram? O que é que lhes enche o coração? O que é que lhes faz ter este gosto, esta necessidade de cantar quando o que eles veem é um menino deitado numa manjedoura?” Isto é, é uma vida nua, é uma vida exposta, uma vida numa fragilidade extrema. E, contudo, eles contemplam aquela vida e dão graças a Deus. Eles veem um botão, veem uma semente, veem um rebento que brota e seguem o caminho cantando e louvando a Deus.

Queridos irmãos, é esta sabedoria que nos faz ter a capacidade de bem-dizer a vida. Porque, se estamos à espera de ver a obra toda acabada, o edifício completo para então louvar a Deus, se estamos à espera de que tudo se resolva, que tudo se faça para então dizer “obrigado” e dedicar o nosso olhar extasiado à beleza do mundo, àquilo que o mundo nos dá, verdadeiramente viveremos um grande desencontro com a vida. Às vezes, ao longo do tempo, sentimos que estamos em desencontro, em contraciclo, que só nos apetece lamentar, maldizer, refutar e recusar, e achamos que nunca é suficiente, que nunca basta.

A lição dos pastores vai toda noutro sentido. Perceber que, no pequeno botão, na mínima expressão da vida, nós já temos todas as razões, capazes de encher, de redimir o nosso coração e de nos encher de louvor. Por isso, que este ano sintamos esta capacidade de bem-dizer, sintamo-nos benditos, sintamo-nos abençoados e tenhamos esta capacidade de transmitir a bênção, que está no nosso coração, ao mundo. Muitas vezes é a coisa mais necessária, porque as outras vão-se conjugando, vão-se encontrando, mas o que é que nos falta? Falta-nos este sentido, este sentido da bênção.

Hoje, lemos a carta de S. Paulo aos Gálatas, que é um dos grandes textos da identidade cristã. É um texto muito revolucionário, muito transformador. Paulo tinha fundado a comunidade dos Gálatas, na Galácia – hoje é mais ou menos uma parte da Turquia. Eles não conheciam o Evangelho e Paulo chega numa situação terrível, possivelmente, com uma doença de pele, que o deixaria muito debilitado, e depois de um grande conflito com os cristãos que vinham do Judaísmo. Ele tinha tido a discussão com S. Pedro, em Antioquia, e tinha ido mais para Oriente. Quando lhe sobreveio esta doença ele pensou: “Está tudo acabado.” E, contudo, quando ele disse “É o meu fim”, foi o seu início, porque os Gálatas, de uma forma que não se consegue explicar, acolheram-no muito bem, acolheram-no como um enviado de Deus. Ele começou a explicar, a anunciar aos Gálatas a novidade de Jesus Cristo.

E, como acontecia com Paulo, ele estava um tempo, uns meses, às vezes dois anos, numa comunidade e depois partia para outra. Quando ele partiu, vieram os emissários de um cristianismo mais ligado ao judaísmo, que viam Paulo como um rival, como alguém que tinha um Evangelho muito incompleto, como alguém que estava a destruir o caminho da Igreja. Na ausência de Paulo, desacreditam toda a mensagem de Paulo e querem que os cristãos sejam cristãos judeus, se façam judeus. Isto é, para ser cristãos, que passem pela circuncisão, voltem a aceitar todas as normas de pureza ritual, toda a divisão, toda a tradição judaica mais estrita.

Os Gálatas ouvem isto, ficam numa posição de dúvida e dizem: “Não. Nós vamos mandar emissários a Paulo, para Paulo esclarecer, dizer o que pensa disto, se é ou não é.”

E então Paulo, nessa altura em Éfeso, possivelmente preso quando lhe chegam mensagens do que está a passar-se na Galácia, escreve esta carta. É uma carta escrita com sangue, escrita com a alma toda, onde Paulo está com toda a emoção. Mas é uma carta onde ele coloca a questão da liberdade. Paulo diz: “Cristo libertou-nos para sermos verdadeiramente livres” e “Cristo é o fim da Lei.” Paulo diz uma coisa pela qual ele esteve preso várias vezes, que é: “Com Cristo acaba a Lei como tal nós a conhecemos.” Isto é, as leis humanas, a lei do império, a lei do imperador é uma lei insuficiente, essa lei não vale, essa lei morreu com Cristo. Em Cristo começa uma nova ordem do mundo, uma nova ordem das coisas.

Paulo diz isto com frontalidade, com as letras todas. Nós dizemos: “Este homem tem de ser preso.” E, de facto, Paulo estava preso quando escreveu aquilo. Mas a prisão não o impedia de dizer a verdade. Paulo não era um cristão preso, era um cristão que, mesmo quando estava preso, era muito livre. E tinha, no centro, isto: no centro está Cristo. E se Cristo está em mim ninguém me para, quer dizer, nada me basta.

“Ah, eu vou cumprir a Lei. Ah, eu tenho a boa consciência. Ah, eu paguei os meus impostos. Ah, eu fiz a minha parte.” Isso pode ser importante mas é muito pouco.

Nós hoje celebramos a Jornada Mundial de Oração pela Paz. É uma iniciativa que a Igreja tem já há várias décadas e, em cada ano, o Papa escreve uma mensagem aos cristãos que é uma proposta de reflexão para o ano que entra. Este ano, o Papa Francisco escreveu uma mensagem sobre a escravatura, as novas formas de escravatura.

Porque a verdade é que a escravatura foi abolida, mas ela regressou. Regressou duma forma muito visível. No sentido de que muitos são aliciados para trabalhos e depois, quando vão ver, é uma verdadeira escravatura. Mesmo aqueles que hoje constroem as nossas cidades, as nossas estradas, os nossos centros comerciais, são, no fundo, pessoas que depois têm de viver dez, doze anos dentro de um contentor. Se aquilo é vida e a ganhar abaixo do salário mínimo, sem contratos, sem direitos, isso não importa.

Nós pensamos: “Não serão os novos escravos?” Os pobres, os imigrantes, aquelas e aqueles que se têm de prostituir nas estradas da Europa, não serão os novos escravos? Ou então, como vemos chegar barcos e barcos de imigrantes do Norte de África, que pagaram uma fortuna, a fortuna que amealharam, a pequena fortuna, para serem metidos num barco e depois fazerem uma viagem onde muitos morrem, e depois chegam à Europa e têm de voltar para trás porque a dor deles não nos interessa, não tem nada a ver connosco.

O texto do Papa Francisco é um texto forte, mas a realidade supera-o. É um texto pintado com linhas muito marcadas do sofrimento humano, mas a realidade é exponencialmente muito superior. E, perante a realidade da nova escravatura, que está aqui em Portugal, na nossa cidade, aos nossos olhos, não pensemos que isto se passa só em sítios remotos, inalcançáveis. Não, está muito perto de nós.

Então qual é o primeiro desafio? O primeiro desafio é olharmos para esta realidade e querermos ver. Nós só não vemos porque não queremos ver. Porque se nós quisermos ver, vemos, vemos.

Há um filme de Sérgio Tréfaut , os “Lisboetas”, sobre os imigrantes em Lisboa. Ele mostra como há uma invisibilidade muito grande. Eles estão a nosso lado, mas nós não vemos, porque não andamos naquelas ruas, mesmo quando eles passam nas nossas ruas nós não vemos, não estão nos nossos cafés, não estão nas nossas universidades, então nós não vemos. Vivem connosco, ao nosso lado, servem nas nossas casas, mas nós não os vemos. Isto é, não os vemos como cidadãos, não os vemos como seres humanos.

Então, o primeiro desafio é o da visibilidade, é o da informação. Nós sabemos também como a nossa informação está muito condicionada, somos alimentados pela futilidade. A maior parte das notícias é pura futilidade, é uma telenovelização da vida, da política, da economia que depois não é nada quando as grandes questões do sofrimento humano não são notícia, não interessam, são depressivas para nós, vão aborrecer-nos. Nesse sentido, tem de haver um esforço nosso, ao longo deste ano, de conhecimento, antes de tudo de conhecimento da realidade. Olhar para as situações, fazer perguntas, ver, ver. E depois de ver, julgar.

A grande pergunta é “Onde está o teu irmão?”, que é a pergunta que Deus faz a Caim e que é a pergunta que Deus nos faz a nós. Nós podemos dizer: “Eu tenho as minhas mãos limpas.” Ninguém tem as mãos limpas, ninguém tem as mãos limpas no sentido de que isto é um sistema: para nós estarmos bem, outros têm de estar mal, para nós termos outros não têm. A desigualdade tornou-se um sistema.

“Eu tenho as mãos limpas, eu não fiz nada.” Não, se não fizeste nada também estás a contribuir. A ideia não é não fazer nada e deixar as coisas como estão. A ideia é transformar para tornar melhor, para tornar o mundo mais justo.

Então, precisamos de julgar com a verdade de Paulo. A Carta aos Gálatas é um texto que devíamos ler, este ano, porque é o grande texto que diz o que é ser cristão. Ser cristão é viver numa inquietação permanente, é perceber que não basta cumprir a lei, não basta a norma, não basta o que o imperador nos diz. Se temos o Messias, se acreditamos no Messias, vamos simplesmente estar bem porque obedecemos ao imperador? É um absurdo. Cristo libertou-nos para sermos livres. E livres para quê? Livres para amar, livres para contagiar o mundo, livres para tornar o mundo mais justo.

Há esta pergunta que Deus nos faz “Onde está o teu irmão?” e nós, de facto, precisamos de sair das nossas zonas de conforto, precisamos de ir ao encontro dos pobres, precisamos de ir ao encontro desta humanidade que é escravizada com as formas mais diversas. E, se o Senhor nos tocar no coração a dizer “Tu tens de fazer alguma coisa”, que nós sigamos isso e possamos fazer alguma coisa.

Porque o gesto de amor que nós fizermos não morre. O gesto de amor que nós fizermos não morre, o gesto de não-amor que fizermos ou a nossa abstenção vai pesar-nos, vai pesar-nos.

É isso que o Papa Francisco nos diz, neste primeiro dia da paz: se quisermos a paz, temos de dizer aos nossos irmãos: “Tu eras escravo mas agora és meu irmão.” Isto, há dois mil anos, foi a história do Cristianismo: “Tu eras escravo, tu eras gentio, mas agora és meu irmão.”

Não se fazem cristãos de outra maneira. Nós podemos inventar um cristianismo como um bem-estar, um momento de bem-estar, podemos pensar na salvação da nossa alma. Está bem, isso tudo está certo, mas eu não sou cristão porque penso na salvação da minha alma. Esse é um problema filosófico de todos os homens e mulheres da Terra, de todos os credos e religiões. Eu torno-me cristão quando percebo que há um caminho para ser cristão, e esse caminho é olhar o meu irmão nos olhos e dizer: “Tu eras escravo mas agora és meu irmão.” E sentir que, nessa universalidade – que não é uma teoria, não é uma ideologia, mas é uma prática de vida, uma opção de vida – que nessa prática de vida, nessa universalidade, nessa condivisão de vida eu torno o mundo mais justo, eu coloco Deus no coração da história.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus

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Dezembro

height=”10″][vc_toggle title=”2014/12/28 – A família como lugar de reciprocidade” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Hoje é-nos dado, para contemplar, o ícone da Sagrada Família e desta família tão singular, que é chamada a viver, de forma tão inesperada, o mistério da vida e o mistério da salvação – como são todas as famílias. Nós podemos contemplar também o mistério da nossa própria família. Quer dizer, o mistério deste amor de Deus, que está inscrito em nós.

A família de Nazaré não é uma família tradicional, mas também não há famílias tradicionais, só no nome. Porque o que cada família é chamada a viver, o património de humanidade, de relação, a forma como cada família vive a sua história de júbilo, a sua memória, o seu desencontro, muitas vezes o seu conflito, a sua separação e, também, esta esperança que não se apaga no seu coração, a forma como cada família é chamada a viver isso está retratada na família de Nazaré.

Não há duas famílias iguais, mas cada família é chamada a viver o mesmo, é chamada a viver o mesmo tesouro. Nesse sentido, a família de Nazaré é uma inspiração muito grande, muito grande. Porque, naquela família, tudo foi ao contrário dos planos estabelecidos, todos foram obrigados a ter uma grande pobreza de coração, uma grande abertura ao que Deus revela, ao que Deus manifesta, e uma grande capacidade de fazer vida com aquilo que lhe era dado viver.

Ainda agora, neste Evangelho que lemos, Maria e José vão ao Templo cumprir as regras, cumprir as leis e a sua tradição, como as famílias fazem. É um momento de identidade que funda a própria família: levar o seu Filho ao Templo, agradecer a Deus, cumprir os ritos purificatórios dos antigos. Eles vão e, no Templo, têm uma grande surpresa, porque o que lhes é dito sobre o seu próprio filho leva-os a ficar espantados, eles não entendem.

Vemos, por exemplo, Maria. Maria, em grande medida, acompanha Jesus, é a mãe. Como todas as mães, ela sabe tudo acerca dele mas, ao mesmo tempo, tem de aprender tudo e tudo lhe escapa. O que é belo é ver como Maria está fielmente ao lado de Jesus, do princípio ao fim. Nós podemos dizer: “Maria entendeu tudo?” Intuitivamente, ela estava ao lado do filho, como todas as mães estão ao lado dos seus filhos. Mas, do ponto de vista da compreensão racional, ela não entendia o que estava a acontecer. Mas essa ignorância do outro não era para ela um obstáculo. Pelo contrário, ela foi fiel àquele filho sempre, sempre. Mesmo sem entender, ela foi capaz de acolher, de ser aquela que fomenta a hospitalidade, de ser uma referência.

Ao mesmo tempo José está ao lado deste filho de uma forma tão especial, tornando-o seu, descobrindo-o seu, transmitindo-lhe a vida, transmitindo-lhe os valores, ensinando-o, acompanhando-o. Temos menos informação acerca de S. José. S. Lucas opta por contar-nos a infância de Jesus a partir do olhar da mãe, de Maria. S. Mateus opta pelo olhar de José. Mas nós sabemos como José tem um papel muito importante na vida do seu filho e não poderia ser de outra forma. Se Jesus tinha dentro de si o Pai, que é Deus, também tinha este pai, carpinteiro de Nazaré, que com certeza lhe transmitiu, sem palavras, pelo exemplo, pelo testemunho, pelo contágio, pela relação, coisas tão vitais para a vida do próprio Jesus.

A família não é um lugar perfeito. A célebre primeira frase do romance de Tolstoi, Anna Karenina – “Todas as famílias felizes se parecem, as famílias infelizes é que são interessantes” – diz que, no fundo, a família é sempre um lugar de imperfeição, é sempre um lugar da crise, é sempre um lugar de uma grande pobreza. Se calhar nenhum de nós é tão pobre como no interior da sua própria família. Onde estamos completamente expostos, completamente vulneráveis, completamente dependentes uns dos outros, onde tudo ganha uma dimensão que, noutras situações, não ganharia nunca. Mas é ali, onde a gente parece que sabe tudo e chega ao interior da nossa família e não sabe nada, não consegue resolver e não consegue fazer, é esta pobreza que diz também muito da nossa verdade. Esta pobreza é a força da própria família, é a força da família.

O que dá a força à família não é ela ser blindada, não é ela ser um couraçado. É ela, ao mesmo tempo que é atravessada pela realidade da vida, na força dos laços afetivos, na força de uma confiança inquebrável, ela ser, de facto, uma amarra que parece muito ténue. Mas nós sabemos que é uma amarra decisiva para a construção da nossa humanidade e da nossa vida espiritual, para a nossa vida espiritual.

Mesmo hoje, numa sociedade onde, cada vez mais, o encontro com Deus se faz por iniciação e não por imersão numa determinada família, a verdade é que muitos adultos chegam ao catecumenado, pedem para ser batizados ou crismados numa vida adulta, não tiveram nenhuma iniciação no interior da sua família, mas tiveram pessoas de família que lhes testemunharam. Às vezes é uma avó que, na sua simplicidade, na sua verdade doutro tempo, de outra geração, vive com verdade a sua fé, que depois contagia uma neta, completamente diferente dela, mas que vê, na referência daquela mulher, uma luz para a sua própria vida. De maneira que a família é, de facto, também, o grande motor da transmissão da fé.

A revista francesa L’Express deste Natal trazia uma imagem que não esperávamos ver numa revista francesa: uma família numerosa e diversa, com o título: “O triunfo da família”. E dizia que, nos anos setenta, era moda dizer: “Eu odeio a família.” Porque a família era o grande impedimento para a verdade individual, para a afirmação individual. Era uma família burguesa, impunha valores que eram contrários à aspiração de liberdade dos sujeitos. Hoje, passado meio século, percebemos precisamente o contrário: que, se há lugar onde a experiência de liberdade, a experiência de reconhecimento do que se é, verdadeiramente acontece, é no seio da família. E, nesse sentido, hoje, há uma redescoberta da própria família, e da necessidade da família.

A Igreja está acompanhar, muito de perto, a situação da família. Este sínodo, duplo, que começou em outubro passado, e que acabará no próximo outubro, em que o Santo Padre quer fazer o elogio da família, mas ir ao encontro, também, daquilo que é hoje a realidade da família. Tentando, no fundo, ajudar-nos a perceber como a família continua a ser, e é chamada a ser, um lugar fundamental, um alicerce. Um alicerce, também, para a invenção de nós próprios, para a reinvenção da nossa própria vida.

É interessante que nós encontramos, sobretudo nos textos de S. Paulo, que é o primeiro teólogo do cristianismo, algumas coisas que existiam no seu tempo, na cultura greco-romana, onde também existiam famílias. Porque a família não é um monopólio dos católicos, a família é uma grande causa humana, é um grande património humano e nós, católicos, unimo-nos a todos os homens e mulheres da terra, porque todos nós nascemos no interior de uma família. Muitas vezes se identifica a causa da família com o chamado “povo católico”, mas a causa da família é antes de tudo uma causa humana, completamente transversal. No fundo, o que a Igreja faz é unir-se a esta grande batalha humana pela defesa, pela afirmação e, ao mesmo tempo, pela descoberta. Porque a família não é uma ideologia, a família é uma experiência vital e uma experiência de todos.

S. Paulo vai buscar códigos familiares que já existiam e vai traduzi-los em linguagem cristã. Por exemplo, nesta Carta aos Colossenses – que já não foi escrita por Paulo, é posterior a ele – encontramos um código de conduta familiar que encontramos também nos filósofos estoicos e em algum Direito Romano, e que diz o seguinte: “Esposas, sede submissas aos vossos maridos como convém ao Senhor. Maridos, amai as vossas esposas e não as trateis com aspereza. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, porque isto agrada ao Senhor. Pais, não exaspereis os vossos filhos, para que não caiam em desânimo.”

É claro que este código familiar, escrito no século primeiro depois de Cristo, isto é, há dois mil anos atrás, tem uma linguagem que hoje sentimos que está ultrapassada. Hoje, não falaríamos assim. Não é justo agarrarmo-nos às palavras quando o fundamental é percebermos o que está aqui em jogo. E o que está em jogo, no primeiro cristianismo, é afirmar a família como lugar de reciprocidade.
A grande novidade neste código não é que as mulheres sejam submissas aos seus maridos. Qualquer código e qualquer prática daquela época dizia isso. A mulher tinha de estar submissa, nem era preciso ser escrito. O que é que é novo neste código? É o segundo termo: “Maridos, amai as vossas esposas e não as trateis com aspereza.” Isto é, este estabelecimento de uma reciprocidade de deveres, no interior da relação conjugal, é que é uma coisa completamente nova. Porque, quem tinha deveres para com o homem, era a mulher, que era uma coisa do homem. Mas o homem não tinha nenhuns deveres para com a mulher. Este amor, que o homem é chamado a ter à mulher, é uma coisa que, ao mesmo tempo, subverte e alarga os códigos familiares daquela época.

O mesmo em relação aos filhos: “Filhos, obedecei aos vossos pais.” Os filhos eram propriedade dos pais, mesmo a nível económico. Mas o contrário – “Pais, não exaspereis os vossos filhos, para que não caiam em desânimo” – é uma coisa nova, é criar uma nova qualidade de relações. É isto que temos, queridos irmãs e irmãos, dois mil anos depois, de continuar, a dar qualidade de amor, qualidade de verdade às relações familiares, para que não se tornem relações de poder, relações de manipulação, para que não enfraqueçam a sua qualidade de amor.

Sabemos que é tão fácil isso acontecer, é tão fácil habituar-nos à nossa família como nos habituamos à mobília da nossa casa. Já não há vida ali a circular. Há apenas um hábito, apenas rotina, a sonolência. Ora, é preciso investir numa nova qualidade de amor autêntica, funda, as nossas relações familiares. Para que a nossa família, de facto, tenha um projeto e não seja simplesmente um caminhar à vista, mas tenha uma finalidade, tenha um objetivo.

Nesse sentido, a nossa família tem de estar sempre em estado de conversão, em estado de alerta, em estado de atenção, perguntando pela qualidade da vida que ela alberga no seu seio.

Queridos irmãos: que a família de Nazaré seja uma família modelo para nós. Mesmo no que ela tem de único e que funda também as nossas famílias como famílias únicas, como famílias que não têm outras iguais. Mas aquela qualidade de amor, aquela vida, aquela verdade seja também o que levamos para o interior da família que, dia à dia, hora à hora, nós construímos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo da Sagrada Família

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/25 – Advento / Natal 2014″ open=”false”][dt_cell width=”1/2″]

Domingo I do Advento

Domingo I do Advento

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Domingo II do Advento

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Imaculada Conceição

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Domingo III do Advento

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Domingo IV do Advento

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Domingo I do Advento

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Domingo II do Advento

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Domingo III do Advento

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Domingo IV do Advento

[/dt_cell][/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/25 – No princípio era o desejo de comunicar” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Pensemos no olhar, que é tão importante nas leituras que ouvimos. O nosso olho é uma máquina extraordinária, sofisticadíssima, que nos permite este milagre que é estarmos perante os outros, extasiarmo-nos com a beleza do criado. Os nossos olhos são, contudo, limitados. Hoje, a ciência mostra-nos como tantas coisas escapam ao nosso olhar. Basta colocar uma lente um bocado maior ou um microscópio, para podermos fazer viagens e ver coisas que, com os nossos olhos, nos são completamente invisíveis.

Isto quer dizer o quê? Quer dizer que não existe apenas o que vemos, que esta máquina prodigiosa que é o nosso olhar é uma máquina à nossa medida. Isto é, à medida de seres limitados, frágeis, que da realidade têm uma parte fabulosa, colossal, mas não têm tudo. Nós não dominamos tudo da realidade. Muitas coisas existem, muitos seres existem, que simplesmente nós não vemos.

Quando S. João diz, com toda a verdade, no Evangelho “ a Deus nunca ninguém o viu”, não quer dizer que Deus não exista. Quer dizer que, na nossa humanidade, nós não conseguimos apreender o mistério de Deus. Deus está para lá dos nossos sentidos, para lá da nossa razão. Nós não conseguimos mas, por não o vermos, não quer dizer que Ele não exista. Não, Deus existe e, contudo, nós nunca o vimos.

O que é que se passa no Natal? O que é que se passa com este mistério da encarnação? Não é que Deus desminta o invisível, porque o invisível continua a ter o seu valor, não passa a existir só o que nós vemos, não é apenas este o único regime da existência. Não, há muitas existências que nós ignoramos, que nós não vemos simplesmente, mas Deus quis que nós o víssemos. E este é que é o milagre do amor, que nós celebramos no presépio: Ele tomou a nossa carne e habitou entre nós. Com estes olhos, nós vimos o próprio Deus, vimos o Seu esplendor e tateamos o Seu rosto. Ele esteve no meio de nós. Por isso, o mistério da incarnação que nós celebramos no Natal não torna Deus credível, no sentido que Deus é credível como é: transcendente, imortal, omnipotente, para lá das nossas possibilidades sensoriais. Mas torna o amor de Deus, eu diria, desvairadamente credível.

Porque este Deus infinito quer ser finito, para que eu acredite nesse amor, para que eu, na minha pequenez, na minha fragilidade, me sinta integralmente amado por esse amor, me sinta absolutamente abraçado pela humanidade de Jesus. Deus não precisava de se tornar homem para existir, para ser em Deus, mas para que nós sentíssemos o quanto Ele nos amava. Nós é que precisávamos, nós é que precisávamos de um Deus que nos olhe, olhos nos olhos, de um Deus que tome a nossa carne, que habite esta mistura de contradição entre sonho e sangue, entre noite e dia, entre dor e júbilo. Nós precisávamos que Ele fosse um de nós, que Ele tomasse a nossa condição. Nesse sentido, o amor de Deus torna-se espantosamente credível, porque nós podemos tocá-lo, podemos contemplá-lo.

S. João diz: “No princípio era o Verbo.” Era o logos, que é uma palavra grega que quer dizer muitas coisas e é muito difícil de traduzir. Mas talvez a verdadeira tradução tenha de ser dinâmica. Não é: “No princípio era o Verbo” ou “No princípio era a Palavra”. Mas é: “No princípio era o desejo de comunicar.” No princípio é o desejo que Deus tem de comunicar connosco, de entrar na nossa vida, de bater à nossa porta, de entrar dentro do que somos.

Queridos irmãos: é um mistério que nos deixa sem palavras, é um mistério que nos comove, é o grande mistério da nossa vida podermo-nos abeirar de uma cena como a do presépio e sentir que aquele que está ali, que podia ser eu, que é igual a mim, que é como eu, é o filho de Deus. E que este milagre espantoso acontece por meu amor, para que eu acredite, para que eu confie, para que eu vença o meu desânimo, a minha fragilidade, para que eu suba, para que eu eleve o meu olhar, para que eu viva a minha humanidade como lugar onde eu experimente a salvação e não a condenação apenas, não a morte apenas.

O Natal entrega-nos um Verbo para a vida, para todos os dias do ano, para cada hora que vivemos. E esse verbo é o verbo nascer. É um verbo que, normalmente, colocamos no princípio da nossa vida e, depois, parece que só nascemos uma vez. Ora, o Natal confia-nos o verbo nascer como um programa de vida, como um mapa que nos é dado. E o Menino nasce e diz a cada um de nós: “Agora tu, nasce.” “- Ah, mas eu tenho 80 anos, vou nascer? Ah, mas eu estou a meio da vida, vou nascer? Ah, mas eu já nasci, vou nascer?” “- Agora nasce.”

E nasce como? “Não da carne, nem do sangue, nem da vontade do homem.” Mas agora nasce de Deus. Agora sabe que és filho de Deus, agora torna-te filho de Deus.”

É este mistério, queridos irmãos, que de forma tão funda, para lá das próprias palavras, acontece na vida de cada um de nós.

Sintamos que, a cada um de nós, o Menino diz: “Agora tu nasce, agora tu nasce, agora tu nasce.” Que nós acreditemos que aquela manjedoura é a manjedoura de todos nós e que naquela manjedoura, e naquele Menino, está esta nossa humanidade, representada tal como é, sem coloridos, sem ornamentos, sem idealizações. Está a nossa humanidade tal como é. Mas é a nossa humanidade salva, redimida pelo Divino.

Pe. José Tolentino Mendonça, Missa do Dia do Natal do Senhor

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/24 – Um Menino nasceu para nós” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Porque é que nós estamos aqui, nesta noite? O que é que nos junta uns aos outros? O que é que nos aproxima destas palavras, destes ritos? O que é que este mistério, hoje, traz à nossa vida? O que é que nos move? O que é que buscamos nesta relação? O que é que esperamos? Qual é a pergunta e a expectativa que o nosso coração acendeu, ao longo deste Advento?

Queridos irmãs e irmãos, de que Natal nós estamos à espera?

Hoje, o próprio céu se rompe, e há uma palavra que se escuta: “Nasceu-vos, em Belém da Judeia, um Salvador.”

A única razão, válida, para estarmos aqui, é esta: nós precisamos de um Salvador. A nossa vida, a experiência que fazemos da nossa vida em qualquer idade, é esta. Cada um de nós precisa ser salvo, a nossa vida precisa ser resgatada. Porque, senão, a nossa vida é um inacabamento, a nossa vida é um aberto, é uma pergunta sem resposta. A nossa vida é bater a uma porta que continua fechada, a nossa vida é gritar a um céu que não se abre, é uma travessia na noite, sem esperança de uma aurora.

Nós precisamos de um Salvador e estamos aqui não a fazer de conta que precisamos e nem a fazer de conta que nasceu. Nós estamos aqui porque Deus nos deu um Salvador. E deu, a cada um de nós, este Salvador que toma a nossa carne, que abraça a nossa condição, que vive a partir do nosso sangue e da nossa alma, do nosso alento, que pisa este mundo, que vibra com ele, que sofre, que é ferido, também pela própria existência.

Ele é o nosso Salvador, porque Ele mostra-nos, Ele vem mostrar-nos que é possível. Ele vem mostrar-nos como Deus não é um amor intangível, mas que Deus nos ama com um amor no qual podemos confiar, podemos acreditar. Ele vem para resgatar, para rematar, para dar sentido, para iluminar, para tirar a nossa vida da escuridão, Ele vem para nos salvar.

“Hoje, em Belém da Judeia, nasceu-vos um Salvador.” Nós estamos a dois mil anos desta palavra e estamos tão longe da Judeia, mas sabemos que hoje, nesta noite de 2014, neste lugar onde estamos, esta Palavra é uma verdade para cada um de nós: nasceu o nosso Salvador. E cada um, no seu coração, pode dizer: “ Hoje nasceu o meu Salvador.”

A nossa vida não só vale mais, como se transforma noutra coisa. A nossa vida, finalmente, ganha um sentido, ganha uma força, ganha aquele entusiasmo que só Deus é capaz de trazer, de colocar. Ganha a fé, ganha a esperança, ganha a caridade, que é o dom do próprio Deus, derramado nas nossas vidas.
Hoje nasceu, para cada um de nós, um Salvador. E, por isso, a nossa vida não é só indecisão, não é só este balanço entre o bem e o mal, entre o que queremos e o que não conseguimos, entre tanta coisa, dentro e fora de nós.

A nossa vida não é só isto. Hoje nasceu-nos um Salvador.

No Profeta Isaías e no Evangelho de Lucas, que hoje lemos, há como que uma desproporção na forma como esta verdade nos é apresentada. Lucas, por exemplo, diz: ”O mal será erradicado, todo o vestuário de guerra será ultrapassado, será deixado para trás, toda a violência se extinguirá como fogo na cinza da esperança, tudo isso passará.”

– Como?, perguntamos nós.

– “Porque um Menino nasceu para nós. Um filho nos foi dado.”

Se nos viessem dizer “arranja uma solução para acabar com a violência no mundo”, nós pensávamos numa superpotência, maior que as superpotências atuais, que pudesse pôr cobro, que pudesse pôr ordem nisto. Ora, Deus atua de uma forma absolutamente desconcertante, absolutamente paradoxal, porque não vence a força pela força, não vence a violência pela violência, não vence a guerra com mais guerra.

“Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.” E a mesma coisa nos é relatada no Evangelho de Lucas: “Isto vos servirá de sinal. Encontrareis um menino, deitado numa manjedoura.” O que é que este sinal nos quer dizer? Quer dizer duas coisas, fundamentais, e essa é também a mensagem do Natal:

Nós pensamos que estamos em agonia. Que o nosso mundo está a morrer, que nós próprios estamos condenados à morte, que tudo, no fundo, vai passar, que tudo foi um lugar onde experimentamos alegria e dor, mas tudo isto é para morrer. E o Menino é o símbolo do nascer. Então, nós não somos as testemunhas de uma agonia, estamos aqui para ser testemunhas de um parto, para sermos testemunhas de um nascimento. De um nascimento que não é só o daquele Menino, mas é o nosso próprio nascimento, é o nascimento do mundo. Estamos aqui para sermos cúmplices e para vivermos como cúmplices do nascimento, do nascer, e para olharmos para o mundo não como uma coisa condenada a morrer mas como uma coisa chamada a renascer. Para olharmos para a nossa própria vida não como um crepúsculo, mas como um amanhecer, como uma aurora, como um nascimento.

A segunda coisa diz-nos, no testemunho de Isaías: “Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.” E em Lucas: “Isto vos servirá de sinal. Encontrareis um recém-nascido deitado numa manjedoura.” O segundo argumento é: acreditarmos mais na potencialidade que tem a vida frágil, a vida nua. Porque Deus não nos dá mais nada, dá-nos uma vida nua, dá-nos uma vida estreme, dá-nos a vida na sua condição mais pequena, Deus dá-nos a vida mínima, Deus dá-nos a vida que estremece, a vida que apenas nasce, a vida sem retoques, sem ornamentos, a vida, a vida. Deus dá-nos a vida. E diz: “Acredita, acredita, acredita no poder que esta vida tem, que esta vida tem em Jesus, e que esta vida tem em ti. Acredita, acredita.”

Nós colocamos a nossa confiança em tantos cavalos errados… Acreditamos que o mundo vai mudar se houver isto e aquilo, se houver aqueloutro. E acreditamos que vamos mudar, nós próprios, se houver esta condição ou outra, ou aqueloutra. E a verdade é que nunca nada acontece. Falta-nos dar valor à vida pequenina, ao gesto mínimo, àquilo que apenas nasce, ao rebento e não à flor, à aurora e não ao meio-dia, àquilo que apenas é esboçado, àquilo que está escrito a lápis, àquilo que é fragilíssimo… Percebermos o vigor disso, percebermos como a vida frágil é uma alavanca para a nossa transformação e para a transformação do mundo.

Queridos irmãs e irmãos, o que é que nós viemos aqui fazer? O que é que nós estamos a celebrar? O que é que viemos buscar? Penso que, no fundo do nosso coração, a viagem que aqui fizemos para chegar a este lugar foi uma viagem feita pelos nossos pés, mas é sobretudo feita pelo nosso coração. Viemos aqui buscar esta confirmação que Deus faz, de que está connosco, que Ele é o Deus connosco, e que nós podemos acreditar nisto que desponta, Neste que nasce, naquilo que irrompe, na emergência da vida, da palavra, do sinal. É tudo muito frágil, é tudo muito pequenino, dura apenas uma noite, dura apenas um dia, mas a mensagem, segredada ao nosso coração, é esta: Acredita, acredita, acredita.

Pe. José Tolentino Mendonça, Missa do Galo

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/21 – Natal, erupção da vida nova” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Hoje, a primeira leitura ilumina o que acontece em cada Natal, que é uma espécie de reviravolta, de volte-face. Nós estamos empenhados em preparar a vinda do Senhor, em preparar-Lhe, simbolicamente, um espaço que se torne uma parábola do grande acolhimento, da grande hospitalidade à qual nós estamos dispostos e dizemos: “Maranatha, vem Senhor Jesus”.

Abrimos as casas, encontramos um lugar dentro delas, preparamos formas diferentes no tráfico dos nossos dons, das palavras, dos sentimentos, dos votos, dos desejos. Encontramos, na nossa vida, um modo de Deus chegar. Estão as portas todas abertas, é o quarto domingo do Advento. A contagem decrescente começou e, então, dá-se a reviravolta, o volte-face que é Aquele que o Senhor Deus diz ao rei David que tem um papel tão emblemático na expetativa messiânica. O Senhor diz-lhe: “David, não és tu que Me preparas uma casa, sou Eu que preparo uma casa para ti.”

Queridos irmãs e irmãos: nós não mergulhamos, profundamente, no mistério do Natal se não acolhemos esta reviravolta no nosso coração. Não somos nós que preparamos um presépio para Deus nascer, é Deus que prepara o lugar, é Deus que prepara a possibilidade, as condições dum renascimento de cada um de nós. Jesus é o Deus que se torna homem, para que o homem e a mulher que somos se possam tornar divinos, se possam divinizar. Ele nasceu para potenciar os nossos nascimentos.

