Dezembro

2014/12/31 - Vigília da Paz

Vigília da Paz na Capela do Rato.

2014/12/28 - A família como lugar de reciprocidade (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Hoje é-nos dado, para contemplar, o ícone da Sagrada Família e desta família tão singular, que é chamada a viver, de forma tão inesperada, o mistério da vida e o mistério da salvação – como são todas as famílias. Nós podemos contemplar também o mistério da nossa própria família. Quer dizer, o mistério deste amor de Deus, que está inscrito em nós.

A família de Nazaré não é uma família tradicional, mas também não há famílias tradicionais, só no nome. Porque o que cada família é chamada a viver, o património de humanidade, de relação, a forma como cada família vive a sua história de júbilo, a sua memória, o seu desencontro, muitas vezes o seu conflito, a sua separação e, também, esta esperança que não se apaga no seu coração, a forma como cada família é chamada a viver isso está retratada na família de Nazaré.

Não há duas famílias iguais, mas cada família é chamada a viver o mesmo, é chamada a viver o mesmo tesouro. Nesse sentido, a família de Nazaré é uma inspiração muito grande, muito grande. Porque, naquela família, tudo foi ao contrário dos planos estabelecidos, todos foram obrigados a ter uma grande pobreza de coração, uma grande abertura ao que Deus revela, ao que Deus manifesta, e uma grande capacidade de fazer vida com aquilo que lhe era dado viver.

Ainda agora, neste Evangelho que lemos, Maria e José vão ao Templo cumprir as regras, cumprir as leis e a sua tradição, como as famílias fazem. É um momento de identidade que funda a própria família: levar o seu Filho ao Templo, agradecer a Deus, cumprir os ritos purificatórios dos antigos. Eles vão e, no Templo, têm uma grande surpresa, porque o que lhes é dito sobre o seu próprio filho leva-os a ficar espantados, eles não entendem.

Vemos, por exemplo, Maria. Maria, em grande medida, acompanha Jesus, é a mãe. Como todas as mães, ela sabe tudo acerca dele mas, ao mesmo tempo, tem de aprender tudo e tudo lhe escapa. O que é belo é ver como Maria está fielmente ao lado de Jesus, do princípio ao fim. Nós podemos dizer: “Maria entendeu tudo?” Intuitivamente, ela estava ao lado do filho, como todas as mães estão ao lado dos seus filhos. Mas, do ponto de vista da compreensão racional, ela não entendia o que estava a acontecer. Mas essa ignorância do outro não era para ela um obstáculo. Pelo contrário, ela foi fiel àquele filho sempre, sempre. Mesmo sem entender, ela foi capaz de acolher, de ser aquela que fomenta a hospitalidade, de ser uma referência.

Ao mesmo tempo José está ao lado deste filho de uma forma tão especial, tornando-o seu, descobrindo-o seu, transmitindo-lhe a vida, transmitindo-lhe os valores, ensinando-o, acompanhando-o. Temos menos informação acerca de S. José. S. Lucas opta por contar-nos a infância de Jesus a partir do olhar da mãe, de Maria. S. Mateus opta pelo olhar de José. Mas nós sabemos como José tem um papel muito importante na vida do seu filho e não poderia ser de outra forma. Se Jesus tinha dentro de si o Pai, que é Deus, também tinha este pai, carpinteiro de Nazaré, que com certeza lhe transmitiu, sem palavras, pelo exemplo, pelo testemunho, pelo contágio, pela relação, coisas tão vitais para a vida do próprio Jesus.

A família não é um lugar perfeito. A célebre primeira frase do romance de Tolstoi, Anna Karenina – “Todas as famílias felizes se parecem, as famílias infelizes é que são interessantes” – diz que, no fundo, a família é sempre um lugar de imperfeição, é sempre um lugar da crise, é sempre um lugar de uma grande pobreza. Se calhar nenhum de nós é tão pobre como no interior da sua própria família. Onde estamos completamente expostos, completamente vulneráveis, completamente dependentes uns dos outros, onde tudo ganha uma dimensão que, noutras situações, não ganharia nunca. Mas é ali, onde a gente parece que sabe tudo e chega ao interior da nossa família e não sabe nada, não consegue resolver e não consegue fazer, é esta pobreza que diz também muito da nossa verdade. Esta pobreza é a força da própria família, é a força da família.

O que dá a força à família não é ela ser blindada, não é ela ser um couraçado. É ela, ao mesmo tempo que é atravessada pela realidade da vida, na força dos laços afetivos, na força de uma confiança inquebrável, ela ser, de facto, uma amarra que parece muito ténue. Mas nós sabemos que é uma amarra decisiva para a construção da nossa humanidade e da nossa vida espiritual, para a nossa vida espiritual.

Mesmo hoje, numa sociedade onde, cada vez mais, o encontro com Deus se faz por iniciação e não por imersão numa determinada família, a verdade é que muitos adultos chegam ao catecumenado, pedem para ser batizados ou crismados numa vida adulta, não tiveram nenhuma iniciação no interior da sua família, mas tiveram pessoas de família que lhes testemunharam. Às vezes é uma avó que, na sua simplicidade, na sua verdade doutro tempo, de outra geração, vive com verdade a sua fé, que depois contagia uma neta, completamente diferente dela, mas que vê, na referência daquela mulher, uma luz para a sua própria vida. De maneira que a família é, de facto, também, o grande motor da transmissão da fé.

A revista francesa L’Express deste Natal trazia uma imagem que não esperávamos ver numa revista francesa: uma família numerosa e diversa, com o título: “O triunfo da família”. E dizia que, nos anos setenta, era moda dizer: “Eu odeio a família.” Porque a família era o grande impedimento para a verdade individual, para a afirmação individual. Era uma família burguesa, impunha valores que eram contrários à aspiração de liberdade dos sujeitos. Hoje, passado meio século, percebemos precisamente o contrário: que, se há lugar onde a experiência de liberdade, a experiência de reconhecimento do que se é, verdadeiramente acontece, é no seio da família. E, nesse sentido, hoje, há uma redescoberta da própria família, e da necessidade da família.

A Igreja está acompanhar, muito de perto, a situação da família. Este sínodo, duplo, que começou em outubro passado, e que acabará no próximo outubro, em que o Santo Padre quer fazer o elogio da família, mas ir ao encontro, também, daquilo que é hoje a realidade da família. Tentando, no fundo, ajudar-nos a perceber como a família continua a ser, e é chamada a ser, um lugar fundamental, um alicerce. Um alicerce, também, para a invenção de nós próprios, para a reinvenção da nossa própria vida.

É interessante que nós encontramos, sobretudo nos textos de S. Paulo, que é o primeiro teólogo do cristianismo, algumas coisas que existiam no seu tempo, na cultura greco-romana, onde também existiam famílias. Porque a família não é um monopólio dos católicos, a família é uma grande causa humana, é um grande património humano e nós, católicos, unimo-nos a todos os homens e mulheres da terra, porque todos nós nascemos no interior de uma família. Muitas vezes se identifica a causa da família com o chamado “povo católico”, mas a causa da família é antes de tudo uma causa humana, completamente transversal. No fundo, o que a Igreja faz é unir-se a esta grande batalha humana pela defesa, pela afirmação e, ao mesmo tempo, pela descoberta. Porque a família não é uma ideologia, a família é uma experiência vital e uma experiência de todos.

S. Paulo vai buscar códigos familiares que já existiam e vai traduzi-los em linguagem cristã. Por exemplo, nesta Carta aos Colossenses – que já não foi escrita por Paulo, é posterior a ele – encontramos um código de conduta familiar que encontramos também nos filósofos estoicos e em algum Direito Romano, e que diz o seguinte: “Esposas, sede submissas aos vossos maridos como convém ao Senhor. Maridos, amai as vossas esposas e não as trateis com aspereza. Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, porque isto agrada ao Senhor. Pais, não exaspereis os vossos filhos, para que não caiam em desânimo.”

É claro que este código familiar, escrito no século primeiro depois de Cristo, isto é, há dois mil anos atrás, tem uma linguagem que hoje sentimos que está ultrapassada. Hoje, não falaríamos assim. Não é justo agarrarmo-nos às palavras quando o fundamental é percebermos o que está aqui em jogo. E o que está em jogo, no primeiro cristianismo, é afirmar a família como lugar de reciprocidade.
A grande novidade neste código não é que as mulheres sejam submissas aos seus maridos. Qualquer código e qualquer prática daquela época dizia isso. A mulher tinha de estar submissa, nem era preciso ser escrito. O que é que é novo neste código? É o segundo termo: “Maridos, amai as vossas esposas e não as trateis com aspereza.” Isto é, este estabelecimento de uma reciprocidade de deveres, no interior da relação conjugal, é que é uma coisa completamente nova. Porque, quem tinha deveres para com o homem, era a mulher, que era uma coisa do homem. Mas o homem não tinha nenhuns deveres para com a mulher. Este amor, que o homem é chamado a ter à mulher, é uma coisa que, ao mesmo tempo, subverte e alarga os códigos familiares daquela época.

O mesmo em relação aos filhos: “Filhos, obedecei aos vossos pais.” Os filhos eram propriedade dos pais, mesmo a nível económico. Mas o contrário – “Pais, não exaspereis os vossos filhos, para que não caiam em desânimo” – é uma coisa nova, é criar uma nova qualidade de relações. É isto que temos, queridos irmãs e irmãos, dois mil anos depois, de continuar, a dar qualidade de amor, qualidade de verdade às relações familiares, para que não se tornem relações de poder, relações de manipulação, para que não enfraqueçam a sua qualidade de amor.

Sabemos que é tão fácil isso acontecer, é tão fácil habituar-nos à nossa família como nos habituamos à mobília da nossa casa. Já não há vida ali a circular. Há apenas um hábito, apenas rotina, a sonolência. Ora, é preciso investir numa nova qualidade de amor autêntica, funda, as nossas relações familiares. Para que a nossa família, de facto, tenha um projeto e não seja simplesmente um caminhar à vista, mas tenha uma finalidade, tenha um objetivo.

Nesse sentido, a nossa família tem de estar sempre em estado de conversão, em estado de alerta, em estado de atenção, perguntando pela qualidade da vida que ela alberga no seu seio.

Queridos irmãos: que a família de Nazaré seja uma família modelo para nós. Mesmo no que ela tem de único e que funda também as nossas famílias como famílias únicas, como famílias que não têm outras iguais. Mas aquela qualidade de amor, aquela vida, aquela verdade seja também o que levamos para o interior da família que, dia à dia, hora à hora, nós construímos.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo da Sagrada Família

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2014/12/25 - Advento / Natal 2014

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Domingo I do Advento

Domingo I do Advento

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Domingo II do Advento

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Imaculada Conceição

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Domingo III do Advento

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Domingo IV do Advento

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Domingo I do Advento (Crianças)

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Domingo II do Advento (Crianças)

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Imaculada Conceição (Crianças)

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Domingo III do Advento (Crianças)

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Domingo IV do Advento

2014/12/25 - No princípio era o desejo de comunicar (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Pensemos no olhar, que é tão importante nas leituras que ouvimos. O nosso olho é uma máquina extraordinária, sofisticadíssima, que nos permite este milagre que é estarmos perante os outros, extasiarmo-nos com a beleza do criado. Os nossos olhos são, contudo, limitados. Hoje, a ciência mostra-nos como tantas coisas escapam ao nosso olhar. Basta colocar uma lente um bocado maior ou um microscópio, para podermos fazer viagens e ver coisas que, com os nossos olhos, nos são completamente invisíveis.

Isto quer dizer o quê? Quer dizer que não existe apenas o que vemos, que esta máquina prodigiosa que é o nosso olhar é uma máquina à nossa medida. Isto é, à medida de seres limitados, frágeis, que da realidade têm uma parte fabulosa, colossal, mas não têm tudo. Nós não dominamos tudo da realidade. Muitas coisas existem, muitos seres existem, que simplesmente nós não vemos.

Quando S. João diz, com toda a verdade, no Evangelho “ a Deus nunca ninguém o viu”, não quer dizer que Deus não exista. Quer dizer que, na nossa humanidade, nós não conseguimos apreender o mistério de Deus. Deus está para lá dos nossos sentidos, para lá da nossa razão. Nós não conseguimos mas, por não o vermos, não quer dizer que Ele não exista. Não, Deus existe e, contudo, nós nunca o vimos.

O que é que se passa no Natal? O que é que se passa com este mistério da encarnação? Não é que Deus desminta o invisível, porque o invisível continua a ter o seu valor, não passa a existir só o que nós vemos, não é apenas este o único regime da existência. Não, há muitas existências que nós ignoramos, que nós não vemos simplesmente, mas Deus quis que nós o víssemos. E este é que é o milagre do amor, que nós celebramos no presépio: Ele tomou a nossa carne e habitou entre nós. Com estes olhos, nós vimos o próprio Deus, vimos o Seu esplendor e tateamos o Seu rosto. Ele esteve no meio de nós. Por isso, o mistério da incarnação que nós celebramos no Natal não torna Deus credível, no sentido que Deus é credível como é: transcendente, imortal, omnipotente, para lá das nossas possibilidades sensoriais. Mas torna o amor de Deus, eu diria, desvairadamente credível.

Porque este Deus infinito quer ser finito, para que eu acredite nesse amor, para que eu, na minha pequenez, na minha fragilidade, me sinta integralmente amado por esse amor, me sinta absolutamente abraçado pela humanidade de Jesus. Deus não precisava de se tornar homem para existir, para ser em Deus, mas para que nós sentíssemos o quanto Ele nos amava. Nós é que precisávamos, nós é que precisávamos de um Deus que nos olhe, olhos nos olhos, de um Deus que tome a nossa carne, que habite esta mistura de contradição entre sonho e sangue, entre noite e dia, entre dor e júbilo. Nós precisávamos que Ele fosse um de nós, que Ele tomasse a nossa condição. Nesse sentido, o amor de Deus torna-se espantosamente credível, porque nós podemos tocá-lo, podemos contemplá-lo.

S. João diz: “No princípio era o Verbo.” Era o logos, que é uma palavra grega que quer dizer muitas coisas e é muito difícil de traduzir. Mas talvez a verdadeira tradução tenha de ser dinâmica. Não é: “No princípio era o Verbo” ou “No princípio era a Palavra”. Mas é: “No princípio era o desejo de comunicar.” No princípio é o desejo que Deus tem de comunicar connosco, de entrar na nossa vida, de bater à nossa porta, de entrar dentro do que somos.

Queridos irmãos: é um mistério que nos deixa sem palavras, é um mistério que nos comove, é o grande mistério da nossa vida podermo-nos abeirar de uma cena como a do presépio e sentir que aquele que está ali, que podia ser eu, que é igual a mim, que é como eu, é o filho de Deus. E que este milagre espantoso acontece por meu amor, para que eu acredite, para que eu confie, para que eu vença o meu desânimo, a minha fragilidade, para que eu suba, para que eu eleve o meu olhar, para que eu viva a minha humanidade como lugar onde eu experimente a salvação e não a condenação apenas, não a morte apenas.

O Natal entrega-nos um Verbo para a vida, para todos os dias do ano, para cada hora que vivemos. E esse verbo é o verbo nascer. É um verbo que, normalmente, colocamos no princípio da nossa vida e, depois, parece que só nascemos uma vez. Ora, o Natal confia-nos o verbo nascer como um programa de vida, como um mapa que nos é dado. E o Menino nasce e diz a cada um de nós: “Agora tu, nasce.” “- Ah, mas eu tenho 80 anos, vou nascer? Ah, mas eu estou a meio da vida, vou nascer? Ah, mas eu já nasci, vou nascer?” “- Agora nasce.”

E nasce como? “Não da carne, nem do sangue, nem da vontade do homem.” Mas agora nasce de Deus. Agora sabe que és filho de Deus, agora torna-te filho de Deus.”

É este mistério, queridos irmãos, que de forma tão funda, para lá das próprias palavras, acontece na vida de cada um de nós.

Sintamos que, a cada um de nós, o Menino diz: “Agora tu nasce, agora tu nasce, agora tu nasce.” Que nós acreditemos que aquela manjedoura é a manjedoura de todos nós e que naquela manjedoura, e naquele Menino, está esta nossa humanidade, representada tal como é, sem coloridos, sem ornamentos, sem idealizações. Está a nossa humanidade tal como é. Mas é a nossa humanidade salva, redimida pelo Divino.

Pe. José Tolentino Mendonça, Missa do Dia do Natal do Senhor

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2014/12/24 - Um Menino nasceu para nós (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Porque é que nós estamos aqui, nesta noite? O que é que nos junta uns aos outros? O que é que nos aproxima destas palavras, destes ritos? O que é que este mistério, hoje, traz à nossa vida? O que é que nos move? O que é que buscamos nesta relação? O que é que esperamos? Qual é a pergunta e a expectativa que o nosso coração acendeu, ao longo deste Advento?

Queridos irmãs e irmãos, de que Natal nós estamos à espera?

Hoje, o próprio céu se rompe, e há uma palavra que se escuta: “Nasceu-vos, em Belém da Judeia, um Salvador.”

A única razão, válida, para estarmos aqui, é esta: nós precisamos de um Salvador. A nossa vida, a experiência que fazemos da nossa vida em qualquer idade, é esta. Cada um de nós precisa ser salvo, a nossa vida precisa ser resgatada. Porque, senão, a nossa vida é um inacabamento, a nossa vida é um aberto, é uma pergunta sem resposta. A nossa vida é bater a uma porta que continua fechada, a nossa vida é gritar a um céu que não se abre, é uma travessia na noite, sem esperança de uma aurora.

Nós precisamos de um Salvador e estamos aqui não a fazer de conta que precisamos e nem a fazer de conta que nasceu. Nós estamos aqui porque Deus nos deu um Salvador. E deu, a cada um de nós, este Salvador que toma a nossa carne, que abraça a nossa condição, que vive a partir do nosso sangue e da nossa alma, do nosso alento, que pisa este mundo, que vibra com ele, que sofre, que é ferido, também pela própria existência.

Ele é o nosso Salvador, porque Ele mostra-nos, Ele vem mostrar-nos que é possível. Ele vem mostrar-nos como Deus não é um amor intangível, mas que Deus nos ama com um amor no qual podemos confiar, podemos acreditar. Ele vem para resgatar, para rematar, para dar sentido, para iluminar, para tirar a nossa vida da escuridão, Ele vem para nos salvar.

“Hoje, em Belém da Judeia, nasceu-vos um Salvador.” Nós estamos a dois mil anos desta palavra e estamos tão longe da Judeia, mas sabemos que hoje, nesta noite de 2014, neste lugar onde estamos, esta Palavra é uma verdade para cada um de nós: nasceu o nosso Salvador. E cada um, no seu coração, pode dizer: “ Hoje nasceu o meu Salvador.”

A nossa vida não só vale mais, como se transforma noutra coisa. A nossa vida, finalmente, ganha um sentido, ganha uma força, ganha aquele entusiasmo que só Deus é capaz de trazer, de colocar. Ganha a fé, ganha a esperança, ganha a caridade, que é o dom do próprio Deus, derramado nas nossas vidas.
Hoje nasceu, para cada um de nós, um Salvador. E, por isso, a nossa vida não é só indecisão, não é só este balanço entre o bem e o mal, entre o que queremos e o que não conseguimos, entre tanta coisa, dentro e fora de nós.

A nossa vida não é só isto. Hoje nasceu-nos um Salvador.

No Profeta Isaías e no Evangelho de Lucas, que hoje lemos, há como que uma desproporção na forma como esta verdade nos é apresentada. Lucas, por exemplo, diz: ”O mal será erradicado, todo o vestuário de guerra será ultrapassado, será deixado para trás, toda a violência se extinguirá como fogo na cinza da esperança, tudo isso passará.”

– Como?, perguntamos nós.

– “Porque um Menino nasceu para nós. Um filho nos foi dado.”

Se nos viessem dizer “arranja uma solução para acabar com a violência no mundo”, nós pensávamos numa superpotência, maior que as superpotências atuais, que pudesse pôr cobro, que pudesse pôr ordem nisto. Ora, Deus atua de uma forma absolutamente desconcertante, absolutamente paradoxal, porque não vence a força pela força, não vence a violência pela violência, não vence a guerra com mais guerra.

“Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.” E a mesma coisa nos é relatada no Evangelho de Lucas: “Isto vos servirá de sinal. Encontrareis um menino, deitado numa manjedoura.” O que é que este sinal nos quer dizer? Quer dizer duas coisas, fundamentais, e essa é também a mensagem do Natal:

Nós pensamos que estamos em agonia. Que o nosso mundo está a morrer, que nós próprios estamos condenados à morte, que tudo, no fundo, vai passar, que tudo foi um lugar onde experimentamos alegria e dor, mas tudo isto é para morrer. E o Menino é o símbolo do nascer. Então, nós não somos as testemunhas de uma agonia, estamos aqui para ser testemunhas de um parto, para sermos testemunhas de um nascimento. De um nascimento que não é só o daquele Menino, mas é o nosso próprio nascimento, é o nascimento do mundo. Estamos aqui para sermos cúmplices e para vivermos como cúmplices do nascimento, do nascer, e para olharmos para o mundo não como uma coisa condenada a morrer mas como uma coisa chamada a renascer. Para olharmos para a nossa própria vida não como um crepúsculo, mas como um amanhecer, como uma aurora, como um nascimento.

A segunda coisa diz-nos, no testemunho de Isaías: “Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi dado.” E em Lucas: “Isto vos servirá de sinal. Encontrareis um recém-nascido deitado numa manjedoura.” O segundo argumento é: acreditarmos mais na potencialidade que tem a vida frágil, a vida nua. Porque Deus não nos dá mais nada, dá-nos uma vida nua, dá-nos uma vida estreme, dá-nos a vida na sua condição mais pequena, Deus dá-nos a vida mínima, Deus dá-nos a vida que estremece, a vida que apenas nasce, a vida sem retoques, sem ornamentos, a vida, a vida. Deus dá-nos a vida. E diz: “Acredita, acredita, acredita no poder que esta vida tem, que esta vida tem em Jesus, e que esta vida tem em ti. Acredita, acredita.”

Nós colocamos a nossa confiança em tantos cavalos errados… Acreditamos que o mundo vai mudar se houver isto e aquilo, se houver aqueloutro. E acreditamos que vamos mudar, nós próprios, se houver esta condição ou outra, ou aqueloutra. E a verdade é que nunca nada acontece. Falta-nos dar valor à vida pequenina, ao gesto mínimo, àquilo que apenas nasce, ao rebento e não à flor, à aurora e não ao meio-dia, àquilo que apenas é esboçado, àquilo que está escrito a lápis, àquilo que é fragilíssimo… Percebermos o vigor disso, percebermos como a vida frágil é uma alavanca para a nossa transformação e para a transformação do mundo.

Queridos irmãs e irmãos, o que é que nós viemos aqui fazer? O que é que nós estamos a celebrar? O que é que viemos buscar? Penso que, no fundo do nosso coração, a viagem que aqui fizemos para chegar a este lugar foi uma viagem feita pelos nossos pés, mas é sobretudo feita pelo nosso coração. Viemos aqui buscar esta confirmação que Deus faz, de que está connosco, que Ele é o Deus connosco, e que nós podemos acreditar nisto que desponta, Neste que nasce, naquilo que irrompe, na emergência da vida, da palavra, do sinal. É tudo muito frágil, é tudo muito pequenino, dura apenas uma noite, dura apenas um dia, mas a mensagem, segredada ao nosso coração, é esta: Acredita, acredita, acredita.

Pe. José Tolentino Mendonça, Missa do Galo

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2014/12/21 - Natal, erupção da vida nova (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Hoje, a primeira leitura ilumina o que acontece em cada Natal, que é uma espécie de reviravolta, de volte-face. Nós estamos empenhados em preparar a vinda do Senhor, em preparar-Lhe, simbolicamente, um espaço que se torne uma parábola do grande acolhimento, da grande hospitalidade à qual nós estamos dispostos e dizemos: “Maranatha, vem Senhor Jesus”.

Abrimos as casas, encontramos um lugar dentro delas, preparamos formas diferentes no tráfico dos nossos dons, das palavras, dos sentimentos, dos votos, dos desejos. Encontramos, na nossa vida, um modo de Deus chegar. Estão as portas todas abertas, é o quarto domingo do Advento. A contagem decrescente começou e, então, dá-se a reviravolta, o volte-face que é Aquele que o Senhor Deus diz ao rei David que tem um papel tão emblemático na expetativa messiânica. O Senhor diz-lhe: “David, não és tu que Me preparas uma casa, sou Eu que preparo uma casa para ti.”

Queridos irmãs e irmãos: nós não mergulhamos, profundamente, no mistério do Natal se não acolhemos esta reviravolta no nosso coração. Não somos nós que preparamos um presépio para Deus nascer, é Deus que prepara o lugar, é Deus que prepara a possibilidade, as condições dum renascimento de cada um de nós. Jesus é o Deus que se torna homem, para que o homem e a mulher que somos se possam tornar divinos, se possam divinizar. Ele nasceu para potenciar os nossos nascimentos.

Nós podemos perguntar como Maria: “Mas como será isso, se eu não vejo essas possibilidades?” Que o menino possa nascer, simbolicamente, na minha casa, eu acredito, mas que a minha casa toda, e o que ela significa, possa renascer, eu não vejo como. Que eu, pessoalmente, me possa revestir e preparar e abrir as portas para o Deus connosco vir, isso eu percebo; mas que eu possa, na minha rigidez, nos meus entraves, nos meus dilemas, no caminho que estou a fazer, que eu possa, verdadeiramente, recomeçar e renascer, não vejo como, não vejo como.

E a palavra do Anjo, a dupla palavra, é, de facto, a grande palavra de Natal: “Não temas! Não temas!” Isto é, não desanimes, não penses que não é para ti: “Não temas, o Espírito Santo virá em teu auxílio. A sombra do Altíssimo te cobrirá.” E o mistério que acontece na nossa vida humaníssima, na nossa vida fragilíssima, é ação do próprio Deus. É Ele quem pode renovar, é Ele quem pode transformar as nossas vidas, é Ele que pode fazer acontecer, dentro de cada um de nós, esse Natal, essa erupção da vida nova, cintilante, essa possibilidade de uma esperança maior do que aquela que somos capazes, é Ele que pode acender isso em nós.

O que é este novo nascimento? S. Paulo diz o que é, com uma palavra só, que é uma das palavras mais importantes desse texto maior da memória cristã que é a Carta aos Romanos, que hoje lemos. Ele diz: “O grande mistério, revelado, esperado desde sempre e agora revelado é este: Deus Pai confirma-nos.”
Uma palavra só: “Confirma-nos”. Deus confirma-nos. O que é o Natal? O que é o Natal 2014, que estamos prestes a celebrar? É esta confirmação que cada um de nós tem, que é chamado a sentir dentro de si, de que é confirmado por Deus, confirmado como filha, como filho amado, como filho e filha queridos, em quem Deus coloca todo o Seu amor.

Deus confirma-nos. Deus confirma-nos e a nossa vida passa a valer mais. Porque não é só o que somos, não é só o que conseguimos, não é só o que trazemos, não é só o que arrastamos vida fora, não é só isso. É o olhar de Deus pousado na fragilidade que eu tenho, que eu sou. É o olhar de Deus em mim, que me confirma, muitas vezes para lá das próprias evidências, e contrariando-as. É esse olhar de Deus que me confirma, contra toda a Esperança. Deus confirma-me, e diz: “Tu és a minha filha, tu és o meu filho.”

Essa certeza do amor de Deus depositado, mostrado, por Jesus, face a face, na nossa história, essa certeza indefetível desse amor que não falha, desse amor no qual nós podemos confiar. Deus é um Deus credível, o Deus connosco é um Deus credível, no qual um homem e uma mulher pode acreditar. Nós acreditamos nesse amor, e acreditamos que esse amor é-nos dado como fundamento, como pedra angular, como razão, como possibilidade, como manjedoura onde nós nascemos.

Queridos irmãos, nós temos de olhar para os nossos dias e sentir isso: não somos nós que estamos a construir uma manjedoura, é Deus que faz do tempo da nossa vida, deste tempo onde estamos, deste aqui e agora, o lugar da nossa confirmação, o lugar do nosso nascimento. Abramos por isso o nosso coração em alegria.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo IV do Advento

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2014/12/14 - A arte de fazer a alegria (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Tomemos esta afirmação de João Batista para nos ajudar a aprofundar a palavra da liturgia deste domingo: “No meio de vós está Alguém que não conheceis.” É uma frase enigmática, um pouco surpreendente, desconcertante. Mas, ao mesmo tempo, é uma chamada de atenção para a nossa vida.
“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Porventura, a parte mais significativa das nossas vidas está submersa à nossa própria consciência. Está lá, mas nós não vemos. Está connosco, mas não nos damos conta, já está no meio de nós mas ainda não fazemos disso o motivo da nossa esperança, o motivo da nossa alegria.

“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Se à nossa vida falta, tantas vezes, aquela porção de alegria que a tornaria alguma coisa que valha realmente a pena aos nossos olhos, aos olhos dos outros, se muitas vezes é tão mais fácil nos afundarmos na lamentação, se tantas vezes olhamos obsessivamente para o copo meio vazio e não para aquilo que já temos, para o que já está connosco, para aquilo que já nos é dado, é precisamente por isto: porque está connosco, no meio de nós, isto é, cravado no meio do nosso coração, da nossa vida, Alguém que nós não conhecemos, ou vivemos não fazendo caso, ou vivemos como se não O conhecêssemos.

“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” Neste Domingo da Alegria, o grande desafio é descobrir aquilo que já está colocado em nós, aquilo que nos habita. Porque nós só seremos discípulos e discípulas da alegria, só rejubilaremos, só sentiremos que as nossas entranhas rejubilam da alegria, como diz o profeta Isaías a propósito do Messias, se tomarmos consciência daquilo que já nos habita, do que já temos, daquilo que já está connosco.

O que exaspera a nossa vida é o sentimento de falta, de nunca conseguirmos. Falta sempre alguma coisa, nunca nada é perfeito, nunca nada está acabado, nunca nada está resolvido. Falta-nos sempre um instrumento: se temos o poço, falta-nos a corda; se temos a corda, falta-nos o balde; se temos a corda, o balde e o poço, falta-nos a força de ir até ao fundo da nascente buscar a água que nos dessedente. Falta-nos sempre alguma coisa.

Nessa narrativa espiritual tão intensa que é O Principezinho, de Saint-Exupéry, ele explica que não nos falta nada. Não nos falta nada. Já está tudo. Cada um de nós tem tudo o que precisa para experimentar hoje, no aqui e no agora, a alegria. Temos tudo o que precisamos.

“No meio de vós está Alguém que não conheceis.” O nosso problema em relação à alegria não é de a inventarmos, de a buscarmos, de precisarmos de descobri-la sabe-se lá onde. Não, é um problema de conhecimento, é um problema de olhar. Olharmos para a vida, olharmos para o que somos, olharmos para o que nos rodeia de uma outra forma, com um coração agradecido, com um coração capaz de perceber aquilo que o habita.