Nós podemos perguntar como Maria: “Mas como será isso, se eu não vejo essas possibilidades?” Que o menino possa nascer, simbolicamente, na minha casa, eu acredito, mas que a minha casa toda, e o que ela significa, possa renascer, eu não vejo como. Que eu, pessoalmente, me possa revestir e preparar e abrir as portas para o Deus connosco vir, isso eu percebo; mas que eu possa, na minha rigidez, nos meus entraves, nos meus dilemas, no caminho que estou a fazer, que eu possa, verdadeiramente, recomeçar e renascer, não vejo como, não vejo como.

E a palavra do Anjo, a dupla palavra, é, de facto, a grande palavra de Natal: “Não temas! Não temas!” Isto é, não desanimes, não penses que não é para ti: “Não temas, o Espírito Santo virá em teu auxílio. A sombra do Altíssimo te cobrirá.” E o mistério que acontece na nossa vida humaníssima, na nossa vida fragilíssima, é ação do próprio Deus. É Ele quem pode renovar, é Ele quem pode transformar as nossas vidas, é Ele que pode fazer acontecer, dentro de cada um de nós, esse Natal, essa erupção da vida nova, cintilante, essa possibilidade de uma esperança maior do que aquela que somos capazes, é Ele que pode acender isso em nós.

O que é este novo nascimento? S. Paulo diz o que é, com uma palavra só, que é uma das palavras mais importantes desse texto maior da memória cristã que é a Carta aos Romanos, que hoje lemos. Ele diz: “O grande mistério, revelado, esperado desde sempre e agora revelado é este: Deus Pai confirma-nos.”
Uma palavra só: “Confirma-nos”. Deus confirma-nos. O que é o Natal? O que é o Natal 2014, que estamos prestes a celebrar? É esta confirmação que cada um de nós tem, que é chamado a sentir dentro de si, de que é confirmado por Deus, confirmado como filha, como filho amado, como filho e filha queridos, em quem Deus coloca todo o Seu amor.

Deus confirma-nos. Deus confirma-nos e a nossa vida passa a valer mais. Porque não é só o que somos, não é só o que conseguimos, não é só o que trazemos, não é só o que arrastamos vida fora, não é só isso. É o olhar de Deus pousado na fragilidade que eu tenho, que eu sou. É o olhar de Deus em mim, que me confirma, muitas vezes para lá das próprias evidências, e contrariando-as. É esse olhar de Deus que me confirma, contra toda a Esperança. Deus confirma-me, e diz: “Tu és a minha filha, tu és o meu filho.”

Essa certeza do amor de Deus depositado, mostrado, por Jesus, face a face, na nossa história, essa certeza indefetível desse amor que não falha, desse amor no qual nós podemos confiar. Deus é um Deus credível, o Deus connosco é um Deus credível, no qual um homem e uma mulher pode acreditar. Nós acreditamos nesse amor, e acreditamos que esse amor é-nos dado como fundamento, como pedra angular, como razão, como possibilidade, como manjedoura onde nós nascemos.

Queridos irmãos, nós temos de olhar para os nossos dias e sentir isso: não somos nós que estamos a construir uma manjedoura, é Deus que faz do tempo da nossa vida, deste tempo onde estamos, deste aqui e agora, o lugar da nossa confirmação, o lugar do nosso nascimento. Abramos por isso o nosso coração em alegria.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Advento

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/14 – A arte de fazer a alegria” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Tomemos esta afirmação de João Batista para nos ajudar a aprofundar a palavra da liturgia deste domingo: “No meio de vós está Alguém que não conheceis.” É uma frase enigmática, um pouco surpreendente, desconcertante. Mas, ao mesmo tempo, é uma chamada de atenção para a nossa vida.
“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Porventura, a parte mais significativa das nossas vidas está submersa à nossa própria consciência. Está lá, mas nós não vemos. Está connosco, mas não nos damos conta, já está no meio de nós mas ainda não fazemos disso o motivo da nossa esperança, o motivo da nossa alegria.

“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Se à nossa vida falta, tantas vezes, aquela porção de alegria que a tornaria alguma coisa que valha realmente a pena aos nossos olhos, aos olhos dos outros, se muitas vezes é tão mais fácil nos afundarmos na lamentação, se tantas vezes olhamos obsessivamente para o copo meio vazio e não para aquilo que já temos, para o que já está connosco, para aquilo que já nos é dado, é precisamente por isto: porque está connosco, no meio de nós, isto é, cravado no meio do nosso coração, da nossa vida, Alguém que nós não conhecemos, ou vivemos não fazendo caso, ou vivemos como se não O conhecêssemos.

“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Neste Domingo da Alegria, o grande desafio é descobrir aquilo que já está colocado em nós, aquilo que nos habita. Porque nós só seremos discípulos e discípulas da alegria, só rejubilaremos, só sentiremos que as nossas entranhas rejubilam da alegria, como diz o profeta Isaías a propósito do Messias, se tomarmos consciência daquilo que já nos habita, do que já temos, daquilo que já está connosco.

O que exaspera a nossa vida é o sentimento de falta, de nunca conseguirmos. Falta sempre alguma coisa, nunca nada é perfeito, nunca nada está acabado, nunca nada está resolvido. Falta-nos sempre um instrumento: se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo da nascente buscar a água que nos dessedente. Falta-nos sempre alguma coisa.

Nessa narrativa espiritual tão intensa que é O Principezinho, de Saint-Exupéry, ele explica que não nos falta nada. Não nos falta nada. Já está tudo. Cada um de nós tem tudo o que precisa para experimentar hoje, no aqui e no agora, a alegria. Temos tudo o que precisamos.

“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” O nosso problema em relação à alegria não é de a inventarmos, de a buscarmos, de precisarmos de descobri-la sabe-se lá onde. Não, é um problema de conhecimento, é um problema de olhar. Olharmos para a vida, olharmos para o que somos, olharmos para o que nos rodeia de uma outra forma, com um coração agradecido, com um coração capaz de perceber aquilo que o habita.

No texto do Profeta Isaías que hoje lemos e que Jesus vai ler na sinagoga da sua terra, Nazaré, diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar, para dar vista aos cegos, para libertar os prisioneiros, para anunciar um ano da graça.” E depois disto, diz: “Por isso eu me alegro no Senhor.” Então, a alegria não é uma coisa externa a nós nem é uma invenção que cada um de nós é capaz de fazer: a alegria, antes de tudo, é um dom, um dom que nós recebemos. É porque o Espírito nos habita que nós somos capazes da alegria. É porque esse dom de Deus é derramado em nós e nos dá uma capacidade que nós não temos! Mas é essa capacidade de Deus em nós e é na medida em que nós reconhecemos o dom de Deus na nossa vida, em que reconhecemos aquilo ou Aquele alguém que já está no meio de nós, que nós somos capazes da alegria.

É muito belo o discurso, esta conversa de João Batista com as autoridades de Jerusalém:
“-Tu és o Messias?
– Não.
-Tu és Elias?
– Não.
-Tu és o profeta esperado?
-Não.”

Nós, muitas vezes, pensamos que a alegria é uma espécie de consequência de sermos, ou de conseguirmos, ou de obtermos. João Batista não é nada: não é o Messias, não é Elias, não é o profeta. Isto é, não tem nenhuma tentação messiânica, não acha que é o que não é, não se inspira nele próprio.

“- Não sou. Não sou. Não sou.
– Então porque é que batizas, se não és?
– Eu batizo com água, eu preparo o caminho para alguém que virá depois de mim. E eu não sou digno desse que virá depois de mim.”

Que modelo maravilhoso de vida, que modelo maravilhoso de vida para nós. Uma máquina de infelicidade é vivermos cheios de nós, vivermos angustiados porque não somos, porque não conseguimos, porque não somos o Messias, porque não resolvemos tudo, porque não, porque não. Só quando morremos para esse tipo de ambição, só quando deixamos de lado essas exigências exageradas e perturbadas do nosso eu é que verdadeiramente começamos um caminho espiritual. Um verdadeiro caminho para a alegria começa por dizer:

“ – Eu não sou. Eu não sou o Messias, eu não sou a fábrica da alegria, eu não tenho a solução mágica, eu não consigo. Eu não.
– Mas então o que é que tu fazes?
Eu ponho-me como uma sentinela, eu coloco-me na iminência, eu preparo os corações, eu uso água, não uso fogo.”

Isto é: “Eu uso o que posso, eu uso o quotidiano, eu uso os instrumentos da vida, eu uso a sua banalidade, a vida pequena, eu batizo com água, mas sei que sou uma sentinela da aurora, sei que estou à espera dum Senhor, sei que estou à espera do grande Rei. E, nesse sentido, eu não valho por mim mesmo, eu valho por aquilo de que estou à espera, eu valho pela porção de futuro que me habita. A minha vida não é apenas o que eu vivi. Às vezes começamos a fazer contas ao que vivemos e é uma solidão muito grande.

Ainda ontem encontrei uma pessoa, que veio ter comigo: “Eu estou numa solidão enorme, olho para a minha vida e acho que falhei em toda a linha.” E eu disse: “Bem-vindo ao clube, meu irmão, porque eu estou exatamente como tu.”

O que é que dá sentido à vida? Não é o que fizemos. Só um ingénuo fica completamente feliz com aquilo que fez e não percebe que devia ter feito o triplo, cem vezes mais. Então o que é que nos redime? O que é que nos salva? O que é que nos enche o coração? É colocarmo-nos na fronteira de um futuro que seja maior do que nós. É percebermos que somos servos daquele que virá, que o momento mais importante não foi este presente, mas é este presente a trabalhar pela tensão de um futuro muito maior.

“Eu batizo com água, mas virá Aquele que batizará com o Espírito Santo e com o fogo.” E, nesse sentido, nós somos servidores do futuro, estamos a antecipar o futuro, fazemos pequenas coisas, sinalizamos com os nossos gestos de amor, de criatividade, sinalizamos Aquele que virá. E quando nos colocamos assim, a vida torna-se outra coisa.

Ainda sobre a alegria, lembro-me de uma coisa que li e uma coisa que ouvi. Uma coisa que ouvi foi o Miguel Esteves Cardoso a dizer: “O maior pecado é não nos alegrarmos com as alegrias dos outros.” Isso fez-me pensar porque, mesmo se facilmente choramos com as dores dos outros, é mais difícil alegrarmo-nos com as alegrias dos outros. E isso pede de nós um trabalho de habitar esta fronteira, de não querer ser, mas habitar esta fronteira esperando Aquele que será maior do que nós. Pede uma humildade muito grande e uma solidariedade pela positiva. Porque é muito importante que sejamos solidários nos momentos difíceis, mas é muito importante ser solidário nos momentos de alegria, nos momentos de êxito, nos momentos de sucesso, alegrarmo-nos com as alegrias dos outros.

E há outra coisa que Chesterton ensina tão bem. Ele diz: “O cristão é o mais alegre dos homens.” E é o mais alegre porquê? O cristão, em relação às pequenas coisas da vida, até pode ser triste, e pode viver uma existência triste mas, em relação às coisas grandes da vida, é habitado por uma alegria que nada derruba. Ele diz: “Aqueles que não acreditam até podem viver uma vida onde se alegram, mas, quando pensam na eternidade, quando pensam na morte, o seu coração inevitavelmente enlutece, entristece.” Por isso, a nossa alegria também não é deste mundo, e precisamos de saber isso, perceber o que é que isso significa na nossa vida porque, porventura, a coisa mais importante é nos sentirmos nómadas, nos sentirmos itinerantes, nos sentirmos em viagem.

Quando pedem a João Batista para explicar o que é que ele é – “Então o que é que tu és?” –, Ele responde: “Eu sou a voz do que clama no deserto, endireitai o caminhos do Senhor.” É esta a nossa tarefa: nós somos chamados a endireitar a via do Senhor, aquela via que atravessa o deserto, e a fazer disso a razão da nossa alegria.”

Queridos irmãs e irmãos, sintamo-nos responsáveis pela alegria. Estamos perto da refeição mais importante do ano nas nossas famílias. Fazemos viagens, vem gente de longe, estamos todos à volta. E, claro, é preciso ter o que se coma, ter as coisas boas que assinalam, pela tradição, a memória, a história da família, as coisas da nossa infância. E esse reencontro é tão estruturante, é tão importante. Mas não é apenas a mesa, a decoração, que tem de ser a mais bela. E não é o conteúdo que tem de ser o mais saboroso, ainda não é isso. O importante é que a alegria circule de coração a coração. Nós temos de ter esta arte, esta capacidade, porque uma mesa de Natal também pode ser uma máquina de fazer solidão, de ampliar a solidão, de ampliar o desencontro. E, nesse sentido, é-nos confiada esta tarefa de aprender a fazer a alegria, como com duas pedras se faz o fogo, com dois corações se faz a alegria. Aos cristãos é pedida esta arte de fazer a alegria. Se pudermos juntar outras artes, tanto melhor, mas não deixemos que esta arte, que é uma arte profundamente espiritual, esteja ausente da nossa vida.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento

Clique para ouvir a homilia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/11 – Luís Miguel Cintra lê “Os Portais do Mistério da Segunda Virtude“, de Charles Péguy” open=”false”]No dia 11 de dezembro, às 21h30, na Capela do Rato.

http://www.snpcultura.org/luis_miguel_cintra_le_charles_peguy_1.html
http://www.snpcultura.org/luis_miguel_cintra_le_charles_peguy_2.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/10 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/08 – Colocar os olhos na Graça original” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

O Livro do Génesis, que hoje lemos no contexto da grande solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, coloca-nos a questão das origens e da transgressão das origens.

Nós perguntamos: o que está no princípio do Homem? A própria cultura judaico-cristã, mas também a cultura ocidental não religiosa, olha para o fundamento humano como uma espécie de crime original, de pecado original.

Sentimos que há uma culpabilidade e uma fratura na nossa consciência, que como que nos funda. Esse mal é algo que nos acompanha, que está presente no mundo quando nascemos, que nos contagia. É alguma coisa para a qual não temos explicações. Na nossa história individual podemos encontrar as explicações, mas há sempre alguma coisa sobre o mal que fica por explicar, porque é um mistério enorme.

Nós não conseguimos iluminar, racionalmente, este sentimento de culpa, de falha, de transgressão que aparece na história do Homem. Muitas vezes, é o único patamar para justificar aquilo que vemos de violência sem sentido, puramente gratuita, de exercício de maldade prepotente. Nós pensamos: mas o que é isto? Como é que o ser humano é capaz desta coisa hedionda? A verdade é que ela existe. Olharmos para a natureza humana não é sermos pessimistas, mas é percebermos que, na nossa natureza, o mal está presente. O mal está, e é possível o mal existir.

Como é que ele entrou na nossa vida? A Sagrada Escritura fala-nos por metáforas, fala-nos por símbolos. Na história desta desobediência original está uma tentativa de explicação teológica pela fé, de alguma coisa que depois atormenta tanto a nossa realidade. Todos nós sentimos esta vulnerabilidade, esta fragilidade moral, este mal que tantas vezes nos visita e que não sabemos de onde vem, que é maior do que nós.

Mas será que é isso que explica o mistério da vida do homem? Será que é isso que explica o que eu sou como mulher e como homem?

O grande filósofo cristão, Paul Ricoeur, que pensou muito a questão do mal original, propõe que esta reflexão sobre o mal não nos desvie de uma outra, mais fundamental, que é a reflexão do bem fundamental. Ele diz que mais do que falarmos do pecado original – que não podemos simplesmente descartar (eu acho que às vezes facilmente nós descartamos), pois tem um sentido que se calhar precisamos de reinterpretar, dado que ele expressa uma realidade humana fortíssima – mais do que falarmos do pecado original, devíamos colocar os olhos na Graça original.

Cada um de nós, mais do que fruto de uma transgressão, de uma desobediência ou de um crime original, é fruto de uma Graça original. É absolutamente comovedor este começo da Carta aos Efésios que hoje nós proclamamos. Porque é a frase mais comprida do Novo Testamento: no texto original grego são 24 verbos, alinhados, sem qualquer ponto, só no fim é que tem um ponto. É uma frase, todo o texto que hoje lemos, é uma frase que se lê quase sem respiração. E essa frase é a visão sobrenatural do Homem.

O que é que é o Homem para Deus? E então nós lemos isto: “Bendito seja Deus porque Ele nos abençoou com toda a espécie de bênçãos em Cristo. Ele nos escolheu para sermos santos e irrepreensíveis, Ele nos predestinou para sermos Seus filhos adotivos por Jesus Cristo.”

Nós fomos constituídos herdeiros, fomos predestinados conforme a decisão da Sua vontade, para sermos um hino de louvor da Sua graça. Reparem, nós somos consequências, somos um fruto da graça de Deus. É verdade que em nós encontramos também este enigma do mal, mas maior do que esse enigma é o enigma do bem. É o enigma do amor, que nos habita desde a raiz. É tão fundamental que cada um de nós sinta que o olhar de Deus para a sua vida, para a sua história concreta, é um olhar de amor. Deus olha para nós e diz: ”Minha filha amada, meu filho amado, Eu sonhei contigo desde sempre. Eu enchi-te de todas as bênçãos, Eu fiz de ti o meu herdeiro, o lugar da minha beleza, o lugar do meu louvor.”

É com estes olhos que temos de olhar para a nossa vida e para a vida uns dos outros. Como lugares, moradas da própria graça, da própria divindade, da própria transcendência. Cada um de nós é uma história sagrada e, nesse sentido, tem de haver uma revitalização da vida. É verdade que o nosso olhar tem de ser um olhar adulto para perceber o que é que nos habita, perceber mesmo o mistério do mal, perceber como ele se torna táctil. Mas, meu Deus, a que distância o mistério do bem deixa o mistério do mal. Por isso nós não podemos ser pessimistas.

Um cristão não desarma nunca, nunca, nunca. Um cristão não desarma. Há sempre caminhos, há sempre soluções, há sempre possibilidades. Um cristão é um antídoto contra o irremediável. Para um cristão nada, nunca, não tem remédio. Tudo é possível porque nós fomos olhados, olhados por Deus, nós fomos declinados pelo Seu amor, pela Sua misericórdia. Por isso, a nossa vida tem um valor, a nossa vida vale mais do que nós próprios, tem outro valor. Por isso o Advento, o Deus encarnado, é um investimento na vida da pessoa humana. Nós temos de sentir que Jesus, cruzando os nossos caminhos com os Dele, tornou a nossa vida preciosa. É isso que é preciso testemunharmos, como cada vida, a nossa vida, é uma coisa preciosa, que temos de tratar com veneração. Que temos de tratar com aquela atenção, com aquela dedicação que dedicamos ao bem mais raro, mais precioso que tenhamos.

Hoje, celebramos a festa da Imaculada Conceição e, na nossa caminhada do Advento, Maria aparece também como um modelo para construirmos a nossa própria vida no seguimento dela, colocarmos, atirarmos para ela o nosso coração. Ontem víamos a imagem de João Batista, hoje temos a figura de Maria. E Maria é construída com três grandes traços perfeitamente admiráveis:

Primeiro, Maria é uma mulher da escuta. Ela não está desligada. Ela vive numa porosidade, ela deixa-se visitar, no coração dela e na vida dela ela tem as portas abertas. Às vezes vivemos uma vida autista, completamente desligada, vivemos na nossa cápsula, no nosso mundo. Nem um anjo de Deus pode visitar-nos. Estamos cegos e surdos ao que quer que seja, queremos lá saber, queremos lá ver. Uma vida assim não é uma vida visitável. Nada nos visita. Às vezes passam-se semanas e meses e nós não ouvimos nada, não vemos nada porque também não estamos disponíveis. Não temos as portas do nosso olhar e do nosso coração abertos à vida, não nos deixamos surpreender. Quando, a dada altura, começamos a caminhar pela vida fora a achar que já nada nos surpreende, que já sabemos de tudo, entramos num desalento e num desânimo, e mesmo num ressentimento em relação à vida que nenhum anjo nos vai visitar assim. Um anjo só nos visita quando temos o coração desarmado, quando estamos disponíveis para a surpresa, disponíveis para acolher, para acolher a vida e essa é a coisa mais bela. Mesmo na nossa fragilidade, naquilo que nos fere, naquilo que sabemos e não sabemos, deixar que a vida passe por nós, que a vida fale, que a vida nos diga, escutemos. Um ver que seja um ver, um ouvir que seja um ouvir, um estar que seja um estar. Estarmos. E esta hospitalidade nós percebemos que Maria tem, ela está ligada.

Depois, Maria é de uma honestidade a toda a prova, a toda a prova. Às vezes nós falseamos, quer dizer, sabemos um bocado cinicamente que aquilo não é bem assim, mas vamos estamos na festa, estamos a acompanhar, não estamos mas estamos. Maria é de uma honestidade a toda a prova. Quando o anjo lhe diz: “Ave. O Senhor está contigo.” Ela fica a pensar: “Mas o que será isto? O que será isto?” E quando o anjo lhe anuncia o que vai acontecer, ela pergunta: “Como é que isso pode ser, se eu não conheço homem?” Honestidade, honestidade. Porque Deus não falseia, não é um ornamento para a nossa humanidade. Não. Nós temos de ser salvos com verdade, com a nossa verdade, e é importante fazer perguntas a Deus. É importante abrir o nosso coração mas colocar a nossa razão. A fé não é apenas um sentimento onde vamos entretidos, não, não é um entretenimento, é a partir daquilo que eu sou. Por isso, é importante que eu seja profundamente honesto na minha vida espiritual, profundamente honesto. Um sim que é um sim, um não que é um não, uma pergunta que é mesmo uma pergunta. Não andar ali, num jogo de mascaramento, não. Maria põe-se na sua verdade. Não são obstáculos que ela põe, mas também é uma reflexão a partir da sua própria vida. “Diz-me como é que pode ser, diz-me, eu não estou a ver como. Explica-te.” Esta honestidade é alguma coisa que nos purifica muito. Custa muito ser honesto a dada altura, e ser honesto mesmo na nossa relação com Deus. Custa-nos muito, pomos subterfúgios, preferimos fazer de conta, não ouvir, ou não ver, ou virar costas, ou adiar. Maria coloca as questões. Porquê? Porque ela está a expor-se. Honestidade é uma forma de exposição. “Olha, a minha condição é esta e eu não vejo como é que isso possa ser.” Esta atitude de Maria é muito desafiadora para as nossas vidas.

Por fim, Maria descobre neste encontro com o anjo que a sua vida está ao serviço de uma vida maior, de um projeto maior. Isto é, que a vida não começa e acaba nela, não começa e acaba nos sonhos que ela teve para a sua vida, nos desejos que ela teve, com certeza, no coração de rapariga sonhadora que ela era. A vida não acaba no perímetro dos desejos e dos sonhos que ela fez de felicidade para a sua vida. Mas o Senhor chama-a a colocar-se ao serviço de uma felicidade maior, imprevista, com a qual ela não tinha nunca sonhado, nem poderia sonhar. Mas o Senhor diz: “Olha, a tua vida é para servir uma vida maior, para servir uma coisa maior.” E Maria diz: ”Eu sou a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua palavra.”

Queridos irmãos: Maria tem esta capacidade de escutar e acolher a vida, de ser visitada, de não viver com a porta fechada. Maria deixa-se visitar. Tem esta honestidade muito grande, esta exposição, e depois esta compreensão de que a vida não é apenas a realização da felicidade que eu pensei para mim próprio, mas que é a compreensão de que estou ao serviço de uma história maior, de uma história que me ultrapassa, e na qual o Espírito Santo me vai dar a força de participar, vai-me dar a competência de ser, colocando-me inteiramente ao serviço.

São três atitudes que nos ajudam muito a viver este Advento. Vamos pedir ao Senhor que nos ajude neste caminho, que é um caminho também de transformação. Nós vamos chegar ao presépio na medida em que sentirmos que Ele vai nascendo dentro de nós. Nós só podemos reconhecer Aquele que nasce se já o trouxermos nascido no fundo da nossa alma.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Imaculada Conceição

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/07 – João Batista vem para sobressaltar” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

No Advento são-nos apresentados vários modelos que representam para nós, na sua exemplaridade, um desafio à transformação, ao rasgar do nosso coração para acolher o Jesus que vem.

Hoje, o modelo apresentado é a figura de João Batista. É útil integrar João Batista no movimento messiânico de expectativa, no movimento político reformista que a Palestina do tempo de Jesus conhecia. Jesus aparece, mas o seu discurso é um discurso muito próximo ou começa por ser muito próximo de tantas outras vozes que desejam a mudança, que não estão contentes com o status quo da situação, a quem não basta o conformismo em que o povo tinha caído sob a soberania do Império Romano, aquela adaptação a uma realidade já sem fulgor, já sem intensidade.

No tempo de Jesus, muitas vozes se levantaram a pedir uma mudança. Hoje nós seguimos uma dessas vozes: João Batista, que o próprio Evangelho de Lucas nos apresenta muito próximo dos círculos sacerdotais de Jerusalém. Quer dizer, João Batista era filho de uma das boas famílias ligadas ao Templo de Jerusalém. Mas o que quer que tenha acontecido, este jovem lê o profeta Isaías e diz: “Isto não pode ser só uma palavra. Isto tem de ser uma forma de habitar o tempo.” E então deixa Jerusalém, deixa o tipo de vida que se tinha ali à volta do Templo, à volta daquele comércio e nas grandes cidades e opta por ir estabelecer-se ao pé do rio Jordão.

Não é uma escolha inocente, porque o Jordão é o quilómetro zero da história de Israel. Foi ali que tudo começou, quando o povo, vindo do deserto, atravessou o Jordão e entrou na terra de Israel. Quando João Batista escolhe o Jordão é para dizer: “Vamos voltar ao princípio, vamos pensar o que é que somos realmente a partir do ponto um.” Ali, ele constrói uma alternativa, ele percebe que Deus só pode entrar na vida daquele povo se este se abrir. Isto é, se relativizar a sua forma de viver. Então, vai vestir-se desta forma estranhíssima, ter uma alimentação que não era a alimentação comum do tempo, optando por um modelo de ascética radical, comendo mel e gafanhotos, e vestindo-se com um cinto de cabedal e com uma pele de camelo, um pouco à maneira da tradição profética de Israel.

Mas o que é que ele nos quer dizer com isso? Quer dizer que só vamos perceber o tempo de outra maneira, o tempo só será um tempo oportuno para o Messias se formos capazes de relativizar o nosso estilo de vida, a nossa maneira de viver, as nossas correrias sonâmbulas, o nosso status, a nossa condição, a nossa estabilidade. João Batista vem para sobressaltar. A sua voz é um sobressalto.

Queridos irmãos, para quem está completamente contente, completamente coincidente, completamente realizado com aquilo que tem, com aquilo que vê em seu redor, não haverá Natal. O Natal chegará para os corações que se abrem em insatisfação, em procura, em pergunta, em desejo, em necessidade vital de que Jesus venha para transformar, para salvar a nossa história. Por isso, João Batista é esta sentinela que nos diz: “É preciso fazer penitência.” Isto é: é preciso afastar-se da vida que vivemos, porque às vezes estamos tão colados, tão preocupados com o que está diante dos nossos olhos que perdemos todo o sentido crítico.

E o que é que os profetas fazem? Devolvem-nos o sentido crítico, aguçam-nos a consciência em relação a nós próprios, aos nossos limites, à nossa zona de conforto. “Se calhar, estou a viver isto tudo com uma grande veracidade e intensidade mas o essencial não está aqui. Se calhar, estamos a montar tudo e a preparar tudo, mas não é isto, não era isto o suposto, não é isto que nos transformará.” Nesse sentido, a voz de João é uma voz exigente, é uma voz que nos sobressalta e que nos diz: “Espera lá, mas onde é que eu estou?”

O que é viver nesta expectativa messiânica? O que será acolher o Messias que vem? A verdade é que romarias de pessoas passam por ali para ser batizadas, neste espírito de penitência, que é no fundo este abalar. Porque Jesus só vem porque nós precisamos Dele.

Às vezes o que parece da celebração do Natal é que é uma festa supérflua. É bonita, é comovedora, é isso tudo, mas verdadeiramente não é necessária. Não é necessária, podíamos não abrir este caixote, poderíamos não estar aqui a ter esta conversa. João Batista vem, com a sua verdade, dizer: “Este povo precisa de salvação, este povo precisa de transformação.” Por isso, bendita insatisfação, bendito o desejo de mais, bendita crise, bendita rutura, benditos caminhos que nós buscamos. Porque, como diz Fernando Pessoa, “triste de quem está contente” com a sua vida.

João Batista é esta voz que nos abala. Mas João Batista é também uma grande figura da humildade. Dizemos que nós, portugueses, achamos sempre que aqueles que estiveram antes de nós são uns incompetentes e aqueles que vêm depois de nós são uns cretinos e nós, no fundo, somos os únicos que podemos salvar. João Batista é o contrário disto. João Batista é aquele que diz: “Eu não sou digno daquele que virá depois de mim.” De facto, se nós nos armamos no nosso narcisismo em centros do mundo – “Eu é que sei, eu é que faço, eu é que posso conseguir” – nunca perceberemos isto que João Batista diz: “Depois de mim vai chegar quem é mais forte do que eu.” Isto é, nunca nos colocamos na brecha, na fratura, na fronteira, nunca somos sentinelas de nada.

Mas nós somos tudo, somos o anunciador e a própria mensagem. Essa também é uma das fontes dos nossos equívocos e da nossa infelicidade. Nós somos anunciadores, somos sentinelas, somos servidores, somos visionários, nós documentamos aquele que há de vir e que é mais forte do que eu e do qual não somos dignos de desatar a correia das sandálias.

A nossa posição tem de ser a de servos do futuro, de elos de uma cadeia que nos supera. Nós não somos donos, nós somos guardadores, somos transmissores de uma vida maior, somos apenas um elo desta corrente extraordinária de vida. João Batista é, de facto, uma figura que, de diversas formas, nos coloca no lugar.

Magnífico texto é esse, também, da Epístola de S. Pedro que nós lemos. A dada altura, o autor da epístola junta dois verbos: esperar e apressar. Nós temos de esperar a salvação, mas temos de apressar a salvação, temos de apressar a manifestação de Deus. Porque no coração do cristão tem de haver muita expectativa.

E o que é que nós esperamos? Esperamos, segundo a promessa do Senhor, um novo céu e uma nova terra onde habite a justiça. É esta a nossa expectativa. Mas não é apenas uma expectativa conformada: “Olha, quando vier, virá. Se vier, ou se não vier, sei lá.” Não, é uma expectativa que nos compromete, porque somos chamados a apressar a vinda do Senhor, a torná-la presente, a torná-la efetiva, a viver já nesta tensão daquilo que está para chegar, daquilo que há de renovar, que há de trazer um alento, um sopro novo à própria história.

O profeta Isaías deixa-nos com três imagens impressionantes.

Começando pela última, a imagem de que Deus é aquele pastor que toma os cordeiros nos seus braços – a relação de afeto, de dedicação que Deus tem à nossa vida e à vida de todos. Sentirmos isso verdadeiramente, que não somos nós que estamos a construir uma gruta, umas palhinhas, um lugar para o Menino nascer. Não. Ele é que nos prepara o lugar, Ele é que nos prepara uma manjedoura, Ele é que nos prepara o Natal. Nós estamos nos seus braços. É aí, no mistério da ternura de Deus, do Seu afeto, que a nossa vida, qualquer que ela seja, está colocada.

A imagem do meio é a imagem da paciência, da paciência de Deus. Deus que sabe esperar, Deus que perdoa e que dá tempo para nos podermos converter. São Pedro também há de continuar essa imagem, que foi muito importante na tradição profética e será na tradição cristã. Deus é paciente, Deus espera, Deus sabe esperar por todos. Mas não façamos desta espera um tempo de dispersão, antes um tempo de atenção, um tempo de vigilância. Para podermos de facto corresponder aquela que é a missão que o Senhor nos dá.

E a primeira palavra e imagem do profeta Isaías é essa: “Consolai, consolai o meu povo, diz o Senhor.” O nosso ministério é um ministério de consolação. Há um texto, uma pequena novela muito famosa, de um escritor contemporâneo, Stig Dagerman, que tem um título terrível e impressionante: A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer. De facto, se formos perguntar ao coração dos nossos contemporâneos, esta frase está gravada no coração: “A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.” Por isso, muitas vezes chegamos ao Natal e olhamos com um perfeito cinismo. O presépio está ao nosso lado, mas o que é aquilo? Aquilo é um símbolo. Gostamos, mas sabendo que não serve, que não vai mudar a nossa vida; não é feito para mudar, é feito para mantermos esta história, para atravessarmos o inverno com menos peso deste tempo de escuridão e de frio. Este olhar cínico de quem já desistiu, de quem olha para o símbolo e escuta a palavra mas percebe que ela já não é para si porque no seu coração está ferido, porque no seu coração já vive a derrota e sabe que nada o poderá resgatar, que nada o poderá consolar. Mas, sabendo isso, Deus diz-nos, pela boca do profeta Isaías: “Consolai, consolai o meu povo, diz o Senhor.”

Queridos irmãs e irmãos, nós temos uma grande missão este Advento que é tornar o Natal, tornar a experiência do verbo encarnado, de Deus connosco, uma experiência de consolação, uma verdadeira boa nova. Não apenas uma tradição. De que nos serve se o fundamental não é de facto esta mensagem de verdade, dizer olhos nos olhos: “Há um salvador que nasceu para ti. Olha que isto não é uma fábula, não é a lenda do Ocidente. Não, isto é a boa nova, isto é a palavra, é a âncora que tu precisas. Ele está contigo, Ele veio para ti. Deus fez-se carne e osso, assumiu o teu corpo, a tua condição, a tua fragilidade, está contigo, veio para te ver, para te olhar, para te abraçar. É Ele que te salva.”?

É quando nós somos capazes de testemunhar isso a nós próprios e aos outros que esta impossível consolação do homem se torna possível, se torna o milagre que nós vemos acontecer.

Queridos irmãos, fujamos do símbolo pelo símbolo, demos carne e osso ao Natal, tornemos o Natal encarnado nas nossas vidas, testemunhando que no centro está a pessoa de Jesus e o que Ele significa na vida de cada um de nós. Aquilo que Job dizia a plenos pulmões e com a carne em fogo: “Eu sei que o meu Redentor está vivo!” É essa palavra que nós temos de dizer: Eu sei que o meu Redentor está vivo! Sem esta palavra não há consolação. Há imaginação, há pieguice, há tradição, há isso tudo mas não há consolação. “Consolai. Consolai o meu povo, diz o Senhor.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II do Advento

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/12/02 – Conversas à Capela – Itinerários do Advento – Para uma mística do tempo presente” open=”false”]Este Advento, somos convidados a iniciar um caminho para uma mística do tempo presente, centrado na teologia dos sentidos. O primeiro encontro será uma reflexão geral sobre o tema, orientada pelo Pe. José Tolentino Mendonça, no dia 25 de novembro, às 21h30, na Capela do Rato. Os restantes encontros serão dedicados aos diferentes sentidos – Ver e Ouvir, Tocar, Saborear e Cheirar.

25 de Novembro –  21h30
Reflexão geral
José Tolentino de Mendonça

2 de Dezembro –  21h30
Ver e Ouvir 
Paulo Pires do Vale e João Madureira

[/vc_toggle] height=”30″]

Novembro

height=”10″][vc_toggle title=”2014/11/30 – O Advento é uma interrupção” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Quando penso neste tempo do Advento e no seu significado profundo muitas vezes me recordo de um livro do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. É um livro de poesia. A Sophia de Mello Breyner gostava muito desse livro. E esse livro o que é que conta? Conta a história do Severino. O Severino é o Homem, é o Adão, é o Homem sobre a terra, é o Job. Este Severino é um homem provado porque a vida é implacável, a vida é dura, a vida não retribui o impacto, o sonho, o investimento afetivo que nós nela colocamos.