No texto do Profeta Isaías que hoje lemos e que Jesus vai ler na sinagoga da sua terra, Nazaré, diz: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar, para dar vista aos cegos, para libertar os prisioneiros, para anunciar um ano da graça.” E depois disto, diz: “Por isso eu me alegro no Senhor.” Então, a alegria não é uma coisa externa a nós nem é uma invenção que cada um de nós é capaz de fazer: a alegria, antes de tudo, é um dom, um dom que nós recebemos. É porque o Espírito nos habita que nós somos capazes da alegria. É porque esse dom de Deus é derramado em nós e nos dá uma capacidade que nós não temos! Mas é essa capacidade de Deus em nós e é na medida em que nós reconhecemos o dom de Deus na nossa vida, em que reconhecemos aquilo ou Aquele alguém que já está no meio de nós, que nós somos capazes da alegria.

É muito belo o discurso, esta conversa de João Batista com as autoridades de Jerusalém:
“-Tu és o Messias?
– Não.
-Tu és Elias?
– Não.
-Tu és o profeta esperado?
-Não.”

Nós, muitas vezes, pensamos que a alegria é uma espécie de consequência de sermos, ou de conseguirmos, ou de obtermos. João Batista não é nada: não é o Messias, não é Elias, não é o profeta. Isto é, não tem nenhuma tentação messiânica, não acha que é o que não é, não se inspira nele próprio.

“- Não sou. Não sou. Não sou.
– Então porque é que batizas, se não és?
– Eu batizo com água, eu preparo o caminho para alguém que virá depois de mim. E eu não sou digno desse que virá depois de mim.”

Que modelo maravilhoso de vida, que modelo maravilhoso de vida para nós. Uma máquina de infelicidade é vivermos cheios de nós, vivermos angustiados porque não somos, porque não conseguimos, porque não somos o Messias, porque não resolvemos tudo, porque não, porque não. Só quando morremos para esse tipo de ambição, só quando deixamos de lado essas exigências exageradas e perturbadas do nosso eu é que verdadeiramente começamos um caminho espiritual. Um verdadeiro caminho para a alegria começa por dizer:

“ – Eu não sou. Eu não sou o Messias, eu não sou a fábrica da alegria, eu não tenho a solução mágica, eu não consigo. Eu não.
– Mas então o que é que tu fazes?
Eu ponho-me como uma sentinela, eu coloco-me na iminência, eu preparo os corações, eu uso água, não uso fogo.”

Isto é: “Eu uso o que posso, eu uso o quotidiano, eu uso os instrumentos da vida, eu uso a sua banalidade, a vida pequena, eu batizo com água, mas sei que sou uma sentinela da aurora, sei que estou à espera dum Senhor, sei que estou à espera do grande Rei. E, nesse sentido, eu não valho por mim mesmo, eu valho por aquilo de que estou à espera, eu valho pela porção de futuro que me habita. A minha vida não é apenas o que eu vivi. Às vezes começamos a fazer contas ao que vivemos e é uma solidão muito grande.

Ainda ontem encontrei uma pessoa, que veio ter comigo: “Eu estou numa solidão enorme, olho para a minha vida e acho que falhei em toda a linha.” E eu disse: “Bem-vindo ao clube, meu irmão, porque eu estou exatamente como tu.”

O que é que dá sentido à vida? Não é o que fizemos. Só um ingénuo fica completamente feliz com aquilo que fez e não percebe que devia ter feito o triplo, cem vezes mais. Então o que é que nos redime? O que é que nos salva? O que é que nos enche o coração? É colocarmo-nos na fronteira de um futuro que seja maior do que nós. É percebermos que somos servos daquele que virá, que o momento mais importante não foi este presente, mas é este presente a trabalhar pela tensão de um futuro muito maior.

“Eu batizo com água, mas virá Aquele que batizará com o Espírito Santo e com o fogo.” E, nesse sentido, nós somos servidores do futuro, estamos a antecipar o futuro, fazemos pequenas coisas, sinalizamos com os nossos gestos de amor, de criatividade, sinalizamos Aquele que virá. E quando nos colocamos assim, a vida torna-se outra coisa.

Ainda sobre a alegria, lembro-me de uma coisa que li e uma coisa que ouvi. Uma coisa que ouvi foi o Miguel Esteves Cardoso a dizer: “O maior pecado é não nos alegrarmos com as alegrias dos outros.” Isso fez-me pensar porque, mesmo se facilmente choramos com as dores dos outros, é mais difícil alegrarmo-nos com as alegrias dos outros. E isso pede de nós um trabalho de habitar esta fronteira, de não querer ser, mas habitar esta fronteira esperando Aquele que será maior do que nós. Pede uma humildade muito grande e uma solidariedade pela positiva. Porque é muito importante que sejamos solidários nos momentos difíceis, mas é muito importante ser solidário nos momentos de alegria, nos momentos de êxito, nos momentos de sucesso, alegrarmo-nos com as alegrias dos outros.

E há outra coisa que Chesterton ensina tão bem. Ele diz: “O cristão é o mais alegre dos homens.” E é o mais alegre porquê? O cristão, em relação às pequenas coisas da vida, até pode ser triste, e pode viver uma existência triste mas, em relação às coisas grandes da vida, é habitado por uma alegria que nada derruba. Ele diz: “Aqueles que não acreditam até podem viver uma vida onde se alegram, mas, quando pensam na eternidade, quando pensam na morte, o seu coração inevitavelmente enlutece, entristece.” Por isso, a nossa alegria também não é deste mundo, e precisamos de saber isso, perceber o que é que isso significa na nossa vida porque, porventura, a coisa mais importante é nos sentirmos nómadas, nos sentirmos itinerantes, nos sentirmos em viagem.

Quando pedem a João Batista para explicar o que é que ele é – “Então o que é que tu és?” –, Ele responde: “Eu sou a voz do que clama no deserto, endireitai o caminhos do Senhor.” É esta a nossa tarefa: nós somos chamados a endireitar a via do Senhor, aquela via que atravessa o deserto, e a fazer disso a razão da nossa alegria.”

Queridos irmãs e irmãos, sintamo-nos responsáveis pela alegria. Estamos perto da refeição mais importante do ano nas nossas famílias. Fazemos viagens, vem gente de longe, estamos todos à volta. E, claro, é preciso ter o que se coma, ter as coisas boas que assinalam, pela tradição, a memória, a história da família, as coisas da nossa infância. E esse reencontro é tão estruturante, é tão importante. Mas não é apenas a mesa, a decoração, que tem de ser a mais bela. E não é o conteúdo que tem de ser o mais saboroso, ainda não é isso. O importante é que a alegria circule de coração a coração. Nós temos de ter esta arte, esta capacidade, porque uma mesa de Natal também pode ser uma máquina de fazer solidão, de ampliar a solidão, de ampliar o desencontro. E, nesse sentido, é-nos confiada esta tarefa de aprender a fazer a alegria, como com duas pedras se faz o fogo, com dois corações se faz a alegria. Aos cristãos é pedida esta arte de fazer a alegria. Se pudermos juntar outras artes, tanto melhor, mas não deixemos que esta arte, que é uma arte profundamente espiritual, esteja ausente da nossa vida.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo III do Advento

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2014/12/11 - Luís Miguel Cintra lê "Os Portais do Mistério da Segunda Virtude", de Charles Péguy
2014/12/10 - Percurso de Preparação para o Crisma

Mais informações aqui.

2014/12/08 - Colocar os olhos na Graça original (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

O Livro do Génesis, que hoje lemos no contexto da grande solenidade da Imaculada Conceição de Nossa Senhora, coloca-nos a questão das origens e da transgressão das origens.

Nós perguntamos: o que está no princípio do Homem? A própria cultura judaico-cristã, mas também a cultura ocidental não religiosa, olha para o fundamento humano como uma espécie de crime original, de pecado original.

Sentimos que há uma culpabilidade e uma fratura na nossa consciência, que como que nos funda. Esse mal é algo que nos acompanha, que está presente no mundo quando nascemos, que nos contagia. É alguma coisa para a qual não temos explicações. Na nossa história individual podemos encontrar as explicações, mas há sempre alguma coisa sobre o mal que fica por explicar, porque é um mistério enorme.

Nós não conseguimos iluminar, racionalmente, este sentimento de culpa, de falha, de transgressão que aparece na história do Homem. Muitas vezes, é o único patamar para justificar aquilo que vemos de violência sem sentido, puramente gratuita, de exercício de maldade prepotente. Nós pensamos: mas o que é isto? Como é que o ser humano é capaz desta coisa hedionda? A verdade é que ela existe. Olharmos para a natureza humana não é sermos pessimistas, mas é percebermos que, na nossa natureza, o mal está presente. O mal está, e é possível o mal existir.

Como é que ele entrou na nossa vida? A Sagrada Escritura fala-nos por metáforas, fala-nos por símbolos. Na história desta desobediência original está uma tentativa de explicação teológica pela fé, de alguma coisa que depois atormenta tanto a nossa realidade. Todos nós sentimos esta vulnerabilidade, esta fragilidade moral, este mal que tantas vezes nos visita e que não sabemos de onde vem, que é maior do que nós.

Mas será que é isso que explica o mistério da vida do homem? Será que é isso que explica o que eu sou como mulher e como homem?

O grande filósofo cristão, Paul Ricoeur, que pensou muito a questão do mal original, propõe que esta reflexão sobre o mal não nos desvie de uma outra, mais fundamental, que é a reflexão do bem fundamental. Ele diz que mais do que falarmos do pecado original – que não podemos simplesmente descartar (eu acho que às vezes facilmente nós descartamos), pois tem um sentido que se calhar precisamos de reinterpretar, dado que ele expressa uma realidade humana fortíssima – mais do que falarmos do pecado original, devíamos colocar os olhos na Graça original.

Cada um de nós, mais do que fruto de uma transgressão, de uma desobediência ou de um crime original, é fruto de uma Graça original. É absolutamente comovedor este começo da Carta aos Efésios que hoje nós proclamamos. Porque é a frase mais comprida do Novo Testamento: no texto original grego são 24 verbos, alinhados, sem qualquer ponto, só no fim é que tem um ponto. É uma frase, todo o texto que hoje lemos, é uma frase que se lê quase sem respiração. E essa frase é a visão sobrenatural do Homem.

O que é que é o Homem para Deus? E então nós lemos isto: “Bendito seja Deus porque Ele nos abençoou com toda a espécie de bênçãos em Cristo. Ele nos escolheu para sermos santos e irrepreensíveis, Ele nos predestinou para sermos Seus filhos adotivos por Jesus Cristo.”

Nós fomos constituídos herdeiros, fomos predestinados conforme a decisão da Sua vontade, para sermos um hino de louvor da Sua graça. Reparem, nós somos consequências, somos um fruto da graça de Deus. É verdade que em nós encontramos também este enigma do mal, mas maior do que esse enigma é o enigma do bem. É o enigma do amor, que nos habita desde a raiz. É tão fundamental que cada um de nós sinta que o olhar de Deus para a sua vida, para a sua história concreta, é um olhar de amor. Deus olha para nós e diz: ”Minha filha amada, meu filho amado, Eu sonhei contigo desde sempre. Eu enchi-te de todas as bênçãos, Eu fiz de ti o meu herdeiro, o lugar da minha beleza, o lugar do meu louvor.”

É com estes olhos que temos de olhar para a nossa vida e para a vida uns dos outros. Como lugares, moradas da própria graça, da própria divindade, da própria transcendência. Cada um de nós é uma história sagrada e, nesse sentido, tem de haver uma revitalização da vida. É verdade que o nosso olhar tem de ser um olhar adulto para perceber o que é que nos habita, perceber mesmo o mistério do mal, perceber como ele se torna táctil. Mas, meu Deus, a que distância o mistério do bem deixa o mistério do mal. Por isso nós não podemos ser pessimistas.

Um cristão não desarma nunca, nunca, nunca. Um cristão não desarma. Há sempre caminhos, há sempre soluções, há sempre possibilidades. Um cristão é um antídoto contra o irremediável. Para um cristão nada, nunca, não tem remédio. Tudo é possível porque nós fomos olhados, olhados por Deus, nós fomos declinados pelo Seu amor, pela Sua misericórdia. Por isso, a nossa vida tem um valor, a nossa vida vale mais do que nós próprios, tem outro valor. Por isso o Advento, o Deus encarnado, é um investimento na vida da pessoa humana. Nós temos de sentir que Jesus, cruzando os nossos caminhos com os Dele, tornou a nossa vida preciosa. É isso que é preciso testemunharmos, como cada vida, a nossa vida, é uma coisa preciosa, que temos de tratar com veneração. Que temos de tratar com aquela atenção, com aquela dedicação que dedicamos ao bem mais raro, mais precioso que tenhamos.

Hoje, celebramos a festa da Imaculada Conceição e, na nossa caminhada do Advento, Maria aparece também como um modelo para construirmos a nossa própria vida no seguimento dela, colocarmos, atirarmos para ela o nosso coração. Ontem víamos a imagem de João Batista, hoje temos a figura de Maria. E Maria é construída com três grandes traços perfeitamente admiráveis:

Primeiro, Maria é uma mulher da escuta. Ela não está desligada. Ela vive numa porosidade, ela deixa-se visitar, no coração dela e na vida dela ela tem as portas abertas. Às vezes vivemos uma vida autista, completamente desligada, vivemos na nossa cápsula, no nosso mundo. Nem um anjo de Deus pode visitar-nos. Estamos cegos e surdos ao que quer que seja, queremos lá saber, queremos lá ver. Uma vida assim não é uma vida visitável. Nada nos visita. Às vezes passam-se semanas e meses e nós não ouvimos nada, não vemos nada porque também não estamos disponíveis. Não temos as portas do nosso olhar e do nosso coração abertos à vida, não nos deixamos surpreender. Quando, a dada altura, começamos a caminhar pela vida fora a achar que já nada nos surpreende, que já sabemos de tudo, entramos num desalento e num desânimo, e mesmo num ressentimento em relação à vida que nenhum anjo nos vai visitar assim. Um anjo só nos visita quando temos o coração desarmado, quando estamos disponíveis para a surpresa, disponíveis para acolher, para acolher a vida e essa é a coisa mais bela. Mesmo na nossa fragilidade, naquilo que nos fere, naquilo que sabemos e não sabemos, deixar que a vida passe por nós, que a vida fale, que a vida nos diga, escutemos. Um ver que seja um ver, um ouvir que seja um ouvir, um estar que seja um estar. Estarmos. E esta hospitalidade nós percebemos que Maria tem, ela está ligada.

Depois, Maria é de uma honestidade a toda a prova, a toda a prova. Às vezes nós falseamos, quer dizer, sabemos um bocado cinicamente que aquilo não é bem assim, mas vamos estamos na festa, estamos a acompanhar, não estamos mas estamos. Maria é de uma honestidade a toda a prova. Quando o anjo lhe diz: “Ave. O Senhor está contigo.” Ela fica a pensar: “Mas o que será isto? O que será isto?” E quando o anjo lhe anuncia o que vai acontecer, ela pergunta: “Como é que isso pode ser, se eu não conheço homem?” Honestidade, honestidade. Porque Deus não falseia, não é um ornamento para a nossa humanidade. Não. Nós temos de ser salvos com verdade, com a nossa verdade, e é importante fazer perguntas a Deus. É importante abrir o nosso coração mas colocar a nossa razão. A fé não é apenas um sentimento onde vamos entretidos, não, não é um entretenimento, é a partir daquilo que eu sou. Por isso, é importante que eu seja profundamente honesto na minha vida espiritual, profundamente honesto. Um sim que é um sim, um não que é um não, uma pergunta que é mesmo uma pergunta. Não andar ali, num jogo de mascaramento, não. Maria põe-se na sua verdade. Não são obstáculos que ela põe, mas também é uma reflexão a partir da sua própria vida. “Diz-me como é que pode ser, diz-me, eu não estou a ver como. Explica-te.” Esta honestidade é alguma coisa que nos purifica muito. Custa muito ser honesto a dada altura, e ser honesto mesmo na nossa relação com Deus. Custa-nos muito, pomos subterfúgios, preferimos fazer de conta, não ouvir, ou não ver, ou virar costas, ou adiar. Maria coloca as questões. Porquê? Porque ela está a expor-se. Honestidade é uma forma de exposição. “Olha, a minha condição é esta e eu não vejo como é que isso possa ser.” Esta atitude de Maria é muito desafiadora para as nossas vidas.

Por fim, Maria descobre neste encontro com o anjo que a sua vida está ao serviço de uma vida maior, de um projeto maior. Isto é, que a vida não começa e acaba nela, não começa e acaba nos sonhos que ela teve para a sua vida, nos desejos que ela teve, com certeza, no coração de rapariga sonhadora que ela era. A vida não acaba no perímetro dos desejos e dos sonhos que ela fez de felicidade para a sua vida. Mas o Senhor chama-a a colocar-se ao serviço de uma felicidade maior, imprevista, com a qual ela não tinha nunca sonhado, nem poderia sonhar. Mas o Senhor diz: “Olha, a tua vida é para servir uma vida maior, para servir uma coisa maior.” E Maria diz: ”Eu sou a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Tua palavra.”

Queridos irmãos: Maria tem esta capacidade de escutar e acolher a vida, de ser visitada, de não viver com a porta fechada. Maria deixa-se visitar. Tem esta honestidade muito grande, esta exposição, e depois esta compreensão de que a vida não é apenas a realização da felicidade que eu pensei para mim próprio, mas que é a compreensão de que estou ao serviço de uma história maior, de uma história que me ultrapassa, e na qual o Espírito Santo me vai dar a força de participar, vai-me dar a competência de ser, colocando-me inteiramente ao serviço.

São três atitudes que nos ajudam muito a viver este Advento. Vamos pedir ao Senhor que nos ajude neste caminho, que é um caminho também de transformação. Nós vamos chegar ao presépio na medida em que sentirmos que Ele vai nascendo dentro de nós. Nós só podemos reconhecer Aquele que nasce se já o trouxermos nascido no fundo da nossa alma.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Imaculada Conceição

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2014/12/07 - João Batista vem para sobressaltar (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

No Advento são-nos apresentados vários modelos que representam para nós, na sua exemplaridade, um desafio à transformação, ao rasgar do nosso coração para acolher o Jesus que vem.

Hoje, o modelo apresentado é a figura de João Batista. É útil integrar João Batista no movimento messiânico de expectativa, no movimento político reformista que a Palestina do tempo de Jesus conhecia. Jesus aparece, mas o seu discurso é um discurso muito próximo ou começa por ser muito próximo de tantas outras vozes que desejam a mudança, que não estão contentes com o status quo da situação, a quem não basta o conformismo em que o povo tinha caído sob a soberania do Império Romano, aquela adaptação a uma realidade já sem fulgor, já sem intensidade.

No tempo de Jesus, muitas vozes se levantaram a pedir uma mudança. Hoje nós seguimos uma dessas vozes: João Batista, que o próprio Evangelho de Lucas nos apresenta muito próximo dos círculos sacerdotais de Jerusalém. Quer dizer, João Batista era filho de uma das boas famílias ligadas ao Templo de Jerusalém. Mas o que quer que tenha acontecido, este jovem lê o profeta Isaías e diz: “Isto não pode ser só uma palavra. Isto tem de ser uma forma de habitar o tempo.” E então deixa Jerusalém, deixa o tipo de vida que se tinha ali à volta do Templo, à volta daquele comércio e nas grandes cidades e opta por ir estabelecer-se ao pé do rio Jordão.

Não é uma escolha inocente, porque o Jordão é o quilómetro zero da história de Israel. Foi ali que tudo começou, quando o povo, vindo do deserto, atravessou o Jordão e entrou na terra de Israel. Quando João Batista escolhe o Jordão é para dizer: “Vamos voltar ao princípio, vamos pensar o que é que somos realmente a partir do ponto um.” Ali, ele constrói uma alternativa, ele percebe que Deus só pode entrar na vida daquele povo se este se abrir. Isto é, se relativizar a sua forma de viver. Então, vai vestir-se desta forma estranhíssima, ter uma alimentação que não era a alimentação comum do tempo, optando por um modelo de ascética radical, comendo mel e gafanhotos, e vestindo-se com um cinto de cabedal e com uma pele de camelo, um pouco à maneira da tradição profética de Israel.

Mas o que é que ele nos quer dizer com isso? Quer dizer que só vamos perceber o tempo de outra maneira, o tempo só será um tempo oportuno para o Messias se formos capazes de relativizar o nosso estilo de vida, a nossa maneira de viver, as nossas correrias sonâmbulas, o nosso status, a nossa condição, a nossa estabilidade. João Batista vem para sobressaltar. A sua voz é um sobressalto.

Queridos irmãos, para quem está completamente contente, completamente coincidente, completamente realizado com aquilo que tem, com aquilo que vê em seu redor, não haverá Natal. O Natal chegará para os corações que se abrem em insatisfação, em procura, em pergunta, em desejo, em necessidade vital de que Jesus venha para transformar, para salvar a nossa história. Por isso, João Batista é esta sentinela que nos diz: “É preciso fazer penitência.” Isto é: é preciso afastar-se da vida que vivemos, porque às vezes estamos tão colados, tão preocupados com o que está diante dos nossos olhos que perdemos todo o sentido crítico.

E o que é que os profetas fazem? Devolvem-nos o sentido crítico, aguçam-nos a consciência em relação a nós próprios, aos nossos limites, à nossa zona de conforto. “Se calhar, estou a viver isto tudo com uma grande veracidade e intensidade mas o essencial não está aqui. Se calhar, estamos a montar tudo e a preparar tudo, mas não é isto, não era isto o suposto, não é isto que nos transformará.” Nesse sentido, a voz de João é uma voz exigente, é uma voz que nos sobressalta e que nos diz: “Espera lá, mas onde é que eu estou?”

O que é viver nesta expectativa messiânica? O que será acolher o Messias que vem? A verdade é que romarias de pessoas passam por ali para ser batizadas, neste espírito de penitência, que é no fundo este abalar. Porque Jesus só vem porque nós precisamos Dele.

Às vezes o que parece da celebração do Natal é que é uma festa supérflua. É bonita, é comovedora, é isso tudo, mas verdadeiramente não é necessária. Não é necessária, podíamos não abrir este caixote, poderíamos não estar aqui a ter esta conversa. João Batista vem, com a sua verdade, dizer: “Este povo precisa de salvação, este povo precisa de transformação.” Por isso, bendita insatisfação, bendito o desejo de mais, bendita crise, bendita rutura, benditos caminhos que nós buscamos. Porque, como diz Fernando Pessoa, “triste de quem está contente” com a sua vida.

João Batista é esta voz que nos abala. Mas João Batista é também uma grande figura da humildade. Dizemos que nós, portugueses, achamos sempre que aqueles que estiveram antes de nós são uns incompetentes e aqueles que vêm depois de nós são uns cretinos e nós, no fundo, somos os únicos que podemos salvar. João Batista é o contrário disto. João Batista é aquele que diz: “Eu não sou digno daquele que virá depois de mim.” De facto, se nós nos armamos no nosso narcisismo em centros do mundo – “Eu é que sei, eu é que faço, eu é que posso conseguir” – nunca perceberemos isto que João Batista diz: “Depois de mim vai chegar quem é mais forte do que eu.” Isto é, nunca nos colocamos na brecha, na fratura, na fronteira, nunca somos sentinelas de nada.

Mas nós somos tudo, somos o anunciador e a própria mensagem. Essa também é uma das fontes dos nossos equívocos e da nossa infelicidade. Nós somos anunciadores, somos sentinelas, somos servidores, somos visionários, nós documentamos aquele que há de vir e que é mais forte do que eu e do qual não somos dignos de desatar a correia das sandálias.

A nossa posição tem de ser a de servos do futuro, de elos de uma cadeia que nos supera. Nós não somos donos, nós somos guardadores, somos transmissores de uma vida maior, somos apenas um elo desta corrente extraordinária de vida. João Batista é, de facto, uma figura que, de diversas formas, nos coloca no lugar.

Magnífico texto é esse, também, da Epístola de S. Pedro que nós lemos. A dada altura, o autor da epístola junta dois verbos: esperar e apressar. Nós temos de esperar a salvação, mas temos de apressar a salvação, temos de apressar a manifestação de Deus. Porque no coração do cristão tem de haver muita expectativa.

E o que é que nós esperamos? Esperamos, segundo a promessa do Senhor, um novo céu e uma nova terra onde habite a justiça. É esta a nossa expectativa. Mas não é apenas uma expectativa conformada: “Olha, quando vier, virá. Se vier, ou se não vier, sei lá.” Não, é uma expectativa que nos compromete, porque somos chamados a apressar a vinda do Senhor, a torná-la presente, a torná-la efetiva, a viver já nesta tensão daquilo que está para chegar, daquilo que há de renovar, que há de trazer um alento, um sopro novo à própria história.

O profeta Isaías deixa-nos com três imagens impressionantes.

Começando pela última, a imagem de que Deus é aquele pastor que toma os cordeiros nos seus braços – a relação de afeto, de dedicação que Deus tem à nossa vida e à vida de todos. Sentirmos isso verdadeiramente, que não somos nós que estamos a construir uma gruta, umas palhinhas, um lugar para o Menino nascer. Não. Ele é que nos prepara o lugar, Ele é que nos prepara uma manjedoura, Ele é que nos prepara o Natal. Nós estamos nos seus braços. É aí, no mistério da ternura de Deus, do Seu afeto, que a nossa vida, qualquer que ela seja, está colocada.

A imagem do meio é a imagem da paciência, da paciência de Deus. Deus que sabe esperar, Deus que perdoa e que dá tempo para nos podermos converter. São Pedro também há de continuar essa imagem, que foi muito importante na tradição profética e será na tradição cristã. Deus é paciente, Deus espera, Deus sabe esperar por todos. Mas não façamos desta espera um tempo de dispersão, antes um tempo de atenção, um tempo de vigilância. Para podermos de facto corresponder aquela que é a missão que o Senhor nos dá.

E a primeira palavra e imagem do profeta Isaías é essa: “Consolai, consolai o meu povo, diz o Senhor.” O nosso ministério é um ministério de consolação. Há um texto, uma pequena novela muito famosa, de um escritor contemporâneo, Stig Dagerman, que tem um título terrível e impressionante: A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer. De facto, se formos perguntar ao coração dos nossos contemporâneos, esta frase está gravada no coração: “A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer.” Por isso, muitas vezes chegamos ao Natal e olhamos com um perfeito cinismo. O presépio está ao nosso lado, mas o que é aquilo? Aquilo é um símbolo. Gostamos, mas sabendo que não serve, que não vai mudar a nossa vida; não é feito para mudar, é feito para mantermos esta história, para atravessarmos o inverno com menos peso deste tempo de escuridão e de frio. Este olhar cínico de quem já desistiu, de quem olha para o símbolo e escuta a palavra mas percebe que ela já não é para si porque no seu coração está ferido, porque no seu coração já vive a derrota e sabe que nada o poderá resgatar, que nada o poderá consolar. Mas, sabendo isso, Deus diz-nos, pela boca do profeta Isaías: “Consolai, consolai o meu povo, diz o Senhor.”

Queridos irmãs e irmãos, nós temos uma grande missão este Advento que é tornar o Natal, tornar a experiência do verbo encarnado, de Deus connosco, uma experiência de consolação, uma verdadeira boa nova. Não apenas uma tradição. De que nos serve se o fundamental não é de facto esta mensagem de verdade, dizer olhos nos olhos: “Há um salvador que nasceu para ti. Olha que isto não é uma fábula, não é a lenda do Ocidente. Não, isto é a boa nova, isto é a palavra, é a âncora que tu precisas. Ele está contigo, Ele veio para ti. Deus fez-se carne e osso, assumiu o teu corpo, a tua condição, a tua fragilidade, está contigo, veio para te ver, para te olhar, para te abraçar. É Ele que te salva.”?

É quando nós somos capazes de testemunhar isso a nós próprios e aos outros que esta impossível consolação do homem se torna possível, se torna o milagre que nós vemos acontecer.

Queridos irmãos, fujamos do símbolo pelo símbolo, demos carne e osso ao Natal, tornemos o Natal encarnado nas nossas vidas, testemunhando que no centro está a pessoa de Jesus e o que Ele significa na vida de cada um de nós. Aquilo que Job dizia a plenos pulmões e com a carne em fogo: “Eu sei que o meu Redentor está vivo!” É essa palavra que nós temos de dizer: Eu sei que o meu Redentor está vivo! Sem esta palavra não há consolação. Há imaginação, há pieguice, há tradição, há isso tudo mas não há consolação. “Consolai. Consolai o meu povo, diz o Senhor.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo II do Advento

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2014/12/02 - Conversas à Capela - Itinerários do Advento - Para uma mística do tempo presente

Este Advento, somos convidados a iniciar um caminho para uma mística do tempo presente, centrado na teologia dos sentidos. O primeiro encontro será uma reflexão geral sobre o tema, orientada pelo Pe. José Tolentino Mendonça, no dia 25 de novembro, às 21h30, na Capela do Rato. Os restantes encontros serão dedicados aos diferentes sentidos – Ver e Ouvir, Tocar, Saborear e Cheirar.

25 de Novembro –  21h30
Reflexão geral
José Tolentino de Mendonça

2 de Dezembro –  21h30
Ver e Ouvir 
Paulo Pires do Vale e João Madureira

Novembro

2014/11/30 - O Advento é uma interrupção (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Quando penso neste tempo do Advento e no seu significado profundo muitas vezes me recordo de um livro do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. É um livro de poesia. A Sophia de Mello Breyner gostava muito desse livro. E esse livro o que é que conta? Conta a história do Severino. O Severino é o Homem, é o Adão, é o Homem sobre a terra, é o Job. Este Severino é um homem provado porque a vida é implacável, a vida é dura, a vida não retribui o impacto, o sonho, o investimento afetivo que nós nela colocamos.

Este Severino sente-se só, abandonado, espoliado sobre a terra. E vai numa demanda muito grande à procura de soluções e remédios que não encontra nunca. E então decide, dramaticamente, que a vida não tem sentido, que ele não encontra respostas para as perguntas que traz e que talvez o melhor seja pôr cobro, ele, à própria vida. Vai andando perto de um rio e a dada altura encontra um carpinteiro chamado José, e pergunta ao carpinteiro se ele, vivendo ali, naquele braço de rio, sabe se o rio é suficientemente fundo e cheio de lodo para que uma vida se perca. O carpinteiro percebe a questão que Severino lhe coloca e começa a convencê-lo a não fazer aquilo, a não dispersar a sua vida. Severino pergunta-lhe, interroga-o: “Então dá-me uma razão. Dá-me uma razão que seja, que diga que a vida vale a pena. Dá-me uma razão que seja para que eu não faça isso.” Quando estavam os dois nesta discussão, a discussão é interrompida, a conversa é interrompida. É interrompida por um coro de vizinhos, de parentes e de conhecidos que vem anunciar, cantando, a José que ele acaba de ser pai.

Então nós somos conduzidos até ao lugar onde este menino nasce e José canta a alegria daquela vida que nasce. Depois, no final, ele volta-se para Severino e diz que ele não tem uma resposta para dar a Severino, não tem uma resposta sobre se a vida tem sentido, se a vida vale a pena. Ele não tem uma resposta por palavras, mas ele diz: “Nenhum homem é capaz de responder. É a vida que responde. É a vida que responde.” E a vida responde como? A vida responde manifestando-se, dando-se a si mesma, abrindo-nos ao desabalar do espetáculo que é a própria existência, a esse inacreditável milagre que é a própria vida. É olhando, acolhendo e abraçando esse milagre que nós somos curados das nossas dúvidas, daquilo que em nós parece que não tem solução, que não tem remédio. É quando nós abraçamos e confiamos no milagre da vida, daquilo que continuamente nasce e explode de vida no mundo e em nós é que podemos ser curados das nossas provações, das nossas tentações, da nossa imperfeição e deste sentido que nos há de acompanhar até ao fim, este sentido do inacabado, do inconcluído, do irreparável que há de acompanhar-nos sempre.