Este Severino sente-se só, abandonado, espoliado sobre a terra. E vai numa demanda muito grande à procura de soluções e remédios que não encontra nunca. E então decide, dramaticamente, que a vida não tem sentido, que ele não encontra respostas para as perguntas que traz e que talvez o melhor seja pôr cobro, ele, à própria vida. Vai andando perto de um rio e a dada altura encontra um carpinteiro chamado José, e pergunta ao carpinteiro se ele, vivendo ali, naquele braço de rio, sabe se o rio é suficientemente fundo e cheio de lodo para que uma vida se perca. O carpinteiro percebe a questão que Severino lhe coloca e começa a convencê-lo a não fazer aquilo, a não dispersar a sua vida. Severino pergunta-lhe, interroga-o: “Então dá-me uma razão. Dá-me uma razão que seja, que diga que a vida vale a pena. Dá-me uma razão que seja para que eu não faça isso.” Quando estavam os dois nesta discussão, a discussão é interrompida, a conversa é interrompida. É interrompida por um coro de vizinhos, de parentes e de conhecidos que vem anunciar, cantando, a José que ele acaba de ser pai.

Então nós somos conduzidos até ao lugar onde este menino nasce e José canta a alegria daquela vida que nasce. Depois, no final, ele volta-se para Severino e diz que ele não tem uma resposta para dar a Severino, não tem uma resposta sobre se a vida tem sentido, se a vida vale a pena. Ele não tem uma resposta por palavras, mas ele diz: “Nenhum homem é capaz de responder. É a vida que responde. É a vida que responde.” E a vida responde como? A vida responde manifestando-se, dando-se a si mesma, abrindo-nos ao desabalar do espetáculo que é a própria existência, a esse inacreditável milagre que é a própria vida. É olhando, acolhendo e abraçando esse milagre que nós somos curados das nossas dúvidas, daquilo que em nós parece que não tem solução, que não tem remédio. É quando nós abraçamos e confiamos no milagre da vida, daquilo que continuamente nasce e explode de vida no mundo e em nós é que podemos ser curados das nossas provações, das nossas tentações, da nossa imperfeição e deste sentido que nos há de acompanhar até ao fim, este sentido do inacabado, do inconcluído, do irreparável que há de acompanhar-nos sempre.

O que é o Advento? Eu penso que o Advento, anualmente, é o interromper a conversa. Nós, todos nós, estamos com uma conversa qualquer na nossa vida. Uma conversa mais feliz ou mais infeliz, mais narcísica ou mais egoísta ou mais na relação com os outros, mais isto ou mais aquilo. Estamos numa conversa e estamos a debater-nos por encontrar uma solução e um sentido, que nem sempre é óbvio, que raramente é evidente, e que quase nunca é fácil, para não dizer nunca. Estamos neste debate connosco, com os outros, com Deus, colocamos perguntas. E o que é que é o Advento? O Advento é uma interrupção. A conversa interrompe-se. E interrompe-se com um cortejo, que nos vem anunciar um nascimento, que nos vem abrir os olhos para olharmos para a vida, a vida no seu milagre, na sua essencialidade, a vida Vida, a vida estreme, a vida sem mais. Porque Jesus nasce e o que nós temos é a vida estreme. Ali não há ornamentos, não há decoração. Ele nasce naquela circunstância de completo desprovimento, sem nada, naquele curral de animais onde é só a vida que conta. Maria coloca o filho na manjedoura dos animais para mostrar que é daquela vida que nós nos temos de alimentar.

Queridos irmãos, interrompamos mesmo. Que o tempo do Advento seja um tempo para interromper, interromper, interromper. Isto é: suspender as nossas questões, suspender as nossas amarguras, suspender os nossos longos percursos, suspender a nossa inquirição àquilo que não tem resposta, ou então aquilo cuja resposta não nos cabe colher. Interromper. E preparar o nosso coração para o encontro com a vida, com a vida estreme, com a vida que começa, com a vida que é nova, com essa vida encarnada que nos mostra na nossa carne, na nossa história, o próprio Deus.

No fundo o que é o Advento? O Advento é a preparação para esse milagre, para  esse encontro com a vida. A nossa conversa é uma coisa importante, mas chega um momento em que ela tem de ser interrompida. Porque não é na conversa que está a solução, não é na conversa. A solução está Naquele que chega à nossa vida e em nós dizermos: “Ah, apesar de eu não saber tudo ou de eu não ter tudo, apesar de tudo isso, eu acolho, eu amo, eu acredito.”

Lembro-me de uma história do Abbé Pierre. Havia um homem, um presidiário, que esteve muitos anos preso por um crime duro. Quando saiu, voltou à sua família e percebeu que a mulher tinha reconstruído a sua vida, que havia novos filhos do novo casamento. Ele percebeu que já não tinha lugar e disse: “A minha vida perdeu todo o sentido. Não faço nada aqui”. E decide ir falar com um padre. Foi falar com o Abbé Pierre, fundador dos Companheiros de Emaús. O Abbé Pierre, sabiamente, honestamente não lhe disse: “Olha, não faças isso.” Mas disse-lhe: “Ouve, eu estou aqui a reparar um telhado de uma casa para sem-abrigo. Sei que tu vais fazer isso, e tens tantas razões para isso, mas não queres vir no fim de semana ou neste próximo mês ajudar a fazer o telhado e depois pensas nisso?”

O homem ainda não tinha acabado de ajudar a reconstruir o telhado e o seu coração já estava cheio de outras coisas, de outros pensamentos. O que nós precisamos é, de facto, de interromper, de sentir como Deus interrompe a nossa vida e nos coloca numa atitude de espera, de espera.

Hoje, S. Paulo, na Segunda Carta aos Coríntios, diz uma coisa espantosa, diz: “Nada falta, nenhum dom falta a quem está à espera de Cristo.” Isto parece um paradoxo: se estamos à espera é porque nos falta alguma coisa. Mas S. Paulo diz: não falta nenhum dom a quem está à espera de Cristo. Então, a própria espera, a própria expectativa é já ela plenitude, é já ela intensidade, é já ela a certeza deste amor que, na voz do profeta Isaías, hoje dizíamos ser o amor de Deus por nós. Diz o profeta: “Ó Deus, Tu és o nosso Pai. Nós somos o barro das tuas mãos e Tu és o nosso oleiro.”

Sintamos isso, sintamos que a nossa vida é este barro que Deus trabalha. Com que esperança? Com que esperança? Com que ternura? Com que certeza? De que a nossa vida vale a pena! Que a nossa vida se deve abrir a outra verdade que vem ao nosso encontro. Por isso, queridas irmãs e irmãos, a palavra deste primeiro domingo é: Vigiai. Vigiai.

É uma palavra um bocadinho estranha, vigiai. Nós estamos sempre a vigiar. Estamos aqui, estamos sempre a olhar, a ver alguma coisa; mas, às vezes, a pergunta do vigiar não é o que é que eu vejo ou o que é que eu estou a ver. É o que é que eu não vejo. O que é que ainda não consigo ver? E é quando estas questões nos habitam mas nos abrimos, efetivamente, ao Deus que vem, que o Natal acontece.

Queridos irmãos, este tempo de Advento é um tempo necessário. Precisamos de caminhar. O Natal não é uma coisa automática, não é uma coisa que se tira das nossas caixas e coloca de novo e ele acontece automaticamente, imprevistamente. Não, o Natal prepara-se. Este encontro tem de ser, de facto, um encontro com a nossa vida. Deus interrompe o que eu sei, o que eu digo, o que eu falo e mostra-se, e dá-se-me, e enche o meu coração da fome de Deus, da fome de sentido que só Ele pode saciar.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo I do Advento

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/11/27 – Percurso de Preparação para o Crisma” open=”false”]Mais informações aqui.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/11/25 – Conversas à Capela – Itinerários do Advento – Para uma mística do tempo presente” open=”false”]Este Advento, somos convidados a iniciar um caminho para uma mística do tempo presente, centrado na teologia dos sentidos. O primeiro encontro será uma reflexão geral sobre o tema, orientada pelo Pe. José Tolentino Mendonça, no dia 25 de novembro, às 21h30, na Capela do Rato. Os restantes encontros serão dedicados aos diferentes sentidos – Ver e Ouvir, Tocar, Saborear e Cheirar.

25 de Novembro –  21h30
Reflexão geral
José Tolentino de Mendonça

2 de Dezembro –  21h30
Ver e Ouvir 
Paulo Pires do Vale e João Madureira

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/11/23 – A fé tem de dar que fazer” open=”false”]Queridos irmãos, queridas irmãs

Neste último domingo do ano litúrgico, Jesus deixa-nos com uma imagem. Uma imagem é um presente fantástico, porque uma imagem vale mil vezes mais do que um argumento ou uma elucubração. Uma imagem agarra-se ao coração e desprende-se aos poucos, não vem toda de uma vez. A imagem habita-nos, deixamo-nos habitar por ela. A imagem torna-se uma espécie de modelo, de tipologia interna, de paradigma de ação. Percebemos que aquela imagem é uma espécie de caminho que se vai abrindo para nós. No final deste ano litúrgico ficamos com uma imagem, uma imagem exigente e maravilhosa. Uma imagem que tem a ver com isto: com o falhar a vida ou o viver a vida plenamente.

O que é o suplício eterno? É o desgosto quando compreendermos que falhamos a vida, que a vida foi em vão, que a nossa construção, as nossas opções, aquilo que nos entusiasmou, nos apaixonou, nos cegou, nos ofuscou, afinal não era isso a vida. Afinal não era esse o modo verdadeiro de nos encontrarmos. Afinal, roubámos a vida e perdemos a grande oportunidade que é a vida. Uma oportunidade precária, frágil, que nós temos de agarrar. É um dom que nos é dado, que temos de agarrar e agarrá-lo no sentido da plenitude. E o que é a vida eterna? É ter vivido de tal maneira que se percebe que essa vida não acaba, é perceber que essa vida nos levou a uma plenitude, que essa vida se tornou fecunda, multiplicada, que essa vida não acabou quando nós acabamos, que essa vida continua, que essa vida é expressão da vida do próprio Deus. Por isso não é apenas uma existência, é uma vida eterna.

A imagem que hoje Jesus nos oferece, no Evangelho, é para dialogar com isto: o que é que estamos a fazer da vida? O que é que é importante para nós? De que maneira encontramos Jesus? Esta imagem é uma imagem de sobressalto porque quer os da direita, quer os da esquerda, chamam a Jesus por “Senhor”. Quer dizer: não é a fé que os distingue. A fé não basta. A fé não os distingue porque, para ambos, Jesus é o Senhor e ambos vivem na expectativa de Deus, ambos vivem a sua vida como lugar de espera de Deus. Mas há uma diferença: é que os da direita não ficaram apenas numa fé processada, numa fé que é confissão de uma verdade, de uma crença, de uma convicção, não ficaram apenas numa fé que é uma tradição recebida, que é um património inestimável. Mas, para usar a palavra de São João Paulo II, souberam mergulhar na fantasia da caridade. Souberam operar a misericórdia, traduzir a fé em misericórdia. De uma forma muito simples, a beleza desta imagem que Jesus nos confia, e a sua força, está também na sua simplicidade.

Nós não temos de quebrar a cabeça para encontrar Jesus. Não. É encontrá-lo pele com pele, é encontrá-lo corpo com corpo. Quando? Onde? Quando damos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, quando recolhemos os que não têm casa, os que são peregrinos, quando vestimos os que não têm roupa, quando visitamos os que estão doentes e quando temos compaixão dos prisioneiros ou quando depois sepultamos os mortos. Quer dizer, não é nada de extravagante ou de espetacular. É a expressão de uma humanidade. Estas regras que Jesus nos dá nem sequer são regras religiosas, são um código humano de conduta, o código humano de ser. Um ateu pode-se rever nestas obras de misericórdia. O que é que distingue então um crente, um cristão? É a surpresa de reconhecer que na pessoa do mais pequenino está o próprio Jesus.

Queridos irmãos, o final de um ano é o momento da síntese para perceber o que é que vale a pena e o que é que não vale a pena. Normalmente, fazemos esses balanços a 31 de dezembro. Mas, liturgicamente, fazemo-los nesta Festa de Cristo Rei. O critério para o balanço é este: é o critério do amor vivido, o critério do amor praticado, o critério deste contacto humano, desta relação humana que somos chamados a fazer com os mais pequeninos.

Isto quer dizer o quê? Que não é apenas com os nossos. Temos o dever de amar a família, os amigos, mas Jesus alarga e este indefinido Jesus não diz quem é. Não dizendo quem é está a dizer que são todos. Temos de ser capazes de chegar a Jesus através do agir e não ficarmos apenas a chamar Jesus “Senhor, Senhor”. Dominicalmente reunimo-nos aqui para dizer que Jesus é o Senhor das nossas vidas. E depois? E depois? Onde é que isso nos leva? O que é que fazemos com isso? O que é que isso nos torna?

Esta imagem que Jesus nos dá é uma imagem para nos dar que fazer. Porque a fé tem de dar que fazer. A fé tem de nos levar a esta saída de nós próprios para irmos ao encontro dos outros, nesse encontro de caridade e de amor, nesse encontro com o pobre, com o doente, com o preso, com a vítima, com o sem-abrigo, com aquele que passa necessidades de vária ordem. Estas obras de misericórdia têm uma leitura literal e é preciso não fugir para o símbolo, que é uma zona de conforto. Não, isto é literal. Mas ao mesmo tempo tem tantas dimensões humanas. O que é vestir o nu? É tanta coisa. Antes de tudo, é vestir, mesmo. Mas, depois, é tanta coisa. É dar-lhe o que ele precisa para ser, é colaborar nisso. E, reparem, Jesus não diz para sermos heróis, diz-nos para fazer. Não nos diz: “Tens de fazer 200.” Não. Faz. Faz.

Não há dúvida que, queridos irmãs e irmãos, o amor é uma grande escola, o amor é uma grande escola de vida. É neste encontro que temos com os outros que celebramos a esperança da vida, que celebramos a ressurreição, que celebramos a certeza de que Ele está vivo no meio de nós.

Amanhã, a Leonor Xavier vai apresentar o último livro que escreveu: O passageiro clandestino. É um livro sobre a sua experiência do cancro, de ser portadora da doença do cancro. No fundo, todos nós, numa hora de fragilidade e de doença, sentimos a grande ameaça, o peso dessa ameaça. Mas o que é extraordinário no testemunho da Leonor é que ela aproveita essa condição para celebrar o encontro. Então leva-nos para dentro dos hospitais, das salas de espera, ao encontro com esses anónimos e a perceber como a coisa mais bela é esse encontro com pessoas com outra cultura, com outras idades, que vêm com outras questões, mas que no fundo são “o mais pequenino” naquela circunstância, e ser capaz de estabelecer uma relação de vida. No livro, percebemos que é isso que a salva. Porque depois é um mistério, acreditamos que a medicina faça o seu caminho, acreditamos na força de recuperação da própria vida; mas, como ela diz: “A doença é também uma iniciação” e uma iniciação à vida, a arte do encontro.

Penso que uma vez mais o que nos é pedido é isso. Não é aterrarmos nas nossas certezas, não é engordarmos com os nossos saberes, com os nossos conhecimentos. Isso tudo é muito importante. Mas, depois, podemos ter isso tudo e nunca o ter visto. Jesus tem isto: só se deixa ver na partilha do pão, quando quebramos o pão, para dar o pão aos outros. Isto é: só na vida que se quebra, só na vida que se parte e reparte é que Jesus se dá a ver; o resto nós não o vemos, podemos até sentir o entusiasmo, a paixão do conhecimento, isso também é uma via, mas é uma via insuficiente. A única via completa é a via do amor, é a via da relação, é a via da dádiva, é a via do encontro.

Queridos irmãs e irmãos, celebrar a realeza de Jesus é celebrar a realidade de Jesus. Jesus é real. Não é apenas uma ideia, não é uma herança do passado, não é um fantasma. Jesus é real, é real. E a realidade de Cristo é impressa no mundo através de nós. Jesus não quis fazer um monumento a si próprio, Jesus não quis fundar uma escola, uma tribo, quis juntar homens e mulheres que tivessem esta capacidade de ouvir quem tem fome, quem é peregrino, quem está despido, quem está doente, quem está na prisão. Esta é a via silenciosa do amor, da partilha, da entrega, que nos revela Jesus e nos dá o sentido profundo da bem-aventurança: “Vinde benditos de meu Pai, recebei em herança o reino que vos está prometido desde o princípio do mundo.”

Queridos irmãos, estas palavras são para nós. Não as percamos, não as percamos de vista numa vida embrulhada em nós e nas nossas coisas e coisinhas, que nos afasta da promessa de viver uma vida inteira, uma vida que valha a pena. A maior parte do tempo, aquilo que nos falta é precisamente isto, é dar, é vestir, é ir visitar, é ir ver, é falar, é isso que verdadeiramente nos falta.

Vamos celebrar esta Festa de Cristo Rei sentindo que Ele é o pastor das nossas vidas. Com esta imagem do julgamento final, Ele dá-nos um caminho, acende uma luz no nosso coração. Se hoje, ao escutarmos esta Palavra, uma luz se acendeu, no sentido de nos impelir à caridade, nos empurrar para o amor, para o encontro, para a dinâmica dos gestos, se isto nos empurrar, então quer dizer que esta imagem acordou, despertou em nós o rosto do próprio Jesus.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIV do Tempo Comum – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/11/16 – Deus investe em cada um de nós” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Estamos a aproximar-nos do final do ano litúrgico, do início do Advento e, normalmente, este tempo que culmina para o fim do ano litúrgico ajuda-nos a refletir sobre as finalidades da nossa vida. Como é que nós vivemos? Quais são as nossas razões de fundo? O que é que nós procuramos com a nossa vida? O que é que está no centro profundo das nossas decisões?

Hoje Jesus oferece-nos esta parábola dos talentos: um senhor que dá a cada um determinado número de talentos para que cada um os faça render, construa uma história, faça deles uma aventura, os multiplique, os some, segundo a sua própria criatividade. Deus investe em cada um de nós, Deus coloca nas nossas mãos a tarefa do ser, a tarefa do construir, a tarefa do habitar. O que é interessante na parábola é este drama entre aqueles que com a sua vida a multiplicam, a tornam fecunda, e aquele que enterra o talento, que é a imagem da própria vida, enterra o seu talento por medo. E nós perguntamos: “ O que é que faz render e o que é que bloqueia a vida?” Na justificação que o homem que enterrou o talento dá nós encontramos uma luz muito grande para, muitas vezes, os medos, os entraves, os bloqueios que reconhecemos dentro de nós.

O homem, quando questionado pelo Senhor, diz o seguinte: “Senhor, eu sabia que és um homem severo, que colhes onde não semeaste e recolhes onde nada lançaste, por isso tive medo e escondi o teu talento na terra.” No fundo, qual é o problema? O que é que faz render ou o que é que desacelera a nossa vida? Tem a ver com esta figura interior que, de certa forma, nos dá ou nos retira a confiança, nos puxa para a frente ou nos tira o tapete interiormente. Este homem tinha interiorizado a imagem do Senhor como a de um  homem severo, de um homem intransigente, de um homem implacável que procura recolher onde não lançou e retirar onde não semeou, e teve medo.

Eu diria que, muitas vezes, a nossa vida espiritual, e a nossa vida, não se tornam fecundas porque nós temos medo, porque dentro de nós há esta figura do pai severo da qual nós não nos libertamos. Em vez de encontrarmos dentro de nós o eco, a voz de uma confiança fundamental, encontramos dentro de nós a sombra de uma desconfiança, a sombra de um receio. A grande transformação é esta: descobrir o amor de Deus, descobrir a fé que Deus tem em nós, descobrir esta paixão incondicional que Deus tem pela nossa história. Deus não é o juiz julgador, Deus não é o pai severo, Deus não é o Senhor implacável que nos há de pedir contas do que nós pudemos e do que nós não pudemos. Mas Deus é o Deus rico em misericórdia. Cada um de nós precisa desta palavra de confiança, desta palavra fundante de confiança para poder prosperar, para poder ser, para poder também desafiar, ir além de si e além da sua fragilidade para construir uma história de ser.

Esta é, de facto, queridas irmãs e irmãos uma questão central porque é uma fonte de equívocos, uma fonte de sofrimentos. A verdade é que uma certa catequese levou a interiorizar uma imagem de Deus que continuamente nos tira o tapete, que continuamente desacredita em nós, que continuamente nos paralisa, quando a imagem de Deus é uma imagem radiosa, é uma imagem de confiança. “ Estarei convosco todos os dias, até ao fim dos tempos.” Nada nos separa do amor de Deus. Mesmo o nosso pecado não nos afasta Dele porque Ele está sempre ali connosco, Ele está sempre disponível. Uma certa visão de Deus tornou-se também, há que reconhecer, às vezes, um obstáculo para a fecundidade, para a criatividade, para a liberdade do ser. E é disso que a parábola de Jesus nos fala.

Há um texto, de uma escritora italiana, de que eu gosto muito, Natalia Guinzburg, sobre as virtudes. Ela diz: “Os pais têm uma grande preocupação em ensinar aos filhos as pequenas virtudes, mas não lhes ensinam as grandes.” Por exemplo, ensinam os filhos a ser prudentes mas não lhes ensinam a arriscar, a lançar-se, a ir para a frente. Ensinam os filhos a poupar, e é uma boa virtude, mas não os ensinam a gastar, a perceber o sentido disso. Ensinam os filhos a pensar em si, mas não ensinam os filhos a amar, a pensar nos outros, a esquecer-se de si. Então ela diz: “ Nós gastamos a vida a ensinar as pequenas virtudes e a esquecer as grandes.” É importante que olhando para Deus Pai nós percebamos que Ele nos ensina as pequenas virtudes mas também as grandes ou sobretudo as grandes. Este investimento de confiança é o investimento que nos cura, porque todos nós precisamos ser curados de uma imagem de Deus que se torna, de facto, o modelo que é o do Anti-Deus, que não é o Deus que Jesus nos revela.

O conselho que o senhor dá ao servo, “Devias ter colocado o meu dinheiro no banco e quando eu viesse havia de recolhê-lo.”, não tem a ver com os tempos que vivemos. De certa forma, esta parábola é anterior a invenção da Economia contemporânea, mas tem a ver com aquela economia básica, elementar, dos tempos de Jesus e tem sobretudo que ver com a economia da nossa vida, com aquilo que vamos construindo e vamos vivendo.

Queridos irmãos, apreendamos de Deus a imagem do amor. Sintamo-nos amados por Deus. Simone Weil dizia: “ A coisa mais importante não é amar a Deus, é compreender-se amado por Ele.” Sintamo-nos verdadeiramente amados  e testemunhemos, uns aos outros, este amor, porque isso é o ponto de partida de uma vida desatada, de uma vida liberta, de uma vida criativa, de uma vida que dá fruto. Nós temos de perguntar pelo fruto que dá a nossa vida e por aquilo que nos aprisiona, aquilo que nos prende, aquilo que nos retém. Sintamo-nos assim envolvidos por este amor, que nos pede também uma revisitação da nossa vida, da nossa história, olhar para o interior de nós para sentir a frescura da palavra de Jesus, a consolação da sua palavra e também a ressurreição, a ressuscitação, a insurreição, a transformação que este anúncio do Deus amor pode despertar em nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIII do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/11/09 – A nossa vida é a autobiografia de Deus” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Nós celebramos hoje a grande solenidade da grande Basílica de S. João de Latrão. Mesmo o papa vivendo ao lado da Basílica de S. Pedro, e normalmente tendo uma referência com a Basílica de S. Pedro, S. João de Latrão é a sua basílica, é a igreja, é a ecclesia onde o papa oficia em nome próprio. Hoje, em todo o Ocidente, nós celebramos a festa dessa igreja, da dedicação dessa igreja, do primeiro dia da consagração dessa igreja, porque ela é o símbolo da unidade de todos os cristãos, de todos os católicos no mundo que têm na figura do papa o sinal da comunhão entre si. O papa é a grande figura da comunhão no mundo católico e em redor dele juntam-se as várias igrejas das dioceses por todo o mundo. Em Roma nós encontramos a Basílica de S. João de Latrão. Aqueles que já tiveram a possibilidade de visitar a basílica sabem que é uma coisa espantosa, é uma obra de arte e de arquitetura, um verdadeiro museu. Como são espantosas as basílicas de Roma: S. Maria Maior, S. Maria in Transtevere, para não falar em S. Pedro, S. Paulo Extramuros. Nós também, à nossa medida, temos igrejas extraordinárias, mesmo na nossa cidade, a começar pela nossa Sé, os Jerónimos, temos igrejas espantosas. Temos aqui esta nossa igreja. Por todo o mundo, quando vamos um pouco em viagem, em visita, nós encontramos igrejas, templos, extraordinários. Uma das expressões da fé católica é também esta expressão concreta, os lugares onde os católicos se reúnem para rezar. Historicamente e em termos artísticos isso ganhou um peso que é um grande património da Humanidade.

Mas não tenhamos ilusões, há um equívoco, uma ambiguidade muito grande, que não se resolve entre o que Jesus diz que é um templo e a construção que nós temos do templo. As igrejas cristãs, a começar pela Basílica de S. João de Latrão, não é verdadeiramente um templo. Jesus põe fim aos templos. As basílicas, as igrejas que se constroem, é  aquilo que se pode fazer depois do fim. Este lugar onde nós estamos, ao qual nós temos tanto amor e que é tão bonito em si, esta pequena capela que era a capela de um palácio, que agora foi desagregada do palácio e se tornou o lugar da nossa comunidade, é um lugar a que temos tanto amor. Mas não tenhamos dúvidas, a fé não depende deste lugar. Não depende deste lugar físico nem de nenhum lugar físico. Isso é uma revolução que o Cristianismo veio trazer, porque a religião estava sempre, até Jesus, associada a um templo, a um lugar. O lugar é que era sagrado. No Antigo Testamento a Shekhinah, a glória de Deus, habitava no santo dos santos do templo, por isso os judeus tinham de ir anualmente a Jerusalém porque só ali tinham a possibilidade de encontrar Deus.

Quando Jesus, nas vésperas da sua Paixão, faz este grande sinal de entrar no templo de Jerusalém começa a derrubar as mesas dos cambistas e dos vendedores, e depois diz que destruirá aquele templo, para os judeus é como se fosse um raio que caísse. “Mas como é que é isso? Este templo levou cinco décadas a construir, como é que tu o destróis assim em três dias?” Depois, S. João diz-nos: “Mas Jesus falava do templo do seu corpo.” Aqui está, de facto, a grande revolução que o Cristianismo instala: falar do Templo, na linguagem de Jesus, na gramática de Jesus, é falar do corpo. Quer dizer, é falar da vida, é falar da existência. É inseparável a experiência de Deus do nosso corpo e da nossa existência. Esse é que passa a ser o lugar sagrado. Não há lugar mais sagrado no mundo do que a vida de uma mulher e de um homem. Não há nem lugar mais belo, nem mais santo, do que qualquer homem e qualquer mulher. É o lugar mais sagrado do mundo porque é o lugar onde Deus está, na Sua forma mais plena, na Sua cintilação, na Sua expressão. A vida do Homem é o lugar de Deus. Claro que os templos têm a sua beleza, têm a sua história. Os templos são importantes, e queria falar um bocadinho disso também nesta homilia. Mas o que Jesus vem trazer é isto: é a tua vida o lugar de Deus.

No funeral da Sophia de Mello Breyner, há uns anos atrás, o frei Bento, que fez a homilia, lembrava que a Sophia de Mello Breyner muitas vezes (e nós sabemos até que ponto ela era uma apreciadora da beleza da grande tradição, das grandes basílicas) pedia: “Quando é que vamos rezar uma missa junto do mar ou num bosque.” Esta necessidade que ela tinha de sair do templo é uma necessidade cristã. A nossa fé não está dependente já de um templo. A nossa fé está sim dependente do reconhecimento, humilde e esperançoso, que na nossa vida Deus está, Deus habita. O coração, o corpo, de cada um de nós é a morada do próprio Deus.

O Cristianismo nasce num momento fraturante da história religiosa judaico-cristã, que é o momento da destruição do Templo. No ano 70 as tropas do imperador entram em Jerusalém e arrasam o Templo. Aquele momento é vivido pelo Judaísmo como o fim da história, em que acabou o Judaísmo. E perguntam: “Mas como é possível rezar? Como é possível oferecer a Deus a nossa vida sem os sacrifícios, sem o Templo, sem a máquina cultual?” Os cristãos lembraram-se que tinha sido o próprio Jesus a antecipar a destruição do Templo, isto é, a desativar o Templo. Jesus entra no Templo e desativa-o. Quando Jesus entra no Templo e diz: “ Eu falo do templo do meu corpo.” Aquele corpo grande que é o Templo já não é aquilo. Já não é aquele lugar da relação com Deus mas passa a ser o corpo do sujeito, passa a ser o corpo individual. Depois os cristãos vão explorar esta reflexão. Por exemplo, um texto como o da Carta aos Hebreus vai dizer que o único sacerdote é Cristo. O sacerdócio que vem de Aarão, séculos e séculos, aquela  grande máquina de sacrifícios, tudo isso passou. O grande culto deixa de ser uma máquina sacrificial feita num lugar, feita segundo uma determinada gramática religiosa, e passa a ser própria existência. A vida é o lugar da adoração de Deus, da descoberta de Deus, da procura de Deus. A Carta aos Hebreus que diz: “Senhor, não me tornas-te sacerdote, não me deste um Templo mas deste-me um corpo.” A cada um de nós Deus deu um corpo. Deus deu uma vida, que é o conjunto daquilo que somos, os nossos sentidos, a nossa interioridade. Deus deu-nos uma vida para aí buscarmos o lugar de Deus.

Por isso, queridos irmãs e irmãos, nós hoje celebramos a festa da dedicação da igreja de S. João de Latrão, mas não celebramos já um templo, porque celebramos o templo em cada domingo das pedras vivas que somos nós cristãos. Como nos lembra ainda hoje a passagem de S. Paulo na carta aos Coríntios: “Sois vós as pedras vivas.” Isto significa o quê? Significa que a nossa religião, a prática religiosa, passa muito por assumir a nossa história, assumir o que somos. Não é alienarmos a nossa vida a troco de um conjunto de práticas, um conjunto de ritos que a gente vai fazer. Não, os ritos estão ao serviço do encontro connosco próprios, os ritos estão ao serviço da consciência e do reconhecimento que fazemos da nossa vida. Os ritos estão ao serviço da esperança com que Deus quer contaminar aquilo que somos.

Por isso, queridos irmãs e irmãos, a nossa vida é a autobiografia de Deus, a nossa vida é o lugar onde Deus se conta, onde Deus se narra, onde Deus se relata. Por isso é tão importante nós estarmos aqui, estarmos de corpo inteiro, não como quem vem a um templo mas como quem está em casa, como quem está em si, como quem entra dentro de si, como quem se reencontra com a sua história. Nós estamos aqui para respirarmos, para nos alimentarmos, para vivermos no fundo. E isso é que é mais importante do que todas as pedras. Às vezes, a história e o património são um atrapalho, são um impedimento, são coisas maravilhosas em si mas podem ser pura tralha que esmaga a vida. Porquê? Porque temos o peso de uma tradição que nos faz esquecer o óbvio. O óbvio é que Deus ama de forma única cada um de nós e quer que a sua glória seja o homem vivo, que nós possamos viver plenamente – esse é que é o grande Templo, o grande lugar.

Muitas vezes a palavra de Jesus que fala do Templo do Seu corpo, e depois de S. Paulo que por diversas vezes fala do Templo que é o nosso corpo, foi lida unicamente em chave moral para, no fundo, nós termos de defender a pureza, e uma pureza ritualista, que tem a ver com os templos antigos, mantermos uma pureza no nosso corpo, porque isso é que faz de nós um Templo. Claro que é importante a pureza de coração, é evidente que é importante, mas essa frase de Jesus e de S. Paulo é para entender em chave existencial. É a nossa vida, é o lugar de Deus. Nesse sentido é que nós temos a capacidade de transformar o tempo, a história, num Templo, num lugar de encontro, num lugar onde ensaiamos uma relação, num lugar onde se constrói verdadeiramente uma história. Isso é, sem dúvida, o elemento mais importante.

Queridos irmãs e irmãos, ao celebrarmos a Basílica de S. João de Latrão, no fundo, estamos a celebrar as nossas vidas e o que significa a nossa vida como lugar de Deus. A grande pergunta é como é que na vida é que eu sou, como é que na história que eu construo, como é que na história, Deus se revela? Como é que eu O encontro? Como é que eu estabeleço uma relação, não apenas implícita com Deus, mas como é que eu estabeleço na minha vida, na minha história, com a pessoa que eu sou, como é que eu estabeleço uma relação divificante com o próprio Deus? Esse é que é o tema, essa é que é a questão que cada um de nós é chamado a aprofundar, a construir. Vamos rezar assim uns pelos outros e celebrar esta grande beleza que o Cristianismo traz à vida humana. Que é dizer: ” Olha tu, és o lugar onde Deus vive. És o lugar que Deus escolheu para viver no mundo.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Dedicação da Basílica de São João de Latrão

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/11/02 – Morrer é não ser visto” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Nós começámos este mês de novembro, ontem, pela celebração de Todos os Santos e, hoje, pela celebração dos Fiéis Defuntos. No fundo, somos chamados a um confronto com a morte, que é um confronto que a nossa cultura evita a todo o custo. A morte tornou-se um tabu, uma ocultação. Todos nós vivemos, socialmente e culturalmente, como se a morte não existisse. A morte é retirada da cena pública. Infelizmente, até o dia 1 de novembro deixou de ser feriado entre nós. Menos possibilidade, como sociedade, nós temos de mergulhar mais fundo, no significado, não da morte, mas da vida. Porque pensar o que é a morte é pensar também o que é a vida. De facto, há uma certa infantilização da nossa cultura, no sentido de que a morte deixa de ser um fator na construção e na imaginação das nossas próprias vidas. A sabedoria bíblica dizia precisamente o contrário, dizia: “Homem pensa na tua morte. Homem pensa que vais morrer. Aprende a contar os teus dias. Sabe que todos os teus dias já estão contados. Porque só assim podes orientar o teu coração na sabedoria.” Isto é, a morte não é um ladrão que há de roubar a nossa vida. A morte, como dizia S. Francisco, “é uma irmã que está connosco desde o berço.”, que nos acompanha todo o tempo, e com a qual nós temos de criar uma relação diferente desta surpresa, desta coisa inesperada em que a morte se tornou nas sociedades modernas. É uma coisa que nenhum de nós espera. É uma condição da nossa própria vida. Por isso há aqui uma relação a trabalhar, a relação de cada um de nós com a própria ideia de morte. O que não quer dizer que a ideia de morte será, alguma vez, perfeitamente pacífica para nós.

E, até, mais difícil de encarar do que a nossa morte pessoal é a morte daqueles que amamos. Que é, porventura, o desafio mais terrível, mais inusitado, que todos nós temos de enfrentar. Já na tradição cristã, por exemplo, dois grandes padres da Igreja, Gregório de Nazianzo e Basílio, que eram muito amigos, quando morreu Basílio, no funeral, Gregório de Nazianzo fez uma homilia célebre em que dizia: “Se me viessem dizer que um corpo podia viver sem a sua alma eu acreditava. Mas se me viessem dizer que eu podia viver sem ti, isso para mim parecia-me impossível.” E é impossível. Nós não conseguimos viver sem os outros, sem aqueles que amamos, estejam neste mundo a nosso lado ou estejam do outro lado junto de Deus. Eles continuam a viver connosco, continua a haver uma comunhão dos santos, não há um dia em que não pensemos neles. A presença deles, a memória deles, é uma coisa sagrada que nos acompanha. Lá vamos buscar a força, vamos buscar o entendimento de nós mesmos, vamos buscar a palavra que eles nos disseram, sentimo-nos herdeiros deles, herdeiros da vida que eles viveram, do sonho que os habitou, do coração que neles bateu tão forte e tão ténue, somos herdeiros deles até ao fim. Embora, de facto, nos sintamos de mãos vazias para falar destas coisas, porque sentimos que temos de fazer o luto, que é no luto que tateamos os seus rostos amados, que é na ausência, que é no silêncio, nós não vemos, deixamos de ver. Fernando Pessoa dizia que “morrer é não ser visto. Morrer é passar a curva da estrada.” E, de certa forma, é isto que nos acontece, e primeiro acontece àqueles que amamos, e cada um de nós é testemunha da vida uns dos outros e do mistério desta vida que ultrapassa as nossas palavras e as nossas explicações. Mas acreditamos que há uma forma de comunhão. E essa comunhão, para nós, é uma coisa ao mesmo tempo intangível mas absolutamente presente.

Um grande filósofo marxista Ernst Bloch escreveu, em grande medida, um dos livros marcantes do século XX e que abriu o marxismo a um certo sentido de transcendência. O  livro chamava-se O Princípio da Esperança e ele escreveu esse livro muito a partir do que ele próprio experimentou: a relação com a esposa, que era para ele uma relação absolutamente indivisível. Quando ela morreu, a experiência que ele fez foi: “não, ela não pode simplesmente ter desaparecido. Não pode.” Há uma persistência, que é doutro domínio, que é de outra ordem. É essa persistência que eu tenho agora de acolher e transformar numa forma de comunhão, numa forma de companhia, numa forma de presença.

S. Paulo, na Carta aos Coríntios, tem esta frase extraordinária: “ Não olhemos apenas para as coisas visíveis, olhemos para as coisas invisíveis.” Neste dia em que somos chamados a rezar, a tornar presentes, a fazer memória dos nossos queridos que já partiram, é isso que temos de fazer: olhar para as coisas invisíveis e dar-lhes o valor que elas devem ter nas nossas vidas, nas nossas histórias. Porque nem tudo cabe no nosso olhar, nem tudo cabe naquilo que ouvimos. Há tanta coisa que está para lá do que nós podemos medir. E isto não é apenas mística, isto é a ciência, é a realidade. Um cão ou um gato ouvem o dobro das coisas que nós ouvimos. Nós ouvimos metade das coisas que eles ouvem. O olhar de certos animais vê muito mais coisas do que aquelas que nós vemos. A estrutura do nosso ser, que é uma estrutura que nos dá a sensação do eterno, ela não deixa de ser limitada. Os nossos sentidos, dizendo-nos coisas tão fascinantes, não nos dizem tudo, abrem-nos ao mistério.

Queridos irmãs e irmãos abramo-nos também a esse mistério e sintamos que aquilo que S. Paulo escreveu aos Coríntios, naquele final de século primeiro, é absolutamente válido para nós. Nós sentimos, à medida que crescemos e que envelhecemos, que há uma espécie de destruição do nosso corpo, da nossa forma. Temos menos forças, menos capacidades. Mas, ao mesmo tempo, sentimos que isso não é o fim. Porquê? Como diz S. Paulo há: “o homem interior.” Que vai sendo reforçado dentro de nós. Há a mulher interior que vai nascendo. E a vida não é uma morte, a vida é um parto, a vida é um nascimento. As dores que sentimos são também as dores de parto, não são as dores do braço que não vai funcionar mais como já funcionou, não são as dores dos olhos que já não vão ver como um dia viram. Mas é a dor de um outro nascimento que tem de acontecer dentro de nós e que nós alimentamos na fé. Essa certeza de que há uma interioridade que se vai tornado cada vez mais decisiva, cada vez mais radical em nós, essa interioridade é uma semente, que há de florir, não já apenas no tempo mas também na eternidade, não apenas na história mas também junto de Deus.

É interessante nós olharmos, por exemplo, para um homem como Paulo, que é um homem que tenta explicar a Humanidade e a fé, procura as razões para a sua fé, e vermos que ele fica muito atrapalhado a falar da morte e a falar da vida eterna. Atrapalhado no sentido de que não encontra palavras e vai criando imagens diferentes, imagens novas. Porquê? Porque sente o limite das próprias imagens. Quer dizer, o que quer que a gente diga é insuficiente, fica aquém, mas no meio desta dificuldade, com a qual todos nos debatemos, há uma certeza que emerge no coração de Paulo. E é essa certeza que, mesmo ténue e frágil, emerge no coração de cada um de nós: nós estaremos com Ele para sempre, qualquer que seja a forma, e será sempre surpreendente para nós porque é a forma de Deus em nós, não é apenas uma construção nossa, é o dom de Deus.

Nós não ressuscitamos, nós somos ressuscitados, somos transformados por Deus. Mas temos de ver a vida como um processo de transformação em que estamos sempre com Ele. Esta confiança de que estamos com Ele é também a certeza da comunhão dos santos, a certeza de que estamos com todos os que estão Nele. No coração de Deus há lugar para todos e Deus é um pai de misericórdia que espera por todos. Deus não exclui ninguém, Deus espera por todos e quer salvar a todos. É esta a confiança que a fé nos dá, de que estaremos sempre com Ele, qualquer que seja a nossa forma, qualquer que seja o nosso modo, qualquer que seja o nosso tempo, é daí que nós partimos para esta confiança também no encontro uns com os outros, no reencontro com aqueles que amamos, nessa certeza de que nada se perde no coração de Deus e tudo se transforma.

É claro que as nossas lágrimas continuam a ser choradas e que a ausência daqueles que amamos continua a fazer-nos falta, continua a doer-nos, porque um pai é um pai, porque uma mãe é uma mãe, porque um esposo é um esposo, porque uma esposa é uma esposa, porque um amigo é um amigo. E continuamos, até ao fim, como testemunhas dessa ausência e isso provoca em nós uma dor que também é importante nós não mascararmos. É importante essa nudez, esse vazio, essa orfandade que também nos assinala até ao fim. Mas, nesta exposição da nossa dor, é importante a palavra de confiança que Paulo nos diz, nós não colocamos o nosso olhar apenas nas coisas visíveis, colocamos nas coisas invisíveis. Por isso, este discurso extraordinário que Jesus nos faz: “vinde a mim todos vós que andais enlutados e afadigados, porque Eu vos aliviarei. Eu serei reconforto para as vossas almas, porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve.” A transformação do nosso peso, da dor agressiva que tantas vezes nos marca, transformar isso em leveza e em suavidade é uma coisa que, para nós cristãos, só acontece na medida em que colocamos a nossa história de vida nas mãos do próprio Deus.

Pe. José Tolentino Mendonça, Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/11/01 – A santidade é para todos” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Nós celebramos hoje a Festa de Todos os Santos. O documento Lumen Gentium do Concílio Vaticano II, que é o documento que pensa o que é a condição dos cristãos e o que é a Igreja, no seu número cinco começa a dizer o seguinte: ”A santidade é a vocação comum de todos os cristãos.” Então, cada um de nós é chamado à santidade. Por vezes triunfa uma imagem dos santos como aqueles que encarnam de forma extraordinária e de forma excecional um ideal cristão. Ora, essa visão não é exatamente a visão cristã, porque a visão cristã é de que  santidade é para todos. Não é para alguns no interior da Igreja. A santidade é a vocação comum de todos os cristãos. Os santos não são apenas os modelos, os heróis. Os santos são aqueles que estão ao nosso lado, que caminham connosco. Os santos somos nós. É preciso perceber a santidade não como um mérito pessoal, mas a santidade como um dom. A vida de cada um de nós é uma vida santa. A santidade está em cada um de nós. A santidade não é uma medalha que colocamos ao peito, a santidade é o nosso ponto de partida. Sem termos feito nada para isso Deus deu-nos a Sua santidade, derramou o dom da Sua  santidade em nós. E por isso nós ouvíamos isto que diz a Primeira Epístola de S. João: “ Vede com que admirável amor o Pai nos consagrou em nos chamar filhos de Deus, e somo-lo de facto.”

Queridos irmãs e irmãos, a coisa mais importante de todas é que somos filhos de Deus, é que cada um de nós foi, é e será amado com um amor incondicional e admirável. É a certeza na qual nós podemos colocar toda a nossa confiança de que Deus nunca nos abandonará, de que Deus nunca quebrará esta relação de amor que Ele tem com cada um de nós, que Ele nunca deixará de nos assistir. Nunca deixará de nos dar a possibilidade de esperança, de transformação, de encontro na nossa vida. Ele estará connosco todos os dias, até ao fim dos tempos. A santidade, queridos irmãos, é esta confiança no dom que Deus derrama no nosso coração. A grande pergunta é: o que é que nós fazemos com esse dom?

Hoje, no Evangelho, nós ouvimos de novo a página das Bem-aventuranças. É talvez o grande discurso de Jesus, a grande página do Evangelho. Nós confrontamo-nos com este discurso de Jesus tantas vezes na nossa vida. E a pergunta é: Hoje, que sentido é que faz para mim confrontar-me com estas palavras do Senhor? E Ele diz: ”Vós os pobres em espírito, vós os humildes, vós os que chorais, vós os que tendes fome e sede, vós os que usais de misericórdia, vós os que vos esforçais por serdes puros de coração, vós os que promoveis a paz.” Jesus não tem um discurso religioso. A santidade não é a expressão de uma devoção. Jesus tem um discurso humano. Isto é, é a vida, é o que nós vivemos, a experiência da nossa fragilidade, as nossas lágrimas, a nossa pequenez, o nosso esforço por construir a paz nem sempre conseguido, a nossa fome e a nossa sede, a perseguição que sofremos na vida. No fundo, não se trata de uma vida devota sobreposta a esta vida concreta, histórica, que nós temos. Jesus fala da vida vivida, da vida concreta, da vida de todos os dias. A questão é: o que é que fazemos com isto? Todos nós temos lágrimas, o que é que fazemos com as nossas lágrimas? Todos nós temos fome e temos sede, o que é que fazemos com a nossa fome e com a nossa sede? Todos nós experimentamos o que é a pobreza de coração, a fragilidade da vida, o que é que fazemos com isso? Todos nós sentimos em nós o desejo da paz, o desejo da misericórdia, o que é que fazemos? Que espaço é que damos realmente a esse desejo?

Na leitura do Livro do Apocalipse, nesta visão da história que o Profeta tem, há uma coisa muito interessante, ele vê uma multidão imensa que caminha para junto de Deus. Nós não conseguimos ver porque os nossos olhos são limitados. Mas os profetas veem mais longe, veem o sentido profundo da história. Olhando para o mundo, ele vê uma peregrinação imensa de homens e mulheres, vestidos de túnicas brancas, que vão saudar o trono de Deus. E ele pergunta: “Senhor quem são esses? Quem são essas?” E do trono responde-se isto: “ Estes e estas são aqueles que lavaram as suas túnicas no sangue do Cordeiro e ali as branquearam.” É um paradoxo. Se eu lavo a minha roupa em sangue, ela fica em sangue, não fica branca. É um paradoxo. Mas no fundo é o paradoxo da Cruz, o paradoxo do sacrifício, o paradoxo da dádiva, o paradoxo do dom. Quando eu dou é que verdadeiramente possuo. Quando eu amo e me entrego é que verdadeiramente me encontro. Quando eu aceito perdoar é que verdadeiramente sou livre, experimento a liberdade. É uma máquina de fazer paradoxos. Porque nós diríamos que, ao contrário, ao lavar uma túnica em sangue esta nunca ficaria branca. Mas nós somos chamados a branquear, a tornar imaculada, a tornar pura a nossa vida no sangue do Cordeiro, isto é, na lição do Cordeiro, na lição de Jesus. “Senhor, quem são estes? E quem são estas que hoje se reúnem à volta do teu trono?” Eu diria: são mulheres e homens, que se esforçam por lavar as suas túnicas no sangue do Cordeiro, isto é, por lavar as suas lágrimas, a sua fome e a sua sede, a sua fragilidade na lição de Cristo. Vivermos a vida que cada um de nós tem para viver, e que é uma vida diferente com as circunstâncias próprias, com o enquadramento que é único, singular de cada um de nós, mas o que é que fazemos com isso? O caminho da santidade é este lavar no sangue do Cordeiro, tomar para si a lição de Cristo, o caminho de Cristo. E então, aquilo que nos parece impossível torna-se possível.

Quando nós olhamos para os santos canonizados não há dois iguais, são todos diferentes. O que é que têm em comum? Têm em comum terem sido eles próprios. E, a um dado momento da sua vida, terem apostado tudo no lavar as suas túnicas no sangue do Cordeiro, em viver a lição de Jesus até ao fim, como seu caminho, como sua vida. E é no fundo isto que estamos aqui a fazer, domingo a domingo, com o nosso caminho, com a nossa história, é isso que estamos a fazer.

Queridos irmãos, vamos agradecer o caminho que fazemos hoje com os outros, vamos dar graças pela santidade de Deus em nós e pela forma maravilhosa como ela se revela em cada um de nós. Porque cada um de nós tem um modo próprio de andar, de rir ou de chorar. Cada um chora à sua maneira ou ri à sua maneira. Nós também temos uma forma maravilhosa de sermos santos à nossa maneira. E é isso, também, que vamos colocar sobre o altar e agradecer. Não é tudo perfeito, não é tudo já acabado, não nos vão lavar os pés e colocar no altar. Mas também a ideia não é essa. A ideia é: com o inacabado que somos, com esta coisa meio a caminho, carregada de imperfeições, que é a nossa vida nós colocarmos isso nas mãos do Cordeiro. E acreditarmos que Ele é capaz de fazer da nossa vida aquilo que ela verdadeiramente é.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Todos os Santos

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Outubro

height=”10″][vc_toggle title=”2014/10/26 – O amor é alguma coisa que está para lá das leis” open=”false”]Queridas irmãs e irmãos

Esta semana estive em Milão e, pela primeira vez, pude ver a “Última Ceia” do Leonardo Da Vinci.

Fui a Santa Maria delle Grazie, com muita paciência lá esperei, e pude finalmente estar diante do quadro, que é um fresco no refeitório daquele convento. Nós vemos as imagens em livros e em postais, mas quando estamos diante delas parece que as vemos pela primeira vez. E é espantosa aquela “Última Ceia” do Leonardo da Vinci. A mim o que me marcou mais foi que aquele momento é uma grande conversa. Ao contrário do que pensamos, que na “Última Ceia” está toda a gente muito calada, muito compenetrada à volta do que está ali a acontecer e do que Jesus está a dizer, não, aquilo é uma conversa pegada, uma discussão sem fim, um desassombro, um desconcerto cheio de movimento. Estão os doze discípulos organizados em grupos de três: três, três, três, três e todos à conversa uns com os outros, em conversas cruzadas, a falar, a perguntar, uns muito atónitos de braços abertos, como que a perguntar “o que é isto?”. De facto, eu pensei, isto tem alguma coisa de verdade em relação à eucaristia, porque mesmo que estejamos quietos no nosso lugar, a escutar ordeiramente, a verdade é que à volta desta mesa nós estamos aqui por causa de uma discussão, de uma conversa que temos connosco próprios, uns com os outros e com o próprio Deus. Nós estamos aqui não apenas para nos pacificarmos, não vimos apenas à busca de um momento de tranquilidade na nossa semana. Este momento, ao mesmo tempo, é um momento de grande alvoroço porque somos trazidos aqui, também, por grandes perguntas, grandes questões que habitam o nosso coração. E uma das perguntas é, de facto: Como viver uma vida feliz? O que é viver uma vida feliz? O que é que Deus quer de mim? São perguntas que, mesmo em silêncio, cada um de nós traz até aqui, domingo a domingo. Qual é o meu caminho? O que é que eu hei-de fazer? A palavra de Deus hoje, pela boca de Jesus, trata precisamente disto, e trata, como é normal, com uma grande capacidade de nos desconcertar. Nós conhecemos as leis, temos por exemplo uma Constituição da República que é a nossa lei fundamental como cidadãos, como país. Temos o Código Civil, essas leis todas, a lei de trânsito, …temos as leis todas. Mas não há nenhuma lei que nos mande amar. O amor parece alguma coisa que nenhuma lei nos pode pedir. A lei pode pedir que eu seja respeitador, que eu seja cordial, que eu pague os meus impostos, que eu seja solidário, que coopere. Mas nenhuma lei me obriga a amar. Porque, na nossa experiência, o amor é alguma coisa que está para lá das leis, o amor é alguma coisa puramente gratuita que nasce no nosso coração. E pode nascer ou não nascer, mas não somos obrigados a amar. Contudo, o discurso cristão é um discurso paradoxal. Porque quando vêm perguntar a Jesus: “Olha lá, qual é o maior mandamento da lei?” Jesus diz: “É o amor.” Então nós somos obrigados a amar? Então o amor é também um mandamento? Ou o amor é uma eventualidade, é uma coisa gratuita, é um chamamento que a gente pode ter ou não? Para Jesus o amor não é apenas episódico, não depende apenas da nossa vontade. O amor tem de estar colocado como coração da própria lei. Uma lei que tem no seu coração o amor tem de ser uma lei completamente diferente das nossas. Porque as nossas são para orientar uma boa ou uma justa convivência social. Mas a lei de que Jesus fala é uma lei que quer mais da vida, que não se basta com pouco. Se no centro da lei está o amor, então isso quer dizer que nós temos de refazer tudo. O que é que está no centro da nossa vida? O que é que está no centro das nossas relações? O que é que está no centro da minha relação com Deus? Quando pensamos nisto com honestidade se calhar não é o amor que surge em primeiro lugar. Se calhar é muito mais a procura de uma convivência, de uma justa relação. A procura de um lucro, de um proveito, a procura de uma sobrevivência. Mas não é o amor que está ali e, contudo, Jesus diz “o cristão é um especialista em amor”. A relação que tem com Deus é antes de tudo uma relação centrada no amor. Ora, uma relação centrada no amor é uma relação livre, é uma relação de afeto, é uma relação de dedicação, é uma relação de conhecimento mútuo, é uma relação de intimidade. A verdade é que muitas vezes estamos longe disso. A relação que temos com os outros muitas vezes é uma relação de puro uso, de pura conveniência, quando não é até de aproveitar, aproveitar os outros para os nossos planos e para os nossos projetos, sem ter em conta a realidade dos outros. Contudo, Jesus diz: ”que a vossa relação com os outros seja marcada por isto: amar”, “ama o outro como te amas a ti mesmo”. Queridos irmãos, é uma imensa novidade. Se a gente se pusesse aqui a discutir, fazíamos uma cena ainda mais extravagante e desconcertada que a última ceia do Leonardo da Vinci. Porque se nos puséssemos a discutir o que é que está no centro da nossa vida – E será que é possível no centro da nossa vida estar o amor? – eu não sei se nós estaríamos de acordo, não sei se estaríamos aqui bem sentados numa boa paz de espírito. Esta semana, falando com um amigo sobre o Evangelho ele diz “Isso é impossível. Isso é para vocês cristãos que têm esses idealismos, essas utopias. Isso é impossível.” Eu não sei se é possível ou não, digam-me vocês, é possível ou não? Nós confrontamo-nos com esta palavra: isto é possível ou não é possível? Não sei. Há uma coisa que eu sei: é que isto só é possível se, previamente, nós fizermos a experiência do amor de Deus. Eu acho que quem nunca fez a experiência do amor de Deus, do que significa o amor de Deus na sua vida, um amor incondicional, um amor total, um Deus que envia o seu próprio Filho para dar a sua vida por nós, um Deus que espera por todos sempre, um Deus que não desiste de ninguém, não desiste de mim, nunca, nunca, se eu não fiz até ao fundo esta experiência de amor, se eu não vivo da contemplação e da certeza deste amor, eu não sei como é que é possível colocar o amor no centro da vida. Acho que é simplesmente uma daquelas coisas bonitas que Jesus disse mas que já não é para nós, já não vamos a tempo de viver isto.

Queridos irmãos, não é fácil, não é fácil, este Jesus. E nós não o vamos resolver nesta homilia, nem o vamos resolver hoje. Cada um de nós leve o problema Jesus para casa. As palavras que Ele diz são palavras que nos tiram do sério, são palavras que nos acordam porventura para outra realidade, são palavras que nos dão outros critérios, mas estamos dispostos a vivê-los ou não? E como é que está a ser o caminho da nossa relação com estas palavras que despertam em nós tamanha tensão, tamanho espanto? Jesus é um problema, é uma conversa que a gente tem também connosco próprios. É importante que cada um de nós leve esta conversa para a sua semana. O que Jesus me pede é possível ou não é possível? E se é possível, como é que é possível? E se não é possível, como é que isso não é possível? Como é que eu cruzo os braços? Como é que eu o oiço e não consigo viver? Eu penso que precisamos de ter esta conversa. Porque isto é o centro, e se a gente não põe perguntas, não põe questões, não diz “Isto não é possível. Isto não é para mim.”, não se volta de novo a reencontrar com esta palavra com frescura, com espanto, acho que não estamos a viver o caminho cristão.

Eu lembro-me que na primeira paróquia onde eu estive, na Madeira, era jovem padre, havia uma senhora, uma cristã, que tinha mais de oitenta anos, uma daquelas, nós diríamos, beatas da paróquia, e eu também pensava assim com um certo preconceito dela, mas depois quando a conheci, ela deixava-me a milhas. No fundo, a grande questão desta mulher era: “É possível construir uma espiritualidade baseada no amor ou não? E nós podemos mesmo amar ou não podemos? E conseguimos ou não conseguimos?” Era a questão dela e não queria respostas fáceis, não queria discursos redondos. Não. Era ou não era possível? Eu aprendi muito com a exigência daquela senhora que queria saber se era ou não era assim. Penso que todos nós, em todas as idades, somos chamados a colocar esta questão assim, com verdade.

Queridos irmãos, nós não temos muitas respostas mas Jesus incendeia, Jesus mete fogo na nossa paz, Jesus tira-nos a campo, tira-nos a terreiro. Esta questão do amor é uma daquelas questões com a qual a gente tem de lidar sempre. Mesmo que a gente diga “Ah, não é possível.” Mas depois ela vai-nos aparecer à frente e vai-nos pedir respostas cada vez mais concretas. A decisão ‘sim’ ou ‘não’ não é uma decisão filosófica, é uma decisão muito concreta. Se há o amor então o que é que tu fazes? Então como é que vives? Qual é o teu programa? Como é que ages? Aquela ceia do Leonardo da Vinci fez-me pensar aqui na nossa comunidade, aqui na nossa Capela. No fundo, como é que esta palavra nos põe a pensar, nos põe a discutir uns com os outros, nos põe a conversar à mesa das nossas famílias, com os nossos amigos? Porque se isto não é um problema que nós levamos connosco, então não o estamos a habitar verdadeiramente, e é isso que nós vamos pedir: a força de habitar este Cristianismo que, muitas vezes, não é fácil e para o qual, muitas vezes, nós não temos uma resposta pronta, mas que é um combate que dá sentido às nossas vidas.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXX do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/10/21 – Conversas à Capela – Sínodo sobre a Família” open=”false”]Na próxima terça-feira, dia 21 de outubro, pelas 21h30, recomeçamos as nossas Conversas à Capela. Para esta conversa, convidámos a socióloga Ana Nunes de Almeida, o jornalista António Marujo e o pedo-psiquiatra Pedro Strecht. O diálogo será centrado nos debates que têm decorrido a propósito do Sínodo dos Bispos sobre a Família.[/vc_toggle] height=”30″]

Setembro

height=”10″][vc_toggle title=”2014/09/21 – Deus está perto de todos” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Esta parábola que Jesus hoje nos conta coloca-nos perante a questão da fé e da ausência de fé.

A história da fé é comparada, por Jesus, a este convite para ir trabalhar na vinha do Senhor. Há uns que o Senhor logo pela manhãzinha, pela madrugada, chama para trabalhar na sua vinha. Mas a verdade é que depois sai a meio da manhã, ao meio dia, às três da tarde e ao fim do dia e ainda continua a chamar outros para ir trabalhar na sua vinha.

Quer dizer, o encontro de fé não é igual para todos, não é tudo ao mesmo tempo. Há tempos diferentes no nosso caminho. Há um mistério, para nós crentes, que é percebermos porque é que a fé toca a uns e não toca a outros. Porquê?

Porque é que a fé é um dom que é dado a uns e parece que não foi dado a outras pessoas?

Porque é que a fé é um dom me foi dado a mim? Às vezes pergunto-me…

Certamente que cada um de nós se pergunta, porque todos nós conhecemos pessoas fabulosas e que não são crentes, “mas porquê?”.  O que é que eu tenho a mais ou o que é que eu tenho a menos? É um mistério! A fé é, de facto, um dom. É um dom que não se explica. Um dom que não se justifica.

A única coisa que a gente sabe é aquilo que o salmo diz : “Deus está perto de todos, Deus está perto de todos”. A forma como nos relacionamos com essa proximidade de Deus, com essa vizinhança, nós não sabemos.

Nesse sentido, viver a fé tem que ser um exercício de grande humildade, de grande desprendimento e de grande abertura. Porque a fé não nos pertence, a fé é-nos dada. A fé não é um direito nosso, a fé atravessa-nos, como uma coisa que nós servimos, que nós usamos mas que verdadeiramente não é nossa. É um dom de Deus.

Nós precisamos de perceber que acreditamos também para servir os outros, em função dos outros. A nossa fé não nos afasta de ninguém, pelo contrário. Nós acreditamos não é no lugar do outro ou em vez do outro, porque cada um é chamado a esse encontro. Mas nós temos fé para os outros. Não é ter fé e ponto final, como se fosse um direito nosso. A fé é uma abertura para os outros.

Esta parábola que Jesus conta é uma parábola impressionante. Das frases do Evangelho que me impressionam mais é aquela em que os trabalhadores que o Senhor contrata só às cinco da tarde, mesmo no fim do dia, respondem quando o Senhor pergunta: Então e vocês, porque é que não foram para a vinha? Eles respondem: Porque ninguém nos contratou, porque ninguém nos contratou.

Em latim a tradução ainda é mais forte porque diz: “porque nenhuma palavra nos conduziu a ti”. E o Senhor não diz: isso é mentira, vocês foram contratados antes. Não, ele aceita, aceita que foi assim.

Isto quer dizer, queridos irmãos e irmãs, que é um mistério muito grande, aquilo que acontece no coração de um crente e de um não crente. É um mistério muito grande.

O Cardeal Carlo Maria Martini, no final do século passado, na Catedral de Milão,  desenvolveu um projeto muito belo, chamado a Cátedra dos não crentes.

Ele levou para dialogar, na Catedral de Milão, crentes e não crentes. E não era só dialogar sobre economia, política, … Não. Eram coisas deste tipo: perguntar a um não crente como é que ele rezava e qual era a sua experiência de oração.

O cardeal Carlo Maria Martini diz uma coisa muito bela: que cada um de nós, no seu coração, tem um crente e um não crente, que conversam entre si e que se perguntam coisas pungentes, coisas dramáticas. Há perguntas que o nosso coração faz porque, dentro de nós, há também um não crente. E é preciso ouvir o não crente que existe em nós porque ele, se calhar, vai ajudar a purificar aquilo que eu penso que é a minha fé mas que, verdadeiramente, não é uma fé iluminada.

Ele diz o seguinte: faz muito bem aos crentes escutarem os não crentes, como faz muito bem aos não crentes escutarem os crentes e dialogarem sobre isso.

Queridos irmãos, porque é que nós estamos no trabalho da vinha? Não é para ganhar mais do que os outros. Essa é conclusão da parábola. Os trabalhadores da primeira hora pensavam: bem, estão a entrar estes, nós entrámos mais cedo, suportámos o dia e o calor, o que será a nossa recompensa? Depois, no final, percebem que todos recebem o mesmo denário.

O caminho que estamos a fazer não é por recompensas. É preciso purificar a nossa fé deste desejo ainda muito humano, ainda muito mundano de recompensas.

Santa Teresinha do Menino Jesus dizia uma coisa que para nós, ao mesmo tempo, é terrível. Ela dizia assim: “Ainda que não existisse céu, eu não deixaria de acreditar em Ti”. É uma coisa muito radical. Há céu. Nós acreditamos que há céu. Mas ela dizia: ainda que não houvesse, eu continuaria a acreditar em Ti…

Quer dizer, a nossa fé é a história de uma relação, de uma relação que nós vivemos agora, no presente, não é em vista disto ou daquilo. Não! Saboreemos o presente, saboreemos o momento que agora estamos a viver, como naquele belo poema de Kavafis, «O regresso a Ítaca».

Ele diz: “Quando regressares a Ítaca, à maneira de Ulisses, reza por uma viagem longa, que possas passar por muitos portos, ter uma vida cheia, uma vida plena de acontecimentos. Porque depois quando chegares a Ítaca, Ítaca não tem nada para te dar, deu-te a viagem».

Deus tem coisas para nos dar, tem a sua presença. O nosso coração vai ser saciado de Deus. A nossa fome, a nossa sede vai ser saciada da sua presença, da sua glória -veremos o rosto de Deus.

Mas não é para termos um lugar à direta ou à esquerda. Não é um pódio, é um encontro. É um encontro que, desde agora, temos que ter a consciência que estamos a viver com os outros, ao lado dos outros, integrando também o que é a experiência dos outros. Porque isso é tão importante… Nós crentes não temos o monopólio nem da fé, nem da moral, nem da ética – não temos!

Os não crentes também têm uma ética, também têm uma relação espiritual qualquer que ela seja, uma abertura ao mistério da vida, têm dúvidas. Nem que seja terem um património de dúvidas. Isso é um património fantástico, têm um património espiritual fantástico.

Por isso vamos pedir ao Senhor que nos ajude a estar no nosso lugar.

Aquilo que o Profeta Isaías diz: Os pensamentos de Deus estão longe dos teus pensamentos como o Céu está longe da terra.

Isto é, a gente acha que é assim ou que é assado. Não. Deus é Deus. Quer dizer, Deus está muito para lá do que penso, do que eu sei, do que eu posso, das representações que eu faço. Aceitarmos isso dá-nos um sentido, ao mesmo tempo, de humildade, de desprendimento, de verdade, de um estar por estar, de um saborear o presente, o momento, o instante. Porque é isso que é fundamental.

O Senhor passa. Não passa apenas uma vez. Passa muitas vezes pela nossa vida. Esta parábola também é parábola das idades da nossa vida. O Senhor, se calhar, passou muito cedo na nossa vida. Mas depois também passa ao meio dia, também passa às três da tarde e passa ao crepúsculo. Se calhar as nossas respostas são diferentes. Mas é importante que a gente sinta que Deus passa, que Deus passa.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXV do Tempo Comum

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/09/14 – Fazer do amor sem medida a medida da nossa vida” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Hoje, nesta Festa da Exaltação da Santa Cruz, nós somos chamados a colocar os nossos olhos na Cruz do Senhor e a percebê-la não só como um facto único da história da Humanidade, um facto que nos faz abrir os olhos, um facto que vem ao inverso, que contraria a ordem do mundo pela espetacularidade da sua dádiva, ou para alguns, do seu absurdo, que nos faz escancarar a mente perante a Cruz do Senhor. Mas percebê-la não como um acontecimento inédito que diz respeito unicamente àquele profeta, messias, Jesus de Nazaré, mas percebermos a Cruz como medida do que nos é proposto viver. Percebermos a Cruz como caminho que nos é dado, objetivamente, para percorrermos. E fazermos disso o critério, o modo, o estilo, a gramática da nossa própria vida.

O que é que nos diz a Cruz do Senhor? Uma das mais extraordinárias explicações é, sem dúvida, a deste hino da Carta aos Filipenses que hoje nós proclamamos na segunda leitura. Este hino, que nos aparece na Carta de Paulo aos cristãos de Filipos, possivelmente era até um cântico anterior, uma profissão de fé, um credo que a comunidade cristã já tinha na sua Liturgia e que S. Paulo quando escreve aos Filipenses assume esse cântico para lembrar. É interessante o que S. Paulo coloca como moldura para esta rememoração que propõe aos cristãos de Filipos. S. Paulo diz “Irmãos, tende entre vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”, isto é “Irmãos, colocai no coração aquilo que habitou o coração de Jesus”, “Irmãos, vivei à maneira de Jesus, pensai e senti como Jesus pensou e sentiu”. E o que é que eram os sentimentos de Jesus? Então nós temos isto que S. Paulo relembra: “Cristo, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus mas humilhou-se a si próprio, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de homem”. Mas não ficou apenas como mais um homem ou o primeiro, o Príncipe dos homens. Ele humilhou-se ainda mais aparecendo como o último dos homens. Obedecendo até à morte e morte de cruz. Assumindo a condição de escravo. Este texto foi, na história da teologia cristã, da doutrina cristã, a base para o que se chama um pensamento quenótico. Kenosys, em grego, quer dizer queda, humilhação, esvaziamento.

O Cristianismo não é nós sermos uns inchados espiritualmente. “Ah, eu sou o maior, eu tenho uma fé, eu acredito em coisas sublimes, eu sou melhor moralmente do que todos os pecadores. Eu tenho isto, eu tenho aquilo”. O Cristianismo não é uma arte de inchar, é uma arte de esvaziar. A verdade é que nós esvaziamos pouco. E esvaziar o que é que quer dizer? Quer dizer realizar no seu coração aquele movimento que é típico do amor. Porque o amor, se nós pensarmos bem, não é outra coisa senão um esvaziamento de si. Aquilo que o amor pede a cada um é que se torne um mendigo, um suplicante, é que se coloque ao lado do outro como quem serve, como quem se coloca de joelhos, como quem se baixa, como quem se torna o último. O amor é o contrário da afirmação do poder. A afirmação do poder em que somos primeiros, em que dominamos, em que pensamos. O amor em que somos o servo , em que lavamos os pés, em que servimos, em que nos colocamos humildemente, e até com humilhação, ao pé do outro.

Qual é a utopia cristã? Qual é a proposta cristã? Eu diria, a insolência da proposta cristã qual é? É acreditar que aquilo que até pode acontecer entre duas pessoas, que é amarem-se e descobrir nesse amor que não podem viver sem a outra, que têm de viver numa doação, numa dádiva, numa entrega em relação aquela pessoa concreta, seja mulher seja homem… ou que aquilo que nós experimentamos num  pequeno círculo, da nossa família, por exemplo, em que sentimos a voz do sangue chamar, e estamos ali de uma forma incondicional, aconteça o que acontecer nós estamos com aquelas pessoas, por aquelas pessoas… ou até com os nossos amigos, que são irmãos que nós escolhemos e por quem nós damos tudo, com quem estamos sempre nas horas boas e nas horas más… nós podermos alargar esta experiência do amor a todos, a todos. É uma insolência, isto é, é alguma coisa impensável. Porque amar os nossos nós compreendemos, mas agora amar os estranhos, amar os nossos inimigos, amar os que nos perseguem, amar os que nós não conhecemos, amar os que estão fora do nosso círculo, amar os que pensam diferente de nós, isto é, fazer do amor, fazer daquilo que colocou Jesus na Cruz, que é o amar sem medida, fazer desse amor sem medida a medida da nossa vida é a proposta que Cristo nos faz.

Isto é vivermos num estado de paixão, vivermos nesta paixão de Cristo a nossa vida inteira. E não apenas em relação a esta pessoa que é a minha mulher, ou o meu marido, ou o meu amigo, ou o meu filho, ou a minha mãe, mas em relação ao mundo, em relação aos outros. Ser esta a minha forma de viver, a minha forma de ser. Porque Cristo veio ao mundo não para condenar o mundo mas para o salvar. E Deus enviou o seu Filho ao mundo não para O perder mas porque O amava sem medida. Cada um de nós é chamado a ser testemunha deste amor sem medida que Deus tem pelo mundo e tem pela pessoa humana. Sermos testemunhas deste amor assim, incondicional, inservil, desmedido. Esta é a utopia cristã. O Cristianismo precisa de cristãos tocados por um amor assim, abrasados por um amor assim, aquela civilização do amor que tem sido no magistério social da Igreja o grande propósito. Nós temos de ser fermento de uma civilização do amor. Não é uma abstração, não é uma ideia bonita para repetir, não é um chavão retórico. É um exercício, é um compromisso concreto que nós temos de tomar.