O que é o Advento? Eu penso que o Advento, anualmente, é o interromper a conversa. Nós, todos nós, estamos com uma conversa qualquer na nossa vida. Uma conversa mais feliz ou mais infeliz, mais narcísica ou mais egoísta ou mais na relação com os outros, mais isto ou mais aquilo. Estamos numa conversa e estamos a debater-nos por encontrar uma solução e um sentido, que nem sempre é óbvio, que raramente é evidente, e que quase nunca é fácil, para não dizer nunca. Estamos neste debate connosco, com os outros, com Deus, colocamos perguntas. E o que é que é o Advento? O Advento é uma interrupção. A conversa interrompe-se. E interrompe-se com um cortejo, que nos vem anunciar um nascimento, que nos vem abrir os olhos para olharmos para a vida, a vida no seu milagre, na sua essencialidade, a vida Vida, a vida estreme, a vida sem mais. Porque Jesus nasce e o que nós temos é a vida estreme. Ali não há ornamentos, não há decoração. Ele nasce naquela circunstância de completo desprovimento, sem nada, naquele curral de animais onde é só a vida que conta. Maria coloca o filho na manjedoura dos animais para mostrar que é daquela vida que nós nos temos de alimentar.

Queridos irmãos, interrompamos mesmo. Que o tempo do Advento seja um tempo para interromper, interromper, interromper. Isto é: suspender as nossas questões, suspender as nossas amarguras, suspender os nossos longos percursos, suspender a nossa inquirição àquilo que não tem resposta, ou então aquilo cuja resposta não nos cabe colher. Interromper. E preparar o nosso coração para o encontro com a vida, com a vida estreme, com a vida que começa, com a vida que é nova, com essa vida encarnada que nos mostra na nossa carne, na nossa história, o próprio Deus.

No fundo o que é o Advento? O Advento é a preparação para esse milagre, para  esse encontro com a vida. A nossa conversa é uma coisa importante, mas chega um momento em que ela tem de ser interrompida. Porque não é na conversa que está a solução, não é na conversa. A solução está Naquele que chega à nossa vida e em nós dizermos: “Ah, apesar de eu não saber tudo ou de eu não ter tudo, apesar de tudo isso, eu acolho, eu amo, eu acredito.”

Lembro-me de uma história do Abbé Pierre. Havia um homem, um presidiário, que esteve muitos anos preso por um crime duro. Quando saiu, voltou à sua família e percebeu que a mulher tinha reconstruído a sua vida, que havia novos filhos do novo casamento. Ele percebeu que já não tinha lugar e disse: “A minha vida perdeu todo o sentido. Não faço nada aqui”. E decide ir falar com um padre. Foi falar com o Abbé Pierre, fundador dos Companheiros de Emaús. O Abbé Pierre, sabiamente, honestamente não lhe disse: “Olha, não faças isso.” Mas disse-lhe: “Ouve, eu estou aqui a reparar um telhado de uma casa para sem-abrigo. Sei que tu vais fazer isso, e tens tantas razões para isso, mas não queres vir no fim de semana ou neste próximo mês ajudar a fazer o telhado e depois pensas nisso?”

O homem ainda não tinha acabado de ajudar a reconstruir o telhado e o seu coração já estava cheio de outras coisas, de outros pensamentos. O que nós precisamos é, de facto, de interromper, de sentir como Deus interrompe a nossa vida e nos coloca numa atitude de espera, de espera.

Hoje, S. Paulo, na Segunda Carta aos Coríntios, diz uma coisa espantosa, diz: “Nada falta, nenhum dom falta a quem está à espera de Cristo.” Isto parece um paradoxo: se estamos à espera é porque nos falta alguma coisa. Mas S. Paulo diz: não falta nenhum dom a quem está à espera de Cristo. Então, a própria espera, a própria expectativa é já ela plenitude, é já ela intensidade, é já ela a certeza deste amor que, na voz do profeta Isaías, hoje dizíamos ser o amor de Deus por nós. Diz o profeta: “Ó Deus, Tu és o nosso Pai. Nós somos o barro das tuas mãos e Tu és o nosso oleiro.”

Sintamos isso, sintamos que a nossa vida é este barro que Deus trabalha. Com que esperança? Com que esperança? Com que ternura? Com que certeza? De que a nossa vida vale a pena! Que a nossa vida se deve abrir a outra verdade que vem ao nosso encontro. Por isso, queridas irmãs e irmãos, a palavra deste primeiro domingo é: Vigiai. Vigiai.

É uma palavra um bocadinho estranha, vigiai. Nós estamos sempre a vigiar. Estamos aqui, estamos sempre a olhar, a ver alguma coisa; mas, às vezes, a pergunta do vigiar não é o que é que eu vejo ou o que é que eu estou a ver. É o que é que eu não vejo. O que é que ainda não consigo ver? E é quando estas questões nos habitam mas nos abrimos, efetivamente, ao Deus que vem, que o Natal acontece.

Queridos irmãos, este tempo de Advento é um tempo necessário. Precisamos de caminhar. O Natal não é uma coisa automática, não é uma coisa que se tira das nossas caixas e coloca de novo e ele acontece automaticamente, imprevistamente. Não, o Natal prepara-se. Este encontro tem de ser, de facto, um encontro com a nossa vida. Deus interrompe o que eu sei, o que eu digo, o que eu falo e mostra-se, e dá-se-me, e enche o meu coração da fome de Deus, da fome de sentido que só Ele pode saciar.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo I do Advento

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2014/11/27 - Percurso de Preparação para o Crisma

Mais informações aqui.

2014/11/25 - Conversas à Capela - Itinerários do Advento - Para uma mística do tempo presente

Este Advento, somos convidados a iniciar um caminho para uma mística do tempo presente, centrado na teologia dos sentidos. O primeiro encontro será uma reflexão geral sobre o tema, orientada pelo Pe. José Tolentino Mendonça, no dia 25 de novembro, às 21h30, na Capela do Rato. Os restantes encontros serão dedicados aos diferentes sentidos – Ver e Ouvir, Tocar, Saborear e Cheirar.

25 de Novembro –  21h30
Reflexão geral
José Tolentino de Mendonça

2 de Dezembro –  21h30
Ver e Ouvir 
Paulo Pires do Vale e João Madureira

2014/11/23 - A fé tem de dar que fazer (homilia)

Queridos irmãos, queridas irmãs

Neste último domingo do ano litúrgico, Jesus deixa-nos com uma imagem. Uma imagem é um presente fantástico, porque uma imagem vale mil vezes mais do que um argumento ou uma elucubração. Uma imagem agarra-se ao coração e desprende-se aos poucos, não vem toda de uma vez. A imagem habita-nos, deixamo-nos habitar por ela. A imagem torna-se uma espécie de modelo, de tipologia interna, de paradigma de ação. Percebemos que aquela imagem é uma espécie de caminho que se vai abrindo para nós. No final deste ano litúrgico ficamos com uma imagem, uma imagem exigente e maravilhosa. Uma imagem que tem a ver com isto: com o falhar a vida ou o viver a vida plenamente.

O que é o suplício eterno? É o desgosto quando compreendermos que falhamos a vida, que a vida foi em vão, que a nossa construção, as nossas opções, aquilo que nos entusiasmou, nos apaixonou, nos cegou, nos ofuscou, afinal não era isso a vida. Afinal não era esse o modo verdadeiro de nos encontrarmos. Afinal, roubámos a vida e perdemos a grande oportunidade que é a vida. Uma oportunidade precária, frágil, que nós temos de agarrar. É um dom que nos é dado, que temos de agarrar e agarrá-lo no sentido da plenitude. E o que é a vida eterna? É ter vivido de tal maneira que se percebe que essa vida não acaba, é perceber que essa vida nos levou a uma plenitude, que essa vida se tornou fecunda, multiplicada, que essa vida não acabou quando nós acabamos, que essa vida continua, que essa vida é expressão da vida do próprio Deus. Por isso não é apenas uma existência, é uma vida eterna.

A imagem que hoje Jesus nos oferece, no Evangelho, é para dialogar com isto: o que é que estamos a fazer da vida? O que é que é importante para nós? De que maneira encontramos Jesus? Esta imagem é uma imagem de sobressalto porque quer os da direita, quer os da esquerda, chamam a Jesus por “Senhor”. Quer dizer: não é a fé que os distingue. A fé não basta. A fé não os distingue porque, para ambos, Jesus é o Senhor e ambos vivem na expectativa de Deus, ambos vivem a sua vida como lugar de espera de Deus. Mas há uma diferença: é que os da direita não ficaram apenas numa fé processada, numa fé que é confissão de uma verdade, de uma crença, de uma convicção, não ficaram apenas numa fé que é uma tradição recebida, que é um património inestimável. Mas, para usar a palavra de São João Paulo II, souberam mergulhar na fantasia da caridade. Souberam operar a misericórdia, traduzir a fé em misericórdia. De uma forma muito simples, a beleza desta imagem que Jesus nos confia, e a sua força, está também na sua simplicidade.

Nós não temos de quebrar a cabeça para encontrar Jesus. Não. É encontrá-lo pele com pele, é encontrá-lo corpo com corpo. Quando? Onde? Quando damos de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede, quando recolhemos os que não têm casa, os que são peregrinos, quando vestimos os que não têm roupa, quando visitamos os que estão doentes e quando temos compaixão dos prisioneiros ou quando depois sepultamos os mortos. Quer dizer, não é nada de extravagante ou de espetacular. É a expressão de uma humanidade. Estas regras que Jesus nos dá nem sequer são regras religiosas, são um código humano de conduta, o código humano de ser. Um ateu pode-se rever nestas obras de misericórdia. O que é que distingue então um crente, um cristão? É a surpresa de reconhecer que na pessoa do mais pequenino está o próprio Jesus.

Queridos irmãos, o final de um ano é o momento da síntese para perceber o que é que vale a pena e o que é que não vale a pena. Normalmente, fazemos esses balanços a 31 de dezembro. Mas, liturgicamente, fazemo-los nesta Festa de Cristo Rei. O critério para o balanço é este: é o critério do amor vivido, o critério do amor praticado, o critério deste contacto humano, desta relação humana que somos chamados a fazer com os mais pequeninos.

Isto quer dizer o quê? Que não é apenas com os nossos. Temos o dever de amar a família, os amigos, mas Jesus alarga e este indefinido Jesus não diz quem é. Não dizendo quem é está a dizer que são todos. Temos de ser capazes de chegar a Jesus através do agir e não ficarmos apenas a chamar Jesus “Senhor, Senhor”. Dominicalmente reunimo-nos aqui para dizer que Jesus é o Senhor das nossas vidas. E depois? E depois? Onde é que isso nos leva? O que é que fazemos com isso? O que é que isso nos torna?

Esta imagem que Jesus nos dá é uma imagem para nos dar que fazer. Porque a fé tem de dar que fazer. A fé tem de nos levar a esta saída de nós próprios para irmos ao encontro dos outros, nesse encontro de caridade e de amor, nesse encontro com o pobre, com o doente, com o preso, com a vítima, com o sem-abrigo, com aquele que passa necessidades de vária ordem. Estas obras de misericórdia têm uma leitura literal e é preciso não fugir para o símbolo, que é uma zona de conforto. Não, isto é literal. Mas ao mesmo tempo tem tantas dimensões humanas. O que é vestir o nu? É tanta coisa. Antes de tudo, é vestir, mesmo. Mas, depois, é tanta coisa. É dar-lhe o que ele precisa para ser, é colaborar nisso. E, reparem, Jesus não diz para sermos heróis, diz-nos para fazer. Não nos diz: “Tens de fazer 200.” Não. Faz. Faz.

Não há dúvida que, queridos irmãs e irmãos, o amor é uma grande escola, o amor é uma grande escola de vida. É neste encontro que temos com os outros que celebramos a esperança da vida, que celebramos a ressurreição, que celebramos a certeza de que Ele está vivo no meio de nós.

Amanhã, a Leonor Xavier vai apresentar o último livro que escreveu: O passageiro clandestino. É um livro sobre a sua experiência do cancro, de ser portadora da doença do cancro. No fundo, todos nós, numa hora de fragilidade e de doença, sentimos a grande ameaça, o peso dessa ameaça. Mas o que é extraordinário no testemunho da Leonor é que ela aproveita essa condição para celebrar o encontro. Então leva-nos para dentro dos hospitais, das salas de espera, ao encontro com esses anónimos e a perceber como a coisa mais bela é esse encontro com pessoas com outra cultura, com outras idades, que vêm com outras questões, mas que no fundo são “o mais pequenino” naquela circunstância, e ser capaz de estabelecer uma relação de vida. No livro, percebemos que é isso que a salva. Porque depois é um mistério, acreditamos que a medicina faça o seu caminho, acreditamos na força de recuperação da própria vida; mas, como ela diz: “A doença é também uma iniciação” e uma iniciação à vida, a arte do encontro.

Penso que uma vez mais o que nos é pedido é isso. Não é aterrarmos nas nossas certezas, não é engordarmos com os nossos saberes, com os nossos conhecimentos. Isso tudo é muito importante. Mas, depois, podemos ter isso tudo e nunca o ter visto. Jesus tem isto: só se deixa ver na partilha do pão, quando quebramos o pão, para dar o pão aos outros. Isto é: só na vida que se quebra, só na vida que se parte e reparte é que Jesus se dá a ver; o resto nós não o vemos, podemos até sentir o entusiasmo, a paixão do conhecimento, isso também é uma via, mas é uma via insuficiente. A única via completa é a via do amor, é a via da relação, é a via da dádiva, é a via do encontro.

Queridos irmãs e irmãos, celebrar a realeza de Jesus é celebrar a realidade de Jesus. Jesus é real. Não é apenas uma ideia, não é uma herança do passado, não é um fantasma. Jesus é real, é real. E a realidade de Cristo é impressa no mundo através de nós. Jesus não quis fazer um monumento a si próprio, Jesus não quis fundar uma escola, uma tribo, quis juntar homens e mulheres que tivessem esta capacidade de ouvir quem tem fome, quem é peregrino, quem está despido, quem está doente, quem está na prisão. Esta é a via silenciosa do amor, da partilha, da entrega, que nos revela Jesus e nos dá o sentido profundo da bem-aventurança: “Vinde benditos de meu Pai, recebei em herança o reino que vos está prometido desde o princípio do mundo.”

Queridos irmãos, estas palavras são para nós. Não as percamos, não as percamos de vista numa vida embrulhada em nós e nas nossas coisas e coisinhas, que nos afasta da promessa de viver uma vida inteira, uma vida que valha a pena. A maior parte do tempo, aquilo que nos falta é precisamente isto, é dar, é vestir, é ir visitar, é ir ver, é falar, é isso que verdadeiramente nos falta.

Vamos celebrar esta Festa de Cristo Rei sentindo que Ele é o pastor das nossas vidas. Com esta imagem do julgamento final, Ele dá-nos um caminho, acende uma luz no nosso coração. Se hoje, ao escutarmos esta Palavra, uma luz se acendeu, no sentido de nos impelir à caridade, nos empurrar para o amor, para o encontro, para a dinâmica dos gestos, se isto nos empurrar, então quer dizer que esta imagem acordou, despertou em nós o rosto do próprio Jesus.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIV do Tempo Comum – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo

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2014/11/16 - Deus investe em cada um de nós (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Estamos a aproximar-nos do final do ano litúrgico, do início do Advento e, normalmente, este tempo que culmina para o fim do ano litúrgico ajuda-nos a refletir sobre as finalidades da nossa vida. Como é que nós vivemos? Quais são as nossas razões de fundo? O que é que nós procuramos com a nossa vida? O que é que está no centro profundo das nossas decisões?

Hoje Jesus oferece-nos esta parábola dos talentos: um senhor que dá a cada um determinado número de talentos para que cada um os faça render, construa uma história, faça deles uma aventura, os multiplique, os some, segundo a sua própria criatividade. Deus investe em cada um de nós, Deus coloca nas nossas mãos a tarefa do ser, a tarefa do construir, a tarefa do habitar. O que é interessante na parábola é este drama entre aqueles que com a sua vida a multiplicam, a tornam fecunda, e aquele que enterra o talento, que é a imagem da própria vida, enterra o seu talento por medo. E nós perguntamos: “ O que é que faz render e o que é que bloqueia a vida?” Na justificação que o homem que enterrou o talento dá nós encontramos uma luz muito grande para, muitas vezes, os medos, os entraves, os bloqueios que reconhecemos dentro de nós.

O homem, quando questionado pelo Senhor, diz o seguinte: “Senhor, eu sabia que és um homem severo, que colhes onde não semeaste e recolhes onde nada lançaste, por isso tive medo e escondi o teu talento na terra.” No fundo, qual é o problema? O que é que faz render ou o que é que desacelera a nossa vida? Tem a ver com esta figura interior que, de certa forma, nos dá ou nos retira a confiança, nos puxa para a frente ou nos tira o tapete interiormente. Este homem tinha interiorizado a imagem do Senhor como a de um  homem severo, de um homem intransigente, de um homem implacável que procura recolher onde não lançou e retirar onde não semeou, e teve medo.

Eu diria que, muitas vezes, a nossa vida espiritual, e a nossa vida, não se tornam fecundas porque nós temos medo, porque dentro de nós há esta figura do pai severo da qual nós não nos libertamos. Em vez de encontrarmos dentro de nós o eco, a voz de uma confiança fundamental, encontramos dentro de nós a sombra de uma desconfiança, a sombra de um receio. A grande transformação é esta: descobrir o amor de Deus, descobrir a fé que Deus tem em nós, descobrir esta paixão incondicional que Deus tem pela nossa história. Deus não é o juiz julgador, Deus não é o pai severo, Deus não é o Senhor implacável que nos há de pedir contas do que nós pudemos e do que nós não pudemos. Mas Deus é o Deus rico em misericórdia. Cada um de nós precisa desta palavra de confiança, desta palavra fundante de confiança para poder prosperar, para poder ser, para poder também desafiar, ir além de si e além da sua fragilidade para construir uma história de ser.

Esta é, de facto, queridas irmãs e irmãos uma questão central porque é uma fonte de equívocos, uma fonte de sofrimentos. A verdade é que uma certa catequese levou a interiorizar uma imagem de Deus que continuamente nos tira o tapete, que continuamente desacredita em nós, que continuamente nos paralisa, quando a imagem de Deus é uma imagem radiosa, é uma imagem de confiança. “ Estarei convosco todos os dias, até ao fim dos tempos.” Nada nos separa do amor de Deus. Mesmo o nosso pecado não nos afasta Dele porque Ele está sempre ali connosco, Ele está sempre disponível. Uma certa visão de Deus tornou-se também, há que reconhecer, às vezes, um obstáculo para a fecundidade, para a criatividade, para a liberdade do ser. E é disso que a parábola de Jesus nos fala.

Há um texto, de uma escritora italiana, de que eu gosto muito, Natalia Guinzburg, sobre as virtudes. Ela diz: “Os pais têm uma grande preocupação em ensinar aos filhos as pequenas virtudes, mas não lhes ensinam as grandes.” Por exemplo, ensinam os filhos a ser prudentes mas não lhes ensinam a arriscar, a lançar-se, a ir para a frente. Ensinam os filhos a poupar, e é uma boa virtude, mas não os ensinam a gastar, a perceber o sentido disso. Ensinam os filhos a pensar em si, mas não ensinam os filhos a amar, a pensar nos outros, a esquecer-se de si. Então ela diz: “ Nós gastamos a vida a ensinar as pequenas virtudes e a esquecer as grandes.” É importante que olhando para Deus Pai nós percebamos que Ele nos ensina as pequenas virtudes mas também as grandes ou sobretudo as grandes. Este investimento de confiança é o investimento que nos cura, porque todos nós precisamos ser curados de uma imagem de Deus que se torna, de facto, o modelo que é o do Anti-Deus, que não é o Deus que Jesus nos revela.

O conselho que o senhor dá ao servo, “Devias ter colocado o meu dinheiro no banco e quando eu viesse havia de recolhê-lo.”, não tem a ver com os tempos que vivemos. De certa forma, esta parábola é anterior a invenção da Economia contemporânea, mas tem a ver com aquela economia básica, elementar, dos tempos de Jesus e tem sobretudo que ver com a economia da nossa vida, com aquilo que vamos construindo e vamos vivendo.

Queridos irmãos, apreendamos de Deus a imagem do amor. Sintamo-nos amados por Deus. Simone Weil dizia: “ A coisa mais importante não é amar a Deus, é compreender-se amado por Ele.” Sintamo-nos verdadeiramente amados  e testemunhemos, uns aos outros, este amor, porque isso é o ponto de partida de uma vida desatada, de uma vida liberta, de uma vida criativa, de uma vida que dá fruto. Nós temos de perguntar pelo fruto que dá a nossa vida e por aquilo que nos aprisiona, aquilo que nos prende, aquilo que nos retém. Sintamo-nos assim envolvidos por este amor, que nos pede também uma revisitação da nossa vida, da nossa história, olhar para o interior de nós para sentir a frescura da palavra de Jesus, a consolação da sua palavra e também a ressurreição, a ressuscitação, a insurreição, a transformação que este anúncio do Deus amor pode despertar em nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXXIII do Tempo Comum

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2014/11/09 - A nossa vida é a autobiografia de Deus (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Nós celebramos hoje a grande solenidade da grande Basílica de S. João de Latrão. Mesmo o papa vivendo ao lado da Basílica de S. Pedro, e normalmente tendo uma referência com a Basílica de S. Pedro, S. João de Latrão é a sua basílica, é a igreja, é a ecclesia onde o papa oficia em nome próprio. Hoje, em todo o Ocidente, nós celebramos a festa dessa igreja, da dedicação dessa igreja, do primeiro dia da consagração dessa igreja, porque ela é o símbolo da unidade de todos os cristãos, de todos os católicos no mundo que têm na figura do papa o sinal da comunhão entre si. O papa é a grande figura da comunhão no mundo católico e em redor dele juntam-se as várias igrejas das dioceses por todo o mundo. Em Roma nós encontramos a Basílica de S. João de Latrão. Aqueles que já tiveram a possibilidade de visitar a basílica sabem que é uma coisa espantosa, é uma obra de arte e de arquitetura, um verdadeiro museu. Como são espantosas as basílicas de Roma: S. Maria Maior, S. Maria in Transtevere, para não falar em S. Pedro, S. Paulo Extramuros. Nós também, à nossa medida, temos igrejas extraordinárias, mesmo na nossa cidade, a começar pela nossa Sé, os Jerónimos, temos igrejas espantosas. Temos aqui esta nossa igreja. Por todo o mundo, quando vamos um pouco em viagem, em visita, nós encontramos igrejas, templos, extraordinários. Uma das expressões da fé católica é também esta expressão concreta, os lugares onde os católicos se reúnem para rezar. Historicamente e em termos artísticos isso ganhou um peso que é um grande património da Humanidade.

Mas não tenhamos ilusões, há um equívoco, uma ambiguidade muito grande, que não se resolve entre o que Jesus diz que é um templo e a construção que nós temos do templo. As igrejas cristãs, a começar pela Basílica de S. João de Latrão, não é verdadeiramente um templo. Jesus põe fim aos templos. As basílicas, as igrejas que se constroem, é  aquilo que se pode fazer depois do fim. Este lugar onde nós estamos, ao qual nós temos tanto amor e que é tão bonito em si, esta pequena capela que era a capela de um palácio, que agora foi desagregada do palácio e se tornou o lugar da nossa comunidade, é um lugar a que temos tanto amor. Mas não tenhamos dúvidas, a fé não depende deste lugar. Não depende deste lugar físico nem de nenhum lugar físico. Isso é uma revolução que o Cristianismo veio trazer, porque a religião estava sempre, até Jesus, associada a um templo, a um lugar. O lugar é que era sagrado. No Antigo Testamento a Shekhinah, a glória de Deus, habitava no santo dos santos do templo, por isso os judeus tinham de ir anualmente a Jerusalém porque só ali tinham a possibilidade de encontrar Deus.

Quando Jesus, nas vésperas da sua Paixão, faz este grande sinal de entrar no templo de Jerusalém começa a derrubar as mesas dos cambistas e dos vendedores, e depois diz que destruirá aquele templo, para os judeus é como se fosse um raio que caísse. “Mas como é que é isso? Este templo levou cinco décadas a construir, como é que tu o destróis assim em três dias?” Depois, S. João diz-nos: “Mas Jesus falava do templo do seu corpo.” Aqui está, de facto, a grande revolução que o Cristianismo instala: falar do Templo, na linguagem de Jesus, na gramática de Jesus, é falar do corpo. Quer dizer, é falar da vida, é falar da existência. É inseparável a experiência de Deus do nosso corpo e da nossa existência. Esse é que passa a ser o lugar sagrado. Não há lugar mais sagrado no mundo do que a vida de uma mulher e de um homem. Não há nem lugar mais belo, nem mais santo, do que qualquer homem e qualquer mulher. É o lugar mais sagrado do mundo porque é o lugar onde Deus está, na Sua forma mais plena, na Sua cintilação, na Sua expressão. A vida do Homem é o lugar de Deus. Claro que os templos têm a sua beleza, têm a sua história. Os templos são importantes, e queria falar um bocadinho disso também nesta homilia. Mas o que Jesus vem trazer é isto: é a tua vida o lugar de Deus.

No funeral da Sophia de Mello Breyner, há uns anos atrás, o frei Bento, que fez a homilia, lembrava que a Sophia de Mello Breyner muitas vezes (e nós sabemos até que ponto ela era uma apreciadora da beleza da grande tradição, das grandes basílicas) pedia: “Quando é que vamos rezar uma missa junto do mar ou num bosque.” Esta necessidade que ela tinha de sair do templo é uma necessidade cristã. A nossa fé não está dependente já de um templo. A nossa fé está sim dependente do reconhecimento, humilde e esperançoso, que na nossa vida Deus está, Deus habita. O coração, o corpo, de cada um de nós é a morada do próprio Deus.

O Cristianismo nasce num momento fraturante da história religiosa judaico-cristã, que é o momento da destruição do Templo. No ano 70 as tropas do imperador entram em Jerusalém e arrasam o Templo. Aquele momento é vivido pelo Judaísmo como o fim da história, em que acabou o Judaísmo. E perguntam: “Mas como é possível rezar? Como é possível oferecer a Deus a nossa vida sem os sacrifícios, sem o Templo, sem a máquina cultual?” Os cristãos lembraram-se que tinha sido o próprio Jesus a antecipar a destruição do Templo, isto é, a desativar o Templo. Jesus entra no Templo e desativa-o. Quando Jesus entra no Templo e diz: “ Eu falo do templo do meu corpo.” Aquele corpo grande que é o Templo já não é aquilo. Já não é aquele lugar da relação com Deus mas passa a ser o corpo do sujeito, passa a ser o corpo individual. Depois os cristãos vão explorar esta reflexão. Por exemplo, um texto como o da Carta aos Hebreus vai dizer que o único sacerdote é Cristo. O sacerdócio que vem de Aarão, séculos e séculos, aquela  grande máquina de sacrifícios, tudo isso passou. O grande culto deixa de ser uma máquina sacrificial feita num lugar, feita segundo uma determinada gramática religiosa, e passa a ser própria existência. A vida é o lugar da adoração de Deus, da descoberta de Deus, da procura de Deus. A Carta aos Hebreus que diz: “Senhor, não me tornas-te sacerdote, não me deste um Templo mas deste-me um corpo.” A cada um de nós Deus deu um corpo. Deus deu uma vida, que é o conjunto daquilo que somos, os nossos sentidos, a nossa interioridade. Deus deu-nos uma vida para aí buscarmos o lugar de Deus.

Por isso, queridos irmãs e irmãos, nós hoje celebramos a festa da dedicação da igreja de S. João de Latrão, mas não celebramos já um templo, porque celebramos o templo em cada domingo das pedras vivas que somos nós cristãos. Como nos lembra ainda hoje a passagem de S. Paulo na carta aos Coríntios: “Sois vós as pedras vivas.” Isto significa o quê? Significa que a nossa religião, a prática religiosa, passa muito por assumir a nossa história, assumir o que somos. Não é alienarmos a nossa vida a troco de um conjunto de práticas, um conjunto de ritos que a gente vai fazer. Não, os ritos estão ao serviço do encontro connosco próprios, os ritos estão ao serviço da consciência e do reconhecimento que fazemos da nossa vida. Os ritos estão ao serviço da esperança com que Deus quer contaminar aquilo que somos.

Por isso, queridos irmãs e irmãos, a nossa vida é a autobiografia de Deus, a nossa vida é o lugar onde Deus se conta, onde Deus se narra, onde Deus se relata. Por isso é tão importante nós estarmos aqui, estarmos de corpo inteiro, não como quem vem a um templo mas como quem está em casa, como quem está em si, como quem entra dentro de si, como quem se reencontra com a sua história. Nós estamos aqui para respirarmos, para nos alimentarmos, para vivermos no fundo. E isso é que é mais importante do que todas as pedras. Às vezes, a história e o património são um atrapalho, são um impedimento, são coisas maravilhosas em si mas podem ser pura tralha que esmaga a vida. Porquê? Porque temos o peso de uma tradição que nos faz esquecer o óbvio. O óbvio é que Deus ama de forma única cada um de nós e quer que a sua glória seja o homem vivo, que nós possamos viver plenamente – esse é que é o grande Templo, o grande lugar.

Muitas vezes a palavra de Jesus que fala do Templo do Seu corpo, e depois de S. Paulo que por diversas vezes fala do Templo que é o nosso corpo, foi lida unicamente em chave moral para, no fundo, nós termos de defender a pureza, e uma pureza ritualista, que tem a ver com os templos antigos, mantermos uma pureza no nosso corpo, porque isso é que faz de nós um Templo. Claro que é importante a pureza de coração, é evidente que é importante, mas essa frase de Jesus e de S. Paulo é para entender em chave existencial. É a nossa vida, é o lugar de Deus. Nesse sentido é que nós temos a capacidade de transformar o tempo, a história, num Templo, num lugar de encontro, num lugar onde ensaiamos uma relação, num lugar onde se constrói verdadeiramente uma história. Isso é, sem dúvida, o elemento mais importante.

Queridos irmãs e irmãos, ao celebrarmos a Basílica de S. João de Latrão, no fundo, estamos a celebrar as nossas vidas e o que significa a nossa vida como lugar de Deus. A grande pergunta é como é que na vida é que eu sou, como é que na história que eu construo, como é que na história, Deus se revela? Como é que eu O encontro? Como é que eu estabeleço uma relação, não apenas implícita com Deus, mas como é que eu estabeleço na minha vida, na minha história, com a pessoa que eu sou, como é que eu estabeleço uma relação divificante com o próprio Deus? Esse é que é o tema, essa é que é a questão que cada um de nós é chamado a aprofundar, a construir. Vamos rezar assim uns pelos outros e celebrar esta grande beleza que o Cristianismo traz à vida humana. Que é dizer: ” Olha tu, és o lugar onde Deus vive. És o lugar que Deus escolheu para viver no mundo.”

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade da Dedicação da Basílica de São João de Latrão

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2014/11/02 - Morrer é não ser visto (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Nós começámos este mês de novembro, ontem, pela celebração de Todos os Santos e, hoje, pela celebração dos Fiéis Defuntos. No fundo, somos chamados a um confronto com a morte, que é um confronto que a nossa cultura evita a todo o custo. A morte tornou-se um tabu, uma ocultação. Todos nós vivemos, socialmente e culturalmente, como se a morte não existisse. A morte é retirada da cena pública. Infelizmente, até o dia 1 de novembro deixou de ser feriado entre nós. Menos possibilidade, como sociedade, nós temos de mergulhar mais fundo, no significado, não da morte, mas da vida. Porque pensar o que é a morte é pensar também o que é a vida. De facto, há uma certa infantilização da nossa cultura, no sentido de que a morte deixa de ser um fator na construção e na imaginação das nossas próprias vidas. A sabedoria bíblica dizia precisamente o contrário, dizia: “Homem pensa na tua morte. Homem pensa que vais morrer. Aprende a contar os teus dias. Sabe que todos os teus dias já estão contados. Porque só assim podes orientar o teu coração na sabedoria.” Isto é, a morte não é um ladrão que há de roubar a nossa vida. A morte, como dizia S. Francisco, “é uma irmã que está connosco desde o berço.”, que nos acompanha todo o tempo, e com a qual nós temos de criar uma relação diferente desta surpresa, desta coisa inesperada em que a morte se tornou nas sociedades modernas. É uma coisa que nenhum de nós espera. É uma condição da nossa própria vida. Por isso há aqui uma relação a trabalhar, a relação de cada um de nós com a própria ideia de morte. O que não quer dizer que a ideia de morte será, alguma vez, perfeitamente pacífica para nós.

E, até, mais difícil de encarar do que a nossa morte pessoal é a morte daqueles que amamos. Que é, porventura, o desafio mais terrível, mais inusitado, que todos nós temos de enfrentar. Já na tradição cristã, por exemplo, dois grandes padres da Igreja, Gregório de Nazianzo e Basílio, que eram muito amigos, quando morreu Basílio, no funeral, Gregório de Nazianzo fez uma homilia célebre em que dizia: “Se me viessem dizer que um corpo podia viver sem a sua alma eu acreditava. Mas se me viessem dizer que eu podia viver sem ti, isso para mim parecia-me impossível.” E é impossível. Nós não conseguimos viver sem os outros, sem aqueles que amamos, estejam neste mundo a nosso lado ou estejam do outro lado junto de Deus. Eles continuam a viver connosco, continua a haver uma comunhão dos santos, não há um dia em que não pensemos neles. A presença deles, a memória deles, é uma coisa sagrada que nos acompanha. Lá vamos buscar a força, vamos buscar o entendimento de nós mesmos, vamos buscar a palavra que eles nos disseram, sentimo-nos herdeiros deles, herdeiros da vida que eles viveram, do sonho que os habitou, do coração que neles bateu tão forte e tão ténue, somos herdeiros deles até ao fim. Embora, de facto, nos sintamos de mãos vazias para falar destas coisas, porque sentimos que temos de fazer o luto, que é no luto que tateamos os seus rostos amados, que é na ausência, que é no silêncio, nós não vemos, deixamos de ver. Fernando Pessoa dizia que “morrer é não ser visto. Morrer é passar a curva da estrada.” E, de certa forma, é isto que nos acontece, e primeiro acontece àqueles que amamos, e cada um de nós é testemunha da vida uns dos outros e do mistério desta vida que ultrapassa as nossas palavras e as nossas explicações. Mas acreditamos que há uma forma de comunhão. E essa comunhão, para nós, é uma coisa ao mesmo tempo intangível mas absolutamente presente.

Um grande filósofo marxista Ernst Bloch escreveu, em grande medida, um dos livros marcantes do século XX e que abriu o marxismo a um certo sentido de transcendência. O  livro chamava-se O Princípio da Esperança e ele escreveu esse livro muito a partir do que ele próprio experimentou: a relação com a esposa, que era para ele uma relação absolutamente indivisível. Quando ela morreu, a experiência que ele fez foi: “não, ela não pode simplesmente ter desaparecido. Não pode.” Há uma persistência, que é doutro domínio, que é de outra ordem. É essa persistência que eu tenho agora de acolher e transformar numa forma de comunhão, numa forma de companhia, numa forma de presença.

S. Paulo, na Carta aos Coríntios, tem esta frase extraordinária: “ Não olhemos apenas para as coisas visíveis, olhemos para as coisas invisíveis.” Neste dia em que somos chamados a rezar, a tornar presentes, a fazer memória dos nossos queridos que já partiram, é isso que temos de fazer: olhar para as coisas invisíveis e dar-lhes o valor que elas devem ter nas nossas vidas, nas nossas histórias. Porque nem tudo cabe no nosso olhar, nem tudo cabe naquilo que ouvimos. Há tanta coisa que está para lá do que nós podemos medir. E isto não é apenas mística, isto é a ciência, é a realidade. Um cão ou um gato ouvem o dobro das coisas que nós ouvimos. Nós ouvimos metade das coisas que eles ouvem. O olhar de certos animais vê muito mais coisas do que aquelas que nós vemos. A estrutura do nosso ser, que é uma estrutura que nos dá a sensação do eterno, ela não deixa de ser limitada. Os nossos sentidos, dizendo-nos coisas tão fascinantes, não nos dizem tudo, abrem-nos ao mistério.

Queridos irmãs e irmãos abramo-nos também a esse mistério e sintamos que aquilo que S. Paulo escreveu aos Coríntios, naquele final de século primeiro, é absolutamente válido para nós. Nós sentimos, à medida que crescemos e que envelhecemos, que há uma espécie de destruição do nosso corpo, da nossa forma. Temos menos forças, menos capacidades. Mas, ao mesmo tempo, sentimos que isso não é o fim. Porquê? Como diz S. Paulo há: “o homem interior.” Que vai sendo reforçado dentro de nós. Há a mulher interior que vai nascendo. E a vida não é uma morte, a vida é um parto, a vida é um nascimento. As dores que sentimos são também as dores de parto, não são as dores do braço que não vai funcionar mais como já funcionou, não são as dores dos olhos que já não vão ver como um dia viram. Mas é a dor de um outro nascimento que tem de acontecer dentro de nós e que nós alimentamos na fé. Essa certeza de que há uma interioridade que se vai tornado cada vez mais decisiva, cada vez mais radical em nós, essa interioridade é uma semente, que há de florir, não já apenas no tempo mas também na eternidade, não apenas na história mas também junto de Deus.

É interessante nós olharmos, por exemplo, para um homem como Paulo, que é um homem que tenta explicar a Humanidade e a fé, procura as razões para a sua fé, e vermos que ele fica muito atrapalhado a falar da morte e a falar da vida eterna. Atrapalhado no sentido de que não encontra palavras e vai criando imagens diferentes, imagens novas. Porquê? Porque sente o limite das próprias imagens. Quer dizer, o que quer que a gente diga é insuficiente, fica aquém, mas no meio desta dificuldade, com a qual todos nos debatemos, há uma certeza que emerge no coração de Paulo. E é essa certeza que, mesmo ténue e frágil, emerge no coração de cada um de nós: nós estaremos com Ele para sempre, qualquer que seja a forma, e será sempre surpreendente para nós porque é a forma de Deus em nós, não é apenas uma construção nossa, é o dom de Deus.

Nós não ressuscitamos, nós somos ressuscitados, somos transformados por Deus. Mas temos de ver a vida como um processo de transformação em que estamos sempre com Ele. Esta confiança de que estamos com Ele é também a certeza da comunhão dos santos, a certeza de que estamos com todos os que estão Nele. No coração de Deus há lugar para todos e Deus é um pai de misericórdia que espera por todos. Deus não exclui ninguém, Deus espera por todos e quer salvar a todos. É esta a confiança que a fé nos dá, de que estaremos sempre com Ele, qualquer que seja a nossa forma, qualquer que seja o nosso modo, qualquer que seja o nosso tempo, é daí que nós partimos para esta confiança também no encontro uns com os outros, no reencontro com aqueles que amamos, nessa certeza de que nada se perde no coração de Deus e tudo se transforma.

É claro que as nossas lágrimas continuam a ser choradas e que a ausência daqueles que amamos continua a fazer-nos falta, continua a doer-nos, porque um pai é um pai, porque uma mãe é uma mãe, porque um esposo é um esposo, porque uma esposa é uma esposa, porque um amigo é um amigo. E continuamos, até ao fim, como testemunhas dessa ausência e isso provoca em nós uma dor que também é importante nós não mascararmos. É importante essa nudez, esse vazio, essa orfandade que também nos assinala até ao fim. Mas, nesta exposição da nossa dor, é importante a palavra de confiança que Paulo nos diz, nós não colocamos o nosso olhar apenas nas coisas visíveis, colocamos nas coisas invisíveis. Por isso, este discurso extraordinário que Jesus nos faz: “vinde a mim todos vós que andais enlutados e afadigados, porque Eu vos aliviarei. Eu serei reconforto para as vossas almas, porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve.” A transformação do nosso peso, da dor agressiva que tantas vezes nos marca, transformar isso em leveza e em suavidade é uma coisa que, para nós cristãos, só acontece na medida em que colocamos a nossa história de vida nas mãos do próprio Deus.

Pe. José Tolentino Mendonça, Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos

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2014/11/01 - A santidade é para todos (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Nós celebramos hoje a Festa de Todos os Santos. O documento Lumen Gentium do Concílio Vaticano II, que é o documento que pensa o que é a condição dos cristãos e o que é a Igreja, no seu número cinco começa a dizer o seguinte: ”A santidade é a vocação comum de todos os cristãos.” Então, cada um de nós é chamado à santidade. Por vezes triunfa uma imagem dos santos como aqueles que encarnam de forma extraordinária e de forma excecional um ideal cristão. Ora, essa visão não é exatamente a visão cristã, porque a visão cristã é de que  santidade é para todos. Não é para alguns no interior da Igreja. A santidade é a vocação comum de todos os cristãos. Os santos não são apenas os modelos, os heróis. Os santos são aqueles que estão ao nosso lado, que caminham connosco. Os santos somos nós. É preciso perceber a santidade não como um mérito pessoal, mas a santidade como um dom. A vida de cada um de nós é uma vida santa. A santidade está em cada um de nós. A santidade não é uma medalha que colocamos ao peito, a santidade é o nosso ponto de partida. Sem termos feito nada para isso Deus deu-nos a Sua santidade, derramou o dom da Sua  santidade em nós. E por isso nós ouvíamos isto que diz a Primeira Epístola de S. João: “ Vede com que admirável amor o Pai nos consagrou em nos chamar filhos de Deus, e somo-lo de facto.”

Queridos irmãs e irmãos, a coisa mais importante de todas é que somos filhos de Deus, é que cada um de nós foi, é e será amado com um amor incondicional e admirável. É a certeza na qual nós podemos colocar toda a nossa confiança de que Deus nunca nos abandonará, de que Deus nunca quebrará esta relação de amor que Ele tem com cada um de nós, que Ele nunca deixará de nos assistir. Nunca deixará de nos dar a possibilidade de esperança, de transformação, de encontro na nossa vida. Ele estará connosco todos os dias, até ao fim dos tempos. A santidade, queridos irmãos, é esta confiança no dom que Deus derrama no nosso coração. A grande pergunta é: o que é que nós fazemos com esse dom?

Hoje, no Evangelho, nós ouvimos de novo a página das Bem-aventuranças. É talvez o grande discurso de Jesus, a grande página do Evangelho. Nós confrontamo-nos com este discurso de Jesus tantas vezes na nossa vida. E a pergunta é: Hoje, que sentido é que faz para mim confrontar-me com estas palavras do Senhor? E Ele diz: ”Vós os pobres em espírito, vós os humildes, vós os que chorais, vós os que tendes fome e sede, vós os que usais de misericórdia, vós os que vos esforçais por serdes puros de coração, vós os que promoveis a paz.” Jesus não tem um discurso religioso. A santidade não é a expressão de uma devoção. Jesus tem um discurso humano. Isto é, é a vida, é o que nós vivemos, a experiência da nossa fragilidade, as nossas lágrimas, a nossa pequenez, o nosso esforço por construir a paz nem sempre conseguido, a nossa fome e a nossa sede, a perseguição que sofremos na vida. No fundo, não se trata de uma vida devota sobreposta a esta vida concreta, histórica, que nós temos. Jesus fala da vida vivida, da vida concreta, da vida de todos os dias. A questão é: o que é que fazemos com isto? Todos nós temos lágrimas, o que é que fazemos com as nossas lágrimas? Todos nós temos fome e temos sede, o que é que fazemos com a nossa fome e com a nossa sede? Todos nós experimentamos o que é a pobreza de coração, a fragilidade da vida, o que é que fazemos com isso? Todos nós sentimos em nós o desejo da paz, o desejo da misericórdia, o que é que fazemos? Que espaço é que damos realmente a esse desejo?

Na leitura do Livro do Apocalipse, nesta visão da história que o Profeta tem, há uma coisa muito interessante, ele vê uma multidão imensa que caminha para junto de Deus. Nós não conseguimos ver porque os nossos olhos são limitados. Mas os profetas veem mais longe, veem o sentido profundo da história. Olhando para o mundo, ele vê uma peregrinação imensa de homens e mulheres, vestidos de túnicas brancas, que vão saudar o trono de Deus. E ele pergunta: “Senhor quem são esses? Quem são essas?” E do trono responde-se isto: “ Estes e estas são aqueles que lavaram as suas túnicas no sangue do Cordeiro e ali as branquearam.” É um paradoxo. Se eu lavo a minha roupa em sangue, ela fica em sangue, não fica branca. É um paradoxo. Mas no fundo é o paradoxo da Cruz, o paradoxo do sacrifício, o paradoxo da dádiva, o paradoxo do dom. Quando eu dou é que verdadeiramente possuo. Quando eu amo e me entrego é que verdadeiramente me encontro. Quando eu aceito perdoar é que verdadeiramente sou livre, experimento a liberdade. É uma máquina de fazer paradoxos. Porque nós diríamos que, ao contrário, ao lavar uma túnica em sangue esta nunca ficaria branca. Mas nós somos chamados a branquear, a tornar imaculada, a tornar pura a nossa vida no sangue do Cordeiro, isto é, na lição do Cordeiro, na lição de Jesus. “Senhor, quem são estes? E quem são estas que hoje se reúnem à volta do teu trono?” Eu diria: são mulheres e homens, que se esforçam por lavar as suas túnicas no sangue do Cordeiro, isto é, por lavar as suas lágrimas, a sua fome e a sua sede, a sua fragilidade na lição de Cristo. Vivermos a vida que cada um de nós tem para viver, e que é uma vida diferente com as circunstâncias próprias, com o enquadramento que é único, singular de cada um de nós, mas o que é que fazemos com isso? O caminho da santidade é este lavar no sangue do Cordeiro, tomar para si a lição de Cristo, o caminho de Cristo. E então, aquilo que nos parece impossível torna-se possível.

Quando nós olhamos para os santos canonizados não há dois iguais, são todos diferentes. O que é que têm em comum? Têm em comum terem sido eles próprios. E, a um dado momento da sua vida, terem apostado tudo no lavar as suas túnicas no sangue do Cordeiro, em viver a lição de Jesus até ao fim, como seu caminho, como sua vida. E é no fundo isto que estamos aqui a fazer, domingo a domingo, com o nosso caminho, com a nossa história, é isso que estamos a fazer.

Queridos irmãos, vamos agradecer o caminho que fazemos hoje com os outros, vamos dar graças pela santidade de Deus em nós e pela forma maravilhosa como ela se revela em cada um de nós. Porque cada um de nós tem um modo próprio de andar, de rir ou de chorar. Cada um chora à sua maneira ou ri à sua maneira. Nós também temos uma forma maravilhosa de sermos santos à nossa maneira. E é isso, também, que vamos colocar sobre o altar e agradecer. Não é tudo perfeito, não é tudo já acabado, não nos vão lavar os pés e colocar no altar. Mas também a ideia não é essa. A ideia é: com o inacabado que somos, com esta coisa meio a caminho, carregada de imperfeições, que é a nossa vida nós colocarmos isso nas mãos do Cordeiro. E acreditarmos que Ele é capaz de fazer da nossa vida aquilo que ela verdadeiramente é.

Pe. José Tolentino Mendonça, Solenidade de Todos os Santos

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Outubro

2014/10/26 - O amor é alguma coisa que está para lá das leis (homilia)

Queridas irmãs e irmãos

Esta semana estive em Milão e, pela primeira vez, pude ver a “Última Ceia” do Leonardo Da Vinci.

Fui a Santa Maria delle Grazie, com muita paciência lá esperei, e pude finalmente estar diante do quadro, que é um fresco no refeitório daquele convento. Nós vemos as imagens em livros e em postais, mas quando estamos diante delas parece que as vemos pela primeira vez. E é espantosa aquela “Última Ceia” do Leonardo da Vinci. A mim o que me marcou mais foi que aquele momento é uma grande conversa. Ao contrário do que pensamos, que na “Última Ceia” está toda a gente muito calada, muito compenetrada à volta do que está ali a acontecer e do que Jesus está a dizer, não, aquilo é uma conversa pegada, uma discussão sem fim, um desassombro, um desconcerto cheio de movimento. Estão os doze discípulos organizados em grupos de três: três, três, três, três e todos à conversa uns com os outros, em conversas cruzadas, a falar, a perguntar, uns muito atónitos de braços abertos, como que a perguntar “o que é isto?”. De facto, eu pensei, isto tem alguma coisa de verdade em relação à eucaristia, porque mesmo que estejamos quietos no nosso lugar, a escutar ordeiramente, a verdade é que à volta desta mesa nós estamos aqui por causa de uma discussão, de uma conversa que temos connosco próprios, uns com os outros e com o próprio Deus. Nós estamos aqui não apenas para nos pacificarmos, não vimos apenas à busca de um momento de tranquilidade na nossa semana. Este momento, ao mesmo tempo, é um momento de grande alvoroço porque somos trazidos aqui, também, por grandes perguntas, grandes questões que habitam o nosso coração. E uma das perguntas é, de facto: Como viver uma vida feliz? O que é viver uma vida feliz? O que é que Deus quer de mim? São perguntas que, mesmo em silêncio, cada um de nós traz até aqui, domingo a domingo. Qual é o meu caminho? O que é que eu hei-de fazer? A palavra de Deus hoje, pela boca de Jesus, trata precisamente disto, e trata, como é normal, com uma grande capacidade de nos desconcertar. Nós conhecemos as leis, temos por exemplo uma Constituição da República que é a nossa lei fundamental como cidadãos, como país. Temos o Código Civil, essas leis todas, a lei de trânsito, …temos as leis todas. Mas não há nenhuma lei que nos mande amar. O amor parece alguma coisa que nenhuma lei nos pode pedir. A lei pode pedir que eu seja respeitador, que eu seja cordial, que eu pague os meus impostos, que eu seja solidário, que coopere. Mas nenhuma lei me obriga a amar. Porque, na nossa experiência, o amor é alguma coisa que está para lá das leis, o amor é alguma coisa puramente gratuita que nasce no nosso coração. E pode nascer ou não nascer, mas não somos obrigados a amar. Contudo, o discurso cristão é um discurso paradoxal. Porque quando vêm perguntar a Jesus: “Olha lá, qual é o maior mandamento da lei?” Jesus diz: “É o amor.” Então nós somos obrigados a amar? Então o amor é também um mandamento? Ou o amor é uma eventualidade, é uma coisa gratuita, é um chamamento que a gente pode ter ou não? Para Jesus o amor não é apenas episódico, não depende apenas da nossa vontade. O amor tem de estar colocado como coração da própria lei. Uma lei que tem no seu coração o amor tem de ser uma lei completamente diferente das nossas. Porque as nossas são para orientar uma boa ou uma justa convivência social. Mas a lei de que Jesus fala é uma lei que quer mais da vida, que não se basta com pouco. Se no centro da lei está o amor, então isso quer dizer que nós temos de refazer tudo. O que é que está no centro da nossa vida? O que é que está no centro das nossas relações? O que é que está no centro da minha relação com Deus? Quando pensamos nisto com honestidade se calhar não é o amor que surge em primeiro lugar. Se calhar é muito mais a procura de uma convivência, de uma justa relação. A procura de um lucro, de um proveito, a procura de uma sobrevivência. Mas não é o amor que está ali e, contudo, Jesus diz “o cristão é um especialista em amor”. A relação que tem com Deus é antes de tudo uma relação centrada no amor. Ora, uma relação centrada no amor é uma relação livre, é uma relação de afeto, é uma relação de dedicação, é uma relação de conhecimento mútuo, é uma relação de intimidade. A verdade é que muitas vezes estamos longe disso. A relação que temos com os outros muitas vezes é uma relação de puro uso, de pura conveniência, quando não é até de aproveitar, aproveitar os outros para os nossos planos e para os nossos projetos, sem ter em conta a realidade dos outros. Contudo, Jesus diz: ”que a vossa relação com os outros seja marcada por isto: amar”, “ama o outro como te amas a ti mesmo”. Queridos irmãos, é uma imensa novidade. Se a gente se pusesse aqui a discutir, fazíamos uma cena ainda mais extravagante e desconcertada que a última ceia do Leonardo da Vinci. Porque se nos puséssemos a discutir o que é que está no centro da nossa vida – E será que é possível no centro da nossa vida estar o amor? – eu não sei se nós estaríamos de acordo, não sei se estaríamos aqui bem sentados numa boa paz de espírito. Esta semana, falando com um amigo sobre o Evangelho ele diz “Isso é impossível. Isso é para vocês cristãos que têm esses idealismos, essas utopias. Isso é impossível.” Eu não sei se é possível ou não, digam-me vocês, é possível ou não? Nós confrontamo-nos com esta palavra: isto é possível ou não é possível? Não sei. Há uma coisa que eu sei: é que isto só é possível se, previamente, nós fizermos a experiência do amor de Deus. Eu acho que quem nunca fez a experiência do amor de Deus, do que significa o amor de Deus na sua vida, um amor incondicional, um amor total, um Deus que envia o seu próprio Filho para dar a sua vida por nós, um Deus que espera por todos sempre, um Deus que não desiste de ninguém, não desiste de mim, nunca, nunca, se eu não fiz até ao fundo esta experiência de amor, se eu não vivo da contemplação e da certeza deste amor, eu não sei como é que é possível colocar o amor no centro da vida. Acho que é simplesmente uma daquelas coisas bonitas que Jesus disse mas que já não é para nós, já não vamos a tempo de viver isto.

Queridos irmãos, não é fácil, não é fácil, este Jesus. E nós não o vamos resolver nesta homilia, nem o vamos resolver hoje. Cada um de nós leve o problema Jesus para casa. As palavras que Ele diz são palavras que nos tiram do sério, são palavras que nos acordam porventura para outra realidade, são palavras que nos dão outros critérios, mas estamos dispostos a vivê-los ou não? E como é que está a ser o caminho da nossa relação com estas palavras que despertam em nós tamanha tensão, tamanho espanto? Jesus é um problema, é uma conversa que a gente tem também connosco próprios. É importante que cada um de nós leve esta conversa para a sua semana. O que Jesus me pede é possível ou não é possível? E se é possível, como é que é possível? E se não é possível, como é que isso não é possível? Como é que eu cruzo os braços? Como é que eu o oiço e não consigo viver? Eu penso que precisamos de ter esta conversa. Porque isto é o centro, e se a gente não põe perguntas, não põe questões, não diz “Isto não é possível. Isto não é para mim.”, não se volta de novo a reencontrar com esta palavra com frescura, com espanto, acho que não estamos a viver o caminho cristão.

Eu lembro-me que na primeira paróquia onde eu estive, na Madeira, era jovem padre, havia uma senhora, uma cristã, que tinha mais de oitenta anos, uma daquelas, nós diríamos, beatas da paróquia, e eu também pensava assim com um certo preconceito dela, mas depois quando a conheci, ela deixava-me a milhas. No fundo, a grande questão desta mulher era: “É possível construir uma espiritualidade baseada no amor ou não? E nós podemos mesmo amar ou não podemos? E conseguimos ou não conseguimos?” Era a questão dela e não queria respostas fáceis, não queria discursos redondos. Não. Era ou não era possível? Eu aprendi muito com a exigência daquela senhora que queria saber se era ou não era assim. Penso que todos nós, em todas as idades, somos chamados a colocar esta questão assim, com verdade.

Queridos irmãos, nós não temos muitas respostas mas Jesus incendeia, Jesus mete fogo na nossa paz, Jesus tira-nos a campo, tira-nos a terreiro. Esta questão do amor é uma daquelas questões com a qual a gente tem de lidar sempre. Mesmo que a gente diga “Ah, não é possível.” Mas depois ela vai-nos aparecer à frente e vai-nos pedir respostas cada vez mais concretas. A decisão ‘sim’ ou ‘não’ não é uma decisão filosófica, é uma decisão muito concreta. Se há o amor então o que é que tu fazes? Então como é que vives? Qual é o teu programa? Como é que ages? Aquela ceia do Leonardo da Vinci fez-me pensar aqui na nossa comunidade, aqui na nossa Capela. No fundo, como é que esta palavra nos põe a pensar, nos põe a discutir uns com os outros, nos põe a conversar à mesa das nossas famílias, com os nossos amigos? Porque se isto não é um problema que nós levamos connosco, então não o estamos a habitar verdadeiramente, e é isso que nós vamos pedir: a força de habitar este Cristianismo que, muitas vezes, não é fácil e para o qual, muitas vezes, nós não temos uma resposta pronta, mas que é um combate que dá sentido às nossas vidas.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXX do Tempo Comum

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2014/10/21 - Conversas à Capela - Sínodo sobre a Família

Na próxima terça-feira, dia 21 de outubro, pelas 21h30, recomeçamos as nossas Conversas à Capela. Para esta conversa, convidámos a socióloga Ana Nunes de Almeida, o jornalista António Marujo e o pedo-psiquiatra Pedro Strecht. O diálogo será centrado nos debates que têm decorrido a propósito do Sínodo dos Bispos sobre a Família.

Setembro

2014/09/21 - Deus está perto de todos (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Esta parábola que Jesus hoje nos conta coloca-nos perante a questão da fé e da ausência de fé.

A história da fé é comparada, por Jesus, a este convite para ir trabalhar na vinha do Senhor. Há uns que o Senhor logo pela manhãzinha, pela madrugada, chama para trabalhar na sua vinha. Mas a verdade é que depois sai a meio da manhã, ao meio dia, às três da tarde e ao fim do dia e ainda continua a chamar outros para ir trabalhar na sua vinha.

Quer dizer, o encontro de fé não é igual para todos, não é tudo ao mesmo tempo. Há tempos diferentes no nosso caminho. Há um mistério, para nós crentes, que é percebermos porque é que a fé toca a uns e não toca a outros. Porquê?

Porque é que a fé é um dom que é dado a uns e parece que não foi dado a outras pessoas?

Porque é que a fé é um dom me foi dado a mim? Às vezes pergunto-me…

Certamente que cada um de nós se pergunta, porque todos nós conhecemos pessoas fabulosas e que não são crentes, “mas porquê?”.  O que é que eu tenho a mais ou o que é que eu tenho a menos? É um mistério! A fé é, de facto, um dom. É um dom que não se explica. Um dom que não se justifica.

A única coisa que a gente sabe é aquilo que o salmo diz : “Deus está perto de todos, Deus está perto de todos”. A forma como nos relacionamos com essa proximidade de Deus, com essa vizinhança, nós não sabemos.

Nesse sentido, viver a fé tem que ser um exercício de grande humildade, de grande desprendimento e de grande abertura. Porque a fé não nos pertence, a fé é-nos dada. A fé não é um direito nosso, a fé atravessa-nos, como uma coisa que nós servimos, que nós usamos mas que verdadeiramente não é nossa. É um dom de Deus.

Nós precisamos de perceber que acreditamos também para servir os outros, em função dos outros. A nossa fé não nos afasta de ninguém, pelo contrário. Nós acreditamos não é no lugar do outro ou em vez do outro, porque cada um é chamado a esse encontro. Mas nós temos fé para os outros. Não é ter fé e ponto final, como se fosse um direito nosso. A fé é uma abertura para os outros.

Esta parábola que Jesus conta é uma parábola impressionante. Das frases do Evangelho que me impressionam mais é aquela em que os trabalhadores que o Senhor contrata só às cinco da tarde, mesmo no fim do dia, respondem quando o Senhor pergunta: Então e vocês, porque é que não foram para a vinha? Eles respondem: Porque ninguém nos contratou, porque ninguém nos contratou.

Em latim a tradução ainda é mais forte porque diz: “porque nenhuma palavra nos conduziu a ti”. E o Senhor não diz: isso é mentira, vocês foram contratados antes. Não, ele aceita, aceita que foi assim.

Isto quer dizer, queridos irmãos e irmãs, que é um mistério muito grande, aquilo que acontece no coração de um crente e de um não crente. É um mistério muito grande.

O Cardeal Carlo Maria Martini, no final do século passado, na Catedral de Milão,  desenvolveu um projeto muito belo, chamado a Cátedra dos não crentes.

Ele levou para dialogar, na Catedral de Milão, crentes e não crentes. E não era só dialogar sobre economia, política, … Não. Eram coisas deste tipo: perguntar a um não crente como é que ele rezava e qual era a sua experiência de oração.

O cardeal Carlo Maria Martini diz uma coisa muito bela: que cada um de nós, no seu coração, tem um crente e um não crente, que conversam entre si e que se perguntam coisas pungentes, coisas dramáticas. Há perguntas que o nosso coração faz porque, dentro de nós, há também um não crente. E é preciso ouvir o não crente que existe em nós porque ele, se calhar, vai ajudar a purificar aquilo que eu penso que é a minha fé mas que, verdadeiramente, não é uma fé iluminada.

Ele diz o seguinte: faz muito bem aos crentes escutarem os não crentes, como faz muito bem aos não crentes escutarem os crentes e dialogarem sobre isso.

Queridos irmãos, porque é que nós estamos no trabalho da vinha? Não é para ganhar mais do que os outros. Essa é conclusão da parábola. Os trabalhadores da primeira hora pensavam: bem, estão a entrar estes, nós entrámos mais cedo, suportámos o dia e o calor, o que será a nossa recompensa? Depois, no final, percebem que todos recebem o mesmo denário.

O caminho que estamos a fazer não é por recompensas. É preciso purificar a nossa fé deste desejo ainda muito humano, ainda muito mundano de recompensas.

Santa Teresinha do Menino Jesus dizia uma coisa que para nós, ao mesmo tempo, é terrível. Ela dizia assim: “Ainda que não existisse céu, eu não deixaria de acreditar em Ti”. É uma coisa muito radical. Há céu. Nós acreditamos que há céu. Mas ela dizia: ainda que não houvesse, eu continuaria a acreditar em Ti…

Quer dizer, a nossa fé é a história de uma relação, de uma relação que nós vivemos agora, no presente, não é em vista disto ou daquilo. Não! Saboreemos o presente, saboreemos o momento que agora estamos a viver, como naquele belo poema de Kavafis, «O regresso a Ítaca».

Ele diz: “Quando regressares a Ítaca, à maneira de Ulisses, reza por uma viagem longa, que possas passar por muitos portos, ter uma vida cheia, uma vida plena de acontecimentos. Porque depois quando chegares a Ítaca, Ítaca não tem nada para te dar, deu-te a viagem».