Queridos irmãos, Cristo está levantado da Cruz. Para quê? Porque é que nós cristãos fizemos de um crucificado o grande símbolo que nós não podemos deixar de ter diante dos olhos? Porque é que nos ajoelhamos? Porque é que veneramos? Porque é que amamos Aquele dependurado numa Cruz se não for para ter no nosso coração os sentimentos que O habitaram, se não for para decalcá-lO em nós até que Ele se confunda com o que somos, com o que fazemos, com o que pensamos e com o que sentimos?

Queridos irmãos, a Exaltação da Santa Cruz não acontece fora do mundo, não acontece nas páginas dos jornais, não acontece na abertura das notícias, não acontece por aí. A Exaltação da Santa Cruz acontece no segredo do nosso coração quando nós dizemos sim a Jesus, sim ao que Ele nos propõe como caminho, como vida.

Pe. José Tolentino Mendonça, Festa da Exaltação da Santa Cruz

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Julho

height=”10″][vc_toggle title=”2014/07/18 – Estado de graça ou desgraça? – conferência para boa gente solteira” open=”false”]estadoGraca_capelaRato_noticia[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/07/17 – VERBO – Deus como interrogação na poesia portuguesa” open=”false”]verbo_capelaRato_capaLivro_noticiaA antologia de poesia “Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa”, com seleção de Pedro Mexia e padre José Tolentino Mendonça, vai ser apresentada esta quinta-feira, 17 de julho, em Lisboa.

A sessão, marcada para as 18h30 na Capela do Rato, conta com as intervenções do crítico literário Fernando J.B. Martinho e Tolentino Mendonça, diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. O ator e encenador Luís Miguel Cintra lerá alguns dos poemas.

Do volume publicado pela Assírio & Alvim que foi lançado no último sábado, em Famalicão, durante o encontro “Carmina 1”, revelamos grande parte do texto introdutório, a que juntamos seis poemas.

 

Explicação
Pedro Mexia, José Tolentino Mendonça

Estamos conscientes de que entramos aqui a brincar com o fogo, contrariando ambos os lados de uma barricada. Uma antologia desta natureza tem, por isso, todos os ingredientes para constituir-se numa empresa que falha. Desde logo pela banda daqueles que chegarão a este livro por serem simplesmente leitores de poesia. Uma declaração de Gottfried Benn pode bem traduzir os seus receios: «Deus é um mau princípio estilístico. Quando alguém se torna religioso, isso fatalmente abranda a sua expressividade.» As convicções religiosas são incompatíveis com a boa poesia. Elas «abrandam», «afrouxam», «domesticam», tornam «bem intencionadas» as proposições. E, novamente nas palavras de Gottfried Benn, «bem intencionado» é o contrário de bom. A alternativa que o poeta alemão apresentou passou a constituir um dos modos mais representativos de afrontar o problema: a arte (e, neste particular, a poesia) é a única forma possível de transcendência. A religião perdeu o poder de impulsionar os homens no seu desenvolvimento espiritual e «apenas a arte permanece como a verdadeira tarefa da vida, como sua identidade, sua atividade metafísica, à qual ela mesma, a vida, nos obriga». Como sempre, o problema não são as intuições originais (instigantes e necessários motores do desassossego), mas a sua massificaçâo e o émulo que, sem pretender, por vezes geram: o preconceito.

Mas os leitores que chegam a este volume por que sobretudo se interessam pela questão religiosa não atravessam um desconforto menor. A crítica religiosa à estética contrapõe uma antítese radical: a arte é um princípio demasiado frouxo e ambíguo para a fé. A arte é, no fundo, um jogo do esconde-esconde, sem compromissos, sem gravidade existencial; e pior, instaura uma moral estranha à moral autêntica. À estética opõe-se aquilo que realmente conta: a ética e a vida eterna. Como à poesia se opõe o único fator decisivo: a verdade. Bem podem os românticos alcandorar que «quanto mais poético mais verdadeiro». A crítica protestante (Sören Kierkegaard e Karl Barth, por exemplo) e a teologia católica neoescolástica aparecem coincidentes num claro alinhamento de confronto, o que justifica também o divórcio que, na prática, se veio a instalar entre religião e artes.

Claro que este é um quadro extremado e não podemos esquecer, como recorda Jorge de Sena, que «há infinitas maneiras de prevalecer». A todos os que as inventam, as desejam e as praticam dedicamos esta antologia. Estamos em crer que se um protagonista com a envergadura intelectual e espiritual de Bento XVI dirigiu aos artistas as palavras que se seguem, mostra como, porventura, ingressamos noutra estação: «O que pode voltar a dar entusiasmo e confiança, o que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o caminho, a elevar o olhar para o horizonte, a sonhar uma vida digna da sua vocação, a não ser a beleza? Vós bem sabeis, queridos artistas, que a experiência do belo […] não é algo acessório ou secundaria na busca do sentido e da felicidade, porque esta experiência não afasta da realidade, mas, ao contrário, leva a um confronto cerrado com a vida».

Escolhemos como balizas temporais as obras de Vitorino Nemésio e de Daniel Faria, e lemos com atenção e vagar os poetas portugueses, nascidos entre 1901 e 1971, que fizeram da «questão de Deus» um tema, motivo ou obsessão. Como é natural muitíssimos autores e movimentos ignoraram a «questão de Deus» (…).Em contrapartida, a «questão» aparece com frequência nos autores ligados à “Presença”, aos “Cadernos de Poesia», até à “Arvore”, isto para nos ficarmos por grupos ou tendências. Cedo nos apercebemos de que o cristianismo (quase não se encontram outras religiões em poemas portugueses) é em muitos poemas um facto cultural sociológico; não um assunto íntimo e grave, mas uma linguagem, uma memória de infância, um aspeto quase folclórico, um ritual laicizado, ou então uma referência pictórica, arquitetónica, musical.

Se tivéssemos incluído todos os poetas que aludem de algum modo ao cristianismo, a antologia teria uma centena de autores, e não treze. Pareceu-nos porém que interessava mais a ideia de «questão», questão dos poetas consigo mesmos, quer se tratasse de fé, angústia, recusa, apostasia, incompreensão, revolta ou prece. Ainda assim, chegámos a ter uma seleção quase final com vinte e muitos poetas, que fomos reduzindo. Abdicámos, na escolha definitiva, de certos poemas meditativos e metafísicos, eliotianos, digamos assim, que certamente teriam lugar num volume mais extenso, mas que se prestavam mal a uma antologia; de outros em que o motivo cristão é apenas alegórico ou até «linguístico»; e três ou quatro poetas canónicos ficaram de fora por uma questão do gosto pessoal de quem escolheu, que é sempre um bom critério em antologias.

Destes treze poetas, cinco estão representados com quinze poemas, por nos parecerem absolutamente determinantes numa compreensão da «questão de Deus» na poesia portuguesa. Começamos com Nemésio, que escreveu poemas de uma entrega metafísica confiante e aflita, em estilo elevado ou chão, com uma toada popular ou um vocabulário científico, dando corpo à própria noção de Verbo. Sophia de Mello Breyner Andresen é um caso especial de contiguidade entre a cultura greco-latina, pagã, e a ética cristã, mas tem sempre presente os mesmos ideais de justiça, perfeição, paz, o mesmo escândalo com os fariseus e os opressores, a mesma ânsia por uma «pura face». Fernando Echevarría chega ao cristianismo como uma dupla emanação da filosofia e da mística, uma «experiência» do sagrado intimista, intelectual, que se manifesta em noções de evidência, estudo, presença. Ruy Belo começou por ser um poeta católico, tornou-se depois um «pobre católico» e um «vencido do catolicismo», deixando cair todas as maiúsculas, até na palavra deus, e deixou-nos poemas literalmente antológicos sobre os vestígios de Deus nas palavras e no mundo, mesmo que se tenha depois desencontrado com esses vestígios. O quinto destes poetas é Daniel Faria, monge beneditino, precocemente falecido, que compôs poemas bíblicos, metafóricos, algures entre São João da Cruz e Herberto: paráfrases, transformações, intimações e segredos.

As demais escolhas são evidentes, umas, e originais, outras. Ruy Cinatti, por exemplo, era inescapável, com o seu tom de oração coloquial, um «nós não somos deste mundo» que claramente se situa no mundo, atravessa o mundo, atravessando Deus também. O caso de Jorge de Sena é mais bizarro; nem sequer tínhamos pensado incluí-lo, mas os poemas dos anos 1930-40 são literalmente uma luta com Deus, uma tentativa de enfrentar a «questão de Deus», às vezes com veemência, como um agnóstico à beira da crença ou do ateísmo; o facto de «a questão» quase ter desaparecido na obra subsequente não elimina o evidente interesse destes poemas. Quisemos incluir José Bento porque se trata de um poeta com um reconhecimento insuficiente, apenas compensado pelo seu prestígio como tradutor do castelhano; estes quatro poemas são reveladores de uma poética intensa e discreta, de surpreendentes ecos marianos, e com uma crença que, tal como a poesia, depende por vezes de «uma única palavra». Autor de obra escassa, porque morreu cedo, suicida, Cristovam Pavia deixou uma grata lembrança em muitos dos seus amigos poetas, e os três poemas que dele incluímos dão conta de um «amor angustiado» e de «forças já não minhas»; forças insuficientes, talvez, mas um amor certo. Pedro Tamen pertence à geração dos «católicos progressistas» ligados à revista “O Tempo e o Modo” e à editora Moraes; os quatro poemas que estão na antologia correspondem à primeira fase da sua obra, devota, interrogativa, surreal esperançosa. Armando Silva Carvalho talvez surpreenda os que o imaginam apenas antilírico, ácido, quase abjecionista; o «cão de Deus» percorre muitos dos seus poemas, histórias de encontros, tias, discípulos, ternura e compaixão, às vezes em tabernas e tasquinhas, como os sítios «impróprios» que Jesus também frequentava. Carlos Poças Falcão é provavelmente o nome menos conhecido desta antologia, mas a recente publicação dos seus poemas completos mostrou a força quase litúrgica desses versos que vivem no espírito e na confiança, que fazem de Deus uma sabedoria e uma exultação. Finalmente, o caso inesperado de Adília Lopes, que parece demasiado humorística e prosaica para abordar a «questão», mas que na verdade tem Deus em dezenas de poemas, um Deus que é um boomerang, um Deus na vida de bairro, um Deus da caridade, Deus como uma mulher a dias, um Deus que é um bicho, um cheiro e uma coisa vivida.

Deus como interrogação, assim se chama a antologia, porque Deus existe, na poesia como na vida, em modo interrogativo, mesmo para quem tem fé. Esta não é uma antologia para crentes ou para não-crentes, é uma antologia de poesia que dá exemplos de um tema, de um motivo, de uma obsessão, exemplos portugueses, numa época que também nos deu Claudel, Eliot, Luzi ou Milosz, poetas com uma questão, com uma pergunta que nunca está respondida.

 

[Senhor, nas minhas veias]
Vitorino Nemésio

Senhor, nas minhas veias
Trago a morte medida.
Sou lâmpada de pobre:
Nem toda a noite a vida.

Já meu sangue estremece;
Veio uma asa ao lago.
Minha mão arrefece
Nestas coisas que afago.

Que maneira de amor
Fui, no menino ido!
Agora, seja o que for
Já no homem cumprido.

Até ao último fio
Poupei o dote divino.
O homem de Deus perdi-o;
Só salvei o menino.

Esse me leva e enche
Como uma onda do mar;
Minhas fraquezas preenche,
Que a grande força é brincar.

Já vai escurecendo;
O sangue pára de arder.
Agora, o que digo acendo
Para não me perder.

 

Anunciação
Ruy Cinatti

Não tenho palavras, nem entendo
formas visíveis.
Elas vêm concretas como aragem
a que dou nome.

Tenho-me, eis tudo. Acontece.
Há uma folha que desce,
que sobrenada, que desce,
que submerge no ar e depois desce
longe de mim no ar fundo.

Nós não somos deste mundo.

Fresca e limpa como a chuva,
ouço a tua voz cantada
descer do céu ao silêncio
que vem da terra molhada.

Nós não somos deste mundo.

Ouso dizer-te o meu nome
como quem se atreve a dar-te
a minh aimagem.

Nós não somos deste mundo.

O que não vejo, entendo.
Pelos rios do meu sangue,
atrevo-me.

Anoitecendo, a vida recomeça.

Dou-me em palavras
que ressuscitam,
Algures no céu amanhece.

Só, intranquilo, pela vereda, desce
o nómada meu amigo.

 

Súplica final
Jorge de Sena

Senhor: não peço mais que silêncio,
o silêncio das noites de planície como enevoadas águas,
o silêncio dos montes quando a tarde acabou e as pedras
se afiam na friagem que é azul-celeste,
o silêncio do sol encarquilhando as folhas,
e o do vento na areia depois de ter passado,
o silêncio das ondas ao longe espumejando tranquilas,
o silêncio das mãos e o dos olhos,
e o das aves negras que pairam nas alturas
de um céu silencioso e límpido. Não peço
mais que silêncio. O silêncio das ideias que deslizam
no teto escorregadio da memória silente.
E o silêncio dos sonhos coloridos, e o dos outros
a preto e branco imagens desejadas
que não pensei que desejava e esqueço
ao querer lembrá-las. E o silêncio
dos sexos que se possuem sem uma palavra.
E o do amor também, tão silencioso esse,
que não sei quem amo.

Não peço mais. Afasta
de mim o estrondo: não o das cidades,
ou dos homens, das águas, do que estala
na memória ou penumbra das salas desertas.
Afasta de mim o estrondo com que a vida
se acabará contigo, num rasgar de súbito
em que ficarei inerte e silencioso. O estrondo
em que não ouvirei mais nada. O estrondo
em que não mexerei um dedo. O estrondo
em que serei desfeito. O estrondo
em que de olhos abertos
alguém mos fechará.

Senhor: não peço mais do que o silêncio do mundo,
o silêncio dos astros, o silêncio das coisas
que outros homens fizeram, e o das coisas
que eu próprio fiz. E o teu silêncio
de senhor que foi. Não peço mais.
Não é nada o que peço. Dá-me
o silêncio. Dá-me o que não fui:
silêncio (porque calei tanto):
o que não sou (pois que calo tanto):
o que hei de ser (já que falar não adianta):
silêncio.
Senhor: não peço mais.

 

[Um  dia encontrei Deus num poema]
Armando Silva Carvalho

Um dia encontrei Deus num poema
histórico.
Debaixo daqueles versos tão explicativos
em que a gente podia ver suar os reis
e urinar rainhas e até os ferros das montadas
se soltavam das sílabas histéricas
Deus quisera estar escondido como uma
criança.
Não tinha filosofia aquele poema.
Eu sabia-o de cor por isso encontrei Deus
e à noite num balcão duma taberna
recitei-o aos bêbados sonâmbulos de chuva.

 

[há infinidades a que não se dá um nome]
Carlos Poças Falcão

há infinidades a que não se dá u m nome
mas a tua infinidade é o teu nome
a multiplicação de todos os teus passos
contém-se numa única passada
os instantes todos e os gestos expandidos
são o teu enxame o teu mil e o teu milhão
– mas pudesses escutá-los como um só estalido
na hora do calor

há cúmulos no céu e granulações na terra
e com batimentos próprios fizeste a tua espuma
a isso chamas força – mas tudo se te esconde
e mesmo a inteligência imersa não se vê

«talvez exista algures uma arcaria oculta
talvez se explique que os extremos estremeçam»
e vais dizendo isto enquanto a tua ação
é o que faz vibrar a teia
as armadilhas prendem os que se debatem
os pensamentos soltos impedem de acertar
as imaginações desviam para sempre
as mais altas experiências

melhor dizer apenas: este é o meu corpo
permite que celebre a exata temperatura
o santo coração numa só corola deve
em verdade ser erguido para não morrer

 

[E desço à verdura das tuas mãos]
Daniel Faria

E desço à verdura das tuas mãos
Como as manadas que buscam as minhas

Faltam-me apenas os pés feridos dos que peregrinam
Faltam-me no chão duro das promessas
Os joelhos

Queria tanto andar em redor, rodear-te, se soubesses como
Queria amar-te tanto

O que sei da unidade é a túnica
Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida
É o livro escrito por dentro e por fora
Silêncio escrito por dentro
Palavra escrita a toda a volta da história

O que sei do céu
É a mão com que sossegas os ventos

Desço à escritura como os veados aos salmos

 

© SNPC | 17.07.14

Luís Miguel Cintra lê poemas da antologia “Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa”: Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Echevarría, José Bento, Ruy Belo, Cristovam Pavia, Pedro Tamen, Adília Lopes

 

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/07/13 – A parábola é uma palavra que se desloca” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Para olharmos para a nossa vida muitas vezes temos de encontrar outros pontos de vista, outros ângulos, outras perspetivas. Vivemos tão em cima dos acontecimentos, tão capturados pela sua intensidade, que por estarem tão próximos do nosso olhar e do nosso coração verdadeiramente nós não os conseguimos ver. Por isso é conveniente mudarmos de sítio, mudarmos de posição, olharmos de outro lado para que, nesse distanciamento, ganhemos as condições necessárias para podermos ver aquilo que, por estar tão perto, não avistamos.

É isso que também Jesus faz. Jesus sai de casa e vai para a beira-mar. Este tempo do Verão que começou e que, de uma forma ou de outra, nos permite sair de casa, ir para outro lugar, nem que seja de ir até ao jardim, é também uma oportunidade. Não de evasão da nossa realidade, não é uma vida em fuga que o Verão promove, mas é também uma possibilidade de olharmos para aquilo que vivemos de outro ângulo e, nesse sentido, para  olharmos melhor para a nossa própria  vida.

Jesus, à beira do mar, conta parábolas e as parábolas são também isso. A parábola é uma palavra que se desloca, literalmente. Etimologicamente, parábola quer dizer isso, quer dizer movimento, lançar mais longe – quando a nossa própria palavra, o nosso próprio discurso, ganha uma distância em relação ao tipo de palavra e discursividade que é aquela de todos os dias. E, tal como nós precisamos de casa e sair para a beira-mar ou para a montanha ou para o jardim ou para uma exterioridade em relação à nossa vida, a nossa própria linguagem também precisa de uma coisa semelhante. Isto é, precisamos de nos reencontrar com os símbolos, com um tipo de linguagem que não seja a linguagem utilitária que serve para isto e para aquilo. Confrontarmos, no fundo, com uma palavra que seja capaz de dizer, até pelo seu mistério, até pelo seu enigma, aquilo que normalmente não cabe nas nossas palavras de todos os dias. Por isso Jesus, em vez de falar dos nossos caminhos, das nossas viagens curtas, do nosso viver atropelado, da nossa ofegância, daquilo que conseguimos ou não conseguimos, do balancete interior de todos os dias, Jesus, em vez de falar de Maria, João e de António, e de Tolentino, Jesus fala de sementes.

E diz, não, vamos deixar isto e aquilo, quem tem razão, quem não tem razão, quem fez e não fez…Vamos deixar isso. Vamos falar de sementes. Isto é, vamos recuperar o sentido original da vida. Vamos perguntar porque é que estamos aqui.

Vamo-nos perguntar pelas razões profundas do nosso viver. Que é uma coisa que às vezes na luta do dia-a-dia, no combate, nós não temos esse o distanciamento necessário. O que é que eu quero, o que é que eu sou, porque é que eu ando aqui, porque é que eu persigo isto, o que é o meu desejo?

No fundo, as perguntas profundas, só vêm quando a gente se distancia. Então, em vez de falar da vidinha, falemos de sementes, sementes que o próprio Deus semeia na nossa vida.

Cada um de nós acolhe tantas sementes! Nós somos terra, nós somos essa grande recoleção, nós somos território que é atravessado por tanta coisa, atravessado por tanta coisa que chega até nós, coisas do mundo e coisas de Deus.

No fundo, a grande questão que a parábola de Jesus coloca é: O que é que nós fazemos com aquilo que recebemos? O que temos feito com o que nos é dado? O que é que nós fazemos com o dom?

Toda a vida é dom. Estarmos aqui hoje reunidos, nesta hora, nesta celebração é um dom. A vida foi-nos dada. Nós estamos aqui como representantes, testemunhas, de um grande dom. O que é que nós fazemos com esse dom?

Jesus diz que fazemos coisas muito diferentes e que se podem resumir nisto: ou na fecundidade ou na esterilidade. A nossa vida pode ser estéril e pode ser fecunda.  Isto nós sabemos no íntimo de nós próprios. Como tantas vezes com o dom recebido, nós conseguimos replicá-lo, levá-lo mais longe, da vida não fazemos vida, mas fazemos morte, tristeza, desalento.

O que é da vida fazer vida? Isto é, o que é sermos multiplicadores, bons condutores do dom que nos é dado? É quando a nossa vida é terra boa. É quando na nossa vida temos capacidade de acolhimento e fazemos um caminho com aquilo que nos é dado. A palavra de Deus, o amor de Deus é-nos dado. Temos gosto, capacidade, vontade, de fazer um caminho com isso que nos é dado? Ou é como, digamos, alguma coisa que cai mas não penetra no fundo da nossa vida, do nosso coração, do nosso desejo?

O que é que estamos dispostos a fazer? No fundo, o que é que cada um de nós tem de transformar na sua vida para a fazer passar de um lugar de superficialidade, onde nada entra, porque é uma vida defendida e armada, para uma vida que é uma terra boa, onde a semente pode começar uma história, onde a semente pode ser promessa que se concretiza?

O quê que cada um de nós tem de fazer para passar da superficialidade à profundidade?

É com estas perguntas que Jesus nos deixa. São perguntas vitais na nossa vida, que nós não podemos adiar, não podemos fazer de conta que não estão aí. Trata-se de viver e consumar, de realizar plenamente a vida ou de deixá-la adiada, suspensa, até estragada, a vida entre os espinhos e entre as pedras, a vida que nunca se encontrou com a possibilidade de ser fecunda e de ser plena.

São Paulo, na Carta aos Romanos, dá-nos um dos textos mais extraordinários do pensamento Paulino, que diz isto: como a semente vive um estado de parto, a semente está sempre a rebentar, a nascer, quando é colocada na terra. A nossa própria vida também é um parto. As nossas dores não são dores de morte, mas são dores de parto. Aquilo que nós pensamos é o fim, não, é o começo, é o princípio, é o início. Os nossos gemidos são os gemidos da parturiente que dá à luz. Nesse sentido, a vida não é uma história absurda, uma história sem sentido. Mas a vida é um nascimento. A nossa condição é a condição daquelas e daqueles que geram, que fazem a gestação do próprio mundo, da própria vida. É por isso, queridos irmãs e irmãos, uma palavra de extraordinária esperança.

Nós estamos à porta do Verão. Também nós deixamos a nossa casa e vamos para outro sítio. Também nós nos podemos reencontrar com uma linguagem que seja uma linguagem que fale da vida e daquilo que a vida é. Precisamos disso. Mas a grande questão que Jesus nos coloca é: o que tens feito da tua vida? O que queres fazer da tua vida?

A tua vida é um campo de fecundidade ou um é campo de esterilidade?

O que é que tu tens de transformar para poderes acolher melhor, para poderes fazer um caminho, construir uma história com o dom que em cada dia te visita?

Tu olhas para a tua própria vida como um parto ou olhas como uma morte? Aqui há uma conversão muito grande. Às vezes olhamos para a nossa vida e sentimos as coisas a morrer. Na perspetiva cristã, nós somos chamados a olhar a nossa vida e sentirmos as coisas a nascer, mas para isso temos de converter o nosso olhar.

Marcel Proust dizia que a verdadeira viagem não é aquela que nos leva de um sítio para o outro. A verdadeira viagem é aquela que transforma o nosso olhar. É disso também que Jesus nos fala, da transformação da nossa maneira de olhar a vida, de a  querer e de a abraçar.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XV do Tempo Comum

Clique para ouvir a homilia

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/07/02 – Sophia de Mello Breyner foi poeta da luz à procura da Luz, considera patriarca de Lisboa” open=”false”]«Luz surpreendente, intensa demais para olhos quaisquer, anterior ainda a quem a buscasse, interior, até, para quem não pudesse enxergá-la»: assim é a luz divina que Sophia de Mello Breyner procurou, afirmou esta quarta-feira o patriarca de Lisboa.

As palavras de D. Manuel Clemente foram proferidas na missa celebrada na Capela do Rato, na capital, durante as cerimónias de trasladação da poeta para o Panteão Nacional.

Sophia «nasceu no Porto, onde a luz é mais recolhida e íntima», e habitou em Lisboa, «onde é larga e clara», apontou o prelado, para quem «há sempre luz» na poeta que morreu a 2 de julho de 2004.

Referindo-se à leitura bíblica que abriu a Liturgia da Palavra, extraída da primeira carta de S. João, D. Manuel Clemente lembrou que «a luz absoluta é outro nome de Deus»: «Deus é luz, e nele não há nenhuma espécie de trevas», e «se caminhamos na luz, como Ele está na luz, então temos comunhão uns com os outros».

«Creio que a universal aceitação de Sofia e do que escreveu provém muitíssimo daqui, da grande luz que nos dá no rosto. da sua ambição insaciável de ser clara, mas de uma clareza final que passa por desvendamentos árduos para conseguir alvorecer, por fim», assinalou.

O patriarca mencionou depois um dos principais temas da autora, a Grécia, para estabelecer uma comparação com a história bíblica e o cristianismo, realçando que «Sophia é helénica e cristã».

«Como a filosofia dos seus amados gregos precisou de decantações de mitos e figuras para atingir a iluminação da mente que ainda temos, também o caminho bíblico que igualmente herdámos precisou de muito deserto e não menos noites para se concentrar numa figura concreta onde cabe a humanidade toda, e o seu Criador também», disse.

A homilia de D. Manuel Clemente foi pontuada por versos de Sophia, como este, de há sete décadas: «A presença dos céus não é a Tua,/ Embora o vento venha não sei donde./ Os oceanos não dizem que os criaste,/ Nem deixas o Teu rasto nos caminhos./ Só o olhar daqueles que escolheste/ Nos dá o Teu sinal entre os fantasmas».

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – ler notícia completa aqui.

Escute a homilia aqui

[/vc_toggle] height=”30″]

Junho

height=”10″][vc_toggle title=”2014/06/29 – “E vós, quem dizeis que Eu sou?”” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

“E vós, quem dizeis que Eu sou?”. Cada cristão é colocado perante esta pergunta porque cada um de nós é um intérprete de Jesus. Nós interpretamos a vida de Jesus e, no nosso coração e na nossa vida, temos de responder a esta pergunta: E para vós, quem sou Eu?

Primeiro Jesus pergunta o que é que se ouve dizer acerca dele. É interessante que uns dizem que ele é João Baptista, outros que é Elias, Jeremias ou um dos profetas. Interpretam Jesus a partir daqueles modelos que conhecem, a partir da tipologia profética, identificando Jesus mais com um ou com outro. Interpretam Jesus a partir do conhecido, do familiar, da tradição, do próximo.

Quando Jesus interroga os seus, Jesus está à espera de mais. E, de facto, esse mais surge na boca de Pedro: «Senhor, tu és o Messias, o Filho de Deus vivo». Isto é, para Te compreender não basta aquilo que já conhecemos, aquilo que já vimos noutros. Para Te dizer, para Te nomear não basta o saber acumulado de séculos e de tradição. Para Te dizer nós precisamos de escutar uma voz nova, a voz do espirito, e ser capazes de dizer uma palavra que rompe, que faz ruptura, que é nova, uma voz que é inédita.

Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo. Quando Pedro diz isto ele está a dizer uma coisa absolutamente temerária, absolutamente nova. É uma proclamação destemida aquela que Pedro faz, porque não é assegurada por nenhuma maioria, por nenhum consenso. Porque não havia consenso nenhum em torno de Jesus.

Não era nada confortável o que Pedro estava a dizer. Mas o que ele diz coloca-o sozinho no seu tempo. Torna-o uma voz solitária, uma voz em risco, uma voz que tem de sofrer por esta enormidade que diz : “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.

Quando hoje nós temos de responder à pergunta «E vós quem dizeis que eu sou?», podemo-nos encostar ao que está dito. Podemos repetir como se repete um refrão, um bocadinho sonolento, aquilo que já ouvimos dizer acerca de Jesus Cristo. Podemo-nos acomodar à voz de uma maioria que, de certa maneira, nos inocenta, nos conforta e nos poupa ao risco de dizer uma palavra destemida acerca de Jesus.

Mas cada um de nós, no seu coração, é chamado a esta palavra temerária, é chamado a dizer o inédito, a dizer de Jesus o que ainda não está dito, a proclamar Jesus de uma maneira que ponha em risco, que ponha em causa a nossa própria existência.

Pedro diz “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo” e Paulo será na história do Cristianismo alguém que vai dizer o mesmo e vai tirar as consequências.

Pedro diz isto no caminho da Galileia, numa aldeiazinha, num sítio onde ninguém escuta.

Paulo vai gritar isto nos areópagos do mundo, nas cidades gregas importantes, vai escrever isto na Carta aos Romanos. A primeira frase da Carta aos Romanos, que é uma frase espantosa, “Eu, Paulo, escravo de Jesus Messias”. Por esta frase Paulo pode ir bater à prisão. E foi muitas vezes.

Uma das coisas que nós enterramos, de forma prática, é o messianismo. Achamos, no fundo, que a nossa vida já está resolvida. A nova vida não é vivida em tensão. Quanto muito tememos a morte. Mas outras expectativas decisivas em relação à nossa vida nós vamos atenuando, deixando, deixando e hoje o Cristianismo, de certa forma, esvaziou-se de uma dimensão fundamental à própria experiência cristã que é o messianismo, que é a esperança messiânica.

Nós esperamos num Jesus que é Messias. Nós até traduzimos Messias por Cristo e dizemos Jesus Cristo como se Cristo fosse o apelido de Jesus, e esquecemo-nos que dizer Jesus  Cristo é dizer Jesus é o Cristo, Jesus é o Messias – que é como se diz em hebraico. Jesus é o Messias. Mas dizer isto faz tremer. Porquê? Porque todos os judeus sabiam e tinham-se encarregado de espalhar a sua fé no helenismo do tempo. Estavam presentes nas várias cidades, nas várias metrópoles da época. Quando vier o Messias o que é que cai? Cai a Lei. A Lei deixa de valer. Todas as constituições, todos os códigos deixam de valer. Cai o poder. Todos os poderes caem porque só há um poder, o do Messias, e cai o templo, e cai a forma religiosa e cai a classe sacerdotal. Porque só a há um sacerdote, que é o Messias.

Se a gente diz que ele é o Messias, o mundo tem que mudar na sua configuração. Nada da forma atual do mundo serve, é válido – é no fundo isso que Paulo vai dizer com todas as palavras. Cristo é o fim da Lei. Quer dizer, com Cristo já não há lei, a lei que serve para regulamentar a forma atual do mundo já não tem legitimidade, não tem validade porque surge o Messias. E, quando surge o Messias, começa um estado de exceção, começa um momento histórico novo, começa uma coisa que nós nunca vimos.

O cristianismo de Pedro e de Paulo, que são as duas colunas que se complementam na sua diferença, testemunham-nos um cristianismo messiânico, isto é, um cristianismo de ruptura, que é o inédito na história, um cristianismo que é um patamar novo na história – quer dizer, até aqui fizemos de uma maneira, um certo número de realidades tinha a sua validade, agora deixa de ter. Porque agora o que precisamos é de escutar o Messias. O Messias é a medida do mundo, é a medida do mundo.

Que um pregador que vem desclassificado lá de Jerusalém, de uma formação em Jerusalém, tenha a lata de dizer isso no areópago de Atenas, ou em Éfeso, ou em Filipos, e depois escreva isso com as letras todas aos Romanos, era mais do que razão para ele estar preso. E Paulo esteve grande parte da sua vida preso. Como Pedro esteve preso, como os Apóstolos estiveram presos. Estiveram presos não por delito comum. Por delito de opinião, porque muitas vezes a gente esquece-se que o cristianismo é um delito. É um delito de pensamento. Porque nós temos que pensar as coisas a partir de Jesus, de uma forma que vai contra, que está para lá de todas as formas. No fundo, todas a regras que dão a forma ao mundo, estremecem, estão aquém daquilo que pode começar em Jesus Cristo.

Queridos irmãs e Irmãos, nós somos os intérpretes de Jesus. Nós dizemos quem é Jesus. E quem é que nós dizemos que é Jesus? Quem é que nós dizemos, hoje, que é Jesus? Nas nossas vidas, nesta cidade, na comunidade, na família, no trabalho, no mundo da economia, da política, dos meios da comunicação…

Quem é que nós dizemos que é Ele? Ficamos a repetir consensualmente aquilo que está dito acerca de Jesus? Tentamos esvaziar Jesus do perigo que é Jesus, do risco que Jesus representa? Ou, pelo contrário, sentimos que a fé em Jesus é um motor de desassossego?

A fé em Jesus torna-nos a todos uns dissidentes, torna-nos a todos uns párias. Porque nada nos basta. Nós não pertencemos a nenhuma família, nós não pertencemos verdadeiramente a nenhum Estado, a nenhuma ideologia, a nenhum partido, a nenhum clube. Verdadeiramente não pertencemos, não pertencemos. Estamos nas coisas.

Sentimos que tem que ser algo mais, não num espirito de seita mas neste espirito de transformação da história, a partir do modelo radical do amor que Jesus nos veio mostrar.

E, nesse sentido, esta pergunta que Jesus faz: “Quem dizem os homens que Eu sou? E vós, quem dizeis que Eu sou?”

É um dividir das águas. É aqui que as águas se dividem.

É na minha resposta a esta pergunta.

Pe. José Tolentino Mendonça, Homilia da Solenidade de São Pedro e São Paulo

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/06/22 – A Eucaristia é Jesus inteiro que se dá a cada um de nós” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Por vezes as dúvidas dos outros iluminam as nossas próprias dúvidas, aquelas que não conseguimos nomear.

Esta pergunta que os judeus, interlocutores de Jesus nesta página do Evangelho de São João, fazem ao Senhor ajuda ou desperta-nos para fazermos também um caminho em torno às palavras de Jesus.

Eles perguntam: Como é que Ele pode dar-nos a sua carne a comer? E é, de facto, uma pergunta importante para nós que dominicalmente nos sentamos à volta desta mesa para nos alimentarmos do corpo e sangue do Senhor.

É importante que nós perguntemos: Mas como é que é isso? Como é que Ele pode dar-nos a sua carne a comer?

A resposta mais simples que nós cristãos temos para tudo é: é um mistério, é um mistério. Nós não sabemos como é, mas sabemos que acontece.

Ora, por vezes, o mistério é uma forma de adiarmos o mergulho mais fundo que temos que fazer. Por vezes, dizer é um mistério é a mesma coisa que dizer: não é para mim, não tenho de entender, é só uma coisa que eu tenho de aceitar, que eu tenho de consumir, sem perceber, sem compreender.

A mesa da eucaristia foi o grande sinal que Jesus deixou aos seus, o grande sinal. Jesus não deixou outro. O grande sinal é estarmos juntos à volta de uma mesa. Jesus quis que este sinal fosse compreensível, que nós o pudéssemos ler, o pudéssemos entender facilmente, desde os pequeninos até a uma idade adulta avançada.

Nós precisamos compreender o que se passa aqui em cima desta mesa e à volta desta mesa, porque só compreendendo é que nós podemos viver. É claro que a nossa fome de maravilhoso e de milagre prefere muitas vezes partir para mais longe e não olhar para o óbvio. Sem interrogar esse lado de mistério que a eucaristia também tem, claro, eu gostava que nós olhássemos para o óbvio, porque o óbvio também diz coisas fundamentais ao nosso coração e à nossa fé.

O que é que é o óbvio? É a resposta à pergunta que fazem a Jesus: Como é que um homem pode dar a sua carne a comer a outros? Como é que isso é possível?