Deus tem coisas para nos dar, tem a sua presença. O nosso coração vai ser saciado de Deus. A nossa fome, a nossa sede vai ser saciada da sua presença, da sua glória -veremos o rosto de Deus.

Mas não é para termos um lugar à direta ou à esquerda. Não é um pódio, é um encontro. É um encontro que, desde agora, temos que ter a consciência que estamos a viver com os outros, ao lado dos outros, integrando também o que é a experiência dos outros. Porque isso é tão importante… Nós crentes não temos o monopólio nem da fé, nem da moral, nem da ética – não temos!

Os não crentes também têm uma ética, também têm uma relação espiritual qualquer que ela seja, uma abertura ao mistério da vida, têm dúvidas. Nem que seja terem um património de dúvidas. Isso é um património fantástico, têm um património espiritual fantástico.

Por isso vamos pedir ao Senhor que nos ajude a estar no nosso lugar.

Aquilo que o Profeta Isaías diz: Os pensamentos de Deus estão longe dos teus pensamentos como o Céu está longe da terra.

Isto é, a gente acha que é assim ou que é assado. Não. Deus é Deus. Quer dizer, Deus está muito para lá do que penso, do que eu sei, do que eu posso, das representações que eu faço. Aceitarmos isso dá-nos um sentido, ao mesmo tempo, de humildade, de desprendimento, de verdade, de um estar por estar, de um saborear o presente, o momento, o instante. Porque é isso que é fundamental.

O Senhor passa. Não passa apenas uma vez. Passa muitas vezes pela nossa vida. Esta parábola também é parábola das idades da nossa vida. O Senhor, se calhar, passou muito cedo na nossa vida. Mas depois também passa ao meio dia, também passa às três da tarde e passa ao crepúsculo. Se calhar as nossas respostas são diferentes. Mas é importante que a gente sinta que Deus passa, que Deus passa.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXV do Tempo Comum

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2014/09/14 - Fazer do amor sem medida a medida da nossa vida (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Hoje, nesta Festa da Exaltação da Santa Cruz, nós somos chamados a colocar os nossos olhos na Cruz do Senhor e a percebê-la não só como um facto único da história da Humanidade, um facto que nos faz abrir os olhos, um facto que vem ao inverso, que contraria a ordem do mundo pela espetacularidade da sua dádiva, ou para alguns, do seu absurdo, que nos faz escancarar a mente perante a Cruz do Senhor. Mas percebê-la não como um acontecimento inédito que diz respeito unicamente àquele profeta, messias, Jesus de Nazaré, mas percebermos a Cruz como medida do que nos é proposto viver. Percebermos a Cruz como caminho que nos é dado, objetivamente, para percorrermos. E fazermos disso o critério, o modo, o estilo, a gramática da nossa própria vida.

O que é que nos diz a Cruz do Senhor? Uma das mais extraordinárias explicações é, sem dúvida, a deste hino da Carta aos Filipenses que hoje nós proclamamos na segunda leitura. Este hino, que nos aparece na Carta de Paulo aos cristãos de Filipos, possivelmente era até um cântico anterior, uma profissão de fé, um credo que a comunidade cristã já tinha na sua Liturgia e que S. Paulo quando escreve aos Filipenses assume esse cântico para lembrar. É interessante o que S. Paulo coloca como moldura para esta rememoração que propõe aos cristãos de Filipos. S. Paulo diz “Irmãos, tende entre vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”, isto é “Irmãos, colocai no coração aquilo que habitou o coração de Jesus”, “Irmãos, vivei à maneira de Jesus, pensai e senti como Jesus pensou e sentiu”. E o que é que eram os sentimentos de Jesus? Então nós temos isto que S. Paulo relembra: “Cristo, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus mas humilhou-se a si próprio, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de homem”. Mas não ficou apenas como mais um homem ou o primeiro, o Príncipe dos homens. Ele humilhou-se ainda mais aparecendo como o último dos homens. Obedecendo até à morte e morte de cruz. Assumindo a condição de escravo. Este texto foi, na história da teologia cristã, da doutrina cristã, a base para o que se chama um pensamento quenótico. Kenosys, em grego, quer dizer queda, humilhação, esvaziamento.

O Cristianismo não é nós sermos uns inchados espiritualmente. “Ah, eu sou o maior, eu tenho uma fé, eu acredito em coisas sublimes, eu sou melhor moralmente do que todos os pecadores. Eu tenho isto, eu tenho aquilo”. O Cristianismo não é uma arte de inchar, é uma arte de esvaziar. A verdade é que nós esvaziamos pouco. E esvaziar o que é que quer dizer? Quer dizer realizar no seu coração aquele movimento que é típico do amor. Porque o amor, se nós pensarmos bem, não é outra coisa senão um esvaziamento de si. Aquilo que o amor pede a cada um é que se torne um mendigo, um suplicante, é que se coloque ao lado do outro como quem serve, como quem se coloca de joelhos, como quem se baixa, como quem se torna o último. O amor é o contrário da afirmação do poder. A afirmação do poder em que somos primeiros, em que dominamos, em que pensamos. O amor em que somos o servo , em que lavamos os pés, em que servimos, em que nos colocamos humildemente, e até com humilhação, ao pé do outro.

Qual é a utopia cristã? Qual é a proposta cristã? Eu diria, a insolência da proposta cristã qual é? É acreditar que aquilo que até pode acontecer entre duas pessoas, que é amarem-se e descobrir nesse amor que não podem viver sem a outra, que têm de viver numa doação, numa dádiva, numa entrega em relação aquela pessoa concreta, seja mulher seja homem… ou que aquilo que nós experimentamos num  pequeno círculo, da nossa família, por exemplo, em que sentimos a voz do sangue chamar, e estamos ali de uma forma incondicional, aconteça o que acontecer nós estamos com aquelas pessoas, por aquelas pessoas… ou até com os nossos amigos, que são irmãos que nós escolhemos e por quem nós damos tudo, com quem estamos sempre nas horas boas e nas horas más… nós podermos alargar esta experiência do amor a todos, a todos. É uma insolência, isto é, é alguma coisa impensável. Porque amar os nossos nós compreendemos, mas agora amar os estranhos, amar os nossos inimigos, amar os que nos perseguem, amar os que nós não conhecemos, amar os que estão fora do nosso círculo, amar os que pensam diferente de nós, isto é, fazer do amor, fazer daquilo que colocou Jesus na Cruz, que é o amar sem medida, fazer desse amor sem medida a medida da nossa vida é a proposta que Cristo nos faz.

Isto é vivermos num estado de paixão, vivermos nesta paixão de Cristo a nossa vida inteira. E não apenas em relação a esta pessoa que é a minha mulher, ou o meu marido, ou o meu amigo, ou o meu filho, ou a minha mãe, mas em relação ao mundo, em relação aos outros. Ser esta a minha forma de viver, a minha forma de ser. Porque Cristo veio ao mundo não para condenar o mundo mas para o salvar. E Deus enviou o seu Filho ao mundo não para O perder mas porque O amava sem medida. Cada um de nós é chamado a ser testemunha deste amor sem medida que Deus tem pelo mundo e tem pela pessoa humana. Sermos testemunhas deste amor assim, incondicional, inservil, desmedido. Esta é a utopia cristã. O Cristianismo precisa de cristãos tocados por um amor assim, abrasados por um amor assim, aquela civilização do amor que tem sido no magistério social da Igreja o grande propósito. Nós temos de ser fermento de uma civilização do amor. Não é uma abstração, não é uma ideia bonita para repetir, não é um chavão retórico. É um exercício, é um compromisso concreto que nós temos de tomar.

Queridos irmãos, Cristo está levantado da Cruz. Para quê? Porque é que nós cristãos fizemos de um crucificado o grande símbolo que nós não podemos deixar de ter diante dos olhos? Porque é que nos ajoelhamos? Porque é que veneramos? Porque é que amamos Aquele dependurado numa Cruz se não for para ter no nosso coração os sentimentos que O habitaram, se não for para decalcá-lO em nós até que Ele se confunda com o que somos, com o que fazemos, com o que pensamos e com o que sentimos?

Queridos irmãos, a Exaltação da Santa Cruz não acontece fora do mundo, não acontece nas páginas dos jornais, não acontece na abertura das notícias, não acontece por aí. A Exaltação da Santa Cruz acontece no segredo do nosso coração quando nós dizemos sim a Jesus, sim ao que Ele nos propõe como caminho, como vida.

Pe. José Tolentino Mendonça, Festa da Exaltação da Santa Cruz

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Julho

2014/07/18 - Estado de graça ou desgraça? – conferência para boa gente solteira

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2014/07/17 - VERBO – Deus como interrogação na poesia portuguesa

verbo_capelaRato_capaLivro_noticiaA antologia de poesia “Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa”, com seleção de Pedro Mexia e padre José Tolentino Mendonça, vai ser apresentada esta quinta-feira, 17 de julho, em Lisboa.

A sessão, marcada para as 18h30 na Capela do Rato, conta com as intervenções do crítico literário Fernando J.B. Martinho e Tolentino Mendonça, diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. O ator e encenador Luís Miguel Cintra lerá alguns dos poemas.

Do volume publicado pela Assírio & Alvim que foi lançado no último sábado, em Famalicão, durante o encontro “Carmina 1”, revelamos grande parte do texto introdutório, a que juntamos seis poemas.

Explicação
Pedro Mexia, José Tolentino Mendonça

Estamos conscientes de que entramos aqui a brincar com o fogo, contrariando ambos os lados de uma barricada. Uma antologia desta natureza tem, por isso, todos os ingredientes para constituir-se numa empresa que falha. Desde logo pela banda daqueles que chegarão a este livro por serem simplesmente leitores de poesia. Uma declaração de Gottfried Benn pode bem traduzir os seus receios: «Deus é um mau princípio estilístico. Quando alguém se torna religioso, isso fatalmente abranda a sua expressividade.» As convicções religiosas são incompatíveis com a boa poesia. Elas «abrandam», «afrouxam», «domesticam», tornam «bem intencionadas» as proposições. E, novamente nas palavras de Gottfried Benn, «bem intencionado» é o contrário de bom. A alternativa que o poeta alemão apresentou passou a constituir um dos modos mais representativos de afrontar o problema: a arte (e, neste particular, a poesia) é a única forma possível de transcendência. A religião perdeu o poder de impulsionar os homens no seu desenvolvimento espiritual e «apenas a arte permanece como a verdadeira tarefa da vida, como sua identidade, sua atividade metafísica, à qual ela mesma, a vida, nos obriga». Como sempre, o problema não são as intuições originais (instigantes e necessários motores do desassossego), mas a sua massificaçâo e o émulo que, sem pretender, por vezes geram: o preconceito.

Mas os leitores que chegam a este volume por que sobretudo se interessam pela questão religiosa não atravessam um desconforto menor. A crítica religiosa à estética contrapõe uma antítese radical: a arte é um princípio demasiado frouxo e ambíguo para a fé. A arte é, no fundo, um jogo do esconde-esconde, sem compromissos, sem gravidade existencial; e pior, instaura uma moral estranha à moral autêntica. À estética opõe-se aquilo que realmente conta: a ética e a vida eterna. Como à poesia se opõe o único fator decisivo: a verdade. Bem podem os românticos alcandorar que «quanto mais poético mais verdadeiro». A crítica protestante (Sören Kierkegaard e Karl Barth, por exemplo) e a teologia católica neoescolástica aparecem coincidentes num claro alinhamento de confronto, o que justifica também o divórcio que, na prática, se veio a instalar entre religião e artes.

Claro que este é um quadro extremado e não podemos esquecer, como recorda Jorge de Sena, que «há infinitas maneiras de prevalecer». A todos os que as inventam, as desejam e as praticam dedicamos esta antologia. Estamos em crer que se um protagonista com a envergadura intelectual e espiritual de Bento XVI dirigiu aos artistas as palavras que se seguem, mostra como, porventura, ingressamos noutra estação: «O que pode voltar a dar entusiasmo e confiança, o que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o caminho, a elevar o olhar para o horizonte, a sonhar uma vida digna da sua vocação, a não ser a beleza? Vós bem sabeis, queridos artistas, que a experiência do belo […] não é algo acessório ou secundaria na busca do sentido e da felicidade, porque esta experiência não afasta da realidade, mas, ao contrário, leva a um confronto cerrado com a vida».

Escolhemos como balizas temporais as obras de Vitorino Nemésio e de Daniel Faria, e lemos com atenção e vagar os poetas portugueses, nascidos entre 1901 e 1971, que fizeram da «questão de Deus» um tema, motivo ou obsessão. Como é natural muitíssimos autores e movimentos ignoraram a «questão de Deus» (…).Em contrapartida, a «questão» aparece com frequência nos autores ligados à “Presença”, aos “Cadernos de Poesia», até à “Arvore”, isto para nos ficarmos por grupos ou tendências. Cedo nos apercebemos de que o cristianismo (quase não se encontram outras religiões em poemas portugueses) é em muitos poemas um facto cultural sociológico; não um assunto íntimo e grave, mas uma linguagem, uma memória de infância, um aspeto quase folclórico, um ritual laicizado, ou então uma referência pictórica, arquitetónica, musical.

Se tivéssemos incluído todos os poetas que aludem de algum modo ao cristianismo, a antologia teria uma centena de autores, e não treze. Pareceu-nos porém que interessava mais a ideia de «questão», questão dos poetas consigo mesmos, quer se tratasse de fé, angústia, recusa, apostasia, incompreensão, revolta ou prece. Ainda assim, chegámos a ter uma seleção quase final com vinte e muitos poetas, que fomos reduzindo. Abdicámos, na escolha definitiva, de certos poemas meditativos e metafísicos, eliotianos, digamos assim, que certamente teriam lugar num volume mais extenso, mas que se prestavam mal a uma antologia; de outros em que o motivo cristão é apenas alegórico ou até «linguístico»; e três ou quatro poetas canónicos ficaram de fora por uma questão do gosto pessoal de quem escolheu, que é sempre um bom critério em antologias.

Destes treze poetas, cinco estão representados com quinze poemas, por nos parecerem absolutamente determinantes numa compreensão da «questão de Deus» na poesia portuguesa. Começamos com Nemésio, que escreveu poemas de uma entrega metafísica confiante e aflita, em estilo elevado ou chão, com uma toada popular ou um vocabulário científico, dando corpo à própria noção de Verbo. Sophia de Mello Breyner Andresen é um caso especial de contiguidade entre a cultura greco-latina, pagã, e a ética cristã, mas tem sempre presente os mesmos ideais de justiça, perfeição, paz, o mesmo escândalo com os fariseus e os opressores, a mesma ânsia por uma «pura face». Fernando Echevarría chega ao cristianismo como uma dupla emanação da filosofia e da mística, uma «experiência» do sagrado intimista, intelectual, que se manifesta em noções de evidência, estudo, presença. Ruy Belo começou por ser um poeta católico, tornou-se depois um «pobre católico» e um «vencido do catolicismo», deixando cair todas as maiúsculas, até na palavra deus, e deixou-nos poemas literalmente antológicos sobre os vestígios de Deus nas palavras e no mundo, mesmo que se tenha depois desencontrado com esses vestígios. O quinto destes poetas é Daniel Faria, monge beneditino, precocemente falecido, que compôs poemas bíblicos, metafóricos, algures entre São João da Cruz e Herberto: paráfrases, transformações, intimações e segredos.

As demais escolhas são evidentes, umas, e originais, outras. Ruy Cinatti, por exemplo, era inescapável, com o seu tom de oração coloquial, um «nós não somos deste mundo» que claramente se situa no mundo, atravessa o mundo, atravessando Deus também. O caso de Jorge de Sena é mais bizarro; nem sequer tínhamos pensado incluí-lo, mas os poemas dos anos 1930-40 são literalmente uma luta com Deus, uma tentativa de enfrentar a «questão de Deus», às vezes com veemência, como um agnóstico à beira da crença ou do ateísmo; o facto de «a questão» quase ter desaparecido na obra subsequente não elimina o evidente interesse destes poemas. Quisemos incluir José Bento porque se trata de um poeta com um reconhecimento insuficiente, apenas compensado pelo seu prestígio como tradutor do castelhano; estes quatro poemas são reveladores de uma poética intensa e discreta, de surpreendentes ecos marianos, e com uma crença que, tal como a poesia, depende por vezes de «uma única palavra». Autor de obra escassa, porque morreu cedo, suicida, Cristovam Pavia deixou uma grata lembrança em muitos dos seus amigos poetas, e os três poemas que dele incluímos dão conta de um «amor angustiado» e de «forças já não minhas»; forças insuficientes, talvez, mas um amor certo. Pedro Tamen pertence à geração dos «católicos progressistas» ligados à revista “O Tempo e o Modo” e à editora Moraes; os quatro poemas que estão na antologia correspondem à primeira fase da sua obra, devota, interrogativa, surreal esperançosa. Armando Silva Carvalho talvez surpreenda os que o imaginam apenas antilírico, ácido, quase abjecionista; o «cão de Deus» percorre muitos dos seus poemas, histórias de encontros, tias, discípulos, ternura e compaixão, às vezes em tabernas e tasquinhas, como os sítios «impróprios» que Jesus também frequentava. Carlos Poças Falcão é provavelmente o nome menos conhecido desta antologia, mas a recente publicação dos seus poemas completos mostrou a força quase litúrgica desses versos que vivem no espírito e na confiança, que fazem de Deus uma sabedoria e uma exultação. Finalmente, o caso inesperado de Adília Lopes, que parece demasiado humorística e prosaica para abordar a «questão», mas que na verdade tem Deus em dezenas de poemas, um Deus que é um boomerang, um Deus na vida de bairro, um Deus da caridade, Deus como uma mulher a dias, um Deus que é um bicho, um cheiro e uma coisa vivida.

Deus como interrogação, assim se chama a antologia, porque Deus existe, na poesia como na vida, em modo interrogativo, mesmo para quem tem fé. Esta não é uma antologia para crentes ou para não-crentes, é uma antologia de poesia que dá exemplos de um tema, de um motivo, de uma obsessão, exemplos portugueses, numa época que também nos deu Claudel, Eliot, Luzi ou Milosz, poetas com uma questão, com uma pergunta que nunca está respondida.

[Senhor, nas minhas veias]
Vitorino Nemésio

Senhor, nas minhas veias
Trago a morte medida.
Sou lâmpada de pobre:
Nem toda a noite a vida.

Já meu sangue estremece;
Veio uma asa ao lago.
Minha mão arrefece
Nestas coisas que afago.

Que maneira de amor
Fui, no menino ido!
Agora, seja o que for
Já no homem cumprido.

Até ao último fio
Poupei o dote divino.
O homem de Deus perdi-o;
Só salvei o menino.

Esse me leva e enche
Como uma onda do mar;
Minhas fraquezas preenche,
Que a grande força é brincar.

Já vai escurecendo;
O sangue pára de arder.
Agora, o que digo acendo
Para não me perder.

Anunciação
Ruy Cinatti

Não tenho palavras, nem entendo
formas visíveis.
Elas vêm concretas como aragem
a que dou nome.

Tenho-me, eis tudo. Acontece.
Há uma folha que desce,
que sobrenada, que desce,
que submerge no ar e depois desce
longe de mim no ar fundo.

Nós não somos deste mundo.

Fresca e limpa como a chuva,
ouço a tua voz cantada
descer do céu ao silêncio
que vem da terra molhada.

Nós não somos deste mundo.

Ouso dizer-te o meu nome
como quem se atreve a dar-te
a minh aimagem.

Nós não somos deste mundo.

O que não vejo, entendo.
Pelos rios do meu sangue,
atrevo-me.

Anoitecendo, a vida recomeça.

Dou-me em palavras
que ressuscitam,
Algures no céu amanhece.

Só, intranquilo, pela vereda, desce
o nómada meu amigo.

Súplica final
Jorge de Sena

Senhor: não peço mais que silêncio,
o silêncio das noites de planície como enevoadas águas,
o silêncio dos montes quando a tarde acabou e as pedras
se afiam na friagem que é azul-celeste,
o silêncio do sol encarquilhando as folhas,
e o do vento na areia depois de ter passado,
o silêncio das ondas ao longe espumejando tranquilas,
o silêncio das mãos e o dos olhos,
e o das aves negras que pairam nas alturas
de um céu silencioso e límpido. Não peço
mais que silêncio. O silêncio das ideias que deslizam
no teto escorregadio da memória silente.
E o silêncio dos sonhos coloridos, e o dos outros
a preto e branco imagens desejadas
que não pensei que desejava e esqueço
ao querer lembrá-las. E o silêncio
dos sexos que se possuem sem uma palavra.
E o do amor também, tão silencioso esse,
que não sei quem amo.

Não peço mais. Afasta
de mim o estrondo: não o das cidades,
ou dos homens, das águas, do que estala
na memória ou penumbra das salas desertas.
Afasta de mim o estrondo com que a vida
se acabará contigo, num rasgar de súbito
em que ficarei inerte e silencioso. O estrondo
em que não ouvirei mais nada. O estrondo
em que não mexerei um dedo. O estrondo
em que serei desfeito. O estrondo
em que de olhos abertos
alguém mos fechará.

Senhor: não peço mais do que o silêncio do mundo,
o silêncio dos astros, o silêncio das coisas
que outros homens fizeram, e o das coisas
que eu próprio fiz. E o teu silêncio
de senhor que foi. Não peço mais.
Não é nada o que peço. Dá-me
o silêncio. Dá-me o que não fui:
silêncio (porque calei tanto):
o que não sou (pois que calo tanto):
o que hei de ser (já que falar não adianta):
silêncio.
Senhor: não peço mais.

[Um  dia encontrei Deus num poema]
Armando Silva Carvalho

Um dia encontrei Deus num poema
histórico.
Debaixo daqueles versos tão explicativos
em que a gente podia ver suar os reis
e urinar rainhas e até os ferros das montadas
se soltavam das sílabas histéricas
Deus quisera estar escondido como uma
criança.
Não tinha filosofia aquele poema.
Eu sabia-o de cor por isso encontrei Deus
e à noite num balcão duma taberna
recitei-o aos bêbados sonâmbulos de chuva.

[há infinidades a que não se dá um nome]
Carlos Poças Falcão

há infinidades a que não se dá u m nome
mas a tua infinidade é o teu nome
a multiplicação de todos os teus passos
contém-se numa única passada
os instantes todos e os gestos expandidos
são o teu enxame o teu mil e o teu milhão
– mas pudesses escutá-los como um só estalido
na hora do calor

há cúmulos no céu e granulações na terra
e com batimentos próprios fizeste a tua espuma
a isso chamas força – mas tudo se te esconde
e mesmo a inteligência imersa não se vê

«talvez exista algures uma arcaria oculta
talvez se explique que os extremos estremeçam»
e vais dizendo isto enquanto a tua ação
é o que faz vibrar a teia
as armadilhas prendem os que se debatem
os pensamentos soltos impedem de acertar
as imaginações desviam para sempre
as mais altas experiências

melhor dizer apenas: este é o meu corpo
permite que celebre a exata temperatura
o santo coração numa só corola deve
em verdade ser erguido para não morrer

[E desço à verdura das tuas mãos]
Daniel Faria

E desço à verdura das tuas mãos
Como as manadas que buscam as minhas

Faltam-me apenas os pés feridos dos que peregrinam
Faltam-me no chão duro das promessas
Os joelhos

Queria tanto andar em redor, rodear-te, se soubesses como
Queria amar-te tanto

O que sei da unidade é a túnica
Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida
É o livro escrito por dentro e por fora
Silêncio escrito por dentro
Palavra escrita a toda a volta da história

O que sei do céu
É a mão com que sossegas os ventos

Desço à escritura como os veados aos salmos

© SNPC | 17.07.14

Luís Miguel Cintra lê poemas da antologia “Verbo: Deus como interrogação na poesia portuguesa”: Vitorino Nemésio, Ruy Cinatti, Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Echevarría, José Bento, Ruy Belo, Cristovam Pavia, Pedro Tamen, Adília Lopes

2014/07/13 - A parábola é uma palavra que se desloca (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Para olharmos para a nossa vida muitas vezes temos de encontrar outros pontos de vista, outros ângulos, outras perspetivas. Vivemos tão em cima dos acontecimentos, tão capturados pela sua intensidade, que por estarem tão próximos do nosso olhar e do nosso coração verdadeiramente nós não os conseguimos ver. Por isso é conveniente mudarmos de sítio, mudarmos de posição, olharmos de outro lado para que, nesse distanciamento, ganhemos as condições necessárias para podermos ver aquilo que, por estar tão perto, não avistamos.

É isso que também Jesus faz. Jesus sai de casa e vai para a beira-mar. Este tempo do Verão que começou e que, de uma forma ou de outra, nos permite sair de casa, ir para outro lugar, nem que seja de ir até ao jardim, é também uma oportunidade. Não de evasão da nossa realidade, não é uma vida em fuga que o Verão promove, mas é também uma possibilidade de olharmos para aquilo que vivemos de outro ângulo e, nesse sentido, para  olharmos melhor para a nossa própria  vida.

Jesus, à beira do mar, conta parábolas e as parábolas são também isso. A parábola é uma palavra que se desloca, literalmente. Etimologicamente, parábola quer dizer isso, quer dizer movimento, lançar mais longe – quando a nossa própria palavra, o nosso próprio discurso, ganha uma distância em relação ao tipo de palavra e discursividade que é aquela de todos os dias. E, tal como nós precisamos de casa e sair para a beira-mar ou para a montanha ou para o jardim ou para uma exterioridade em relação à nossa vida, a nossa própria linguagem também precisa de uma coisa semelhante. Isto é, precisamos de nos reencontrar com os símbolos, com um tipo de linguagem que não seja a linguagem utilitária que serve para isto e para aquilo. Confrontarmos, no fundo, com uma palavra que seja capaz de dizer, até pelo seu mistério, até pelo seu enigma, aquilo que normalmente não cabe nas nossas palavras de todos os dias. Por isso Jesus, em vez de falar dos nossos caminhos, das nossas viagens curtas, do nosso viver atropelado, da nossa ofegância, daquilo que conseguimos ou não conseguimos, do balancete interior de todos os dias, Jesus, em vez de falar de Maria, João e de António, e de Tolentino, Jesus fala de sementes.

E diz, não, vamos deixar isto e aquilo, quem tem razão, quem não tem razão, quem fez e não fez…Vamos deixar isso. Vamos falar de sementes. Isto é, vamos recuperar o sentido original da vida. Vamos perguntar porque é que estamos aqui.

Vamo-nos perguntar pelas razões profundas do nosso viver. Que é uma coisa que às vezes na luta do dia-a-dia, no combate, nós não temos esse o distanciamento necessário. O que é que eu quero, o que é que eu sou, porque é que eu ando aqui, porque é que eu persigo isto, o que é o meu desejo?

No fundo, as perguntas profundas, só vêm quando a gente se distancia. Então, em vez de falar da vidinha, falemos de sementes, sementes que o próprio Deus semeia na nossa vida.

Cada um de nós acolhe tantas sementes! Nós somos terra, nós somos essa grande recoleção, nós somos território que é atravessado por tanta coisa, atravessado por tanta coisa que chega até nós, coisas do mundo e coisas de Deus.

No fundo, a grande questão que a parábola de Jesus coloca é: O que é que nós fazemos com aquilo que recebemos? O que temos feito com o que nos é dado? O que é que nós fazemos com o dom?

Toda a vida é dom. Estarmos aqui hoje reunidos, nesta hora, nesta celebração é um dom. A vida foi-nos dada. Nós estamos aqui como representantes, testemunhas, de um grande dom. O que é que nós fazemos com esse dom?

Jesus diz que fazemos coisas muito diferentes e que se podem resumir nisto: ou na fecundidade ou na esterilidade. A nossa vida pode ser estéril e pode ser fecunda.  Isto nós sabemos no íntimo de nós próprios. Como tantas vezes com o dom recebido, nós conseguimos replicá-lo, levá-lo mais longe, da vida não fazemos vida, mas fazemos morte, tristeza, desalento.

O que é da vida fazer vida? Isto é, o que é sermos multiplicadores, bons condutores do dom que nos é dado? É quando a nossa vida é terra boa. É quando na nossa vida temos capacidade de acolhimento e fazemos um caminho com aquilo que nos é dado. A palavra de Deus, o amor de Deus é-nos dado. Temos gosto, capacidade, vontade, de fazer um caminho com isso que nos é dado? Ou é como, digamos, alguma coisa que cai mas não penetra no fundo da nossa vida, do nosso coração, do nosso desejo?

O que é que estamos dispostos a fazer? No fundo, o que é que cada um de nós tem de transformar na sua vida para a fazer passar de um lugar de superficialidade, onde nada entra, porque é uma vida defendida e armada, para uma vida que é uma terra boa, onde a semente pode começar uma história, onde a semente pode ser promessa que se concretiza?

O quê que cada um de nós tem de fazer para passar da superficialidade à profundidade?

É com estas perguntas que Jesus nos deixa. São perguntas vitais na nossa vida, que nós não podemos adiar, não podemos fazer de conta que não estão aí. Trata-se de viver e consumar, de realizar plenamente a vida ou de deixá-la adiada, suspensa, até estragada, a vida entre os espinhos e entre as pedras, a vida que nunca se encontrou com a possibilidade de ser fecunda e de ser plena.

São Paulo, na Carta aos Romanos, dá-nos um dos textos mais extraordinários do pensamento Paulino, que diz isto: como a semente vive um estado de parto, a semente está sempre a rebentar, a nascer, quando é colocada na terra. A nossa própria vida também é um parto. As nossas dores não são dores de morte, mas são dores de parto. Aquilo que nós pensamos é o fim, não, é o começo, é o princípio, é o início. Os nossos gemidos são os gemidos da parturiente que dá à luz. Nesse sentido, a vida não é uma história absurda, uma história sem sentido. Mas a vida é um nascimento. A nossa condição é a condição daquelas e daqueles que geram, que fazem a gestação do próprio mundo, da própria vida. É por isso, queridos irmãs e irmãos, uma palavra de extraordinária esperança.

Nós estamos à porta do Verão. Também nós deixamos a nossa casa e vamos para outro sítio. Também nós nos podemos reencontrar com uma linguagem que seja uma linguagem que fale da vida e daquilo que a vida é. Precisamos disso. Mas a grande questão que Jesus nos coloca é: o que tens feito da tua vida? O que queres fazer da tua vida?

A tua vida é um campo de fecundidade ou um é campo de esterilidade?

O que é que tu tens de transformar para poderes acolher melhor, para poderes fazer um caminho, construir uma história com o dom que em cada dia te visita?

Tu olhas para a tua própria vida como um parto ou olhas como uma morte? Aqui há uma conversão muito grande. Às vezes olhamos para a nossa vida e sentimos as coisas a morrer. Na perspetiva cristã, nós somos chamados a olhar a nossa vida e sentirmos as coisas a nascer, mas para isso temos de converter o nosso olhar.

Marcel Proust dizia que a verdadeira viagem não é aquela que nos leva de um sítio para o outro. A verdadeira viagem é aquela que transforma o nosso olhar. É disso também que Jesus nos fala, da transformação da nossa maneira de olhar a vida, de a  querer e de a abraçar.

Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XV do Tempo Comum

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2014/07/02 - Sophia de Mello Breyner foi poeta da luz à procura da Luz, considera patriarca de Lisboa

«Luz surpreendente, intensa demais para olhos quaisquer, anterior ainda a quem a buscasse, interior, até, para quem não pudesse enxergá-la»: assim é a luz divina que Sophia de Mello Breyner procurou, afirmou esta quarta-feira o patriarca de Lisboa.

As palavras de D. Manuel Clemente foram proferidas na missa celebrada na Capela do Rato, na capital, durante as cerimónias de trasladação da poeta para o Panteão Nacional.

Sophia «nasceu no Porto, onde a luz é mais recolhida e íntima», e habitou em Lisboa, «onde é larga e clara», apontou o prelado, para quem «há sempre luz» na poeta que morreu a 2 de julho de 2004.

Referindo-se à leitura bíblica que abriu a Liturgia da Palavra, extraída da primeira carta de S. João, D. Manuel Clemente lembrou que «a luz absoluta é outro nome de Deus»: «Deus é luz, e nele não há nenhuma espécie de trevas», e «se caminhamos na luz, como Ele está na luz, então temos comunhão uns com os outros».

«Creio que a universal aceitação de Sofia e do que escreveu provém muitíssimo daqui, da grande luz que nos dá no rosto. da sua ambição insaciável de ser clara, mas de uma clareza final que passa por desvendamentos árduos para conseguir alvorecer, por fim», assinalou.

O patriarca mencionou depois um dos principais temas da autora, a Grécia, para estabelecer uma comparação com a história bíblica e o cristianismo, realçando que «Sophia é helénica e cristã».

«Como a filosofia dos seus amados gregos precisou de decantações de mitos e figuras para atingir a iluminação da mente que ainda temos, também o caminho bíblico que igualmente herdámos precisou de muito deserto e não menos noites para se concentrar numa figura concreta onde cabe a humanidade toda, e o seu Criador também», disse.

A homilia de D. Manuel Clemente foi pontuada por versos de Sophia, como este, de há sete décadas: «A presença dos céus não é a Tua,/ Embora o vento venha não sei donde./ Os oceanos não dizem que os criaste,/ Nem deixas o Teu rasto nos caminhos./ Só o olhar daqueles que escolheste/ Nos dá o Teu sinal entre os fantasmas».

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura – ler notícia completa aqui.

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Junho

2014/06/29 - “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (homilia)
Queridos irmãs e irmãos

“E vós, quem dizeis que Eu sou?”. Cada cristão é colocado perante esta pergunta porque cada um de nós é um intérprete de Jesus. Nós interpretamos a vida de Jesus e, no nosso coração e na nossa vida, temos de responder a esta pergunta: E para vós, quem sou Eu?

Primeiro Jesus pergunta o que é que se ouve dizer acerca dele. É interessante que uns dizem que ele é João Baptista, outros que é Elias, Jeremias ou um dos profetas. Interpretam Jesus a partir daqueles modelos que conhecem, a partir da tipologia profética, identificando Jesus mais com um ou com outro. Interpretam Jesus a partir do conhecido, do familiar, da tradição, do próximo.

Quando Jesus interroga os seus, Jesus está à espera de mais. E, de facto, esse mais surge na boca de Pedro: «Senhor, tu és o Messias, o Filho de Deus vivo». Isto é, para Te compreender não basta aquilo que já conhecemos, aquilo que já vimos noutros. Para Te dizer, para Te nomear não basta o saber acumulado de séculos e de tradição. Para Te dizer nós precisamos de escutar uma voz nova, a voz do espirito, e ser capazes de dizer uma palavra que rompe, que faz ruptura, que é nova, uma voz que é inédita.

Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo. Quando Pedro diz isto ele está a dizer uma coisa absolutamente temerária, absolutamente nova. É uma proclamação destemida aquela que Pedro faz, porque não é assegurada por nenhuma maioria, por nenhum consenso. Porque não havia consenso nenhum em torno de Jesus.

Não era nada confortável o que Pedro estava a dizer. Mas o que ele diz coloca-o sozinho no seu tempo. Torna-o uma voz solitária, uma voz em risco, uma voz que tem de sofrer por esta enormidade que diz : “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”.

Quando hoje nós temos de responder à pergunta «E vós quem dizeis que eu sou?», podemo-nos encostar ao que está dito. Podemos repetir como se repete um refrão, um bocadinho sonolento, aquilo que já ouvimos dizer acerca de Jesus Cristo. Podemo-nos acomodar à voz de uma maioria que, de certa maneira, nos inocenta, nos conforta e nos poupa ao risco de dizer uma palavra destemida acerca de Jesus.

Mas cada um de nós, no seu coração, é chamado a esta palavra temerária, é chamado a dizer o inédito, a dizer de Jesus o que ainda não está dito, a proclamar Jesus de uma maneira que ponha em risco, que ponha em causa a nossa própria existência.

Pedro diz “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo” e Paulo será na história do Cristianismo alguém que vai dizer o mesmo e vai tirar as consequências.

Pedro diz isto no caminho da Galileia, numa aldeiazinha, num sítio onde ninguém escuta.

Paulo vai gritar isto nos areópagos do mundo, nas cidades gregas importantes, vai escrever isto na Carta aos Romanos. A primeira frase da Carta aos Romanos, que é uma frase espantosa, “Eu, Paulo, escravo de Jesus Messias”. Por esta frase Paulo pode ir bater à prisão. E foi muitas vezes.

Uma das coisas que nós enterramos, de forma prática, é o messianismo. Achamos, no fundo, que a nossa vida já está resolvida. A nova vida não é vivida em tensão. Quanto muito tememos a morte. Mas outras expectativas decisivas em relação à nossa vida nós vamos atenuando, deixando, deixando e hoje o Cristianismo, de certa forma, esvaziou-se de uma dimensão fundamental à própria experiência cristã que é o messianismo, que é a esperança messiânica.

Nós esperamos num Jesus que é Messias. Nós até traduzimos Messias por Cristo e dizemos Jesus Cristo como se Cristo fosse o apelido de Jesus, e esquecemo-nos que dizer Jesus  Cristo é dizer Jesus é o Cristo, Jesus é o Messias – que é como se diz em hebraico. Jesus é o Messias. Mas dizer isto faz tremer. Porquê? Porque todos os judeus sabiam e tinham-se encarregado de espalhar a sua fé no helenismo do tempo. Estavam presentes nas várias cidades, nas várias metrópoles da época. Quando vier o Messias o que é que cai? Cai a Lei. A Lei deixa de valer. Todas as constituições, todos os códigos deixam de valer. Cai o poder. Todos os poderes caem porque só há um poder, o do Messias, e cai o templo, e cai a forma religiosa e cai a classe sacerdotal. Porque só a há um sacerdote, que é o Messias.

Se a gente diz que ele é o Messias, o mundo tem que mudar na sua configuração. Nada da forma atual do mundo serve, é válido – é no fundo isso que Paulo vai dizer com todas as palavras. Cristo é o fim da Lei. Quer dizer, com Cristo já não há lei, a lei que serve para regulamentar a forma atual do mundo já não tem legitimidade, não tem validade porque surge o Messias. E, quando surge o Messias, começa um estado de exceção, começa um momento histórico novo, começa uma coisa que nós nunca vimos.

O cristianismo de Pedro e de Paulo, que são as duas colunas que se complementam na sua diferença, testemunham-nos um cristianismo messiânico, isto é, um cristianismo de ruptura, que é o inédito na história, um cristianismo que é um patamar novo na história – quer dizer, até aqui fizemos de uma maneira, um certo número de realidades tinha a sua validade, agora deixa de ter. Porque agora o que precisamos é de escutar o Messias. O Messias é a medida do mundo, é a medida do mundo.

Que um pregador que vem desclassificado lá de Jerusalém, de uma formação em Jerusalém, tenha a lata de dizer isso no areópago de Atenas, ou em Éfeso, ou em Filipos, e depois escreva isso com as letras todas aos Romanos, era mais do que razão para ele estar preso. E Paulo esteve grande parte da sua vida preso. Como Pedro esteve preso, como os Apóstolos estiveram presos. Estiveram presos não por delito comum. Por delito de opinião, porque muitas vezes a gente esquece-se que o cristianismo é um delito. É um delito de pensamento. Porque nós temos que pensar as coisas a partir de Jesus, de uma forma que vai contra, que está para lá de todas as formas. No fundo, todas a regras que dão a forma ao mundo, estremecem, estão aquém daquilo que pode começar em Jesus Cristo.

Queridos irmãs e Irmãos, nós somos os intérpretes de Jesus. Nós dizemos quem é Jesus. E quem é que nós dizemos que é Jesus? Quem é que nós dizemos, hoje, que é Jesus? Nas nossas vidas, nesta cidade, na comunidade, na família, no trabalho, no mundo da economia, da política, dos meios da comunicação…

Quem é que nós dizemos que é Ele? Ficamos a repetir consensualmente aquilo que está dito acerca de Jesus? Tentamos esvaziar Jesus do perigo que é Jesus, do risco que Jesus representa? Ou, pelo contrário, sentimos que a fé em Jesus é um motor de desassossego?

A fé em Jesus torna-nos a todos uns dissidentes, torna-nos a todos uns párias. Porque nada nos basta. Nós não pertencemos a nenhuma família, nós não pertencemos verdadeiramente a nenhum Estado, a nenhuma ideologia, a nenhum partido, a nenhum clube. Verdadeiramente não pertencemos, não pertencemos. Estamos nas coisas.

Sentimos que tem que ser algo mais, não num espirito de seita mas neste espirito de transformação da história, a partir do modelo radical do amor que Jesus nos veio mostrar.

E, nesse sentido, esta pergunta que Jesus faz: “Quem dizem os homens que Eu sou? E vós, quem dizeis que Eu sou?”

É um dividir das águas. É aqui que as águas se dividem.

É na minha resposta a esta pergunta.

Pe. José Tolentino Mendonça, Homilia da Solenidade de São Pedro e São Paulo

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2014/06/22 - A Eucaristia é Jesus inteiro que se dá a cada um de nós (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Por vezes as dúvidas dos outros iluminam as nossas próprias dúvidas, aquelas que não conseguimos nomear.

Esta pergunta que os judeus, interlocutores de Jesus nesta página do Evangelho de São João, fazem ao Senhor ajuda ou desperta-nos para fazermos também um caminho em torno às palavras de Jesus.

Eles perguntam: Como é que Ele pode dar-nos a sua carne a comer? E é, de facto, uma pergunta importante para nós que dominicalmente nos sentamos à volta desta mesa para nos alimentarmos do corpo e sangue do Senhor.

É importante que nós perguntemos: Mas como é que é isso? Como é que Ele pode dar-nos a sua carne a comer?

A resposta mais simples que nós cristãos temos para tudo é: é um mistério, é um mistério. Nós não sabemos como é, mas sabemos que acontece.

Ora, por vezes, o mistério é uma forma de adiarmos o mergulho mais fundo que temos que fazer. Por vezes, dizer é um mistério é a mesma coisa que dizer: não é para mim, não tenho de entender, é só uma coisa que eu tenho de aceitar, que eu tenho de consumir, sem perceber, sem compreender.

A mesa da eucaristia foi o grande sinal que Jesus deixou aos seus, o grande sinal. Jesus não deixou outro. O grande sinal é estarmos juntos à volta de uma mesa. Jesus quis que este sinal fosse compreensível, que nós o pudéssemos ler, o pudéssemos entender facilmente, desde os pequeninos até a uma idade adulta avançada.

Nós precisamos compreender o que se passa aqui em cima desta mesa e à volta desta mesa, porque só compreendendo é que nós podemos viver. É claro que a nossa fome de maravilhoso e de milagre prefere muitas vezes partir para mais longe e não olhar para o óbvio. Sem interrogar esse lado de mistério que a eucaristia também tem, claro, eu gostava que nós olhássemos para o óbvio, porque o óbvio também diz coisas fundamentais ao nosso coração e à nossa fé.

O que é que é o óbvio? É a resposta à pergunta que fazem a Jesus: Como é que um homem pode dar a sua carne a comer a outros? Como é que isso é possível?

Isso é possível se nós pensarmos nas nossas mesas, nas nossas refeições. Porque é que nos sentamos à mesa uns com os outros? Porque é que não comemos sozinhos? Eu tenho uma amiga querida que vive sozinha. Uma coisa que me faz sofrer é ela ter dito que comendo sozinha – ela tem dois gatinhos e vive em casa com essa companhia – não há refeição nenhuma que não se lembre que comer é gregário. Comer é gregário. Contudo, a maior parte das vezes, ela come sozinha. E tantos, na nossa sociedade, comem sozinhos. Mas nós sabemos, no fundo de nós, que comer é gregário, Isto é, que comer é um ato comunitário.

E porquê? Porque é que é tão saboroso comermos com a nossa família, com os nossos amigos, aproveitarmos a mesa para sabermos uns dos outros, o que é que tu andas a fazer, combinarmos à volta da mesa questões fundamentais da vida, ou então, as grandes celebrações, os pequenos e os grandes marcos da nossa vida? Porque é  que é tão bom à volta da mesa?

É claro que há petiscos fantásticos, há uma cozinheira óptima, há um cozinheiro muito bom e então é muito agradável estar à mesa. Ora, mesmo quando o cozinheiro é genial, não é isso que nos faz sentar à volta de uma mesa. Porque mesmo quando a cozinha é um desastre, nós continuamos a sentarmo-nos à volta da mesa.

Isto quer dizer que o mais importante não é a cozinha, o mais importante é estarmos à volta da mesa.

E porque é que é importante estarmos à volta da mesa? Porque nos alimentamos do mesmo pão? Sem dúvida! Mas porque nos alimentamos uns dos outros. Nós sentamo-nos à volta da mesa, porque nos alimentamos uns dos outros, porque precisamos de interiorizar a presença uns dos outros, a palavra uns dos outros, o carinho, a presença, o afeto, a amizade, a inteligência, o humor. Precisamos alimentarmo-nos disso. E isso torna-se um verdadeiro alimento para nós.

Quando Jesus se sentava à volta da mesa, e sentou-se muitas vezes ao longo da vida, de uma forma deliberada e quando se sentou à volta da mesa a última vez com os seus discípulos e disse «Este pão é a minha carne, este vinho é o meu sangue que Eu vou entregar por vós», Jesus não estava a fazer uma coisa que não tem nada a ver nossa realidade.

Jesus estava a partir da nossa realidade, estava a usar a gramática que nos é mais próxima, a dizer: O que Eu fiz não foi senão viver para vós. Viver para vós, entregar, dar a minha vida é tornar-me alimento, é deixar-me ser, é colocar-me ao serviço.

Isso é fazer da Sua carne comida, isso é fazer da Sua carne alimento.

Nós estamos à volta da mesa para nos alimentarmos de Jesus.  Hoje celebramos a festa da Eucaristia. A Eucaristia não é uma migalhinha de Jesus, um bocadinho de Jesus que é distribuído por cada um de nós. Não. A Eucaristia é Jesus inteiro que se dá a cada um de nós. Jesus inteiro. Nós temos de nos alimentar da sua palavra, da sua paixão, da sua revelação, do seu estilo de viver, da sua alegria, do seu entusiasmo, do que Ele nos deu a ver, das coisas únicas que só Ele nos deu a ver. Nós alimentamo-nos disso. Isso torna-se para nós força, torna-se energia, torna-se para nós capacidade de ser.

É por isso que nós não conseguimos viver sem eucaristia. É por isso que nós Igreja nascemos e renascemos sempre à volta desta mesa. Porquê? Porque Ele é o nosso alimento, porque Ele nos alimenta.

Alimenta-nos porque se faz dom. As palavras que Jesus diz: A minha carne é verdadeira comida.

Eu penso, e pergunto-me: e a nossa carne? Estarmos juntos dominicalmente para celebrarmos o dom que Jesus dá de si, a oferta, o transformar a vida em alimento, o transformar a vida em comida, o transformar a vida em dom que Jesus fez o que nos leva a nós a fazer? Será que a nossa vida é alimento? Será que a nossa vida é comida?

Porque não é automático, não é automático O nosso corpo será comida para bichinhos, um dia. Mas, de resto, nós podemos viver uma vida inteira sem que o nosso corpo seja alimento para ninguém. Nós podemos viver no egoísmo, na indiferença, no deixa-me em paz, numa zona de conforto que impermeabiliza a nossa vida. Não deixamos ninguém tocar, ninguém nos pede nada, ninguém nos conta nada, ninguém vem ao nosso encontro  porque também nós vivemos dentro de uma cápsula, nós vivemos a guardar e resguardar, a proteger a nossa vida.

Quando nós fazemos isso a nossa vida não se torna comida para ninguém. É uma vida inteira óptima, fantástica, mas não é pão. Essa vida não é pão.

Quando Jesus diz “a minha carne é comida”, o grande desafio Dele é que eu torne a minha carne comida, que eu torne a minha vida oferta, que eu torne a minha vida dom.

Por isso, já os Padres da Igreja, os primeiros teólogos, diziam : «O cristão que celebra a eucaristia sai eucaristificado». Isto é, Jesus contagia-nos com o seu exemplo.

O que nós temos que fazer é celebrar a eucaristia na vida. Isto é, de dizer: Olha, eu sou pão para ti, usa, come, leva, reparte, alimenta-te, eu estou aqui, eu posso, eu vou.

É, no fundo, esta disponibilidade para servir que torna a nossa vida uma vida semelhante à de Jesus, semelhante à de Jesus.

Queridos irmãs e irmãos, à volta da mesa Jesus dá-nos a grande prova de amor, mas também a grande lição. A eucaristia é uma lição. Uma lição insistente que Jesus nos dá. Nós vimos aqui aprender com Jesus como se faz e todos precisamos de aprender como fazer dos meus dias, como fazer do que eu tenho, como fazer do que eu sei, como fazer do que eu sonho, do que eu desejo, como fazer da força que eu transporto comida, verdadeira comida. Como tornar a minha carne verdadeiro alimento. É, no fundo, esse o verdadeiro desafio que Jesus faz a cada um de nós.

Nós sabemos que o pão pode ficar duro no saco. O pão fica duro no saco. Se o pão não é colocado sobre a mesa e não é servido, ele endurece e perde-se.

E nós podemos perder a nossa vida. Podemos perder a nossa vida. Por isso, a palavra do Evangelho: quem quer ganhar a vida, tem que perdê-la, tem que se dar, tem que se entregar.

A grande lição de Jesus é essa: Entrega-te. Entrega-te. Torna-te alimento, faz-te pão. Oferece-te. Dá-te. Porque só assim é que nós percebemos a plenitude. A plenitude divina da nossa humaníssima vida.

Pe. José Tolentino Mendonça

Homilia de 22 de Junho de 2014, na Capela do Rato

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2014/06/01 - "Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos" (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Esta carta aos Efésios diz-nos, de uma forma muito incisiva, aquilo a que somos chamados neste tempo pascal. Diz-nos o autor que “o Senhor ilumine os olhos do vosso coração para compreenderdes a esperança a que fostes chamados”. Esta esperança, à qual o Senhor nos chama, só se vê bem com os olhos do coração.

É o nosso coração que mesmo duvidando, mesmo colocando tantas perguntas, mesmo carregado de tanto medo e de tanta noite, pode entender a dimensão da esperança a que fomos chamados. É interessante ver que, mesmo naquele momento derradeiro em que Jesus se aproxima dos discípulos e se vem despedir deles, alguns duvidaram. Isto quer dizer que as dúvidas fazem parte do nosso caminho até ao fim.

Aqueles que duvidaram naquele momento representam-nos a todos que vivemos sempre nesta incerteza. Queremos, sabemos, conhecemos, mas ao mesmo tempo hesitamos, não sabemos, não queremos ou não queremos sempre. Mas essa dúvida não é um problema para Jesus. É interessante que Jesus investe os discípulos na missão mesmo na dúvida. Alguns duvidaram. Mas Jesus não disse que aquela missão era só para os que acreditavam e acreditam de uma forma firme. Jesus dá missão a todos.

As dúvidas, a dificuldade do nosso caminho, a dificuldade de ver a esperança a que somos chamados, faz parte da nossa condição. Mas temos que continuamente pedir o Espirito Santo para nos esclarecer, para nos iluminar, para nos guiar até à verdade total.

No lugar onde a tradição diz que aconteceu esta cena da ascensão de Jesus aos céus há um pequeno templo. É um templo muito engraçado, porque é um templo cristão, e no fundo os cristãos vão ali, mas é uma família muçulmana que tem a chave. Quando vamos lá visitar, vem essa família muçulmana que abre. De maneira que esta capela está num campo de uma família muçulmana, e pertence-lhe, e isso também é bonito.

Quando chegamos lá, é um templo ao mesmo tempo belo e desconcertante, pelo seu vazio, porque não tem nada. É uma capela circular e tem rocha. Na rocha, essa capela tem apenas uma coisa, tem apenas uma pegada, funda, gravada na rocha. Mais nada. A ideia é extraordinária: quando Jesus subia aos Céus, para Ele se elevar, Ele carregou com mais força num dos pés, para levantar o outro e, quando Ele carregou com mais força, essa pegada ficou gravada. Esta pedra, queridos irmãs e irmãos, é o símbolo do nosso coração.

Jesus deixou esta pegada, este sinal inapagável, este sinal indelével, no nosso coração. Por isso nós sabemos que Ele está sempre connosco, porque há um traço, há um sinal e há esta palavra que nós vamos escutar a vida inteira:

“Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos”.

A certeza da companhia, a certeza da presença amorosa de Jesus na nossa vida é a certeza que nos constrói, é a certeza que nos edifica.

Por isso, na Ascensão, nós celebramos duas coisas aparentemente contraditórias, mas que não nos destroem, não nos põem em causa. Por um lado Jesus parte, Jesus desaparece da nossa vista. Por outro lado, Ele está sempre connosco até ao fim dos tempos.

Se pensarmos bem não tem lógica nenhuma. Ele então desaparece e está sempre connosco? Como é que isso é possível? Mas é nesta contradição, entre os que olhos vêem e aquilo que o coração sabe, aquilo que o coração sabe e que os nossos olhos ignoram, que se aloja também o mistério da própria fé.

O importante é cada um de nós sentir a presença de Jesus, não o encontramos ao cruzar da esquina, os nossos olhos não o avistam nas ruas do mundo, nas ruas da nossa cidade. Contudo, Ele é o companheiro que caminha ao nosso lado. Não nos deixa nunca. É a certeza dessa presença que é fonte da nossa vida, desta vida nova que é a vida pascal que Ele veio plantar em nós.

Pe. José Tolentino Mendonça, Homilia do Domingo da Ascensão do Senhor

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Maio

2014/05/28 - Conversas à Capela - A virtude da Ciência de Deus

As Conversas à Capela deste mês de Maio serão dedicadas à virtude da Ciência de Deus. Para nos ajudar a reflectir sobre este tema convidámos o Pe. José Frazão Correia, sj, Provincial da Companhia de Jesus, e autor dos livros A Fé vive de Afeto e Entre-tanto, das Paulinas. As Conversas à Capela serão no dia 28 de Maio, na Capela do Rato, pelas 21.30h.

2014/05/25 - O Espírito Santo é o grande agente da transformação (homilia)

Queridos irmãos e irmãs

A grande questão que se coloca no início do Cristianismo é saber como de um acontecimento que em si é um acontecimento disruptivo, é uma crise terrível que emerge – que é, no fundo, o episódio da morte do Senhor, da sua crucifixão -, como é que, deste acontecimento, que deve ser um ponto final, pelo contrário, emerge uma realidade de vida. Como é que isso é possível? Como é que é possível ser cristão depois do nosso Messias ter sido levantado de uma cruz?

Como é que se pode ser cristão na sua ausência, na sua perda, no vazio daquele sepulcro ao qual as mulheres foram e os discípulos correram naquela manhã de Páscoa?

Como é que se constrói uma vida nova, como é que se constrói um projeto, como é que se olha para o futuro a partir deste vazio, deste sinal contrário, deste sinal absurdo que é a cruz? É interessante perceber como é num caminho de maturação,  maturação interior e maturação também no sofrimento, que as primeiras comunidades cristãs vão perceber como é que a cruz se torna a árvore da vida. E como é que aquele sepulcro vazio se torna para nós a certeza de que Ele está vivo, de que Ele está presente, de que Ele está connosco.

Hoje nós ouvimos na leitura dos Atos dos Apóstolos  a história da Igreja de Samaria, é uma história impressionante e que se conta em duas palavras. Quando se deram os acontecimentos pascais, os discípulos amontoaram-se em Jerusalém. A questão era estarem uns com os outros, com medo do que pudesse acontecer-lhes na sequência de Jesus, porque no fundo eles eram cúmplices de um condenado à morte. E o medo trancou-os em Jerusalém. Mas não só o medo, a sua própria mundividência. A interpretação que eles faziam do acontecimento de Jesus Cristo, das suas palavras, era muito a partir da sua vivência judaica. O que aqueles homens e mulheres pensaram é: nós temos que continuar a ser bons judeus, e ponto final.

Ora, acontece a chamada perseguição aos gregos. Porque quando os cristãos começam a falar, dá-se o seguinte: aqueles mais radicais, aqueles que levam mais longe a interpretação de Jesus Cristo, não são os de origem judaica. São os de origem grega. Isto é, aqueles que, no fundo, tinham uma maior liberdade para dizer quem era Jesus Cristo. Enquanto aqueles que eram de origem judaica o que faziam era simplesmente ler Jesus Cristo à luz da gramática judaica, na qual eles funcionavam.

Por isso, o primeiro mártir do Cristianismo é um grego, é Estevão, e não é Pedro, o primeiro mártir. Pedro será depois. Mas aquele que primeiro estica a corda, o que primeiro diz uma palavra de ruptura, acaba por ser um grego. E por causa dos gregos há uma perseguição aos cristãos, mas aos cristãos de origem grega.

O Espírito fala através dessa crise, através dessa perseguição. Quando estes são chutados para fora de Jerusalém, em vez de ser o fim, é o princípio. Eles pensavam que ia acabar tudo, iam perecer. Não. Ali é que começou verdadeiramente a história. E então Filipe, que também é de origem grega, vai evangelizar os samaritanos. Era uma coisa que não passava pela cabeça de Pedro, no princípio, era que eles pudessem evangelizar os samaritanos, que eram rivais históricos, contumazes da tradição judaica. Mas como acontece esta perseguição e Filipe está na Samaria, ele começa a evangelizar os samaritanos.

Assim se percebe que Deus começa a falar para lá das fronteiras, e de uma forma completamente imprevista, inaudita, inesperada, o Evangelho começa a ganhar força, a ganhar raiz em corações absolutamente impensados, porque é assim o caminho de Deus. E, de certa forma, a Igreja começa a perceber a forma como Deus  a conduz.

Filipe faz a primeira evangelização, e depois Pedro e João descem até à Samaria para a completar, infundido o Espírito Santo, porque os Samaritanos ainda não tinham recebido o Espírito Santo.

Nós que estamos aqui somos uma consequência do Espírito Santo. Cada cristão, cada batizado é uma consequência do Espírito Santo. E o Espírito Santo é a maior descoberta da nossa vida. Para dizer assim depressa, é a maior descoberta que cada um de nós tem que fazer.

É interessante, parece que não tem nada a ver, mas a semana passada no El Pais vinha uma entrevista a um filósofo, hoje muito conhecido e um homem um bocado blasfemo em relação ao status quo da nossa cultura, que é o esloveno Slavoj Zizek.

Zizek dizia que há três grandes invenções, invenções entre aspas ou descobertas, que no seu entender marcam o caminho da humanidade: a primeira invenção é a invenção da democracia pelos gregos, pais da democracia; a segunda grande descoberta para ele é o Espírito Santo e a terceira é a revolução francesa.

Vamos pensar um bocadinho no destaque que ele dá à descoberta do Espírito Santo, como uma descoberta que transforma completamente o mundo. Porque a descoberta que os cristãos fazem de que não estão sós mas de que neles vive o Espirito do ressuscitado é, de facto, uma alavanca de transformação, não apenas das realidades individuais mas da realidade do mundo, da história.

O Espírito Santo é, de facto, o grande motor da história. O mundo antigo, mesmo aquele mundo grego que inventou a democracia, 90% eram escravos. As mulheres não tinham possibilidade de participar na democracia grega. De facto eles inventaram um sistema fantástico, com filósofos que hoje continuam a ser os nossos mestres, mas era uma democracia muito limitada, temos de reconhecer.

No mundo antigo, as fronteiras da raça, da etnia, as fronteiras sociais, as fronteiras religiosas, as fronteiras de género, eram fronteiras insuperáveis. Quem era escravo, morria escravo. As mulheres não tinham qualquer possibilidade de participar ao nível religioso, naquela que era a vivência dos homens.

Um judeu não se sentava à mesa com um pagão. Um pagão jamais poderia acreditar plenamente e participar plenamente no judaísmo. Seria sempre um prosélito, alguém que está fora.

O que é o Espírito Santo? O Espírito Santo é o derrube completo dos muros e das fronteiras. Aquilo que S. Paulo há-de dizer de forma lapidar na carta aos Gálatas: «Em Cristo sois nova criatura. Não há judeu, nem pagão. Não há escravo nem homem livre. Não há homem nem mulher. Pois todos sois um só no Espirito de Cristo»

Então, o que é o Espírito Santo em nós? O Espírito Santo em nós é o fundar no nosso coração, na nossa vida, a nossa dignidade, a nossa condição. A nossa dignidade, a nossa condição, a nossa capacidade de plenitude já não depende do sítio onde nascemos, do berço onde nascemos, já não depende do status ou do pedigree, já não depende da nossa religião ou da tradição religiosa onde nascemos e surgimos, já não depende do género ou da condição. Mas é o Espírito Santo que nos torna iguais. E esta dimensão de uma igualdade fundamental, de um reconhecimento de uma igualdade fundamental, é alguma coisa que o Cristianismo transporta como património, como património para a humanidade. Desde o princípio, comunidades de homens e mulheres, de cidadãos e de escravos, de judeus e de pagãos a celebrar o que nós hoje estamos a celebrar, foi, de facto, a maior transformação da história. E por isso o Espírito Santo é o grande agente da transformação. Da própria transformação politica que é uma realidade em que nós não pensamos. Às vezes nós cristãos parece que temos um certo sentimento de vergonha em relação à democracia. Parece que somos uma  espécie de subgénero dentro da democracia. Não, o Cristianismo é a fonte da democracia, da democracia tal como nós aspiramos, até uma democracia maior, melhor, mais qualificada do que aquela que hoje nós temos. O Cristianismo historicamente é, de facto, é um motor de transformação.

E quem diz isto é este neomarxista Slavoj Zizek. Não somos nós a dizer o que damos. É gente de fora a reconhecer, no fundo, o que é o testemunho cristão.

Por isso, nós somos chamados a descobrir o Espírito Santo. A descobrir o Espírito Santo na vida de cada um de nós, a sentirmo-nos consequência do Espírito. E como o Espírito nos liga a Jesus…

Como é que a Igreja ultrapassa o vazio da sua origem? A perda, a disrupção,  a crise que está na sua origem?

Ultrapassa percebendo isto que Jesus diz no Evangelho de João: “Eu não vos deixo órfãos. Eu vou enviar-vos o Espirito». Nós recebemos o Espírito e sabemos assim que essa palavra de Jesus é verdadeira, porque o Espirito está no nosso coração a dizer que Essa palavra é verdadeira, a confirmar as sementes de esperança que Jesus lançou e lança no nosso coração.