Isso é possível se nós pensarmos nas nossas mesas, nas nossas refeições. Porque é que nos sentamos à mesa uns com os outros? Porque é que não comemos sozinhos? Eu tenho uma amiga querida que vive sozinha. Uma coisa que me faz sofrer é ela ter dito que comendo sozinha – ela tem dois gatinhos e vive em casa com essa companhia – não há refeição nenhuma que não se lembre que comer é gregário. Comer é gregário. Contudo, a maior parte das vezes, ela come sozinha. E tantos, na nossa sociedade, comem sozinhos. Mas nós sabemos, no fundo de nós, que comer é gregário, Isto é, que comer é um ato comunitário.

E porquê? Porque é que é tão saboroso comermos com a nossa família, com os nossos amigos, aproveitarmos a mesa para sabermos uns dos outros, o que é que tu andas a fazer, combinarmos à volta da mesa questões fundamentais da vida, ou então, as grandes celebrações, os pequenos e os grandes marcos da nossa vida? Porque é  que é tão bom à volta da mesa?

É claro que há petiscos fantásticos, há uma cozinheira óptima, há um cozinheiro muito bom e então é muito agradável estar à mesa. Ora, mesmo quando o cozinheiro é genial, não é isso que nos faz sentar à volta de uma mesa. Porque mesmo quando a cozinha é um desastre, nós continuamos a sentarmo-nos à volta da mesa.

Isto quer dizer que o mais importante não é a cozinha, o mais importante é estarmos à volta da mesa.

E porque é que é importante estarmos à volta da mesa? Porque nos alimentamos do mesmo pão? Sem dúvida! Mas porque nos alimentamos uns dos outros. Nós sentamo-nos à volta da mesa, porque nos alimentamos uns dos outros, porque precisamos de interiorizar a presença uns dos outros, a palavra uns dos outros, o carinho, a presença, o afeto, a amizade, a inteligência, o humor. Precisamos alimentarmo-nos disso. E isso torna-se um verdadeiro alimento para nós.

Quando Jesus se sentava à volta da mesa, e sentou-se muitas vezes ao longo da vida, de uma forma deliberada e quando se sentou à volta da mesa a última vez com os seus discípulos e disse «Este pão é a minha carne, este vinho é o meu sangue que Eu vou entregar por vós», Jesus não estava a fazer uma coisa que não tem nada a ver nossa realidade.

Jesus estava a partir da nossa realidade, estava a usar a gramática que nos é mais próxima, a dizer: O que Eu fiz não foi senão viver para vós. Viver para vós, entregar, dar a minha vida é tornar-me alimento, é deixar-me ser, é colocar-me ao serviço.

Isso é fazer da Sua carne comida, isso é fazer da Sua carne alimento.

Nós estamos à volta da mesa para nos alimentarmos de Jesus.  Hoje celebramos a festa da Eucaristia. A Eucaristia não é uma migalhinha de Jesus, um bocadinho de Jesus que é distribuído por cada um de nós. Não. A Eucaristia é Jesus inteiro que se dá a cada um de nós. Jesus inteiro. Nós temos de nos alimentar da sua palavra, da sua paixão, da sua revelação, do seu estilo de viver, da sua alegria, do seu entusiasmo, do que Ele nos deu a ver, das coisas únicas que só Ele nos deu a ver. Nós alimentamo-nos disso. Isso torna-se para nós força, torna-se energia, torna-se para nós capacidade de ser.

É por isso que nós não conseguimos viver sem eucaristia. É por isso que nós Igreja nascemos e renascemos sempre à volta desta mesa. Porquê? Porque Ele é o nosso alimento, porque Ele nos alimenta.

Alimenta-nos porque se faz dom. As palavras que Jesus diz: A minha carne é verdadeira comida.

Eu penso, e pergunto-me: e a nossa carne? Estarmos juntos dominicalmente para celebrarmos o dom que Jesus dá de si, a oferta, o transformar a vida em alimento, o transformar a vida em comida, o transformar a vida em dom que Jesus fez o que nos leva a nós a fazer? Será que a nossa vida é alimento? Será que a nossa vida é comida?

Porque não é automático, não é automático O nosso corpo será comida para bichinhos, um dia. Mas, de resto, nós podemos viver uma vida inteira sem que o nosso corpo seja alimento para ninguém. Nós podemos viver no egoísmo, na indiferença, no deixa-me em paz, numa zona de conforto que impermeabiliza a nossa vida. Não deixamos ninguém tocar, ninguém nos pede nada, ninguém nos conta nada, ninguém vem ao nosso encontro  porque também nós vivemos dentro de uma cápsula, nós vivemos a guardar e resguardar, a proteger a nossa vida.

Quando nós fazemos isso a nossa vida não se torna comida para ninguém. É uma vida inteira óptima, fantástica, mas não é pão. Essa vida não é pão.

Quando Jesus diz “a minha carne é comida”, o grande desafio Dele é que eu torne a minha carne comida, que eu torne a minha vida oferta, que eu torne a minha vida dom.

Por isso, já os Padres da Igreja, os primeiros teólogos, diziam : «O cristão que celebra a eucaristia sai eucaristificado». Isto é, Jesus contagia-nos com o seu exemplo.

O que nós temos que fazer é celebrar a eucaristia na vida. Isto é, de dizer: Olha, eu sou pão para ti, usa, come, leva, reparte, alimenta-te, eu estou aqui, eu posso, eu vou.

É, no fundo, esta disponibilidade para servir que torna a nossa vida uma vida semelhante à de Jesus, semelhante à de Jesus.

Queridos irmãs e irmãos, à volta da mesa Jesus dá-nos a grande prova de amor, mas também a grande lição. A eucaristia é uma lição. Uma lição insistente que Jesus nos dá. Nós vimos aqui aprender com Jesus como se faz e todos precisamos de aprender como fazer dos meus dias, como fazer do que eu tenho, como fazer do que eu sei, como fazer do que eu sonho, do que eu desejo, como fazer da força que eu transporto comida, verdadeira comida. Como tornar a minha carne verdadeiro alimento. É, no fundo, esse o verdadeiro desafio que Jesus faz a cada um de nós.

Nós sabemos que o pão pode ficar duro no saco. O pão fica duro no saco. Se o pão não é colocado sobre a mesa e não é servido, ele endurece e perde-se.

E nós podemos perder a nossa vida. Podemos perder a nossa vida. Por isso, a palavra do Evangelho: quem quer ganhar a vida, tem que perdê-la, tem que se dar, tem que se entregar.

A grande lição de Jesus é essa: Entrega-te. Entrega-te. Torna-te alimento, faz-te pão. Oferece-te. Dá-te. Porque só assim é que nós percebemos a plenitude. A plenitude divina da nossa humaníssima vida.

Pe. José Tolentino Mendonça

Homilia de 22 de Junho de 2014, na Capela do Rato

Clique para ouvir a homilia

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/06/01 – “Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos“” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Esta carta aos Efésios diz-nos, de uma forma muito incisiva, aquilo a que somos chamados neste tempo pascal. Diz-nos o autor que “o Senhor ilumine os olhos do vosso coração para compreenderdes a esperança a que fostes chamados”. Esta esperança, à qual o Senhor nos chama, só se vê bem com os olhos do coração.

É o nosso coração que mesmo duvidando, mesmo colocando tantas perguntas, mesmo carregado de tanto medo e de tanta noite, pode entender a dimensão da esperança a que fomos chamados. É interessante ver que, mesmo naquele momento derradeiro em que Jesus se aproxima dos discípulos e se vem despedir deles, alguns duvidaram. Isto quer dizer que as dúvidas fazem parte do nosso caminho até ao fim.

Aqueles que duvidaram naquele momento representam-nos a todos que vivemos sempre nesta incerteza. Queremos, sabemos, conhecemos, mas ao mesmo tempo hesitamos, não sabemos, não queremos ou não queremos sempre. Mas essa dúvida não é um problema para Jesus. É interessante que Jesus investe os discípulos na missão mesmo na dúvida. Alguns duvidaram. Mas Jesus não disse que aquela missão era só para os que acreditavam e acreditam de uma forma firme. Jesus dá missão a todos.

As dúvidas, a dificuldade do nosso caminho, a dificuldade de ver a esperança a que somos chamados, faz parte da nossa condição. Mas temos que continuamente pedir o Espirito Santo para nos esclarecer, para nos iluminar, para nos guiar até à verdade total.

No lugar onde a tradição diz que aconteceu esta cena da ascensão de Jesus aos céus há um pequeno templo. É um templo muito engraçado, porque é um templo cristão, e no fundo os cristãos vão ali, mas é uma família muçulmana que tem a chave. Quando vamos lá visitar, vem essa família muçulmana que abre. De maneira que esta capela está num campo de uma família muçulmana, e pertence-lhe, e isso também é bonito.

Quando chegamos lá, é um templo ao mesmo tempo belo e desconcertante, pelo seu vazio, porque não tem nada. É uma capela circular e tem rocha. Na rocha, essa capela tem apenas uma coisa, tem apenas uma pegada, funda, gravada na rocha. Mais nada. A ideia é extraordinária: quando Jesus subia aos Céus, para Ele se elevar, Ele carregou com mais força num dos pés, para levantar o outro e, quando Ele carregou com mais força, essa pegada ficou gravada. Esta pedra, queridos irmãs e irmãos, é o símbolo do nosso coração.

Jesus deixou esta pegada, este sinal inapagável, este sinal indelével, no nosso coração. Por isso nós sabemos que Ele está sempre connosco, porque há um traço, há um sinal e há esta palavra que nós vamos escutar a vida inteira:

“Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos”.

A certeza da companhia, a certeza da presença amorosa de Jesus na nossa vida é a certeza que nos constrói, é a certeza que nos edifica.

Por isso, na Ascensão, nós celebramos duas coisas aparentemente contraditórias, mas que não nos destroem, não nos põem em causa. Por um lado Jesus parte, Jesus desaparece da nossa vista. Por outro lado, Ele está sempre connosco até ao fim dos tempos.

Se pensarmos bem não tem lógica nenhuma. Ele então desaparece e está sempre connosco? Como é que isso é possível? Mas é nesta contradição, entre os que olhos vêem e aquilo que o coração sabe, aquilo que o coração sabe e que os nossos olhos ignoram, que se aloja também o mistério da própria fé.

O importante é cada um de nós sentir a presença de Jesus, não o encontramos ao cruzar da esquina, os nossos olhos não o avistam nas ruas do mundo, nas ruas da nossa cidade. Contudo, Ele é o companheiro que caminha ao nosso lado. Não nos deixa nunca. É a certeza dessa presença que é fonte da nossa vida, desta vida nova que é a vida pascal que Ele veio plantar em nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Homilia do Domingo da Ascensão do Senhor

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Maio

height=”10″][vc_toggle title=”2014/05/28 – Conversas à Capela – A virtude da Ciência de Deus” open=”false”]As Conversas à Capela deste mês de Maio serão dedicadas à virtude da Ciência de Deus. Para nos ajudar a reflectir sobre este tema convidámos o Pe. José Frazão Correia, sj, Provincial da Companhia de Jesus, e autor dos livros A Fé vive de Afeto e Entre-tanto, das Paulinas. As Conversas à Capela serão no dia 28 de Maio, na Capela do Rato, pelas 21.30h.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/05/25 – O Espírito Santo é o grande agente da transformação” open=”false”]Queridos irmãos e irmãs

A grande questão que se coloca no início do Cristianismo é saber como de um acontecimento que em si é um acontecimento disruptivo, é uma crise terrível que emerge – que é, no fundo, o episódio da morte do Senhor, da sua crucifixão -, como é que, deste acontecimento, que deve ser um ponto final, pelo contrário, emerge uma realidade de vida. Como é que isso é possível? Como é que é possível ser cristão depois do nosso Messias ter sido levantado de uma cruz?

Como é que se pode ser cristão na sua ausência, na sua perda, no vazio daquele sepulcro ao qual as mulheres foram e os discípulos correram naquela manhã de Páscoa?

Como é que se constrói uma vida nova, como é que se constrói um projeto, como é que se olha para o futuro a partir deste vazio, deste sinal contrário, deste sinal absurdo que é a cruz? É interessante perceber como é num caminho de maturação,  maturação interior e maturação também no sofrimento, que as primeiras comunidades cristãs vão perceber como é que a cruz se torna a árvore da vida. E como é que aquele sepulcro vazio se torna para nós a certeza de que Ele está vivo, de que Ele está presente, de que Ele está connosco.

Hoje nós ouvimos na leitura dos Atos dos Apóstolos  a história da Igreja de Samaria, é uma história impressionante e que se conta em duas palavras. Quando se deram os acontecimentos pascais, os discípulos amontoaram-se em Jerusalém. A questão era estarem uns com os outros, com medo do que pudesse acontecer-lhes na sequência de Jesus, porque no fundo eles eram cúmplices de um condenado à morte. E o medo trancou-os em Jerusalém. Mas não só o medo, a sua própria mundividência. A interpretação que eles faziam do acontecimento de Jesus Cristo, das suas palavras, era muito a partir da sua vivência judaica. O que aqueles homens e mulheres pensaram é: nós temos que continuar a ser bons judeus, e ponto final.

Ora, acontece a chamada perseguição aos gregos. Porque quando os cristãos começam a falar, dá-se o seguinte: aqueles mais radicais, aqueles que levam mais longe a interpretação de Jesus Cristo, não são os de origem judaica. São os de origem grega. Isto é, aqueles que, no fundo, tinham uma maior liberdade para dizer quem era Jesus Cristo. Enquanto aqueles que eram de origem judaica o que faziam era simplesmente ler Jesus Cristo à luz da gramática judaica, na qual eles funcionavam.

Por isso, o primeiro mártir do Cristianismo é um grego, é Estevão, e não é Pedro, o primeiro mártir. Pedro será depois. Mas aquele que primeiro estica a corda, o que primeiro diz uma palavra de ruptura, acaba por ser um grego. E por causa dos gregos há uma perseguição aos cristãos, mas aos cristãos de origem grega.

O Espírito fala através dessa crise, através dessa perseguição. Quando estes são chutados para fora de Jerusalém, em vez de ser o fim, é o princípio. Eles pensavam que ia acabar tudo, iam perecer. Não. Ali é que começou verdadeiramente a história. E então Filipe, que também é de origem grega, vai evangelizar os samaritanos. Era uma coisa que não passava pela cabeça de Pedro, no princípio, era que eles pudessem evangelizar os samaritanos, que eram rivais históricos, contumazes da tradição judaica. Mas como acontece esta perseguição e Filipe está na Samaria, ele começa a evangelizar os samaritanos.

Assim se percebe que Deus começa a falar para lá das fronteiras, e de uma forma completamente imprevista, inaudita, inesperada, o Evangelho começa a ganhar força, a ganhar raiz em corações absolutamente impensados, porque é assim o caminho de Deus. E, de certa forma, a Igreja começa a perceber a forma como Deus  a conduz.

Filipe faz a primeira evangelização, e depois Pedro e João descem até à Samaria para a completar, infundido o Espírito Santo, porque os Samaritanos ainda não tinham recebido o Espírito Santo.

Nós que estamos aqui somos uma consequência do Espírito Santo. Cada cristão, cada batizado é uma consequência do Espírito Santo. E o Espírito Santo é a maior descoberta da nossa vida. Para dizer assim depressa, é a maior descoberta que cada um de nós tem que fazer.

É interessante, parece que não tem nada a ver, mas a semana passada no El Pais vinha uma entrevista a um filósofo, hoje muito conhecido e um homem um bocado blasfemo em relação ao status quo da nossa cultura, que é o esloveno Slavoj Zizek.

Zizek dizia que há três grandes invenções, invenções entre aspas ou descobertas, que no seu entender marcam o caminho da humanidade: a primeira invenção é a invenção da democracia pelos gregos, pais da democracia; a segunda grande descoberta para ele é o Espírito Santo e a terceira é a revolução francesa.

Vamos pensar um bocadinho no destaque que ele dá à descoberta do Espírito Santo, como uma descoberta que transforma completamente o mundo. Porque a descoberta que os cristãos fazem de que não estão sós mas de que neles vive o Espirito do ressuscitado é, de facto, uma alavanca de transformação, não apenas das realidades individuais mas da realidade do mundo, da história.

O Espírito Santo é, de facto, o grande motor da história. O mundo antigo, mesmo aquele mundo grego que inventou a democracia, 90% eram escravos. As mulheres não tinham possibilidade de participar na democracia grega. De facto eles inventaram um sistema fantástico, com filósofos que hoje continuam a ser os nossos mestres, mas era uma democracia muito limitada, temos de reconhecer.

No mundo antigo, as fronteiras da raça, da etnia, as fronteiras sociais, as fronteiras religiosas, as fronteiras de género, eram fronteiras insuperáveis. Quem era escravo, morria escravo. As mulheres não tinham qualquer possibilidade de participar ao nível religioso, naquela que era a vivência dos homens.

Um judeu não se sentava à mesa com um pagão. Um pagão jamais poderia acreditar plenamente e participar plenamente no judaísmo. Seria sempre um prosélito, alguém que está fora.

O que é o Espírito Santo? O Espírito Santo é o derrube completo dos muros e das fronteiras. Aquilo que S. Paulo há-de dizer de forma lapidar na carta aos Gálatas: «Em Cristo sois nova criatura. Não há judeu, nem pagão. Não há escravo nem homem livre. Não há homem nem mulher. Pois todos sois um só no Espirito de Cristo»

Então, o que é o Espírito Santo em nós? O Espírito Santo em nós é o fundar no nosso coração, na nossa vida, a nossa dignidade, a nossa condição. A nossa dignidade, a nossa condição, a nossa capacidade de plenitude já não depende do sítio onde nascemos, do berço onde nascemos, já não depende do status ou do pedigree, já não depende da nossa religião ou da tradição religiosa onde nascemos e surgimos, já não depende do género ou da condição. Mas é o Espírito Santo que nos torna iguais. E esta dimensão de uma igualdade fundamental, de um reconhecimento de uma igualdade fundamental, é alguma coisa que o Cristianismo transporta como património, como património para a humanidade. Desde o princípio, comunidades de homens e mulheres, de cidadãos e de escravos, de judeus e de pagãos a celebrar o que nós hoje estamos a celebrar, foi, de facto, a maior transformação da história. E por isso o Espírito Santo é o grande agente da transformação. Da própria transformação politica que é uma realidade em que nós não pensamos. Às vezes nós cristãos parece que temos um certo sentimento de vergonha em relação à democracia. Parece que somos uma  espécie de subgénero dentro da democracia. Não, o Cristianismo é a fonte da democracia, da democracia tal como nós aspiramos, até uma democracia maior, melhor, mais qualificada do que aquela que hoje nós temos. O Cristianismo historicamente é, de facto, é um motor de transformação.

E quem diz isto é este neomarxista Slavoj Zizek. Não somos nós a dizer o que damos. É gente de fora a reconhecer, no fundo, o que é o testemunho cristão.

Por isso, nós somos chamados a descobrir o Espírito Santo. A descobrir o Espírito Santo na vida de cada um de nós, a sentirmo-nos consequência do Espírito. E como o Espírito nos liga a Jesus…

Como é que a Igreja ultrapassa o vazio da sua origem? A perda, a disrupção,  a crise que está na sua origem?

Ultrapassa percebendo isto que Jesus diz no Evangelho de João: “Eu não vos deixo órfãos. Eu vou enviar-vos o Espirito». Nós recebemos o Espírito e sabemos assim que essa palavra de Jesus é verdadeira, porque o Espirito está no nosso coração a dizer que Essa palavra é verdadeira, a confirmar as sementes de esperança que Jesus lançou e lança no nosso coração.

O Espirito é a certeza que Jesus está connosco até ao fim dos tempos.

Queridos Irmãos, em cada tempo a Igreja tem que nascer do Espírito Santo.

Nós temos que ser homens e mulheres marcados pelo Espírito Santo. O Espírito Santo que nos dá esta certeza de Deus connosco. O Espírito Santo que nos confirma no caminho, que nos recorda as razões da nossa esperança.

O Espírito Santo que nos torna artesãos, servidores, instrumentos da própria esperança. O Espírito Santo que nos dá uma inquietude e uma capacidade de sonhar, de ir mais longe, uma capacidade de transformar aquilo que é crítico num motivo e numa razão para um caminho diferente, para um caminho novo.

Vamos pedir que o Espírito Santo desça sobre nós, este Espírito que Pedro e João levaram a Samaria, que Jesus derramou sobre os seus discípulos no dia de Pentecostes, seja Ele aquele que Jesus faz cair sobre cada um de nós, para que o Espírito nos dê a força que neste momento nós precisamos para cumprir o caminho de esperança que o Senhor desdobra diante do nosso coração.

 

Pe. José Tolentino Mendonça

Homilia na Celebração Eucaristica no Domingo VI da Páscoa

 

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/05/11 – “O Senhor é o Meu Pastor“” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Celebramos hoje a festa do Bom Pastor. Quando nós pensamos nas primeiras representações da figura de Jesus, esta imagem do Bom Pastor é certamente aquela mais utilizada, pelos cristãos, desde o início.

Quando entramos nas catacumbas, nesses lugares onde os cristãos se reuniam às ocultas e ao mesmo tempo preservavam a memórias dos seus mortos, nós encontramos, em muitas delas, quer em escultura, quer gravada na própria pedra, a imagem de Jesus, o Bom Pastor.

Perguntamos, porque é que esta imagem, de certa forma, se sobrepõe às outras? É porque esta imagem é, de facto, muito completa.

Diz muito do modo como Jesus é, na nossa vida. Porque Jesus é o Pastor, no sentido de que Ele vive connosco, vive para nós, vive nesse cuidado, nesse acompanhamento. Nós somos o objeto do seu cuidado, do seu amor, da sua disponibilidade. E, como tantas vezes acontece, o Pastor conhece cada ovelha pelo seu nome, não as confunde, sabe a história de cada uma delas. Percebe como cada uma está, em cada dia, em cada momento.

Depois, há aquela maravilhosa parábola que o próprio Jesus contou de si mesmo: o Bom Pastor é aquele que é capaz de deixar as 99 ovelhas no redil e partir pelos montes à procura da ovelha perdida. Quando a encontra, coloca-a aos seus ombros, faz o caminho e diz: Alegrai-vos comigo porque encontrei a minha ovelha perdida.

Os símbolos, as imagens, nós sabemos, valem por mil palavras. Porque não falam apenas à nossa cabeça, ao nosso pensamento, falam também ao nosso coração. As imagens são uma forma muito especial de comunicação, precisamente porque elas cabem e não cabem nas palavras. Dizem de outra forma. Comunicam connosco de uma outra maneira.

Esta imagem de Jesus Bom Pastor sem dúvida que é uma imagem inspiradora daquilo que somos. É importante que Jesus seja o nosso Bom Pastor, que seja Ele o nosso Bom Pastor.

Hoje nós líamos este Salmo 22 ou 23, segundo a numeração quer grega quer hebraica, e deste Salmo que diz «O Senhor é o Meu Pastor», que é um dos mais conhecidos, nós podemos fazer dele a oração quotidiana e encontrar nele o consolo e a força de que precisamos.

O grande filósofo Henri Bergson dizia que rezar o salmo 23 era para ele sempre o momento mais fundo da sua espiritualidade.

Porque é a certeza não de um Deus distante e indiferente à nossa história, um Deus que paira filosoficamente sobre a nossa existência. Mas é um Deus que verdadeiramente está implicado na nossa situação.

Aliás, é interessante recordar que este salmo 23 foi um salmo muito discutido na tradição judaica. Porque alguns diziam, isso é uma heresia, é uma blasfémia. O que esse salmo diz é impossível porque atenta contra a omnipotência e a impassibilidade de Deus. Porquê? Porque a dada altura o salmo diz : «Ainda que eu ande por vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo».

E então os Mestres perguntavam-se: Mas então Deus está no vale da sombra, quer dizer, no vale da morte, no vale da infâmia, no vale da vulnerabilidade, no vale do pecado. Deus está na nossa lama?

Nesse aberto implacável onde parece que a vida se dispersa? Deus está aí?

Como é que isso é possível? Isso põe em causa a fé no Deus único, no Deus absoluto.

A verdade é que ninguém nunca se atreveu a retirar este salmo 23 do conjunto dos salmos. E mais, ele é uma espécie de joia, é uma espécie de Santo dos Santos, no interior do saltério que é composto por 150 salmos. Este é, sem dúvida, o salmo mais lido, o salmo mais usado.

E, contudo, até parece uma heresia. Mas o amor tem que ter alguma coisa de heresia, tem que ter alguma coisa de sobressalto, de excessivo, de ir além das medidas, de ir além da própria razoabilidade. E o amor de Deus é isto. Deus parece que se nega a si mesmo para nos amar, e nos amar sempre e nos amar até ao fim.

Este é o mistério do amor de Deus. O Senhor torna-se escravo para poder estar junto de nós.

Queridos irmãos, é muito importante perguntarmo-nos se, de facto, Jesus é o Pastor das nossas vidas. Perguntarmos quem é que apascenta a nossa vida, às vezes no seu lugar, às vezes ocupando o próprio lugar de Deus.

Numa parede de uma prisão do Harlem em Nova Iorque foi descoberto um poema, escrito por um toxicodependente que estava ali preso. É um poema que é uma paráfrase do Salmo 23. E é verdadeiramente impressionante. Diz assim:

“A heroína é o meu pastor, ela sempre me faltará

Ela faz-me dormir debaixo das pontes e conduz-me a uma doce demência

Ela destrói a minha vida e conduz-me pelo caminho do inferno por amor do seu nome

Mesmo se eu caminhasse pelo vale da morte

Não temerei nenhum mal porque a heroína está comigo

A minha seringa e a minha agulha dão-me conforto”

É um poema que é um grito, mas nós podemos perguntar: o que é que colocamos no lugar do nosso Pastor? Este homem colocou a heroína. Nós o que é que colocamos?

Podemos colocar o dinheiro. Podemos colocar a ambição. Podemos  colocar a nossa satisfação pessoal. O nosso prazer. O nosso individualismo. Podemos colocar tantas coisas.

Rezar o Salmo 23 é também purificar o nosso coração. Desses falsos ídolos que nós colocamos no lugar de Deus a apascentar a nossa vida, a cuidar da nossa vida, a velar por aquilo que somos.

Neste domingo do Bom Pastor nós celebramos também o dia dos seminários, o dia das orações pelas vocações consagradas, no fundo, pela dimensão do pastoreio do povo de Deus.

É muito importante que peçamos ao Senhor que envie, em cada tempo, à sua Igreja, pastores dedicados à maneira de Jesus. Pastores dedicados ao seu rebanho, capazes de expressar na sua vida, nas suas atitudes, a própria imagem de Cristo, o Bom Pastor.

Vamos rezar pelos ministérios na Igreja e, de forma particular, por aqueles que têm esta missão junto dos irmãos, este encargo de apascentar, para que o Senhor também os conforte para que eles encontrem em Cristo também o Pastor previdente e possam traduzir na sua vida esse sentido.

Vamos rezar pelas vocações sacerdotais, para que o Senhor continue a despertar no coração dos jovens, mulheres e homens um grande desejo, de uma forma radical, também ela excessiva, também ela extravagante na sua radicalidade. Que o Senhor possa atrair jovens para se dedicarem às vocações que se ligam de uma forma mais íntima com pastoreio da própria Igreja.

Mas também é verdade que no seu conjunto, a própria Igreja, formada pelos pastores e pelos leigos, fazem um único povo de Deus, nós todos temos a responsabilidade ser pastores, de apascentar. Isto é, somos responsáveis por um ministério, que é um ministério de compaixão. Compaixão pela humanidade. Tantas vezes Jesus olhando para a multidão enchia-se de compaixão dela, porque eram como ovelhas sem pastor.

Às vezes nós, com uma grande facilidade, julgamos os outros e remetemos para o vale da morte, para o vale da sombra e somos implacáveis e castigamos, quando aquilo que nos é pedido, é essa grande vocação de misericórdia: o pastor é aquele que tem um olhar de misericórdia.

É isso que é pedido a cada cristão. Que possa exercer e ser servidor da misericórdia, servindo a humanidade frágil, a humanidade vulnerável. Que é humanidade, no fundo, que existe em cada homem, porque todos, todos, somos feridos pela fragilidade.

 

Pe. José Tolentino Mendonça

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Abril

height=”10″][vc_toggle title=”2014/04/20 – Ressuscitou conforme amou” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

Ao longo dos textos que nesta Semana Santa nós fomos lendo, desde domingo passado, em que lemos a Narrativa da Paixão do Evangelho de São Mateus, quinta-feira lemos São João, depois lemos São Lucas, hoje estamos a ler São João, ainda há a possibilidade de ler São Lucas, o Evangelho de Emaús, há um aspeto que é comum a todas as narrações: o mistério de Jesus não é uma verdade pré-fabricada, não é uma verdade acabada. Que está feita, e cai, e é dita, e é assim. Não, é uma verdade que se insinua no claro- escuro, e que pede uma procura, pede uma interpretação.

E, se quisermos, as primeiras comunidades cristãs, muito apoiadas no testemunho dos apóstolos, o que é que fazem? Fazem a interpretação, a hermenêutica dos acontecimentos de que são testemunhas. E, no fundo, esse esforço hermenêutico continua. Nós estamos aqui, dois mil anos depois reunidos em assembleia nesta manhã de Páscoa. O que é que nós estamos a fazer aqui? Estamos a tentar encontrar um sentido. E um sentido não arqueológico, mas um sentido que seja também significativo para as nossas vidas. Mas estamos igualmente à procura de um sentido para estas palavras que nós ouvimos e que são palavras que nos aceleram, que nos fazem correr.

Nós vemos Madalena que vai ao sepulcro. Não encontra, vem dizer a João e a Pedro: «O Senhor não está no sepulcro, alguma coisa aconteceu» e eles saem disparados a correr. E quando chegam lá, também não é que percebam logo tudo. Olham os sinais e ficam perplexos sem saber o que pensar.

E depois acontece isto que é a chave, digamos, da própria experiência cristã: “Viu e acreditou”. Mas o quê que ele viu? Não há nada para ver ali. Viu o que não se pode ver. Viu o vazio, viu a ausência, viu o não estar. Mas na fé, ele interpretou aquele sepulcro vazio como sinal de uma presença, que agora o nosso coração desenha e torna o fundamento da nossa própria vida, que é a presença daquele que está connosco, todos os dias, até ao fim dos tempos.

Queridos irmãos, nós não viemos aqui celebrar uma verdade acabada. Viemos aqui para nos tornarmos buscadores, viemos aqui para ir ao sepulcro como Maria Madalena, viemos aqui para correr, para sentir que o coração nos sai pela boca, porque é uma notícia tão surpreendente, tão nova, que nós temos que perguntar o que é isto? Nós cristãos temos que nos perguntar: mas o que é isto que eu celebro? O que é isto que me transmitiram? Porque é que eu estou aqui? Por uma verdade tão fora de tudo, uma coisa tão inédita. Nunca vista.

O que é isto? O que é isto? E cada um de nós precisa de responder. Porque, no fundo, aquilo que nós vemos acontecer nos textos sagrados é este esforço por interpretar, por dizer o que é isto para nós. Por dizer o que é isto no caminho que nós fazemos.

E, queridos irmãos, a Páscoa não é um momento cultural, não é um momento sociológico, não é um momento de encontro entre nós, não é uma tradição interessante, antropológica.

A Páscoa é uma insurreição, a Páscoa é alguma coisa disruptiva, no modo como a história se constrói habitualmente. A Páscoa é a revelação de uma outra coisa, é uma fenda, é uma brecha, porque há um homem que se liberta da própria morte.

Há um insubmisso em relação à morte. E esse seu gesto, esse acontecimento, desfataliza a história. Torna a história outra coisa. Há um antes e um depois para nós. A história é outra coisa.

E esta manhã não é uma manhã igual às outras. É uma manhã que nos transtorna, que nos transtorna. Porque intimamente nós somos puxados para outra realidade. E nessa realidade nós olhamos para a vida e para nós próprios com outros olhos, com uma outra visão, com uma outra perspetiva.

Há uma tradição muito bela, ali na zona de Véneto, em Itália, que é: na manhã de Páscoa os camponeses vão ao rio lavar os olhos. E, no fundo, é isto que nós devíamos fazer.

A água que foi derramada sobre nós, é uma água para nos lavar os olhos, para nos dar uma nova visão da realidade. Uma visão que parte de Cristo e deste acontecimento de Cristo. E, tomando este acontecimento, nós vamos agora revisitar a história de Jesus, mas a nossa própria história.

Sentindo que a Ressurreição nos traz a todos implicados, nós estamos implicados nisto. Nós não somos espectadores, somos implicados. Somos parte deste caso, absolutamente inédito, de novidade, de insubmissão na própria história. Há um sepulcro que está vazio. Há um crucificado que ressuscitou. Há um homem que saiu da fatalidade da história, nasce e morre.

Há um homem que nos diz que a vida pode ser outra coisa. E é isso que nós estamos a tentar compreender. A tentar compreender. Nós estamos aqui a tentar compreender o que é isto. E, no fundo, o nosso caminho cristão não é outra coisa do que tentar decifrar o mistério, tentar dizer mas o que é isto, e o que é isto para mim, o que significa isto para a minha própria vida.

Há uma das antífonas mais repetidas neste tempo Pascal: Resurrexit, sicut dixit. Ressuscitouconforme disse, como disse.

Mas há um copista medieval que introduziu, talvez por engano ou talvez neste esforço de interpretação, introduziu uma mudança e, de facto, às vezes os erros levam-nos mais próximos da verdade. E ele escreveu: Resurrexit, sicut dilexit. Ressuscitou conforme amou, não apenas conforme disse, mas conforme amou.

Cristo ressuscitou conforme amou. E este mistério da sua Ressurreição é um mistério que nós temos que tatear dentro do amor. Só se entende dentro do amor. Porque amar é dizer ao outro: tu não morrerás.

É este amor, a consciência filial de Jesus, o amor do Pai, esta fidelidade que leva Deus a dizer a Jesus: Tu não morrerás.

E é aquilo que leva Deus a dizer a cada um de nós: tu não morrerás. É dentro do amor, é dentro do pacto que é o amor, este amor garantido pelo próprio Deus, que nós entendemos também o significado profundo da Ressurreição.

Sintamos isso, queridas irmãs e irmãos, sintamos que é isso que Jesus revela a cada um de nós. Esta voz de Deus que diz ao nosso coração: tu não morreste, tu não morrerás. Isto é, o desânimo, o cansaço, a fatalidade, a desesperança, a desistência, isso não pode triunfar no teu coração. Tu não morreste. Tu não morrerás.

Essa garantia que Deus dá. Esse levantamento. Essa recusa de um destino de morte.

Queridos Irmãos, celebrar a palavra do Senhor é, por isso, o maior dos compromissos. Eu iria dizer o único compromisso. O nosso comprometimento é, no amor, entender tudo. Descobrir tudo. Perceber tudo. Dentro da lógica do amor.

É isso que nós celebramos em Cristo pascal.

A escritora Marguerite Yourcenar, no texto que tem sobre a sequência da Páscoa, a dada altura, reflete um bocadinho sobre o significado de tudo isto se passar num jardim. O túmulo de Cristo é colocado num jardim. Depois no próximo domingo, por exemplo, vamos ver Maria Madalena que confunde Jesus com um jardineiro. E ela diz: porque que a mais inédita das verdades humanas se passa num jardim? Porque é que o ressuscitado, primeiramente, é confundido com um jardineiro?

Ela diz, é evidente. Porque Ele não tem deixado de semear no nosso coração. E é isto que é importante que nesta eucaristia aconteça. Cada um de nós sinta semeada no seu coração, esta insurreição, este levantamento, esta certeza da palavra de Deus que lhe é confiada.

Tu não morreste, tu não morrerás.

Pe. José Tolentino Mendonça, Homilia do Domingo da Ressurreição do Senhor

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/04/13 – “Quero celebrar a Páscoa em tua casa“” open=”false”]Queridos irmãos e queridas irmãs

Há um texto da escritora Marguerite Yourcenar intitulado «Páscoa, a mais bela história do mundo», em que ela faz o resumo desta narração que hoje nós lemos e que vamos repetir na Sexta-Feira Santa.