O Espirito é a certeza que Jesus está connosco até ao fim dos tempos.

Queridos Irmãos, em cada tempo a Igreja tem que nascer do Espírito Santo.

Nós temos que ser homens e mulheres marcados pelo Espírito Santo. O Espírito Santo que nos dá esta certeza de Deus connosco. O Espírito Santo que nos confirma no caminho, que nos recorda as razões da nossa esperança.

O Espírito Santo que nos torna artesãos, servidores, instrumentos da própria esperança. O Espírito Santo que nos dá uma inquietude e uma capacidade de sonhar, de ir mais longe, uma capacidade de transformar aquilo que é crítico num motivo e numa razão para um caminho diferente, para um caminho novo.

Vamos pedir que o Espírito Santo desça sobre nós, este Espírito que Pedro e João levaram a Samaria, que Jesus derramou sobre os seus discípulos no dia de Pentecostes, seja Ele aquele que Jesus faz cair sobre cada um de nós, para que o Espírito nos dê a força que neste momento nós precisamos para cumprir o caminho de esperança que o Senhor desdobra diante do nosso coração.

Pe. José Tolentino Mendonça

Homilia na Celebração Eucaristica no Domingo VI da Páscoa

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2014/05/11 - "O Senhor é o Meu Pastor" (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Celebramos hoje a festa do Bom Pastor. Quando nós pensamos nas primeiras representações da figura de Jesus, esta imagem do Bom Pastor é certamente aquela mais utilizada, pelos cristãos, desde o início.

Quando entramos nas catacumbas, nesses lugares onde os cristãos se reuniam às ocultas e ao mesmo tempo preservavam a memórias dos seus mortos, nós encontramos, em muitas delas, quer em escultura, quer gravada na própria pedra, a imagem de Jesus, o Bom Pastor.

Perguntamos, porque é que esta imagem, de certa forma, se sobrepõe às outras? É porque esta imagem é, de facto, muito completa.

Diz muito do modo como Jesus é, na nossa vida. Porque Jesus é o Pastor, no sentido de que Ele vive connosco, vive para nós, vive nesse cuidado, nesse acompanhamento. Nós somos o objeto do seu cuidado, do seu amor, da sua disponibilidade. E, como tantas vezes acontece, o Pastor conhece cada ovelha pelo seu nome, não as confunde, sabe a história de cada uma delas. Percebe como cada uma está, em cada dia, em cada momento.

Depois, há aquela maravilhosa parábola que o próprio Jesus contou de si mesmo: o Bom Pastor é aquele que é capaz de deixar as 99 ovelhas no redil e partir pelos montes à procura da ovelha perdida. Quando a encontra, coloca-a aos seus ombros, faz o caminho e diz: Alegrai-vos comigo porque encontrei a minha ovelha perdida.

Os símbolos, as imagens, nós sabemos, valem por mil palavras. Porque não falam apenas à nossa cabeça, ao nosso pensamento, falam também ao nosso coração. As imagens são uma forma muito especial de comunicação, precisamente porque elas cabem e não cabem nas palavras. Dizem de outra forma. Comunicam connosco de uma outra maneira.

Esta imagem de Jesus Bom Pastor sem dúvida que é uma imagem inspiradora daquilo que somos. É importante que Jesus seja o nosso Bom Pastor, que seja Ele o nosso Bom Pastor.

Hoje nós líamos este Salmo 22 ou 23, segundo a numeração quer grega quer hebraica, e deste Salmo que diz «O Senhor é o Meu Pastor», que é um dos mais conhecidos, nós podemos fazer dele a oração quotidiana e encontrar nele o consolo e a força de que precisamos.

O grande filósofo Henri Bergson dizia que rezar o salmo 23 era para ele sempre o momento mais fundo da sua espiritualidade.

Porque é a certeza não de um Deus distante e indiferente à nossa história, um Deus que paira filosoficamente sobre a nossa existência. Mas é um Deus que verdadeiramente está implicado na nossa situação.

Aliás, é interessante recordar que este salmo 23 foi um salmo muito discutido na tradição judaica. Porque alguns diziam, isso é uma heresia, é uma blasfémia. O que esse salmo diz é impossível porque atenta contra a omnipotência e a impassibilidade de Deus. Porquê? Porque a dada altura o salmo diz : «Ainda que eu ande por vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo».

E então os Mestres perguntavam-se: Mas então Deus está no vale da sombra, quer dizer, no vale da morte, no vale da infâmia, no vale da vulnerabilidade, no vale do pecado. Deus está na nossa lama?

Nesse aberto implacável onde parece que a vida se dispersa? Deus está aí?

Como é que isso é possível? Isso põe em causa a fé no Deus único, no Deus absoluto.

A verdade é que ninguém nunca se atreveu a retirar este salmo 23 do conjunto dos salmos. E mais, ele é uma espécie de joia, é uma espécie de Santo dos Santos, no interior do saltério que é composto por 150 salmos. Este é, sem dúvida, o salmo mais lido, o salmo mais usado.

E, contudo, até parece uma heresia. Mas o amor tem que ter alguma coisa de heresia, tem que ter alguma coisa de sobressalto, de excessivo, de ir além das medidas, de ir além da própria razoabilidade. E o amor de Deus é isto. Deus parece que se nega a si mesmo para nos amar, e nos amar sempre e nos amar até ao fim.

Este é o mistério do amor de Deus. O Senhor torna-se escravo para poder estar junto de nós.

Queridos irmãos, é muito importante perguntarmo-nos se, de facto, Jesus é o Pastor das nossas vidas. Perguntarmos quem é que apascenta a nossa vida, às vezes no seu lugar, às vezes ocupando o próprio lugar de Deus.

Numa parede de uma prisão do Harlem em Nova Iorque foi descoberto um poema, escrito por um toxicodependente que estava ali preso. É um poema que é uma paráfrase do Salmo 23. E é verdadeiramente impressionante. Diz assim:

“A heroína é o meu pastor, ela sempre me faltará

Ela faz-me dormir debaixo das pontes e conduz-me a uma doce demência

Ela destrói a minha vida e conduz-me pelo caminho do inferno por amor do seu nome

Mesmo se eu caminhasse pelo vale da morte

Não temerei nenhum mal porque a heroína está comigo

A minha seringa e a minha agulha dão-me conforto”

É um poema que é um grito, mas nós podemos perguntar: o que é que colocamos no lugar do nosso Pastor? Este homem colocou a heroína. Nós o que é que colocamos?

Podemos colocar o dinheiro. Podemos colocar a ambição. Podemos  colocar a nossa satisfação pessoal. O nosso prazer. O nosso individualismo. Podemos colocar tantas coisas.

Rezar o Salmo 23 é também purificar o nosso coração. Desses falsos ídolos que nós colocamos no lugar de Deus a apascentar a nossa vida, a cuidar da nossa vida, a velar por aquilo que somos.

Neste domingo do Bom Pastor nós celebramos também o dia dos seminários, o dia das orações pelas vocações consagradas, no fundo, pela dimensão do pastoreio do povo de Deus.

É muito importante que peçamos ao Senhor que envie, em cada tempo, à sua Igreja, pastores dedicados à maneira de Jesus. Pastores dedicados ao seu rebanho, capazes de expressar na sua vida, nas suas atitudes, a própria imagem de Cristo, o Bom Pastor.

Vamos rezar pelos ministérios na Igreja e, de forma particular, por aqueles que têm esta missão junto dos irmãos, este encargo de apascentar, para que o Senhor também os conforte para que eles encontrem em Cristo também o Pastor previdente e possam traduzir na sua vida esse sentido.

Vamos rezar pelas vocações sacerdotais, para que o Senhor continue a despertar no coração dos jovens, mulheres e homens um grande desejo, de uma forma radical, também ela excessiva, também ela extravagante na sua radicalidade. Que o Senhor possa atrair jovens para se dedicarem às vocações que se ligam de uma forma mais íntima com pastoreio da própria Igreja.

Mas também é verdade que no seu conjunto, a própria Igreja, formada pelos pastores e pelos leigos, fazem um único povo de Deus, nós todos temos a responsabilidade ser pastores, de apascentar. Isto é, somos responsáveis por um ministério, que é um ministério de compaixão. Compaixão pela humanidade. Tantas vezes Jesus olhando para a multidão enchia-se de compaixão dela, porque eram como ovelhas sem pastor.

Às vezes nós, com uma grande facilidade, julgamos os outros e remetemos para o vale da morte, para o vale da sombra e somos implacáveis e castigamos, quando aquilo que nos é pedido, é essa grande vocação de misericórdia: o pastor é aquele que tem um olhar de misericórdia.

É isso que é pedido a cada cristão. Que possa exercer e ser servidor da misericórdia, servindo a humanidade frágil, a humanidade vulnerável. Que é humanidade, no fundo, que existe em cada homem, porque todos, todos, somos feridos pela fragilidade.

Pe. José Tolentino Mendonça

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Abril

2014/04/20 - Ressuscitou conforme amou (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

Ao longo dos textos que nesta Semana Santa nós fomos lendo, desde domingo passado, em que lemos a Narrativa da Paixão do Evangelho de São Mateus, quinta-feira lemos São João, depois lemos São Lucas, hoje estamos a ler São João, ainda há a possibilidade de ler São Lucas, o Evangelho de Emaús, há um aspeto que é comum a todas as narrações: o mistério de Jesus não é uma verdade pré-fabricada, não é uma verdade acabada. Que está feita, e cai, e é dita, e é assim. Não, é uma verdade que se insinua no claro- escuro, e que pede uma procura, pede uma interpretação.

E, se quisermos, as primeiras comunidades cristãs, muito apoiadas no testemunho dos apóstolos, o que é que fazem? Fazem a interpretação, a hermenêutica dos acontecimentos de que são testemunhas. E, no fundo, esse esforço hermenêutico continua. Nós estamos aqui, dois mil anos depois reunidos em assembleia nesta manhã de Páscoa. O que é que nós estamos a fazer aqui? Estamos a tentar encontrar um sentido. E um sentido não arqueológico, mas um sentido que seja também significativo para as nossas vidas. Mas estamos igualmente à procura de um sentido para estas palavras que nós ouvimos e que são palavras que nos aceleram, que nos fazem correr.

Nós vemos Madalena que vai ao sepulcro. Não encontra, vem dizer a João e a Pedro: «O Senhor não está no sepulcro, alguma coisa aconteceu» e eles saem disparados a correr. E quando chegam lá, também não é que percebam logo tudo. Olham os sinais e ficam perplexos sem saber o que pensar.

E depois acontece isto que é a chave, digamos, da própria experiência cristã: “Viu e acreditou”. Mas o quê que ele viu? Não há nada para ver ali. Viu o que não se pode ver. Viu o vazio, viu a ausência, viu o não estar. Mas na fé, ele interpretou aquele sepulcro vazio como sinal de uma presença, que agora o nosso coração desenha e torna o fundamento da nossa própria vida, que é a presença daquele que está connosco, todos os dias, até ao fim dos tempos.

Queridos irmãos, nós não viemos aqui celebrar uma verdade acabada. Viemos aqui para nos tornarmos buscadores, viemos aqui para ir ao sepulcro como Maria Madalena, viemos aqui para correr, para sentir que o coração nos sai pela boca, porque é uma notícia tão surpreendente, tão nova, que nós temos que perguntar o que é isto? Nós cristãos temos que nos perguntar: mas o que é isto que eu celebro? O que é isto que me transmitiram? Porque é que eu estou aqui? Por uma verdade tão fora de tudo, uma coisa tão inédita. Nunca vista.

O que é isto? O que é isto? E cada um de nós precisa de responder. Porque, no fundo, aquilo que nós vemos acontecer nos textos sagrados é este esforço por interpretar, por dizer o que é isto para nós. Por dizer o que é isto no caminho que nós fazemos.

E, queridos irmãos, a Páscoa não é um momento cultural, não é um momento sociológico, não é um momento de encontro entre nós, não é uma tradição interessante, antropológica.

A Páscoa é uma insurreição, a Páscoa é alguma coisa disruptiva, no modo como a história se constrói habitualmente. A Páscoa é a revelação de uma outra coisa, é uma fenda, é uma brecha, porque há um homem que se liberta da própria morte.

Há um insubmisso em relação à morte. E esse seu gesto, esse acontecimento, desfataliza a história. Torna a história outra coisa. Há um antes e um depois para nós. A história é outra coisa.

E esta manhã não é uma manhã igual às outras. É uma manhã que nos transtorna, que nos transtorna. Porque intimamente nós somos puxados para outra realidade. E nessa realidade nós olhamos para a vida e para nós próprios com outros olhos, com uma outra visão, com uma outra perspetiva.

Há uma tradição muito bela, ali na zona de Véneto, em Itália, que é: na manhã de Páscoa os camponeses vão ao rio lavar os olhos. E, no fundo, é isto que nós devíamos fazer.

A água que foi derramada sobre nós, é uma água para nos lavar os olhos, para nos dar uma nova visão da realidade. Uma visão que parte de Cristo e deste acontecimento de Cristo. E, tomando este acontecimento, nós vamos agora revisitar a história de Jesus, mas a nossa própria história.

Sentindo que a Ressurreição nos traz a todos implicados, nós estamos implicados nisto. Nós não somos espectadores, somos implicados. Somos parte deste caso, absolutamente inédito, de novidade, de insubmissão na própria história. Há um sepulcro que está vazio. Há um crucificado que ressuscitou. Há um homem que saiu da fatalidade da história, nasce e morre.

Há um homem que nos diz que a vida pode ser outra coisa. E é isso que nós estamos a tentar compreender. A tentar compreender. Nós estamos aqui a tentar compreender o que é isto. E, no fundo, o nosso caminho cristão não é outra coisa do que tentar decifrar o mistério, tentar dizer mas o que é isto, e o que é isto para mim, o que significa isto para a minha própria vida.

Há uma das antífonas mais repetidas neste tempo Pascal: Resurrexit, sicut dixit. Ressuscitouconforme disse, como disse.

Mas há um copista medieval que introduziu, talvez por engano ou talvez neste esforço de interpretação, introduziu uma mudança e, de facto, às vezes os erros levam-nos mais próximos da verdade. E ele escreveu: Resurrexit, sicut dilexit. Ressuscitou conforme amou, não apenas conforme disse, mas conforme amou.

Cristo ressuscitou conforme amou. E este mistério da sua Ressurreição é um mistério que nós temos que tatear dentro do amor. Só se entende dentro do amor. Porque amar é dizer ao outro: tu não morrerás.

É este amor, a consciência filial de Jesus, o amor do Pai, esta fidelidade que leva Deus a dizer a Jesus: Tu não morrerás.

E é aquilo que leva Deus a dizer a cada um de nós: tu não morrerás. É dentro do amor, é dentro do pacto que é o amor, este amor garantido pelo próprio Deus, que nós entendemos também o significado profundo da Ressurreição.

Sintamos isso, queridas irmãs e irmãos, sintamos que é isso que Jesus revela a cada um de nós. Esta voz de Deus que diz ao nosso coração: tu não morreste, tu não morrerás. Isto é, o desânimo, o cansaço, a fatalidade, a desesperança, a desistência, isso não pode triunfar no teu coração. Tu não morreste. Tu não morrerás.

Essa garantia que Deus dá. Esse levantamento. Essa recusa de um destino de morte.

Queridos Irmãos, celebrar a palavra do Senhor é, por isso, o maior dos compromissos. Eu iria dizer o único compromisso. O nosso comprometimento é, no amor, entender tudo. Descobrir tudo. Perceber tudo. Dentro da lógica do amor.

É isso que nós celebramos em Cristo pascal.

A escritora Marguerite Yourcenar, no texto que tem sobre a sequência da Páscoa, a dada altura, reflete um bocadinho sobre o significado de tudo isto se passar num jardim. O túmulo de Cristo é colocado num jardim. Depois no próximo domingo, por exemplo, vamos ver Maria Madalena que confunde Jesus com um jardineiro. E ela diz: porque que a mais inédita das verdades humanas se passa num jardim? Porque é que o ressuscitado, primeiramente, é confundido com um jardineiro?

Ela diz, é evidente. Porque Ele não tem deixado de semear no nosso coração. E é isto que é importante que nesta eucaristia aconteça. Cada um de nós sinta semeada no seu coração, esta insurreição, este levantamento, esta certeza da palavra de Deus que lhe é confiada.

Tu não morreste, tu não morrerás.

Pe. José Tolentino Mendonça, Homilia do Domingo da Ressurreição do Senhor

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2014/04/13 - "Quero celebrar a Páscoa em tua casa" (homilia)

Queridos irmãos e queridas irmãs

Há um texto da escritora Marguerite Yourcenar intitulado «Páscoa, a mais bela história do mundo», em que ela faz o resumo desta narração que hoje nós lemos e que vamos repetir na Sexta-Feira Santa.

E que é, no fundo, o relato dos últimos dias de Jesus. Desde a sua prisão, a sua condenação, a sua ida para o sacrifício, a sua morte, e depois o grande silêncio, que encheu a terra, silêncio que o próprio Jesus experimentou naquele grito «Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?» e que depois contagiou a terra inteira e que hoje nós sentimos, profundamente, na pausa que fizemos.

E Yourcenar escreve esta história para um amigo dela, que lhe disse : “Eu estive na Guerra da Crimeia,  e digo-te uma coisa, se Jesus, em vez de ter sido  crucificado tivesse sido fuzilado, eu acreditaria nele.” E ela escreveu aquelas páginas, dedicando-as a este amigo, para que ele visse que, por detrás da distância dos símbolos e das palavras, há uma atualidade que nós somos chamados a descobrir.

Queridos irmãs e irmãos, Jesus deu a sua vida por nós, por nós. Desta forma, neste tempo, mas numa oferta de si para todas as horas, para todas as formas e para todos os tempos. E é esta certeza que sustenta as nossas vidas. Nós somos consequência desta história, deste gesto, desta dádiva.

Aquele insulto que dirigiam a Jesus “Salvaste os outros, não podes salvar-te a ti mesmo” é, no fundo, a chave da sua própria vida. Exatamente porque numa dinâmica de amor, Jesus se dispõe a abraçar-nos, a sustentar as nossas vidas, as nossas humanidades, a dar a vida por nós, a amar-nos. Exatamente porque Ele se dispõe a amar-nos, Ele não pode salvar-se a si mesmo. Porque o que é próprio do amor é esse deixar de pensar em si. É esse abandono, é essa pobreza radical, é essa entrega, em que o outro, o outro, é colocado no centro. Nós estamos no centro do gesto de Jesus. Da sua história de amor, da sua entrega.

No início desta longa narração, há uma história um bocado misteriosa. Jesus manda os discípulos irem ter com um homem, uma personagem, nós não sabemos o seu nome, e dizer-lhe «Olha, eu quero celebrar a Páscoa este ano em tua casa».

Esta pessoa seria provavelmente o dono da sala de cima, onde Jesus comeu a Páscoa, a última ceia, com os seus discípulos. Mas a gente pergunta, porque é que ele não tem nome?

Possivelmente para evitar que ele tivesse consequências penais, que ele fosse perseguido, por de alguma forma, se ter envolvido com a história de alguém condenado à morte e ser apresentado como um cúmplice de Jesus. Então por motivo, digamos, de conveniência, o nome dele não é explicitado.

Mas, no Evangelho, sempre que as personagens aparecem sem nome, também nós temos uma outra razão: este homem não tem nome, porque ele tem os nossos nomes. Ele chama-se José, chama-se Luís, chama-se Manuel, Madalena, Maria.

Chama-se os nomes de todos nós. Porque é a cada um de nós que Jesus manda dizer: “Olha, Eu este ano quero celebrar a Páscoa em tua casa, no teu coração, na tua vida». E é dentro de nós que toda esta narração se vai devolver. Que a mais bela história do mundo, a mais santa história do mundo vai acontecer, nas nossas vidas.

Queridos Irmãs e Irmãos

No início desta Semana Santa, a Semana Maior do ano, que nos sintamos implicados, nos sintamos envolvidos, tenhamos capacidade de ver por detrás dos símbolos, de ver por detrás dos sinais e perceber que há aqui um encontro, que há aqui um dom, a dádiva que é feita a nós, que foi por causa de nós, que foi para nós que esta história aconteceu.

Pe. José Tolentino Mendonça

13 de Abril de 2014, Domingo de Ramos

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2014/04/12 - "Viver a Páscoa no aqui e no agora" - Retiro Aberto na Capela do Rato

Realiza-se no próximo dia 12 de Abril, das 9h30 às 13h, na Capela do Rato, o Retiro Aberto da comunidade, em tempo quaresmal, para nos ajudar a ”Viver a Páscoa no aqui e no agora”.

As inscrições para o retiro poderão ser feitas no final das missas de sábado (18.45h) e de domingo (11.30h).

Clique para ouvir a 1ª parte do Retiro:

Clique para ouvir a 2ª parte do Retiro:

2014/04/02 - Conversas à Capela - A virtude da Humildade

No dia 2 de Abril, às 21.30h, teremos a próxima Conversas à Capela, na Capela do Rato, desta vez dedicadas à virtude da Humildade.

Para nos ajudar a reflectir sobre este tema convidámos o Carlos Simões (Médico Dentista e membro das CVX),  o Luís Miguel Cintra (Actor e Encenador) e a Margarida Neto (Psiquiatra).

Março

2014/03/30 - Uma nova visão das coisas (homilia)

Queridos irmãos e irmãs

Estes domingos, estes três domingos do meio da Quaresma, nós lemos o Evangelho de São João. Evangelhos desde a antiguidade cristã, destinados a explicar aos catecúmenos e a lembrar aos batizados, o significado do seu batismo.

Domingo passado tivemos a explicação do símbolo da água, com o Evangelho da Samaritana.

Este domingo, temos a explicação do símbolo da luz, com a cura do cego de nascença. No próximo domingo, teremos a explicação do símbolo da vida com a ressurreição de Lázaro.

São assim, três grandes símbolos: a água, a luz, a vida que explicam aquilo que é o impacto do dom de Jesus na vida de cada um de nós. Nós precisamos da Luz. Nós precisamos da Luz.

É interessante a situação que o Evangelho de São João nos relata, com a cura deste cego de nascença: há a cura do cego e há depois uma querela jurídica para saber se Jesus tinha ou não legitimidade, para fazer aquele sinal. E depois há o reencontro, o segundo encontro de Jesus com o cego.

O que é que nós vemos nas duas primeira partes, na cura do cego e na querela jurídica que se lhe segue?  O cego tem consciência que é cego. Isto é, tem consciência da sua carência, da sua necessidade, da sua real situação.

Aqueles que promovem a querela em torno à cura e à legitimidade de Jesus curar ou não em dia de sábado, veem e não veem ao mesmo tempo, mas não têm consciência da sua cegueira.

E, no fundo, este é o ponto primeiro que o relato evangélico nos coloca:

Será que nós temos consciência da necessidade de Jesus? Será que nós estamos conscientes de quanto precisamos Dele?

Porque às vezes o nosso problema, e foi esse o problema dos fariseus, é perdermo-nos numa autojustificação. Isto é, nós temos explicação para tudo, sabemos tudo, percebemos tudo, vemos tudo, e nesta soberba, Deus não entra no nosso coração porque o nosso coração é pedra, o nosso coração é porta blindada, o nosso coração é um fecho de correr.

Só quando estamos conscientes da nossa fragilidade, e da nossa fraqueza, só quando percebemos até ao fim e até ao fundo, quanto carentes estamos do perdão, da misericórdia e da ternura de Deus é que, de facto, essa misericórdia é derramada nos nossos corações.

Ganhar consciência de que precisamos de ser tocados por Jesus, ser lavados no seu sangue, na água batismal, ser iluminados pela sua luz.

O que é receber a luz, o que é passar a ver? É ganhar uma nova visão das coisas.

Os Evangelhos têm muitas curas a cegos. E essas curas têm um papel simbólico muito importante. Porque a cegueira tem a ver com a nossa maneira de viver. Às vezes nós estamos cegos mas não temos consciência disso. Achamos que continuamos a ver. É uma imagem que já Platão utiliza na Alegoria da Caverna, i.e., nós pensamos que vemos, mas afinal estamos reféns das imagens e dos fantasmas.

Precisamos de ganhar uma nova visão. E essa nova visão, esse novo entendimento, essa nova maneira de compreender as coisas, é a luz que Cristo nos dá.

O Evangelho de São João tem uma particularidade em relação aos outros 3 Evangelhos.

É que, enquanto os outros três foram escritos para pessoas que ouviam pela primeira vez falar de Jesus, digamos, são os Evangelhos do primeiro anúncio, pensa-se que o Evangelho de São João foi escrito para pessoas que já eram cristãs e por isso não se tratava de aprender o b-a-ba sobre Jesus, o início, mas trata-se sim de um segundo encontro, de um aprofundamento da própria fé.

E, por isso, é muito interessante que no Evangelho de São João, as personagens não aparecem uma só vez, aparecem várias vezes, duas ou três vezes. Por exemplo, o Evangelho da Samaritana, ela aparece-nos a falar com Jesus mas depois aparece-nos a falar com as pessoas da sua terra. No Evangelho de Nicodemos, ele aparece-nos à noite a falar com Jesus mas depois aparece-nos com José de Arimateia a perfumar o corpo de Jesus e a sepultar Jesus.

As personagens não aparecem uma vez só, aparecem uma segunda e uma terceira vez.

Também assim com o cego. Ele era mendigo, era cego, foi curado.

Foi curado, mas acreditava que tinha sido um profeta. Não que era o Messias de Deus que o tinha curado. E então, depois daquela querela toda, Jesus encontra-o pela segunda vez.

E diz-lhe: “Acreditas no Filho do Homem?”

E ele pergunta: “Quem é Senhor, ainda não o vi”. Quer dizer, a cura não é apenas a cura da cegueira, é a cura é de uma cegueira espiritual.

E Jesus diz uma coisa absolutamente comovente, conjugada no verbo presente: “É este que fala agora contigo”. E o homem cai de joelhos, e diz: “ Senhor, eu creio”.

Queridos irmãos,

Nós estamos a viver o Tempo da Quaresma, nós já somos cristãos há um ano, há cinquenta anos, há mais ou menos tempo. Hoje temos aqui três irmãos nossos catecúmenos que se estão a preparar para receber o batismo no tempo pascal.

O que é verdadeiramente para nós o segundo encontro com Jesus?

O segundo encontro com Jesus é recebermos a luz de uma maneira nova.

A Quaresma tem que ser um sobressalto. Tem de nos tornar mais cristãos, melhores cristãos. Tem de nos dar uma compreensão mais lata do mistério de Cristo e do mistério do próprio homem e do mistério da vida.Com Cristo aprendemos uma nova gramática, um novo dicionário, um novo léxico da própria realidade.

Se, antes da Quaresma pensávamos uma coisa, ao chegar à Pascoa o nosso olhar tem que estar lavado. Em Itália, há uma tradição muito bonita, no Véneto, que é na manhã de Páscoa as pessoas vão ao rio lavar os olhos. E nós estamos aqui a lavar os nossos olhos, com esta palavra. Isto é, a lavar o nosso entendimento. A receber esta luz que é o próprio Cristo.

E receber a luz, implica muitas vezes, ver as coisas de uma forma completamente diferente.

Por exemplo, a 1ª leitura, a escolha de David como rei. Este homem, Jessé, tinha doze filhos e naturalmente o que podia ser rei era o mais velho, e no impedimento do mais velho, o filho segundo. Mas Deus vai escolher aquele que nem está em casa. Vai escolher o mais novo, aquele que, do ponto de vista jurídico, não tem direito algum. E Deus vai escolher o mais improvável, que é aquele rapaz chamado David. Deus escolhe o mais improvável, o mais pequenino, aquele que não se espera, o que não está legislado, o que nos surpreende, que não tem a ver com o nosso ponto de vista. Deus escolhe. Deus escolhe fora do nosso baralho e para lá das nossas contas.

E receber a luz de Cristo é nos abrirmos a um novo entendimento. No fundo, nos abrimos às surpresas de Deus. Ao desconcerto do modo como ele atua. À liberdade de Deus ser Deus em nós. À sua vontade que é sempre nova. Nos abrirmos. Nos abrirmos.

Que hoje nos sintamos como o homem cego. Este homem o qual Jesus tem misericórdia e cura, a quem lava os olhos, e a quem diz uma palavra. A quem encontra uma vez e uma outra vez. Uma segunda oportunidade, para lhe dizer: “Acreditas no Filho de Deus?”. Ele é aquele que está a falar connosco neste momento. O que Jesus diz ao cego, diz a cada um de nós : “Sou eu que estou a falar contigo, agora, agora”.

Pe. José Tolentino Mendonça

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2014/03/27 - Celebração Penitencial na Capela do Rato

No dia 27 de Março, às 21h30, na Capela do Rato, terá lugar a Celebração Penitencial em tempo de Quaresma, desafiando-nos a preparar a Páscoa.

2014/03/25 - Vozes de Religiosas Portuguesas

No próximo dia 25 de Março, às 21.30h, na Capela do Rato, celebrando a Anunciação do Anjo a Maria, teremos connosco três religiosas para partilhar o seu testemunho de vida:Ir. Isabel Balbino (Franciscanas Missionárias de Maria)
Ir. Mafalda Leitão (Servas de N. Sra. de Fátima)
Ir. Mª Julieta Mendes Dias (Religiosas  do Sagrado Coração de Maria)

O encontro será moderado por Alfreda Fonseca.

2014/03/17 - Nesta Quaresma aprende a ser pobre

Uma das bem-aventuranças de Jesus, que no Evangelho de Mateus é a primeira (5, 3), diz: «Bem-aventurados os pobres em espírito porque é deles o Reino de Deus».

Uma bem-aventurança é um horizonte. A nossa vida precisa de horizonte. Às vezes parece que a nossa existência acaba nos nossos sapatos, que é a única coisa que vemos quando se tem a cabeça virada para baixo. Não nascemos para viver a olhar para os sapatos, mas para o futuro. Precisamos de sentir que há um projeto, que somos projetados mais além, que tudo não acaba aqui e agora, que o que fazemos não acaba numa tarefa mas é um diálogo com o que está mais longe.

O que por vezes nos sufoca é o ar pesado de uma vida fechada em si mesma. Como se vivêssemos num quarto a vida toda com as janelas fechadas sem nunca entrar o ar. Pensar nas grandes questões, no que dá sentido à vida. E é neste contexto que se situam as bem-aventuranças que Jesus oferece.

«Bem-aventurados os pobres em espírito porque é deles o Reino de Deus». Antes de tudo, a pobreza é uma atitude espiritual, interior. Não estamos a falar de economia. A pobreza é uma atitude do coração, voluntária, ao passo que a pobreza económica vem de fora e pode ser uma imposição, como acontece com o desemprego, que é uma catástrofe. Mas no Evangelho fala-se de outra pobreza, que é uma escolha, que nos vem de dentro, um estilo de vida, uma maneira de estar e de reagir, uma forma de nos situarmos neste jogo que é a vida.

Eu posso colocar-me como não precisando de nada nem de ninguém, posso colocar-me numa perspetiva completamente autossuficiente, blindada, impermeabilizada, ou posso escolher a pobreza, ou seja, viver numa atitude de humildade, necessidade, encontro, busca da complementaridade dos outros, sabendo sempre qual é o meu lugar.