E que é, no fundo, o relato dos últimos dias de Jesus. Desde a sua prisão, a sua condenação, a sua ida para o sacrifício, a sua morte, e depois o grande silêncio, que encheu a terra, silêncio que o próprio Jesus experimentou naquele grito «Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?» e que depois contagiou a terra inteira e que hoje nós sentimos, profundamente, na pausa que fizemos.

E Yourcenar escreve esta história para um amigo dela, que lhe disse : “Eu estive na Guerra da Crimeia,  e digo-te uma coisa, se Jesus, em vez de ter sido  crucificado tivesse sido fuzilado, eu acreditaria nele.” E ela escreveu aquelas páginas, dedicando-as a este amigo, para que ele visse que, por detrás da distância dos símbolos e das palavras, há uma atualidade que nós somos chamados a descobrir.

Queridos irmãs e irmãos, Jesus deu a sua vida por nós, por nós. Desta forma, neste tempo, mas numa oferta de si para todas as horas, para todas as formas e para todos os tempos. E é esta certeza que sustenta as nossas vidas. Nós somos consequência desta história, deste gesto, desta dádiva.

Aquele insulto que dirigiam a Jesus “Salvaste os outros, não podes salvar-te a ti mesmo” é, no fundo, a chave da sua própria vida. Exatamente porque numa dinâmica de amor, Jesus se dispõe a abraçar-nos, a sustentar as nossas vidas, as nossas humanidades, a dar a vida por nós, a amar-nos. Exatamente porque Ele se dispõe a amar-nos, Ele não pode salvar-se a si mesmo. Porque o que é próprio do amor é esse deixar de pensar em si. É esse abandono, é essa pobreza radical, é essa entrega, em que o outro, o outro, é colocado no centro. Nós estamos no centro do gesto de Jesus. Da sua história de amor, da sua entrega.

No início desta longa narração, há uma história um bocado misteriosa. Jesus manda os discípulos irem ter com um homem, uma personagem, nós não sabemos o seu nome, e dizer-lhe «Olha, eu quero celebrar a Páscoa este ano em tua casa».

Esta pessoa seria provavelmente o dono da sala de cima, onde Jesus comeu a Páscoa, a última ceia, com os seus discípulos. Mas a gente pergunta, porque é que ele não tem nome?

Possivelmente para evitar que ele tivesse consequências penais, que ele fosse perseguido, por de alguma forma, se ter envolvido com a história de alguém condenado à morte e ser apresentado como um cúmplice de Jesus. Então por motivo, digamos, de conveniência, o nome dele não é explicitado.

Mas, no Evangelho, sempre que as personagens aparecem sem nome, também nós temos uma outra razão: este homem não tem nome, porque ele tem os nossos nomes. Ele chama-se José, chama-se Luís, chama-se Manuel, Madalena, Maria.

Chama-se os nomes de todos nós. Porque é a cada um de nós que Jesus manda dizer: “Olha, Eu este ano quero celebrar a Páscoa em tua casa, no teu coração, na tua vida». E é dentro de nós que toda esta narração se vai devolver. Que a mais bela história do mundo, a mais santa história do mundo vai acontecer, nas nossas vidas.

Queridos Irmãs e Irmãos

No início desta Semana Santa, a Semana Maior do ano, que nos sintamos implicados, nos sintamos envolvidos, tenhamos capacidade de ver por detrás dos símbolos, de ver por detrás dos sinais e perceber que há aqui um encontro, que há aqui um dom, a dádiva que é feita a nós, que foi por causa de nós, que foi para nós que esta história aconteceu.

Pe. José Tolentino Mendonça

13 de Abril de 2014, Domingo de Ramos

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/04/12 – “Viver a Páscoa no aqui e no agora“ – Retiro Aberto na Capela do Rato” open=”false”]Realiza-se no próximo dia 12 de Abril, das 9h30 às 13h, na Capela do Rato, o Retiro Aberto da comunidade, em tempo quaresmal, para nos ajudar a ”Viver a Páscoa no aqui e no agora”.

As inscrições para o retiro poderão ser feitas no final das missas de sábado (18.45h) e de domingo (11.30h).

Clique para ouvir a 1ª parte do Retiro:

Clique para ouvir a 2ª parte do Retiro:

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/04/02 – Conversas à Capela – A virtude da Humildade” open=”false”]No dia 2 de Abril, às 21.30h, teremos a próxima Conversas à Capela, na Capela do Rato, desta vez dedicadas à virtude da Humildade.

Para nos ajudar a reflectir sobre este tema convidámos o Carlos Simões (Médico Dentista e membro das CVX),  o Luís Miguel Cintra (Actor e Encenador) e a Margarida Neto (Psiquiatra).[/vc_toggle] height=”30″]

Março

height=”10″][vc_toggle title=”2014/03/30 – Uma nova visão das coisas” open=”false”]Queridos irmãos e irmãs

Estes domingos, estes três domingos do meio da Quaresma, nós lemos o Evangelho de São João. Evangelhos desde a antiguidade cristã, destinados a explicar aos catecúmenos e a lembrar aos batizados, o significado do seu batismo.

Domingo passado tivemos a explicação do símbolo da água, com o Evangelho da Samaritana.

Este domingo, temos a explicação do símbolo da luz, com a cura do cego de nascença. No próximo domingo, teremos a explicação do símbolo da vida com a ressurreição de Lázaro.

São assim, três grandes símbolos: a água, a luz, a vida que explicam aquilo que é o impacto do dom de Jesus na vida de cada um de nós. Nós precisamos da Luz. Nós precisamos da Luz.

É interessante a situação que o Evangelho de São João nos relata, com a cura deste cego de nascença: há a cura do cego e há depois uma querela jurídica para saber se Jesus tinha ou não legitimidade, para fazer aquele sinal. E depois há o reencontro, o segundo encontro de Jesus com o cego.

O que é que nós vemos nas duas primeira partes, na cura do cego e na querela jurídica que se lhe segue?  O cego tem consciência que é cego. Isto é, tem consciência da sua carência, da sua necessidade, da sua real situação.

Aqueles que promovem a querela em torno à cura e à legitimidade de Jesus curar ou não em dia de sábado, veem e não veem ao mesmo tempo, mas não têm consciência da sua cegueira.

E, no fundo, este é o ponto primeiro que o relato evangélico nos coloca:

Será que nós temos consciência da necessidade de Jesus? Será que nós estamos conscientes de quanto precisamos Dele?

Porque às vezes o nosso problema, e foi esse o problema dos fariseus, é perdermo-nos numa autojustificação. Isto é, nós temos explicação para tudo, sabemos tudo, percebemos tudo, vemos tudo, e nesta soberba, Deus não entra no nosso coração porque o nosso coração é pedra, o nosso coração é porta blindada, o nosso coração é um fecho de correr.

Só quando estamos conscientes da nossa fragilidade, e da nossa fraqueza, só quando percebemos até ao fim e até ao fundo, quanto carentes estamos do perdão, da misericórdia e da ternura de Deus é que, de facto, essa misericórdia é derramada nos nossos corações.

Ganhar consciência de que precisamos de ser tocados por Jesus, ser lavados no seu sangue, na água batismal, ser iluminados pela sua luz.

O que é receber a luz, o que é passar a ver? É ganhar uma nova visão das coisas.

Os Evangelhos têm muitas curas a cegos. E essas curas têm um papel simbólico muito importante. Porque a cegueira tem a ver com a nossa maneira de viver. Às vezes nós estamos cegos mas não temos consciência disso. Achamos que continuamos a ver. É uma imagem que já Platão utiliza na Alegoria da Caverna, i.e., nós pensamos que vemos, mas afinal estamos reféns das imagens e dos fantasmas.

Precisamos de ganhar uma nova visão. E essa nova visão, esse novo entendimento, essa nova maneira de compreender as coisas, é a luz que Cristo nos dá.

O Evangelho de São João tem uma particularidade em relação aos outros 3 Evangelhos.

É que, enquanto os outros três foram escritos para pessoas que ouviam pela primeira vez falar de Jesus, digamos, são os Evangelhos do primeiro anúncio, pensa-se que o Evangelho de São João foi escrito para pessoas que já eram cristãs e por isso não se tratava de aprender o b-a-ba sobre Jesus, o início, mas trata-se sim de um segundo encontro, de um aprofundamento da própria fé.

E, por isso, é muito interessante que no Evangelho de São João, as personagens não aparecem uma só vez, aparecem várias vezes, duas ou três vezes. Por exemplo, o Evangelho da Samaritana, ela aparece-nos a falar com Jesus mas depois aparece-nos a falar com as pessoas da sua terra. No Evangelho de Nicodemos, ele aparece-nos à noite a falar com Jesus mas depois aparece-nos com José de Arimateia a perfumar o corpo de Jesus e a sepultar Jesus.

As personagens não aparecem uma vez só, aparecem uma segunda e uma terceira vez.

Também assim com o cego. Ele era mendigo, era cego, foi curado.

Foi curado, mas acreditava que tinha sido um profeta. Não que era o Messias de Deus que o tinha curado. E então, depois daquela querela toda, Jesus encontra-o pela segunda vez.

E diz-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?”

E ele pergunta: “Quem é Senhor, ainda não o vi”. Quer dizer, a cura não é apenas a cura da cegueira, é a cura é de uma cegueira espiritual.

E Jesus diz uma coisa absolutamente comovente, conjugada no verbo presente: “É este que fala agora contigo”. E o homem cai de joelhos, e diz: “ Senhor, eu creio”.

Queridos irmãos,

Nós estamos a viver o Tempo da Quaresma, nós já somos cristãos há um ano, há cinquenta anos, há mais ou menos tempo. Hoje temos aqui três irmãos nossos catecúmenos que se estão a preparar para receber o batismo no tempo pascal.

O que é verdadeiramente para nós o segundo encontro com Jesus?

O segundo encontro com Jesus é recebermos a luz de uma maneira nova.

A Quaresma tem que ser um sobressalto. Tem de nos tornar mais cristãos, melhores cristãos. Tem de nos dar uma compreensão mais lata do mistério de Cristo e do mistério do próprio homem e do mistério da vida.Com Cristo aprendemos uma nova gramática, um novo dicionário, um novo léxico da própria realidade.

Se, antes da Quaresma pensávamos uma coisa, ao chegar à Pascoa o nosso olhar tem que estar lavado. Em Itália, há uma tradição muito bonita, no Véneto, que é na manhã de Páscoa as pessoas vão ao rio lavar os olhos. E nós estamos aqui a lavar os nossos olhos, com esta palavra. Isto é, a lavar o nosso entendimento. A receber esta luz que é o próprio Cristo.

E receber a luz, implica muitas vezes, ver as coisas de uma forma completamente diferente.

Por exemplo, a 1ª leitura, a escolha de David como rei. Este homem, Jessé, tinha doze filhos e naturalmente o que podia ser rei era o mais velho, e no impedimento do mais velho, o filho segundo. Mas Deus vai escolher aquele que nem está em casa. Vai escolher o mais novo, aquele que, do ponto de vista jurídico, não tem direito algum. E Deus vai escolher o mais improvável, que é aquele rapaz chamado David. Deus escolhe o mais improvável, o mais pequenino, aquele que não se espera, o que não está legislado, o que nos surpreende, que não tem a ver com o nosso ponto de vista. Deus escolhe. Deus escolhe fora do nosso baralho e para lá das nossas contas.

E receber a luz de Cristo é nos abrirmos a um novo entendimento. No fundo, nos abrimos às surpresas de Deus. Ao desconcerto do modo como ele atua. À liberdade de Deus ser Deus em nós. À sua vontade que é sempre nova. Nos abrirmos. Nos abrirmos.

Que hoje nos sintamos como o homem cego. Este homem o qual Jesus tem misericórdia e cura, a quem lava os olhos, e a quem diz uma palavra. A quem encontra uma vez e uma outra vez. Uma segunda oportunidade, para lhe dizer: “Acreditas no Filho de Deus?”. Ele é aquele que está a falar connosco neste momento. O que Jesus diz ao cego, diz a cada um de nós : “Sou eu que estou a falar contigo, agora, agora”.

Pe. José Tolentino Mendonça

 

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/03/27 – Celebração Penitencial na Capela do Rato” open=”false”]No dia 27 de Março, às 21h30, na Capela do Rato, terá lugar a Celebração Penitencial em tempo de Quaresma, desafiando-nos a preparar a Páscoa.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/03/25 – Vozes de Religiosas Portuguesas” open=”false”]No próximo dia 25 de Março, às 21.30h, na Capela do Rato, celebrando a Anunciação do Anjo a Maria, teremos connosco três religiosas para partilhar o seu testemunho de vida:Ir. Isabel Balbino (Franciscanas Missionárias de Maria)
Ir. Mafalda Leitão (Servas de N. Sra. de Fátima)
Ir. Mª Julieta Mendes Dias (Religiosas  do Sagrado Coração de Maria)

O encontro será moderado por Alfreda Fonseca.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/03/17 – Nesta Quaresma aprende a ser pobre” open=”false”]Uma das bem-aventuranças de Jesus, que no Evangelho de Mateus é a primeira (5, 3), diz: «Bem-aventurados os pobres em espírito porque é deles o Reino de Deus».

Uma bem-aventurança é um horizonte. A nossa vida precisa de horizonte. Às vezes parece que a nossa existência acaba nos nossos sapatos, que é a única coisa que vemos quando se tem a cabeça virada para baixo. Não nascemos para viver a olhar para os sapatos, mas para o futuro. Precisamos de sentir que há um projeto, que somos projetados mais além, que tudo não acaba aqui e agora, que o que fazemos não acaba numa tarefa mas é um diálogo com o que está mais longe.

O que por vezes nos sufoca é o ar pesado de uma vida fechada em si mesma. Como se vivêssemos num quarto a vida toda com as janelas fechadas sem nunca entrar o ar. Pensar nas grandes questões, no que dá sentido à vida. E é neste contexto que se situam as bem-aventuranças que Jesus oferece.

«Bem-aventurados os pobres em espírito porque é deles o Reino de Deus». Antes de tudo, a pobreza é uma atitude espiritual, interior. Não estamos a falar de economia. A pobreza é uma atitude do coração, voluntária, ao passo que a pobreza económica vem de fora e pode ser uma imposição, como acontece com o desemprego, que é uma catástrofe. Mas no Evangelho fala-se de outra pobreza, que é uma escolha, que nos vem de dentro, um estilo de vida, uma maneira de estar e de reagir, uma forma de nos situarmos neste jogo que é a vida.

Eu posso colocar-me como não precisando de nada nem de ninguém, posso colocar-me numa perspetiva completamente autossuficiente, blindada, impermeabilizada, ou posso escolher a pobreza, ou seja, viver numa atitude de humildade, necessidade, encontro, busca da complementaridade dos outros, sabendo sempre qual é o meu lugar.

A pobreza liga-se a uma longa tradição na espiritualidade cristã que é a infância espiritual. Muitos santos propõem-na no caminho da ascese, de subida para Deus. Temos de envelhecer com esta criança interior, não perdendo a inocência, a simplicidade, a capacidade de se sentir pequenino, e tudo isto não ser uma coisa que nos destrói, mas ser a fonte da nossa alegria, a fonte da nossa esperança.

A infância espiritual não é uma infantilização da vida, não é um fazer de conta, não é desresponsabilizar a existência. É fazer uma opção por viver na confiança e na abertura, duas dimensões que precisamos de trabalhar. Viver na confiança quer dizer viver com fé, espalhando-a a tudo, às relações com os outros, à vida, ao que somos.

Estamos num tempo que nos coloca de pé atrás com a vida, com o quadro social, com o futuro, embora estas inquietações nos levem a perguntar onde é que tínhamos colocado a nossa confiança. Temos de saber em quem e onde colocamos a confiança, que não depende da Bolsa de cada dia.

O coração pobre vive na abertura, não se fecha, não se tranca, vive na atenção, na vigilância, na espera, na disponibilidade. Quando andamos com uma criança pela mão, sabemos para onde queremos ir, o que muitas vezes nos impede de apreciar o caminho. Uma criança sabe que vai a algum lado, mas também sabe que está acompanhada, o que lhe dá uma grande liberdade de coração, e vai disponível para apreciar os detalhes da vida. Por vezes temos de a puxar porque ela fica agarrada a uma flor, a um animal, a qualquer coisa que saltou no meio da paisagem.

Se nos perguntarem «hoje, o que é que te tocou?», ficamos por vezes sem saber o que responder, porque nada nos tocou. Vivemos muita coisa mas nada nos tocou. Porquê? E somos capazes de viver assim durante dias, semanas e meses.

Falta-nos a disponibilidade de entrarmos em diálogo, de sermos simples, de aprendermos como as crianças, que quando dão a mão a alguém têm o coração e o espírito livre para saborear o caminho, que para elas não é, como para nós, um corredor noturno e sonâmbulo em que só se vê uma coisa: a meta. E quem só vê a meta, não caminha.

«Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além.» Agradecer, agradecer, agradecer. É esta a pobreza de coração. É estar grato por aquilo que vem, que brota, que germina.

P. José Tolentino Mendonça

Excertos do Retiro Aberto na Capela do Rato no dia 17 de Março de 2013

Redação: SNPC/rjm

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/03/17 – Pobreza espiritual, caminho de vida” open=”false”]Há uma escultura de S. Francisco de Assis no Monte Alverne, Itália, em que ele está deitado na terra, a olhar. É uma imagem da santidade. A capacidade de se deitar a olhar, a ver, a reparar, a respeitar – olhar outra vez. Por vezes somos injustos com a vida, as coisas, os acontecimentos, porque não olhamos outra vez. O nosso ponto de vista já está muito cheio, muito condicionado, é um funil que deixou de ser abertura de coração.

Por um lado, devemos ter consciência da nossa autonomia. Deus tem de ser um caminho para cada pessoa. Não vivemos encostados à experiência de ninguém. Somos autónomos também no caminho da fé. A nossa relação com Deus é comunitária, sem dúvida, mas antes de tudo é pessoal. Deus não se revelou primeiro a um povo, mas a uma pessoa: Abraão, Moisés,… Um por um. Deus sabe o nosso nome, sabe o que somos. Isto também tem a ver com a aceitação da pobreza. É na pobreza que está a riqueza enquanto ponto de partida.

A par da autonomia, temos de viver na consciência de que dependemos inteiramente do amor de Deus. «Não temas, pequenino rebanho, porque agradou a teu Pai dar-te o Reino.»

A pobreza espiritual, encarnada por Jesus, tem ressonância no Antigo Testamento. Nesta tradição fala-se de um modo de ser e viver pobre em termos espirituais, concretizado pelos anawin, os pobres de Yahweh. O que Maria canta e testemunha no seu “Magnificat” é a reviravolta de Deus, que pôs os olhos na pobreza da sua serva, que retira os poderosos dos tronos e neles faz sentar os humildes, que despede os ricos de mãos vazias e enche os pobres das suas riquezas.

Um coração pobre está disponível para viver a alternativa de Deus, a lógica nova de Deus, as transformações, o modo de ver e atuar de Deus na história.

Jesus também nos ensina o caminho da pobreza espiritual. Quando atravessa a Samaria, acompanhado pelos discípulos, sente fome. Por vezes a fome é um momento espiritual importante. Não só a fome biológica, mas também a necessidade de outra coisa.

Os discípulos vão à aldeia buscar comida e, ao regressar, Jesus fala-lhes de outro alimento: fazer a vontade do Pai. Também nós fazemos um grande investimento para buscar o alimento, mas Jesus, à semelhança do diálogo com os discípulos, como que nos pergunta: «É disso que te alimentas?».

O verdadeiro alimento é vivermos a partir da condição de sermos filhos, de sermos filhos amados por Deus. Se vivemos a partir da convicção profunda de que é o amor de Deus que nos funda – o que o Pai diz a Jesus, «Tu és o meu filho muito amado, em ti coloco o meu amor» -, a nossa existência será completamente diferente. Deixaremos de andar de equívoco em equívoco. Saberemos verdadeiramente qual é o nosso alimento, o que nos sacia, o que é decisivo para nós.

A pobreza espiritual também se expressa na aceitação de si. Não temos apenas mal-entendidos com os outros. Por vezes, o maior e o mais difícil mal-entendido é connosco próprios. Não nos aceitamos, não nos abraçamos, não nos acolhemos, não nos perdoamos. Aceitar-me no que sou e não sou, no que fui, no que não fui, no que não consegui, no que correu bem e no que correu mal, na fraqueza e na fragilidade.

Como é que se torna fecunda a vida pobre? Na aceitação confiante de si. Como diz S. Paulo na segunda carta aos Coríntios (4, 7): «Trazemos em vasos de barro o nosso tesouro». E é sempre assim. Temos de aceitar o tesouro, mas também o barro, o barro que se quebra, o barro que se cola, o barro que não tem remédio, o barro que fica ferido.

O poeta brasileiro Manoel de Barros, com quase 90 anos, é uma das grandes figuras espirituais do nosso tempo: «Prefiro as máquinas que servem para não funcionar». Isto exige uma conversão. Porque nós preferimos o que funciona. «Porque cheias de areia, de formigas e de musgo, elas podem um dia milagrar flores». Há um milagre que só nos chega pela pobreza.

Há a história do monge perseguido por um tigre: o monge corre, o tigre também; o monge sobe a uma árvore, e também o tigre; o monge desce, o tigre imita-o. Chegado ao cume de uma montanha, percebe que de um lado tem o tigre e do outro o abismo. Então pensa: no abismo haverá, possivelmente, alguma coisa que amorteça a queda; e então atira-se. Ao cair, fica preso numas raízes, com o tigre, no alto, a olhar para ele. Mas as raízes começam a ceder com o peso, e daí a momentos ele vai cair onde não sabe. Olhando à volta, encontra um morangueiro, estende o braço e come um belíssimo morango, sentindo todo o seu sabor.

A nossa vida tem o tigre, tem as raízes que cedem, tem o que não sabemos à nossa espera. A atitude da pobreza é a convicção de que, no meio da aflição, os morangos não perdem o sabor. Que os encontros não perdem o sabor. Que sejamos capazes de perceber o sabor que nos é dado, mesmo que não seja nas condições, no modo, no dia ou no tempo que tínhamos previsto. O pobre recebe infinitamente mais do que previa.

Como o mestre que chama o discípulo para a primeira lição, que é tomar chá. Ao deitar chá para o chávena do aprendiz, não para, e então o chá transborda. O discípulo, assustado, grita: «Mestre, o chá está a espalhar-se por todo o lado». E o mestre diz-lhe: «É a primeira lição: se não tiveres o coração vazio, vai perder-se tudo aquilo que ouvires e viveres».

Como é que pode acontecer que passem semanas e nada nos toque? Como podemos dizer que não vemos Deus em nenhum lado? S. Francisco andava com uma varinha a bater nas rochas, nas flores e nas criaturas, e dizia-lhes: «Para, para, não me fales de Deus».

Esta pobreza espiritual é chamada a expressar-se num estilo de vida essencial. É importante que cada pessoa se pergunte o que quer testemunhar. Porque nós estamos sempre a testemunhar.

Diz Rumi: O que é que eu deixo em herança? Deixo em herança a primeira brisa do outono e o primeiro canto do cuco na primavera. O que é que nós deixamos em herança? Podemos até deixar bens, mas se não deixamos o sabor da vida, o sentido, a transparência, se não deixamos a brisa do outono e o canto do cuco na primavera, então não deixamos nada, não testemunhamos nada.

O que possuímos, possuí-nos. Devemos estar muito alerta e perguntar: eu quero possuir isto? Que é como quem diz, eu quero ser possuído por isto? Se pensarmos assim, ganhamos outra liberdade, que é um caminho exigente, de pequenas e grandes escolhas, de momentos extraordinários e da vida de toda a hora.

Queremos viver para dar testemunho do amor e do acolhimento, ou queremo-nos protegidos através do conforto e da segurança?

Rezemos a nossa vida. Perguntemo-nos o que nos alimenta, o que nos toca, perguntemos se só vemos a meta ou se aceitamos a nossa vida pobre e vazia. Perguntemos se em cada dia franqueamos as muralhas do nosso coração.

«O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».

P. José Tolentino Mendonça

Excertos do Retiro Aberto na Capela do Rato no dia 17 de Março de 2013

Redação: SNPC/rjm

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/03/06 – Quaresma, tempo para renascer” open=”false”]Ao falar de uma espiritualidade inscrita no quotidiano, o frei Carlos Maria Antunes, no livro “Só o pobre se faz pão”, diz que uma das nossas dificuldades é a dispersão. O nosso coração está disperso, dividido por muitas coisas. Somos objeto de múltiplos apelos e necessidades. Um rebuliço sem fim atravessa o nosso interior. E com ele também um cansaço e uma angústia que vamos tentando compensar de várias formas.

O cansaço e a angústia são um terreno fértil para a multiplicação das falsas necessidades e falsos desejos. A dispersão provoca mais dispersão.

Neste quadro, a nossa unidade e vigilância interior, que são fundamentais no nosso interior, tornam-se frágeis. Vamo-nos tornando mais vulneráveis, e acabamos, muitas vezes, num movimento de defesa, por endurecer o nosso coração, fazendo de conta que não vejo, que não oiço. Mas esta atitude também não nos dá a verdadeira unidade de coração.

Precisamos de aprender uma arte do acolhimento da nossa própria vida. Acolhermo-nos, acolher aquilo que somos, acolher o que nos chega como uma oportunidade, mas partindo de um centro, de um núcleo vital que em nós está desperto.

O padre Carlos cita o trecho de um poeta persa, Rumi, que diz o seguinte: «O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».

Esta arte do acolhimento da vida, de saber abraçar tudo a partir de uma unidade interior, pede de nós a pobreza espiritual, a pobreza de coração.

Aquando da eleição do papa Jorge Mario Bergoglio – todos nós já tivemos a oportunidade de ouvir esta história -, o cardeal Claudio Hummes, arcebispo de S. Paulo, que estava ao lado dele, abraçou-o e disse-lhe: «Não te esqueças dos pobres». Estas palavras ficaram a fazer-lhe caminho no coração, e quando se tratou de escolher o nome, ele optou por Francisco, lembrando-se de Francisco de Assis e da sua espiritualidade universal.

Falando aos jornalistas nos primeiros dias, o papa deixou os papéis e teve um suspiro, a expressão de um desejo, e disse: Quem me dera que a Igreja se tornasse pobre e fosse uma Igreja para os pobres. Uma Igreja que se torna pobre e faz do acolhimento dos pobres a sua razão de ser, a sua missão.

A pobreza espiritual aparece-nos como um conselho evangélico, isto é, como modo de vida, como uma opção que cada cristão é chamado a fazer para se configurar a Cristo, para se tornar mais próximo de Cristo. Há mais dois conselhos evangélicos: a obediência, ou seja, a capacidade de escutar e permanecer fiel à palavra que se recebe; o outro é a pureza de coração, e aí a castidade é muito mais do que uma privação, tornando-se um modo positivo de estar na vida.

Cada um destes conselhos é vivido na Igreja por todos os batizados, embora de modos diferentes. Todos somos chamados à configuração com Cristo, que é pobre, puro de coração e obediente ao Pai.

Como é que podemos concretizar a opção por uma vida pobre, por uma pobreza espiritual? A vida espiritual não é uma técnica, não é uma habilidade, não é um conjunto de ritos. A vida espiritual é um modo de ser. E quando se fala de adotar uma atitude espiritual de pobreza no coração – S. Francisco chamava-lhe a Irmã Pobreza, ou Santa Pobreza -, temos, antes de tudo, de exercitar o nosso ser.

«Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos. Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho» (Sophia de Mello Breyner).

Há um momento da nossa vida em que deixamos de saber de nós próprios. Parece que já não há um fundo de ser a marcar aquilo que somos e que nos estrutura, uma decisão fundamental, mas, pelo contrário, somos a dispersão.

A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo que eu decido, que eu quero, um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito. A minha vida tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro.

E para ter um centro, precisamos de momentos de recentramento para ouvirmos a nossa voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos: «O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?». Estes momentos de recentramento são revitalizadores.

A Quaresma não são 40 dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo de revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chave que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso este é o tempo de voltar a si.

Excertos do Retiro Aberto na Capela do Rato no dia 17 de Março de 2013

P. José Tolentino Mendonça

Redação: SNPC/rjm

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/03/05 – Postal para a Quaresma 2014″ open=”false”]

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/03/05 – Conversas à Capela – A virtude da Fortaleza” open=”false”]Dia 5 de Março, às 21.30h, tem lugar a sessão das “Conversas à Capela”, na Capela do Rato, desta vez dedicada à virtude da ”Fortaleza”. Para nos ajudarem a reflectir sobre este tema convidámos a Cristiana Vasconcelos Rodrigues (Profª da Universidade Aberta),  a Maria Luísa Ribeiro Ferreira (Profª da Universidade de Lisboa), e o Iliyan Georgiev (Sacerdote da Igreja Ortodoxa Búlgara e Prof. da Universidade Nova de Lisboa).[/vc_toggle][vc_toggle title=”2014/03/05 – Precisamos de uma Primavera” open=”false”]A comunidade da Capela do Rato em tempo de Quaresma

Somos uma comunidade de mulheres e de homens, não somos uma comunidade de anjos. E, como tal, vivemos a incerteza, a incompletude e a fragilidade; apercebemo-nos das contradições que se albergam no nosso coração; combatemos o drama do mal nos nossos próprios gestos. Umas vezes conseguimos vencer o dilema, outras afundamo-nos nele e somos vencidos. Umas vezes conseguimos manter alta a esperança, outras permitimos que ela diminua ou se apague em nós e nos outros. Se alguma coisa nos define, portanto, é estarmos a caminho. Diria assim: somos uma comunidade de mulheres e de homens, não somos um grupo de anjos e, por isso, precisamos de conversão.

Vamos começar a quaresma porquê? Não apenas por uma imposição do calendário litúrgico, mas porque precisamos renascer. Sentimos o inacabamento, percebemos que é-nos possível ser mais e que está ao nosso alcance viver com maior autenticidade a nossa condição de discípulos de Jesus. Começamos a quaresma porque precisamos dela, porque somos chamados a dar lugar ao Espírito nas nossas vidas, a abrir caminhos de novidade no quotidiano, a acreditar que é possível. Começamos a quaresma porque acreditamos no amor de Deus. De facto, cada um de nós é amada e amado por Deus, e esse amor é capaz de nos colocar em contexto de aliança, em estado de florescimento. Ligarmo-nos a esse amor representa uma nova criatividade, um novo alento, uma nova respiração. E, certamente, uma nova etapa.

Vamos, por isso, começar este caminho da quaresma. Façamo-lo com realismo. As mudanças que contam na nossa vida não acontecem um dia para outro ou de forma espontânea. Acontecem no meio de um paciente combate interior. Temos de estar preparados para um caminho exigente e através de muitas tentações. É muito fácil sermos crentes de bancada, cristãos de sofá, fregueses do templo.

Descobrir um tempo favorável à oração

Vamos regressar a um caminho, um caminho que dura 40 dias, e que é símbolo do caminho da nossa vida. Não vamos percorrê-lo sozinhos, mas em comunhão com o povo de Deus, com a história da salvação, com o próprio Jesus, que quis também passar 40 dias no deserto para refazer espiritualmente o tempo que o povo de Israel esteve no deserto até chegar ao monte da Aliança. Vamos entrar nestes 40 dias de travessia passo a passo, vamos colocar as nossas vidas em obras, em trabalhos, em arranjos, limpezas, sacudindo o pó, abrindo janelas e rasgando horizontes de forma a deixar entrar o ar novo do Espírito.

A igreja apresenta-nos três ferramentas muito úteis e que nos vão servir estrada fora. A primeira ferramenta é a oração. Um cristão não é produto da sua vontade: é, sim, alguém que vive na humilde e confiada abertura à ação de Deus nele. Um cristão não é alguém que a pulso sobe uma escada. Não vamos entrar na ascese pela ascese.  Tudo nasce daquela certeza que S. Paulo recorda: “…acredita que és amado e salvo por Jesus Cristo…”.

Ora, a verdade é que nós cristãos  vivemos muitas vezes como se Deus não existisse. Vivemos num ateísmo prático os nossos quotidianos, remetendo Deus para o último dos pensamentos, a última das lembranças. No nosso dia a dia que espaço damos à oração? Ás vezes são cinco, dez minutos muito negociados, muito regateados e, mesmo assim, a achar que estamos a perder tempo.

Se pensarmos bem, a oração é efetivamente uma perda de tempo, mas no melhor dos sentidos. A oração é inútil, não serve para nada. Temos, porém, de aceitar que esse momento que não produz nada permite estarmos face a face, coração a coração, permite-nos estar gratuitamente com Deus. A verdadeira oração cristã é gratuita: é deixar que o Espírito venha em nós. É dizer: «Senhor eu estou aqui, à espera de nada», «estou à espera do que Tu me dês; à espera de Ti.» Precisamos da oração, porque como um ferro só se dobra a altas temperaturas (e ninguém pensa que consegue dobrar um ferro frio), uma mulher e um homem também só são recriados a altas temperaturas: a temperatura do amor, a da esperança, a  da oração. A nossa vida precisa de ganhar essa temperatura e isso nasce de uma disposição interior para a relação, para colocar Deus na minha vida, para dialogar com Jesus, ás vezes até para brigar com Ele um bocadinho. É desse encontro que podemos florescer. O nosso tempo da quaresma há de ser um tempo favorável à oração. Cada um à sua maneira, não há duas orações iguais como não há dois sorrisos iguais ou duas lágrimas iguais. Cada um de nós tem uma forma de rezar, é o que somos, pois rezamos a partir do nosso estilo. Mas o importante é isto: que eu reze, que tu rezes.

Qual é a oração boa? Qual a melhor oração? Creio que nos ajuda pensar que a oração se define sobretudo pela quantidade. Oração boa é aquela oração longa, rezar bem é rezar muito. Lembro-me há uns anos de uma conversa com um jovem, ele estava numa etapa forte da sua vida e confessava-me numa linguagem um bocado áspera, por isso não se choquem. Ele dizia-me: «Padre Tolentino eu rezo como um porco». Queria com isso dizer:  «eu rezo tudo, eu não separo, eu não escolho nada; como um porco não escolhe o que vai comer; o que lhe põem à frente ele come». Os verdadeiros orantes são assim! Não podemos achar que  quando acontecer-nos uma coisa especial então  rezamos. Não, faz precisamente o contrário:  reza desde que acordas até que te deitas, reza tudo, reza o que está à tua frente, reza o que Deus te dá para rezar. Que estes 40 dias sejam assim tempos em que nos treinamos na oração frequente, na gratuidade, no encontro, no silêncio. A semente floresce em silêncio, as sementes que neste momento estão a florescer ninguém as escuta, assim é a semente do nosso coração.

Experimentar o jejum nos vários sentidos

A outra ferramenta é o jejum. A quaresma é um tempo para praticar o jejum (o jejum comunitário está previsto em dois dias: quarta-feira de cinzas e sexta-feira santa). E aqui eu penso que temos que começar por ser literais. O que é jejum? Jejum é não comer, é a privação temporária e parcial do comer. É muito importante que cada um de nós faça essa experiência de que tem fome. Esse vazio que se sente no estômago abre, perfuma a vida, faz-nos pensar que a vida não é só pão. Se eu não experimento isso na minha barriga a espiritualidade torna-se uma coisa mental. Ora, a religião não é mental, é uma coisa na carne, é uma opção que nos toca profundamente, que nos modifica. Estes quarenta dias são dias para experimentar o jejum em sentido literal e também como renúncia a pequenos prazeres e confortos, concretizando um estilo de vida mais sóbrio do que aquele que a gente tem. O objetivo é esforçar-se por viver frugalmente este tempo, com maior despreendimento em relação aos nossos apetites, rotinas e gostos. Não nos damos conta, mas a nossa vida enche-se de dependências, de falsas necessidades e perdemos completamente a nossa liberdade. Nós somos mulheres livres, homens livres? Não sei. E se somos até que ponto somos? A liberdade interior e evangélica é uma coisa que se treina. Por exemplo: para podermos dizer sim temos que dizer não; muitos nãos são necessários para podermos dizer um sim que seja autêntico.

Então este tempo jejum é para treinar a renúncia, para escolher um estilo de vida sóbrio e durante estas sextas-feiras nós não vamos comer carne. Havia aquela tradição negocial: «eu substituo essa tradição e como outra coisa» ou «eu prefiro comer carne porque o peixe é mais caro». Não, o sentido é não comer carne e isso tem um sentido. Às sextas-feiras não comemos carne porque a carne é um sangue que se derrama, alimentamo-nos de outra vida, matamos para comer. Simbolicamente, ás sextas feiras, vamo-nos abster desse gesto, do gesto de derramar o sangue das criaturas, e optar por vegetais, por um ovo, um peixe. Isto é uma linguagem simbólica, claro. Não é um bife, um frango ou um hambúrguer que fazem a diferença. O essencial é o que eu sou chamado a redescobrir: que o mundo não existe em função de mim; o mundo não existe para que eu o devore. O jejum é muito importante porquê? Estimula o sentido crítico em relação a nós próprios. O nosso eu é uma coisa imensa e muitas vezes tirânica. O nosso eu é um ditador prepotente e caprichoso e se não o contrariamos acabamos por viver uma vida absurdamente egoísta. Nós não somos o centro do mundo. Temos que colocarmo-nos no nosso lugar e de uma forma consciente e crítica. O jejum serve para isso. Para ter uma posição crítica face àquilo de que nos alimentamos real e simbolicamente.

Praticar a esmola

Mas nada deste caminho fazia sentido se fosse apenas trabalhar de forma solipsista o nosso eu. A quaresma não é o momento zen da igreja.  Isto tudo é feito para ampliar a nossa capacidade de comunhão, para dar uma qualidade evangélica às relações que edificamos. Não tenhamos dúvidas: só o amor, a condivisão, a solidariedade, a partilha tornam legível este caminho espiritual que vamos fazer. E por isso é que a primeira ferramenta é a oração, depois o jejum e terceiro a esmola. Privam-nos para poder oferecer, para nos tornarmo-nos dom. No atual momento das nossas sociedades é fundamental redescobrir a dádiva. Há uma responsabilidade pelos outros, pelos mais pobres e frágeis, que temos de por em prática.  E partilhar isso com os próximos e com os distantes, porque o mundo não acaba na porta da nossa casa ou na fronteira da nossa mesa. Temos de ser capazes de abrir o nosso coração. Que o Espírito Santo que é o recriador das nossas vidas faça renascer o nosso coração como faz brotar cada uma das flores da primavera que se anuncia.

Boa quaresma.

Pe. Tolentino

Escute a Homilia do Pe. Tolentino na Quarta-feira de Cinzas de 2013

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Fevereiro

height=”10″][vc_toggle title=”2014/02/23 – Fazer da vida um lugar sagrado e tornar-se louco aos olhos do mundo” open=”false”]Queridos irmãs e irmãos

As leituras do VII domingo do Tempo Comum contam muito do que é a pretensão cristã e porque é que o cristianismo se afirmou como uma alternativa, como novo modelo de vida.

Para pensarmos esta novidade, temos de perceber o que é que o cristianismo faz com duas categorias absolutamente sagradas, cada uma à sua maneira, quer do judaísmo, quer do mundo helenístico.

No universo greco-romano, o mais importante era a sabedoria e a sua procura incansável. O que o homem ou a mulher podiam aspirar de mais sagrado no mundo grego era encontrar a sophia, um caminho de sabedoria.

Quando visitamos a antiguidade clássica, o mais belo monumento é a emergência do pensamento humano, a construção da filosofia; pensemos, por exemplo, na escola de Atenas, Aristóteles, Platão, Sócrates, os sofistas. Era uma grande procura, através do conhecimento, a de encontrar sentido e significado para a vida.

Há uma enorme grandeza moral nestes ascetas, que dedicam a sua existência à procura do conhecimento e da racionalidade, tentando perceber qual será o caminho para realizar o coração do ser humano, para justificar o sentido da nossa presença no mundo, o porquê e para quê das nossas vidas.

Se há uma palavra sagrada no mundo helenístico do tempo em que o cristianismo surge, é a palavra “sabedoria”. É uma palavra inalcançável, inspiradora, que todos procuravam, que todos queriam.

No mundo judaico, uma palavra igualmente fundamental era “templo”, o lugar sagrado. O templo era a certeza de que o Deus transcendente era também o Deus histórico, o Deus que acompanha o seu povo, o Deus cuja glória, aShekinah, habita num lugar concreto, e nós vamos até ele.

Do templo dimana tudo: os sacrifícios, o dia do perdão, o dia das expiações. E os judeus entregavam o dízimo para que a luz do templo não se extinguisse. Morrer sem ter peregrinado a Jerusalém era a maior das desgraças.

O templo era o lugar da evidência de Deus, a fonte de sentido, aquilo que estruturava a nação judaica, mas também a condição histórica, a cidadania judaica.

O cristianismo emerge assim num mundo em que o sagrado estava no conhecimento e no templo, a lei.

Em relação ao sagrado judaico, vamos ouvir S. Paulo, o primeiro grande intérprete cristão de Jesus, dizer, na carta aos Coríntios, que o templo é o corpo de cada um de nós. O templo somos nós. O lugar sagrado é a nossa vida. Porque o Espírito de Deus habita em cada um de nós.

Então já não estamos dependentes de um lugar, de uma raça, de uma etnia, de uma nação, de uma lei, de um código externo; é em nós que descobrimos Deus. Cada pessoa é o lugar onde Deus está.

Por isso temos de olhar para a nossa vida de outra maneira. Somos sujeitos diferentes porque o que nos caracteriza não é uma ligação a uma estrutura que está fora de nós, mas a descoberta de que Deus nos habita, de que Deus está em nós. E essa descoberta transforma a nossa vida.

Esta vida que por vezes nos custa abraçar, nos custa aceitar, nos custa entender; esta vida que é exaltante e ao mesmo tempo é lugar de fragilidade, é lugar de dor; esta vida tão misteriosa que parece que nos escapa; esta vida é o santuário de Deus.

Esta vida que construímos dia a dia, esta vida que não existe em abstrato mas em concreto, nos nossos gestos, na nossa decisão, esta vida que não é apenas biológica mas é a vida ética, a vida sensual, a vida de amor, a vida de procura que em cada um de nós quotidianamente se efetua… Isto que nós somos, isto de inominável, de indecifrável, isto é o lugar de Deus.

Esta é uma transformação imensa que o cristianismo operou.

Por isso tenho de olhar para a minha vida como um lugar sagrado; tenho de olhar para a minha vida com outros olhos, com outra esperança, porventura com outra veneração. Tenho de cair de joelhos perante o espetáculo desabalado e divino que é a vida, por mais frágil que seja. Tenho de olhar para a vida com um coração diferente, um coração novo.

A nossa vida não é apenas um instrumento. Não estamos escravizados a nada; vivemos plenamente a nossa liberdade porque Deus está em nós. Por isso a nossa grande tarefa é descobrir o que somos, é tornarmo-nos naquilo que somos.

Este debate animou o cristianismo desde os primeiros séculos e levou um grande teólogo, Tertuliano, a dizer que o homem é naturalmente cristão. Ele não disse isso no sentido de que o cristianismo é um lugar automático, mas que é na nossa natureza, no fundo daquilo que somos, que temos de descobrir o que é isto de sermos filhos de Deus e de Deus habitar em nós.

Nenhuma vida é para deitar fora, nenhuma vida é para excluir, nenhuma vida é descartável, nenhuma vida é para ser pisada. A nossa vida tem esta dignidade de ser o templo, o lugar sagrado.

Em relação ao modelo da sabedoria, o cristianismo faz um movimento que os exegetas denominam de “autoestigmatização”. Entendemos o alcance desta palavra nas palavras de S. Paulo: é preciso tornar-se louco.

Num mundo em que é a sabedoria que confere estatuto, é preciso tornar-se louco. Neste sentido, o cristão diz «eu vou por outro caminho, vou fazer de maneira diferente, considero-me um outsider; no mundo de sábios, quero ser louco».

Vemos esta loucura explicada no Evangelho de Jesus [cf. Artigos relacionados]: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda; isto é, não acreditar na força da violência, não acreditar na força do mais forte, não acreditar no “olho por olho, dente por dente”.

Se alguém te quiser levar a tribunal, deixa-lhe tudo; se te obrigarem a acompanhar durante uma milha, acompanha durante duas; se te pedem emprestado, dá.

Estas palavras têm, ao mesmo tempo, um sentido literal e um sentido metafórico. Um sentido literal porque a palavra de Cristo é para levar a sério. Eu estou aqui a explicar, mas Deus me livre de alterar uma vírgula. A palavra é esta, e nós temos de nos haver com ela. A palavra de Cristo tem uma literalidade com a qual a nossa vida se há de confrontar sempre, como se fosse a primeira vez; e essa literalidade é que é o sentido definitivo.

Mas estas palavras de Jesus são também uma metáfora para dizer: «sê louco»; «sim, mas eu tinha direito a…» – «faz diferente, faz de outra forma». Isto é, foge às lógicas fechadas: «Ele disse-me aquilo, mas eu respondi-lhe na mesma moeda»; «ele fez assim, então vou agir em consonância».

Sermos capazes de romper os ciclos viciosos, os becos sem saída, o afunilamento das nossas histórias, e tentarmos uma coisa diferente. Em vez de odiar os inimigos, amá-los – isto é, ser capaz do perdão, ser capaz da compaixão, ser capaz de aceitar as humilhações. Santa Teresinha dizia que «muitas humilhações fazem a humildade»; e quando este princípio é bem entendido, é importante para que nos relativizemos, porque isto também nos purifica do ídolo que somos.

Amar aqueles que nos amam – claro; mas também amar aqueles que não nos amam. Ser capaz de outra sabedoria, de uma sabedoria que refunde a ordem das coisas, refunde a nossa história, refunde o próprio mundo.

Se o cristianismo é apenas cultural, é muito pouco. Se somos apenas pessoas sensatas, ponderadas, respeitadas, cumpridoras da lei, que pagamos os impostos e somos bons cidadãos… isto é o mínimo. Não é preciso ser cristão para fazermos essas coisas.

Que coisa é necessária para ser cristão? É preciso fazer um gesto que na sua extravagância, na sua rutura, assinale a diferença de Cristo, o salto qualitativo, o salto de amor que Cristo representa. Há um momento na nossa vida em que só um gesto destes nos pode salvar; há um momento na nossa vida em que só um gesto destes faz a diferença.

O cristianismo nasceu sem nenhuma força. Não tinha a seu lado a força de um pensamento, a força de uma cultura, a força do dinheiro, a força da cidadania… não tinha nada. Tinha apenas a certeza de que somos o lugar sagrado e este chamamento de Jesus a que sejamos loucos, a que sejamos capazes de caminhar contracorrente.

Ou vivemos contracorrente, expressando na nossa vida o que isso significa, numa lógica de amor e dádiva, ou então vivemos um conformismo social e cultural que dilui o cristianismo e o torna um folclore, e não um lugar de redenção e transformação das nossas vidas.

O cristianismo não se faz de massa mas das histórias individuais. Quantos lugares sagrados, que são a vida de cada um de nós, estão aqui?

Vamos pedir que o Espírito nos habite, nos fortaleça, nos dê a certeza do amor de Deus, confirme em nós o amor de Deus, e nos dê a capacidade de arriscar uma outra sabedoria, que muitas vezes é loucura aos olhos do mundo, mas outra coisa não é do que abraçar até ao fundo e até ao fim a cruz do Senhor.

Pe. José Tolentino Mendonça

Redação: SNPC/rjm

 

Clique para ouvir a homilia:

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Janeiro

height=”10″][vc_toggle title=”2014/01/08 – Conversas à Capela – A virtude da Paciência” open=”false”]Paciência com Deus - capa do livro«Estamos habituados a olhar o Evangelho como o mapa que nos descreve o Céu. Menos habituados estaremos em ver também nele a gramática que nos interpreta o mundo. Pois é assim que o Cristianismo surge no discurso de Halík: como justa gramática da vida» (Alexandre Palma)

A próxima sessão das Conversas à Capela terá lugar na Capela do Rato, dia 8 de Janeiro, às 21h30. O tema da conversa é a virtude da paciência, e será debatido a partir das leituras que Ana Vicente (do Movimento Nós Somos Igreja), o padre Alexandre Palma (autor do prefácio do livro) e Rui Medeiros (professor de Direito da Universidade Católica Portuguesa) fizeram do livro Paciência com Deus, de Tomáš Halík (Edições Paulinas, 2013). O encontro inicia-se com pequenas intervenções dos convidados, a que se segue um debate aberto a todos.

Sobre o livro e o autor, pode ler-se aqui uma breve apresentação:

http://www.snpcultura.org/paciencia_com_Deus_resposta_interrogacoes_ateismo.html[/vc_toggle][/vc_tab][vc_tab title=”2013″ tab_id=”1409507060-2-27″]

Dezembro

height=”10″][vc_toggle title=”2013/12/31 – Vigília da Paz” open=”false”]Vigília da Paz na Capela do Rato.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/12/25 – Advento / Natal 2013″ open=”false”][dt_cell width=”1/2″]

Domingo I do Advento

Domingo I do Advento

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Domingo II do Advento

Domingo II do Advento

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Domingo IV do Advento

Domingo III do Advento

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Domingo III do Advento

Domingo IV do Advento

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Natal do Senhor

Natal do Senhor

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Anjo

Anjo (Crianças)

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Maria

Maria (Crianças)

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José

José (Crianças)

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Estrela

Estrela (Crianças)

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Jesus

Jesus (Crianças)

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[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/12/04 – Família: a leveza e a dificuldade de ser (parte II)” open=”false”]Debate alargado na comunidade da Capela do Rato sobre o Sínodo dos Bispos e o Questionário sobre a Família.

Consulte aqui as respostas ao Questionário.[/vc_toggle] height=”30″]

Novembro

height=”10″][vc_toggle title=”2013/11/28 – A lista de Bergoglio, de Nello Scavo, Paulinas, 2013″ open=”false”]Apresentação do livro por Nello Scavo e José Tolentino Mendonça.

http://www.snpcultura.org/a_lista_de_bergoglio.html

http://www.snpcultura.org/a_lista_de_bergoglio_2.html

aListaDeBergoglio_capa

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/11/27 – Família: a leveza e a dificuldade de ser (parte I)” open=”false”]Debate alargado na comunidade da Capela do Rato sobre o Sínodo dos Bispos e o Questionário sobre a Família.

Consulte aqui as respostas ao Questionário.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/11/07 – Os rostos de Jesus, de Duarte Belo e José Tolentino Mendonça, Círculo de Leitores, 2013″ open=”false”]rostosJesus_capelaRato_capaApresentação do livro por Duarte Belo, José Tolentino Mendonça e José Mattoso.

http://www.snpcultura.org/duarte_belo_jose_tolentino_mendonca_revelam_rostos_Jesus.html

www.snpcultura.org/subversivo_ha_2013_anos.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/11/06 – Conversas à Capela – A virtude da Esperança” open=”false”]Alexandra – viver com HIV, documentário de Cândida Pinto e João Nuno Assunção.

Cândida Pinto (Jornalista)

Joana Pontes (Documentarista)

Daniel Oliveira (Político e Colunista)

Henrique Joaquim (Comunidade Vida e Paz)

www.snpcultura.org/a_esperanca_e_o_lugar_encontro_todas_crencas.html[/vc_toggle] height=”30″]

Outubro

height=”10″][vc_toggle title=”2013/10/02 – A entrevista ao Papa Francisco – Antonio Spadaro” open=”false”]Com a presença de Antonio Spadaro, o jesuíta que fez a entrevista ao Papa, do Pe. Pedro Rubens, jesuíta brasileiro, e de Francisco Sarsfield Cabral, jornalista.

http://www.broteria.pt/component/content/article/101-entrevista-exclusiva-do-papa-francisco-as-revistas-dos-jesuitas?showall=1[/vc_toggle] height=”30″]

Maio

height=”10″][vc_toggle title=”2013/05/29 – Economia e Solidariedade” open=”false”]Manuela Silva (Economista)

José Tavares (Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa)

Em torno ao livro de Elena Lasida, O Sentido do Outro. A crise uma oportunidade para reinventar laços (Lisboa, Ed. Paulinas, 2013)

http://www.snpcultura.org/economia_solidaria_lugar_para_aprender_interdependencia.html

http://religionline.blogspot.pt/2013/05/o-sentido-do-outro-na-economia.html

oSentidoDoOutro_capa

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/05/16 – Filme “Lacrau“” open=”false”]João Vladimiro

Inês Gil

Margarida Ataíde

José Tolentino Mendonça

http://www.snpcultura.org/lacrau_filme_premiado_igreja_catolica_no_indielisboa_vai_ser_exibido_capela_rato.html

http://www.snpcultura.org/premio_arvore_vida_indielisboa_distingue_lacrau.html[/vc_toggle] height=”30″]

Abril

height=”10″][vc_toggle title=”2013/04/28 – Retiro Aberto” open=”false”]Retiro Aberto na comunidade da Capela do Rato.[/vc_toggle] height=”30″]

Março

height=”10″][vc_toggle title=”2013/03/25 – Mulheres anunciadas – Sessão de poesia” open=”false”]Alice Vieira

Carminho

Leonor Xavier

Maria Barroso

Maria do Rosário Pedreira

Teolinda Gersão

Carla Chambel

Clea Almeida

Filipa Leal

Maria Teresa Horta

Suzana Borges

http://www.snpcultura.org/capela_rato_acolhe_sessao_poesia_escritoras_portuguesas.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/03/20 – “Papa Francisco“” open=”false”]Henrique Monteiro

Leonor Xavier

José Tolentino Mendonça

http://www.snpcultura.org/eleicao_papa_sinal_redencao_nao_vem_com_fausto_mas_com_humildade.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/03/17 – Retiro Aberto” open=”false”]Retiro Aberto na comunidade da Capela do Rato.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/03/14 – Que Caridade para os dias de hoje?” open=”false”]Manuel Forjaz (economista), Henrique Pinto (Revista Cais).[/vc_toggle] height=”30″]

Fevereiro

height=”10″][vc_toggle title=”2013/02/24 – Retiro Aberto” open=”false”]Retiro Aberto na comunidade da Capela do Rato.[/vc_toggle] height=”30″]

Janeiro

height=”10″][vc_toggle title=”2013/01/27 – Retiro Aberto” open=”false”]Retiro Aberto na comunidade da Capela do Rato.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2013/01/23 – Encontros à Capela” open=”false”]A Fé, uma questão para crentes e não crentes: à conversa com frei Bento Domingues

Frei Bento e António Marujo (entrevistador)[/vc_toggle] height=”30″][/vc_tab][vc_tab title=”2012″ tab_id=”1409842873028-2-4″]

Dezembro

height=”10″][vc_toggle title=”2012/12/31 – Vigília da Paz” open=”false”]Vigília da Paz na Capela do Rato.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2012/12/25 – Advento / Natal 2012″ open=”false”][dt_cell width=”1/2″]

Anjo

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Maria

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José

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Estrela

Estrela

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Jesus

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Anjo (Crianças)

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Maria (Crianças)

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José (Crianças)

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Estrela (Crianças)

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Jesus (Crianças)

Jesus (Crianças)

[/dt_cell][/vc_toggle][vc_toggle title=”2012/12/16 – Retiro de Advento” open=”false”]Retiro de Advento na comunidade da Capela do Rato.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2012/12/06 – Luís Miguel Cintra lê “A Missa sobre o mundo“, de Teilhard de Chardin” open=”false”]Mais informações em www.snpcultura.org/luis_miguel_cintra_le_missa_sobre_o_mundo.html[/vc_toggle] height=”30″]

Novembro

height=”10″][vc_toggle title=”2012/11/21 – Encontros à Capela” open=”false”]A Fé, uma questão para crentes e não crentes: De que é que duvidam os crentes?

Maria da Glória Garcia (Reitora da Univ. Católica)

João Duque (Presidente do ISEG)

Paula Moura Pinheiro (Jornalista)

http://www.snpcultura.org/nova_reitora_universidade_catolica_portuguesa_capela_rato.html

http://www.snpcultura.org/paula_moura_pinheiro_exercicio_simples_arriscado_expor_duvidas_fe.html

www.snpcultura.org/joao_duque_entre_financa_conviccoes_fe.html[/vc_toggle] height=”30″]

Outubro

height=”10″][vc_toggle title=”2012/10/24 – Encontros à Capela” open=”false”]A Fé, uma questão para crentes e não crentes: Em que é que acreditam os não-crentes?

Maria Filomena Mónica (Socióloga)

Ricardo Costa (Jornalista SIC/Expresso)

Bernardino Soares (Deputado do PCP)[/vc_toggle] height=”30″][/vc_tab][vc_tab title=”2011″ tab_id=”1409842925666-3-10″]

Dezembro

height=”10″][vc_toggle title=”2011/12/31 – Vigília da Paz” open=”false”]Vigília da Paz na Capela do Rato.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/12/25 – Advento / Natal 2011″ open=”false”][dt_cell width=”1/2″]

Estrela

Estrela

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José

José

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Maria

Maria

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Jesus

Jesus

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Julho

height=”10″][vc_toggle title=”2011/07/14 – “Poéticas do viver crente“” open=”false”]O padre e poeta José Tolentino Mendonça apresenta a nova coleção das Paulinas Editora «Poéticas do viver crente», hoje, às 18h00, na Capela do Rato.

Vão ser lançados dois novos livros dessa coleção: «Atravessar a própria solidão» de Carlos Maria Antunes e «A caridade dá que fazer» de Luciano Manicardi.
O primeiro livro é apresentado por Conceição Moita e o segundo por Manuela Silva e após o lançamento há um concerto pela cravista Cândida Matos.

http://www.snpcultura.org/apresentacao_obras_poeticas_viver_crente.html

http://www.snpcultura.org/atravessar_a_propria_solidao.html

http://www.snpcultura.org/a_caridade_da_que_fazer.html

atravessarPropriaSolidao_capa

aCaridadeDaQueFazer_capelaRato_capa

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Junho

height=”10″][vc_toggle title=”2011/06/22 – Cinema do invisível” open=”false”]”O sabor da cereja”, de Abbas Kiarostami, filme escolhido pelo cineasta João Salaviza, seguido de uma conversa com o mesmo.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/06/19 – Oração para qualquer domingo” open=”false”]

oracaoQualquerDomingo(Clique sobre a imagem para fazer o download do postal em formato PDF)

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/06/17 – Pentecostes – Ilda David” open=”false”]Inauguração da obra de Ilda David

Ilda David

Paulo Pires do Vale

www.snpcultura.org/capela_rato_inaugura_obra_ilda_david.html

ildaDavid_pentecostes_capelaRato

[/vc_toggle] height=”30″]

Maio

height=”10″][vc_toggle title=”2011/05/18 – Filmes “Lá illusión te queda“ e “Os milionários“” open=”false”]”Lá illusión te queda”, de Márcio Laranjeira e Francisco Lezama

“Os milionários”, de Mário Gajo de Carvalho

http://www.snpcultura.org/filmes_premiados_igreja_catolica_no_indielisboa_exibidos_hoje.html

http://www.snpcultura.org/la_illusion_te_queda_vence_premio_igreja_catolica_indie_lisboa.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/05/10 – Cinzas, Paixão e Luz: Quaresma e Páscoa na Renascença Portuguesa – Concerto” open=”false”]Grupo d’Homini+

Concerto

http://www.snpcultura.org/cinzas_paixao_luz_quaresma_pascoa_renascenca_portuguesa.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/05/08 – Cinzas, Paixão e Luz: Quaresma e Páscoa na Renascença Portuguesa – Missa” open=”false”]Grupo d’Homini+

Concerto

http://www.snpcultura.org/cinzas_paixao_luz_quaresma_pascoa_renascenca_portuguesa.html[/vc_toggle] height=”30″]

Abril

height=”10″][vc_toggle title=”2011/04/24 – Postal da Páscoa” open=”false”]

pascoa2011_capelaRato

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/04/13 – Cinema e Espiritualidade II ” open=”false”]Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, seguido de debate com Maria José Fazenda (professora de antropologia da Dança), Rita Benis (investigadora na área de Cinema), João Miguel Amaro Correia (arquitecto), moderado por Margarida Avillez Ataíde.

www.snpcultura.org/o_evangelho.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/04/05 – Missa Explicada – A Eucaristia de A a Z” open=”false”]Pe. José Tolentino Mendonça[/vc_toggle] height=”30″]

Março

height=”10″][vc_toggle title=”2011/03/26 – “Atravessar a própria solidão“ – Retiro” open=”false”]Retiro aberto de um dia, orientado pelo Fr. Carlos Antunes.

retiroQuaresma2011_capelaRato

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/03/20 – Luís Miguel Cintra lê o Cântico dos Cânticos” open=”false”]www.snpcultura.org/luis_miguel_cintra_le_cantico_dos_canticos.html

http://www.snpcultura.org/luis_miguel_cintra_e_jose_tolentino_mendonca_apresentam_cantico_dos_canticos.html

www.snpcultura.org/luis_miguel_cintra_le_cantico_dos_canticos_2.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/03/16 – Cinema e Espiritualidade I” open=”false”]Pelas Sombras, de Catarina Mourão sobre a obra e a vida de Lourdes de Castro, seguido de debate com a realizadora Catarina Mourão, moderado por Inês Gil (investigadora na área de Cinema).

http://www.snpcultura.org/pcm_pelas_sombras_abre_ciclo_cinema_espiritualidade.html

http://www.snpcultura.org/pelas_sombras_noite_de_oracao_na_capela_do_rato.html

http://www.snpcultura.org/catarina_mourao_o_cinema_e_janela_para_transcendencia.html

http://www.snpcultura.org/pcm_pelas_sombras_delicado_inconvencional.html

http://www.snpcultura.org/id_lourdes_castro.html

http://www.snpcultura.org/pcm_pelas_sombras_luz_e_transparencia.html

http://www.snpcultura.org/pcm_pelas_sombras.html[/vc_toggle][vc_toggle title=”2011/03/09 – Quaresma 2011″ open=”false”]Fazer Quaresma para arriscar a Páscoa.

quaresma2011_capelaRato

[/vc_toggle] height=”30″]

Fevereiro

height=”10″][vc_toggle title=”2011/02/21 – Apresentação do livro “A palavra que leva ao silêncio“” open=”false”]A palavra que leva ao silêncio, John Main, Pedra Angular, 2011

Apresentação do livro pelo Pe. Laurence Freeman

http://www.snpcultura.org/vol_a_palavra_que_leva_ao_silencio.html

http://www.snpcultura.org/meditacao_aprender_estar_silencio.html

http://www.snpcultura.org/meditacao_o_mantra.html

http://www.snpcultura.org/meditacao_sermos_restituidos_a_nos_proprios.html

aPalavraQueLevaAoSilencio2011_capelaRato

[/vc_toggle] height=”30″][/vc_tab][vc_tab title=”2010″ tab_id=”1412171069373-4-2″]

Dezembro

height=”10″][vc_toggle title=”2010/12/31 – Vigília da Paz” open=”false”]Vigília da Paz na Capela do Rato.[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/12/25 – Advento / Natal 2010″ open=”false”][dt_cell width=”1/2″]

Estrela

Estrela

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José

José

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Maria

Maria

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Anjo

Anjo

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Manjedoura

Manjedoura

[/dt_cell][/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/12/11 – Dia de Retiro de Advento” open=”false”]Retiro em Alfragide[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/12/10 – Inauguração da obra “Anjo de Berlim“ ” open=”false”]Inauguração da obra “Anjo de Berlim” de Lourdes Castro e Manuel Zimbro, obra elaborada naquela cidade alemã, no Natal de 1978 e que ganha agora nova configuração.

O escritor Almeida Faria, que conviveu com os artistas nessa época, junta-se a Lourdes Castro e ao Pe. José Tolentino Mendonça na noite da inauguração para uma conversa rara e imperdível.

inauguracaoAnjoBerlim_capelaRato

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/12/10 – Postal “Anjo de Berlim“ ” open=”false”]

natal2010_oAnjo_postal_capelaRato(Clique na imagem para download do postal em versão PDF)

natal2010_oAnjo_convite_capelaRato

(Clique na imagem para download do convite em versão PDF)

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Novembro

height=”10″][vc_toggle title=”2010/11/27 – Advento 2010″ open=”false”]

advento_2010_capelaRato

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/11/25 – Lançamento do disco “Vento“” open=”false”]Lançamento do disco “Vento”, com a gravação da Missa de Pentecostes composta por João Madureira para a Capela do Rato e interpretada pelo consort de música antiga e contemporânea Sete Lágrimas. A apresentação do projecto contará com a presença de D. Carlos Azevedo (bispo da diocese de Lisboa), Filipe Faria e Sérgio Peixoto (Sete Lágrimas), de Manuel Pedro Ferreira (musicólogo), de Cristiana Vasconcelos Rodrigues ( professora da Universidade Aberta) e de João Madureira (compositor).

www.snpcultura.org/pcm_vento_missa_pentecostes_joao_madureira.html

http://www.snpcultura.org/missa_pentecostes_joao_madureira_estreia_se_em_concerto.html

http://www.snpcultura.org/missa_pentecostes_joao_madureira_sete_lagrimas_pura_beleza.html

lancamentoCD2010capelaRato

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/11/07 – Apresentação do livro “À procura das raízes hebraicas da fé cristã“” open=”false”]”À procura das raízes hebraicas da fé cristã”, de Nicoletta Crosti, Paulinas, 2010.

Apresentação do livro pelo Pe. José Tolentino Mendonça.

aProcuraDasRaizesHebraicas_capa

[/vc_toggle] height=”30″]

Outubro

height=”10″][vc_toggle title=”2010/10/31 – Luís Miguel Cintra lê o Eclesiastes” open=”false”]www.snpcultura.org/vol_luis_miguel_cintra_todo_o_artista_e_pregador.html

www.snpcultura.org/vol_luis_miguel_cintra_eclesiastes.html

www.snpcultura.org/pedras_angulares_luis_miguel_cintra_eclesiastes_2.html

www.snpcultura.org/pedras_angulares_luis_miguel_cintra_eclesiastes_3.html

luisMiguelCintra_eclesiastes2010_capelaRato

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/10/11 – Diálogo em tempo de escombros” open=”false”]D. Manuel Clemente e José Manuel Fernandes em Diálogo.

http://www.snpcultura.org/vol_dialogo_em_tempo_de_escombros.html

www.snpcultura.org/vol_dialogo_em_tempo_de_escombros_ao_vivo_1.html

www.snpcultura.org/vol_dialogo_em_tempo_de_escombros_ao_vivo_2.html

www.snpcultura.org/vol_dialogo_em_tempo_de_escombros_ao_vivo_3.html

www.snpcultura.org/vol_dialogo_em_tempo_de_escombros_ao_vivo_4.html

http://www.snpcultura.org/vol_dialogo_em_tempo_de_escombros_ao_vivo_5.html

dialogoEmTempoDeEscombros

[/vc_toggle] height=”30″]

Julho

height=”10″][vc_toggle title=”2010/07/04 – Apresentação do livro “A profundidade dos sexos“” open=”false”]”A profundidade dos sexos”, de Fabrice Hadjadj, Paulinas, 2010.

Apresentação do livro por José Tolentino Mendonça.

http://www.snpcultura.org/vol_a_profundidade_dos_sexos.html

aProfundidadeDosSexos_capa

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/07/01 – Postal “Rezar as nossas férias“” open=”false”]

rezarAsNossasFerias2010_capelaRato

(Clique na imagem para fazer download do postal em versão PDF)

[/vc_toggle] height=”30″]

Junho

height=”10″][vc_toggle title=”2010/06/26 – Luís Miguel Cintra lê o Apocalipse” open=”false”]http://www.snpcultura.org/vol_apocalipse_luis_miguel_cintra.html

www.snpcultura.org/pcm_luis_miguel_cintra_leu_livro_apocalipse.html[/vc_toggle] height=”30″]

Maio

height=”10″][vc_toggle title=”2010/05/23 – Diálogo Arte Contemporânea e Sagrado” open=”false”]Missa de Pentecostes

Apresentação da obra de João Madureira

www.snpcultura.org/pcm_capela_rato_estreou_missa_pentecostes.html

missaPentecostes2010_capelaRato(Clique na imagem para fazer o download do programa em versão PDF)

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/05/05 – Diálogo Arte Contemporânea e Sagrado” open=”false”]Sem árvores não se pode falar de árvores

Inauguração da obra de Gabriela Albergaria

Gonçalo M. Tavares

Vera Cortês

José Tolentino Mendonça

www.snpcultura.org/pcm_capela_rato_gabriela_albergaria.html

http://www.snpcultura.org/arquivo_umbrais_2.html#2010_05_09

arteContemporaneaSagrado_2010_capelaRato

(Clique na imagem para saber mais)

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/05/02 – Adília Lopes – leitura de poemas” open=”false”]www.snpcultura.org/pcm_poesia_antes_da_missa.html[/vc_toggle] height=”30″]

Março

height=”10″][vc_toggle title=”2010/03/27 – Retiro” open=”false”]Um dia de retiro com os escritos da Etty Hillesum[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/03/18 – Deus: questão para crentes e não-crentes” open=”false”]Assunção Cristas

Pedro Adão e Silva

Henrique Raposo

www.snpcultura.org/pcm_pedro_adao_silva.html

www.snpcultura.org/pcm_para_uma_cultura_da_cordialidade.html

[/vc_toggle][vc_toggle title=”2010/03/11 – Deus: questão para crentes e não-crentes” open=”false”]Alberto Vaz da Silva

Ricardo Araújo Pereira

www.snpcultura.org/pcm_alberto_vaz_silva.html

www.snpcultura.org/pcm_Deus_e_uma_questao_para_todos.html

www.snpcultura.org/pcm_ricardo_araujo_pereira.html

[/vc_toggle] height=”30″]

Fevereiro

height=”10″][vc_toggle title=”2010/02/26 – Diálogo Arte Contemporânea e Sagrado” open=”false”]Quando o Segundo Sol Chegar

Inauguração da obra de Rui Moreira

http://www.snpcultura.org/pcm_capela_rato_abre_dialogo_arte_contemporanea_sagrado.html

www.snpcultura.org/pcm_quatro_artistas_na_capela_do_rato.html

arteContemporaneaSagrado_2010_capelaRato_convite(Clique na imagem para ver o convite em versão PDF)

[/vc_toggle] height=”30″][/vc_tab][vc_tab title=”2009″ tab_id=”1412172152788-5-5″]

Dezembro

height=”10″][vc_toggle title=”2009/12/31 – Vigília da Paz” open=”false”]Vigília da Paz na Capela do Rato[/vc_toggle][vc_toggle title=”2009/12/25 – Advento / Natal 2009″ open=”false”]

postaisNatal2009_capelaRato_noticia

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Maria

Maria (Postal)

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José

José (Postal)

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Estrela

Estrela (Postal)

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Manjedoura

Manjedoura (Postal)

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Maria

Maria (Cartaz)

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José

José (Cartaz)

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Estrela

Estrela (Cartaz)

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Manjedoura

Manjedoura (Cartaz)

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[/vc_toggle] height=”30″][/vc_tab][/vc_tabs][/vc_column]”1/3″] height=”5″][vc_single_image image=”12899″ img_link_target=”_self” img_size=”373×200″ img_link=”https://www.capeladorato.org/o-fio-da-palavra/”] height=”30″][vc_single_image image=”12900″ img_link_target=”_self” img_size=”373×200″ img_link=”https://www.capeladorato.org/celebracoes/”]