A pobreza liga-se a uma longa tradição na espiritualidade cristã que é a infância espiritual. Muitos santos propõem-na no caminho da ascese, de subida para Deus. Temos de envelhecer com esta criança interior, não perdendo a inocência, a simplicidade, a capacidade de se sentir pequenino, e tudo isto não ser uma coisa que nos destrói, mas ser a fonte da nossa alegria, a fonte da nossa esperança.

A infância espiritual não é uma infantilização da vida, não é um fazer de conta, não é desresponsabilizar a existência. É fazer uma opção por viver na confiança e na abertura, duas dimensões que precisamos de trabalhar. Viver na confiança quer dizer viver com fé, espalhando-a a tudo, às relações com os outros, à vida, ao que somos.

Estamos num tempo que nos coloca de pé atrás com a vida, com o quadro social, com o futuro, embora estas inquietações nos levem a perguntar onde é que tínhamos colocado a nossa confiança. Temos de saber em quem e onde colocamos a confiança, que não depende da Bolsa de cada dia.

O coração pobre vive na abertura, não se fecha, não se tranca, vive na atenção, na vigilância, na espera, na disponibilidade. Quando andamos com uma criança pela mão, sabemos para onde queremos ir, o que muitas vezes nos impede de apreciar o caminho. Uma criança sabe que vai a algum lado, mas também sabe que está acompanhada, o que lhe dá uma grande liberdade de coração, e vai disponível para apreciar os detalhes da vida. Por vezes temos de a puxar porque ela fica agarrada a uma flor, a um animal, a qualquer coisa que saltou no meio da paisagem.

Se nos perguntarem «hoje, o que é que te tocou?», ficamos por vezes sem saber o que responder, porque nada nos tocou. Vivemos muita coisa mas nada nos tocou. Porquê? E somos capazes de viver assim durante dias, semanas e meses.

Falta-nos a disponibilidade de entrarmos em diálogo, de sermos simples, de aprendermos como as crianças, que quando dão a mão a alguém têm o coração e o espírito livre para saborear o caminho, que para elas não é, como para nós, um corredor noturno e sonâmbulo em que só se vê uma coisa: a meta. E quem só vê a meta, não caminha.

«Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além.» Agradecer, agradecer, agradecer. É esta a pobreza de coração. É estar grato por aquilo que vem, que brota, que germina.

P. José Tolentino Mendonça

Excertos do Retiro Aberto na Capela do Rato no dia 17 de Março de 2013

Redação: SNPC/rjm

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2014/03/17 - Pobreza espiritual, caminho de vida

Há uma escultura de S. Francisco de Assis no Monte Alverne, Itália, em que ele está deitado na terra, a olhar. É uma imagem da santidade. A capacidade de se deitar a olhar, a ver, a reparar, a respeitar – olhar outra vez. Por vezes somos injustos com a vida, as coisas, os acontecimentos, porque não olhamos outra vez. O nosso ponto de vista já está muito cheio, muito condicionado, é um funil que deixou de ser abertura de coração.

Por um lado, devemos ter consciência da nossa autonomia. Deus tem de ser um caminho para cada pessoa. Não vivemos encostados à experiência de ninguém. Somos autónomos também no caminho da fé. A nossa relação com Deus é comunitária, sem dúvida, mas antes de tudo é pessoal. Deus não se revelou primeiro a um povo, mas a uma pessoa: Abraão, Moisés,… Um por um. Deus sabe o nosso nome, sabe o que somos. Isto também tem a ver com a aceitação da pobreza. É na pobreza que está a riqueza enquanto ponto de partida.

A par da autonomia, temos de viver na consciência de que dependemos inteiramente do amor de Deus. «Não temas, pequenino rebanho, porque agradou a teu Pai dar-te o Reino.»

A pobreza espiritual, encarnada por Jesus, tem ressonância no Antigo Testamento. Nesta tradição fala-se de um modo de ser e viver pobre em termos espirituais, concretizado pelos anawin, os pobres de Yahweh. O que Maria canta e testemunha no seu “Magnificat” é a reviravolta de Deus, que pôs os olhos na pobreza da sua serva, que retira os poderosos dos tronos e neles faz sentar os humildes, que despede os ricos de mãos vazias e enche os pobres das suas riquezas.

Um coração pobre está disponível para viver a alternativa de Deus, a lógica nova de Deus, as transformações, o modo de ver e atuar de Deus na história.

Jesus também nos ensina o caminho da pobreza espiritual. Quando atravessa a Samaria, acompanhado pelos discípulos, sente fome. Por vezes a fome é um momento espiritual importante. Não só a fome biológica, mas também a necessidade de outra coisa.

Os discípulos vão à aldeia buscar comida e, ao regressar, Jesus fala-lhes de outro alimento: fazer a vontade do Pai. Também nós fazemos um grande investimento para buscar o alimento, mas Jesus, à semelhança do diálogo com os discípulos, como que nos pergunta: «É disso que te alimentas?».

O verdadeiro alimento é vivermos a partir da condição de sermos filhos, de sermos filhos amados por Deus. Se vivemos a partir da convicção profunda de que é o amor de Deus que nos funda – o que o Pai diz a Jesus, «Tu és o meu filho muito amado, em ti coloco o meu amor» -, a nossa existência será completamente diferente. Deixaremos de andar de equívoco em equívoco. Saberemos verdadeiramente qual é o nosso alimento, o que nos sacia, o que é decisivo para nós.

A pobreza espiritual também se expressa na aceitação de si. Não temos apenas mal-entendidos com os outros. Por vezes, o maior e o mais difícil mal-entendido é connosco próprios. Não nos aceitamos, não nos abraçamos, não nos acolhemos, não nos perdoamos. Aceitar-me no que sou e não sou, no que fui, no que não fui, no que não consegui, no que correu bem e no que correu mal, na fraqueza e na fragilidade.

Como é que se torna fecunda a vida pobre? Na aceitação confiante de si. Como diz S. Paulo na segunda carta aos Coríntios (4, 7): «Trazemos em vasos de barro o nosso tesouro». E é sempre assim. Temos de aceitar o tesouro, mas também o barro, o barro que se quebra, o barro que se cola, o barro que não tem remédio, o barro que fica ferido.

O poeta brasileiro Manoel de Barros, com quase 90 anos, é uma das grandes figuras espirituais do nosso tempo: «Prefiro as máquinas que servem para não funcionar». Isto exige uma conversão. Porque nós preferimos o que funciona. «Porque cheias de areia, de formigas e de musgo, elas podem um dia milagrar flores». Há um milagre que só nos chega pela pobreza.

Há a história do monge perseguido por um tigre: o monge corre, o tigre também; o monge sobe a uma árvore, e também o tigre; o monge desce, o tigre imita-o. Chegado ao cume de uma montanha, percebe que de um lado tem o tigre e do outro o abismo. Então pensa: no abismo haverá, possivelmente, alguma coisa que amorteça a queda; e então atira-se. Ao cair, fica preso numas raízes, com o tigre, no alto, a olhar para ele. Mas as raízes começam a ceder com o peso, e daí a momentos ele vai cair onde não sabe. Olhando à volta, encontra um morangueiro, estende o braço e come um belíssimo morango, sentindo todo o seu sabor.

A nossa vida tem o tigre, tem as raízes que cedem, tem o que não sabemos à nossa espera. A atitude da pobreza é a convicção de que, no meio da aflição, os morangos não perdem o sabor. Que os encontros não perdem o sabor. Que sejamos capazes de perceber o sabor que nos é dado, mesmo que não seja nas condições, no modo, no dia ou no tempo que tínhamos previsto. O pobre recebe infinitamente mais do que previa.

Como o mestre que chama o discípulo para a primeira lição, que é tomar chá. Ao deitar chá para o chávena do aprendiz, não para, e então o chá transborda. O discípulo, assustado, grita: «Mestre, o chá está a espalhar-se por todo o lado». E o mestre diz-lhe: «É a primeira lição: se não tiveres o coração vazio, vai perder-se tudo aquilo que ouvires e viveres».

Como é que pode acontecer que passem semanas e nada nos toque? Como podemos dizer que não vemos Deus em nenhum lado? S. Francisco andava com uma varinha a bater nas rochas, nas flores e nas criaturas, e dizia-lhes: «Para, para, não me fales de Deus».

Esta pobreza espiritual é chamada a expressar-se num estilo de vida essencial. É importante que cada pessoa se pergunte o que quer testemunhar. Porque nós estamos sempre a testemunhar.

Diz Rumi: O que é que eu deixo em herança? Deixo em herança a primeira brisa do outono e o primeiro canto do cuco na primavera. O que é que nós deixamos em herança? Podemos até deixar bens, mas se não deixamos o sabor da vida, o sentido, a transparência, se não deixamos a brisa do outono e o canto do cuco na primavera, então não deixamos nada, não testemunhamos nada.

O que possuímos, possuí-nos. Devemos estar muito alerta e perguntar: eu quero possuir isto? Que é como quem diz, eu quero ser possuído por isto? Se pensarmos assim, ganhamos outra liberdade, que é um caminho exigente, de pequenas e grandes escolhas, de momentos extraordinários e da vida de toda a hora.

Queremos viver para dar testemunho do amor e do acolhimento, ou queremo-nos protegidos através do conforto e da segurança?

Rezemos a nossa vida. Perguntemo-nos o que nos alimenta, o que nos toca, perguntemos se só vemos a meta ou se aceitamos a nossa vida pobre e vazia. Perguntemos se em cada dia franqueamos as muralhas do nosso coração.

«O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».

P. José Tolentino Mendonça

Excertos do Retiro Aberto na Capela do Rato no dia 17 de Março de 2013

Redação: SNPC/rjm

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2014/03/06 - Quaresma, tempo para renascer

Ao falar de uma espiritualidade inscrita no quotidiano, o frei Carlos Maria Antunes, no livro “Só o pobre se faz pão”, diz que uma das nossas dificuldades é a dispersão. O nosso coração está disperso, dividido por muitas coisas. Somos objeto de múltiplos apelos e necessidades. Um rebuliço sem fim atravessa o nosso interior. E com ele também um cansaço e uma angústia que vamos tentando compensar de várias formas.

O cansaço e a angústia são um terreno fértil para a multiplicação das falsas necessidades e falsos desejos. A dispersão provoca mais dispersão.

Neste quadro, a nossa unidade e vigilância interior, que são fundamentais no nosso interior, tornam-se frágeis. Vamo-nos tornando mais vulneráveis, e acabamos, muitas vezes, num movimento de defesa, por endurecer o nosso coração, fazendo de conta que não vejo, que não oiço. Mas esta atitude também não nos dá a verdadeira unidade de coração.

Precisamos de aprender uma arte do acolhimento da nossa própria vida. Acolhermo-nos, acolher aquilo que somos, acolher o que nos chega como uma oportunidade, mas partindo de um centro, de um núcleo vital que em nós está desperto.

O padre Carlos cita o trecho de um poeta persa, Rumi, que diz o seguinte: «O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».

Esta arte do acolhimento da vida, de saber abraçar tudo a partir de uma unidade interior, pede de nós a pobreza espiritual, a pobreza de coração.

Aquando da eleição do papa Jorge Mario Bergoglio – todos nós já tivemos a oportunidade de ouvir esta história -, o cardeal Claudio Hummes, arcebispo de S. Paulo, que estava ao lado dele, abraçou-o e disse-lhe: «Não te esqueças dos pobres». Estas palavras ficaram a fazer-lhe caminho no coração, e quando se tratou de escolher o nome, ele optou por Francisco, lembrando-se de Francisco de Assis e da sua espiritualidade universal.

Falando aos jornalistas nos primeiros dias, o papa deixou os papéis e teve um suspiro, a expressão de um desejo, e disse: Quem me dera que a Igreja se tornasse pobre e fosse uma Igreja para os pobres. Uma Igreja que se torna pobre e faz do acolhimento dos pobres a sua razão de ser, a sua missão.

A pobreza espiritual aparece-nos como um conselho evangélico, isto é, como modo de vida, como uma opção que cada cristão é chamado a fazer para se configurar a Cristo, para se tornar mais próximo de Cristo. Há mais dois conselhos evangélicos: a obediência, ou seja, a capacidade de escutar e permanecer fiel à palavra que se recebe; o outro é a pureza de coração, e aí a castidade é muito mais do que uma privação, tornando-se um modo positivo de estar na vida.

Cada um destes conselhos é vivido na Igreja por todos os batizados, embora de modos diferentes. Todos somos chamados à configuração com Cristo, que é pobre, puro de coração e obediente ao Pai.

Como é que podemos concretizar a opção por uma vida pobre, por uma pobreza espiritual? A vida espiritual não é uma técnica, não é uma habilidade, não é um conjunto de ritos. A vida espiritual é um modo de ser. E quando se fala de adotar uma atitude espiritual de pobreza no coração – S. Francisco chamava-lhe a Irmã Pobreza, ou Santa Pobreza -, temos, antes de tudo, de exercitar o nosso ser.

«Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos. Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho» (Sophia de Mello Breyner).

Há um momento da nossa vida em que deixamos de saber de nós próprios. Parece que já não há um fundo de ser a marcar aquilo que somos e que nos estrutura, uma decisão fundamental, mas, pelo contrário, somos a dispersão.

A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo que eu decido, que eu quero, um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito. A minha vida tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro.

E para ter um centro, precisamos de momentos de recentramento para ouvirmos a nossa voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos: «O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?». Estes momentos de recentramento são revitalizadores.

A Quaresma não são 40 dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo de revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chave que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso este é o tempo de voltar a si.

Excertos do Retiro Aberto na Capela do Rato no dia 17 de Março de 2013

P. José Tolentino Mendonça

Redação: SNPC/rjm

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2014/03/05 - Postal para a Quaresma 2014

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2014/03/05 - Conversas à Capela - A virtude da Fortaleza

Dia 5 de Março, às 21.30h, tem lugar a sessão das “Conversas à Capela”, na Capela do Rato, desta vez dedicada à virtude da ”Fortaleza”. Para nos ajudarem a reflectir sobre este tema convidámos a Cristiana Vasconcelos Rodrigues (Profª da Universidade Aberta),  a Maria Luísa Ribeiro Ferreira (Profª da Universidade de Lisboa), e o Iliyan Georgiev (Sacerdote da Igreja Ortodoxa Búlgara e Prof. da Universidade Nova de Lisboa).

2014/03/05 - Precisamos de uma Primavera (homilia)

A comunidade da Capela do Rato em tempo de Quaresma

Somos uma comunidade de mulheres e de homens, não somos uma comunidade de anjos. E, como tal, vivemos a incerteza, a incompletude e a fragilidade; apercebemo-nos das contradições que se albergam no nosso coração; combatemos o drama do mal nos nossos próprios gestos. Umas vezes conseguimos vencer o dilema, outras afundamo-nos nele e somos vencidos. Umas vezes conseguimos manter alta a esperança, outras permitimos que ela diminua ou se apague em nós e nos outros. Se alguma coisa nos define, portanto, é estarmos a caminho. Diria assim: somos uma comunidade de mulheres e de homens, não somos um grupo de anjos e, por isso, precisamos de conversão.

Vamos começar a quaresma porquê? Não apenas por uma imposição do calendário litúrgico, mas porque precisamos renascer. Sentimos o inacabamento, percebemos que é-nos possível ser mais e que está ao nosso alcance viver com maior autenticidade a nossa condição de discípulos de Jesus. Começamos a quaresma porque precisamos dela, porque somos chamados a dar lugar ao Espírito nas nossas vidas, a abrir caminhos de novidade no quotidiano, a acreditar que é possível. Começamos a quaresma porque acreditamos no amor de Deus. De facto, cada um de nós é amada e amado por Deus, e esse amor é capaz de nos colocar em contexto de aliança, em estado de florescimento. Ligarmo-nos a esse amor representa uma nova criatividade, um novo alento, uma nova respiração. E, certamente, uma nova etapa.

Vamos, por isso, começar este caminho da quaresma. Façamo-lo com realismo. As mudanças que contam na nossa vida não acontecem um dia para outro ou de forma espontânea. Acontecem no meio de um paciente combate interior. Temos de estar preparados para um caminho exigente e através de muitas tentações. É muito fácil sermos crentes de bancada, cristãos de sofá, fregueses do templo.

Descobrir um tempo favorável à oração

Vamos regressar a um caminho, um caminho que dura 40 dias, e que é símbolo do caminho da nossa vida. Não vamos percorrê-lo sozinhos, mas em comunhão com o povo de Deus, com a história da salvação, com o próprio Jesus, que quis também passar 40 dias no deserto para refazer espiritualmente o tempo que o povo de Israel esteve no deserto até chegar ao monte da Aliança. Vamos entrar nestes 40 dias de travessia passo a passo, vamos colocar as nossas vidas em obras, em trabalhos, em arranjos, limpezas, sacudindo o pó, abrindo janelas e rasgando horizontes de forma a deixar entrar o ar novo do Espírito.

A igreja apresenta-nos três ferramentas muito úteis e que nos vão servir estrada fora. A primeira ferramenta é a oração. Um cristão não é produto da sua vontade: é, sim, alguém que vive na humilde e confiada abertura à ação de Deus nele. Um cristão não é alguém que a pulso sobe uma escada. Não vamos entrar na ascese pela ascese.  Tudo nasce daquela certeza que S. Paulo recorda: “…acredita que és amado e salvo por Jesus Cristo…”.

Ora, a verdade é que nós cristãos  vivemos muitas vezes como se Deus não existisse. Vivemos num ateísmo prático os nossos quotidianos, remetendo Deus para o último dos pensamentos, a última das lembranças. No nosso dia a dia que espaço damos à oração? Ás vezes são cinco, dez minutos muito negociados, muito regateados e, mesmo assim, a achar que estamos a perder tempo.

Se pensarmos bem, a oração é efetivamente uma perda de tempo, mas no melhor dos sentidos. A oração é inútil, não serve para nada. Temos, porém, de aceitar que esse momento que não produz nada permite estarmos face a face, coração a coração, permite-nos estar gratuitamente com Deus. A verdadeira oração cristã é gratuita: é deixar que o Espírito venha em nós. É dizer: «Senhor eu estou aqui, à espera de nada», «estou à espera do que Tu me dês; à espera de Ti.» Precisamos da oração, porque como um ferro só se dobra a altas temperaturas (e ninguém pensa que consegue dobrar um ferro frio), uma mulher e um homem também só são recriados a altas temperaturas: a temperatura do amor, a da esperança, a  da oração. A nossa vida precisa de ganhar essa temperatura e isso nasce de uma disposição interior para a relação, para colocar Deus na minha vida, para dialogar com Jesus, ás vezes até para brigar com Ele um bocadinho. É desse encontro que podemos florescer. O nosso tempo da quaresma há de ser um tempo favorável à oração. Cada um à sua maneira, não há duas orações iguais como não há dois sorrisos iguais ou duas lágrimas iguais. Cada um de nós tem uma forma de rezar, é o que somos, pois rezamos a partir do nosso estilo. Mas o importante é isto: que eu reze, que tu rezes.

Qual é a oração boa? Qual a melhor oração? Creio que nos ajuda pensar que a oração se define sobretudo pela quantidade. Oração boa é aquela oração longa, rezar bem é rezar muito. Lembro-me há uns anos de uma conversa com um jovem, ele estava numa etapa forte da sua vida e confessava-me numa linguagem um bocado áspera, por isso não se choquem. Ele dizia-me: «Padre Tolentino eu rezo como um porco». Queria com isso dizer:  «eu rezo tudo, eu não separo, eu não escolho nada; como um porco não escolhe o que vai comer; o que lhe põem à frente ele come». Os verdadeiros orantes são assim! Não podemos achar que  quando acontecer-nos uma coisa especial então  rezamos. Não, faz precisamente o contrário:  reza desde que acordas até que te deitas, reza tudo, reza o que está à tua frente, reza o que Deus te dá para rezar. Que estes 40 dias sejam assim tempos em que nos treinamos na oração frequente, na gratuidade, no encontro, no silêncio. A semente floresce em silêncio, as sementes que neste momento estão a florescer ninguém as escuta, assim é a semente do nosso coração.

Experimentar o jejum nos vários sentidos

A outra ferramenta é o jejum. A quaresma é um tempo para praticar o jejum (o jejum comunitário está previsto em dois dias: quarta-feira de cinzas e sexta-feira santa). E aqui eu penso que temos que começar por ser literais. O que é jejum? Jejum é não comer, é a privação temporária e parcial do comer. É muito importante que cada um de nós faça essa experiência de que tem fome. Esse vazio que se sente no estômago abre, perfuma a vida, faz-nos pensar que a vida não é só pão. Se eu não experimento isso na minha barriga a espiritualidade torna-se uma coisa mental. Ora, a religião não é mental, é uma coisa na carne, é uma opção que nos toca profundamente, que nos modifica. Estes quarenta dias são dias para experimentar o jejum em sentido literal e também como renúncia a pequenos prazeres e confortos, concretizando um estilo de vida mais sóbrio do que aquele que a gente tem. O objetivo é esforçar-se por viver frugalmente este tempo, com maior despreendimento em relação aos nossos apetites, rotinas e gostos. Não nos damos conta, mas a nossa vida enche-se de dependências, de falsas necessidades e perdemos completamente a nossa liberdade. Nós somos mulheres livres, homens livres? Não sei. E se somos até que ponto somos? A liberdade interior e evangélica é uma coisa que se treina. Por exemplo: para podermos dizer sim temos que dizer não; muitos nãos são necessários para podermos dizer um sim que seja autêntico.

Então este tempo jejum é para treinar a renúncia, para escolher um estilo de vida sóbrio e durante estas sextas-feiras nós não vamos comer carne. Havia aquela tradição negocial: «eu substituo essa tradição e como outra coisa» ou «eu prefiro comer carne porque o peixe é mais caro». Não, o sentido é não comer carne e isso tem um sentido. Às sextas-feiras não comemos carne porque a carne é um sangue que se derrama, alimentamo-nos de outra vida, matamos para comer. Simbolicamente, ás sextas feiras, vamo-nos abster desse gesto, do gesto de derramar o sangue das criaturas, e optar por vegetais, por um ovo, um peixe. Isto é uma linguagem simbólica, claro. Não é um bife, um frango ou um hambúrguer que fazem a diferença. O essencial é o que eu sou chamado a redescobrir: que o mundo não existe em função de mim; o mundo não existe para que eu o devore. O jejum é muito importante porquê? Estimula o sentido crítico em relação a nós próprios. O nosso eu é uma coisa imensa e muitas vezes tirânica. O nosso eu é um ditador prepotente e caprichoso e se não o contrariamos acabamos por viver uma vida absurdamente egoísta. Nós não somos o centro do mundo. Temos que colocarmo-nos no nosso lugar e de uma forma consciente e crítica. O jejum serve para isso. Para ter uma posição crítica face àquilo de que nos alimentamos real e simbolicamente.

Praticar a esmola

Mas nada deste caminho fazia sentido se fosse apenas trabalhar de forma solipsista o nosso eu. A quaresma não é o momento zen da igreja.  Isto tudo é feito para ampliar a nossa capacidade de comunhão, para dar uma qualidade evangélica às relações que edificamos. Não tenhamos dúvidas: só o amor, a condivisão, a solidariedade, a partilha tornam legível este caminho espiritual que vamos fazer. E por isso é que a primeira ferramenta é a oração, depois o jejum e terceiro a esmola. Privam-nos para poder oferecer, para nos tornarmo-nos dom. No atual momento das nossas sociedades é fundamental redescobrir a dádiva. Há uma responsabilidade pelos outros, pelos mais pobres e frágeis, que temos de por em prática.  E partilhar isso com os próximos e com os distantes, porque o mundo não acaba na porta da nossa casa ou na fronteira da nossa mesa. Temos de ser capazes de abrir o nosso coração. Que o Espírito Santo que é o recriador das nossas vidas faça renascer o nosso coração como faz brotar cada uma das flores da primavera que se anuncia.

Boa quaresma.

Pe. Tolentino

Escute a Homilia do Pe. Tolentino na Quarta-feira de Cinzas de 2013

Fevereiro

2014/02/23 - Fazer da vida um lugar sagrado (homilia)

Queridos irmãs e irmãos

As leituras do VII domingo do Tempo Comum contam muito do que é a pretensão cristã e porque é que o cristianismo se afirmou como uma alternativa, como novo modelo de vida.

Para pensarmos esta novidade, temos de perceber o que é que o cristianismo faz com duas categorias absolutamente sagradas, cada uma à sua maneira, quer do judaísmo, quer do mundo helenístico.

No universo greco-romano, o mais importante era a sabedoria e a sua procura incansável. O que o homem ou a mulher podiam aspirar de mais sagrado no mundo grego era encontrar a sophia, um caminho de sabedoria.

Quando visitamos a antiguidade clássica, o mais belo monumento é a emergência do pensamento humano, a construção da filosofia; pensemos, por exemplo, na escola de Atenas, Aristóteles, Platão, Sócrates, os sofistas. Era uma grande procura, através do conhecimento, a de encontrar sentido e significado para a vida.

Há uma enorme grandeza moral nestes ascetas, que dedicam a sua existência à procura do conhecimento e da racionalidade, tentando perceber qual será o caminho para realizar o coração do ser humano, para justificar o sentido da nossa presença no mundo, o porquê e para quê das nossas vidas.

Se há uma palavra sagrada no mundo helenístico do tempo em que o cristianismo surge, é a palavra “sabedoria”. É uma palavra inalcançável, inspiradora, que todos procuravam, que todos queriam.

No mundo judaico, uma palavra igualmente fundamental era “templo”, o lugar sagrado. O templo era a certeza de que o Deus transcendente era também o Deus histórico, o Deus que acompanha o seu povo, o Deus cuja glória, aShekinah, habita num lugar concreto, e nós vamos até ele.

Do templo dimana tudo: os sacrifícios, o dia do perdão, o dia das expiações. E os judeus entregavam o dízimo para que a luz do templo não se extinguisse. Morrer sem ter peregrinado a Jerusalém era a maior das desgraças.

O templo era o lugar da evidência de Deus, a fonte de sentido, aquilo que estruturava a nação judaica, mas também a condição histórica, a cidadania judaica.

O cristianismo emerge assim num mundo em que o sagrado estava no conhecimento e no templo, a lei.

Em relação ao sagrado judaico, vamos ouvir S. Paulo, o primeiro grande intérprete cristão de Jesus, dizer, na carta aos Coríntios, que o templo é o corpo de cada um de nós. O templo somos nós. O lugar sagrado é a nossa vida. Porque o Espírito de Deus habita em cada um de nós.

Então já não estamos dependentes de um lugar, de uma raça, de uma etnia, de uma nação, de uma lei, de um código externo; é em nós que descobrimos Deus. Cada pessoa é o lugar onde Deus está.

Por isso temos de olhar para a nossa vida de outra maneira. Somos sujeitos diferentes porque o que nos caracteriza não é uma ligação a uma estrutura que está fora de nós, mas a descoberta de que Deus nos habita, de que Deus está em nós. E essa descoberta transforma a nossa vida.

Esta vida que por vezes nos custa abraçar, nos custa aceitar, nos custa entender; esta vida que é exaltante e ao mesmo tempo é lugar de fragilidade, é lugar de dor; esta vida tão misteriosa que parece que nos escapa; esta vida é o santuário de Deus.

Esta vida que construímos dia a dia, esta vida que não existe em abstrato mas em concreto, nos nossos gestos, na nossa decisão, esta vida que não é apenas biológica mas é a vida ética, a vida sensual, a vida de amor, a vida de procura que em cada um de nós quotidianamente se efetua… Isto que nós somos, isto de inominável, de indecifrável, isto é o lugar de Deus.

Esta é uma transformação imensa que o cristianismo operou.

Por isso tenho de olhar para a minha vida como um lugar sagrado; tenho de olhar para a minha vida com outros olhos, com outra esperança, porventura com outra veneração. Tenho de cair de joelhos perante o espetáculo desabalado e divino que é a vida, por mais frágil que seja. Tenho de olhar para a vida com um coração diferente, um coração novo.

A nossa vida não é apenas um instrumento. Não estamos escravizados a nada; vivemos plenamente a nossa liberdade porque Deus está em nós. Por isso a nossa grande tarefa é descobrir o que somos, é tornarmo-nos naquilo que somos.

Este debate animou o cristianismo desde os primeiros séculos e levou um grande teólogo, Tertuliano, a dizer que o homem é naturalmente cristão. Ele não disse isso no sentido de que o cristianismo é um lugar automático, mas que é na nossa natureza, no fundo daquilo que somos, que temos de descobrir o que é isto de sermos filhos de Deus e de Deus habitar em nós.

Nenhuma vida é para deitar fora, nenhuma vida é para excluir, nenhuma vida é descartável, nenhuma vida é para ser pisada. A nossa vida tem esta dignidade de ser o templo, o lugar sagrado.

Em relação ao modelo da sabedoria, o cristianismo faz um movimento que os exegetas denominam de “autoestigmatização”. Entendemos o alcance desta palavra nas palavras de S. Paulo: é preciso tornar-se louco.

Num mundo em que é a sabedoria que confere estatuto, é preciso tornar-se louco. Neste sentido, o cristão diz «eu vou por outro caminho, vou fazer de maneira diferente, considero-me um outsider; no mundo de sábios, quero ser louco».

Vemos esta loucura explicada no Evangelho de Jesus [cf. Artigos relacionados]: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda; isto é, não acreditar na força da violência, não acreditar na força do mais forte, não acreditar no “olho por olho, dente por dente”.

Se alguém te quiser levar a tribunal, deixa-lhe tudo; se te obrigarem a acompanhar durante uma milha, acompanha durante duas; se te pedem emprestado, dá.

Estas palavras têm, ao mesmo tempo, um sentido literal e um sentido metafórico. Um sentido literal porque a palavra de Cristo é para levar a sério. Eu estou aqui a explicar, mas Deus me livre de alterar uma vírgula. A palavra é esta, e nós temos de nos haver com ela. A palavra de Cristo tem uma literalidade com a qual a nossa vida se há de confrontar sempre, como se fosse a primeira vez; e essa literalidade é que é o sentido definitivo.

Mas estas palavras de Jesus são também uma metáfora para dizer: «sê louco»; «sim, mas eu tinha direito a…» – «faz diferente, faz de outra forma». Isto é, foge às lógicas fechadas: «Ele disse-me aquilo, mas eu respondi-lhe na mesma moeda»; «ele fez assim, então vou agir em consonância».

Sermos capazes de romper os ciclos viciosos, os becos sem saída, o afunilamento das nossas histórias, e tentarmos uma coisa diferente. Em vez de odiar os inimigos, amá-los – isto é, ser capaz do perdão, ser capaz da compaixão, ser capaz de aceitar as humilhações. Santa Teresinha dizia que «muitas humilhações fazem a humildade»; e quando este princípio é bem entendido, é importante para que nos relativizemos, porque isto também nos purifica do ídolo que somos.

Amar aqueles que nos amam – claro; mas também amar aqueles que não nos amam. Ser capaz de outra sabedoria, de uma sabedoria que refunde a ordem das coisas, refunde a nossa história, refunde o próprio mundo.

Se o cristianismo é apenas cultural, é muito pouco. Se somos apenas pessoas sensatas, ponderadas, respeitadas, cumpridoras da lei, que pagamos os impostos e somos bons cidadãos… isto é o mínimo. Não é preciso ser cristão para fazermos essas coisas.

Que coisa é necessária para ser cristão? É preciso fazer um gesto que na sua extravagância, na sua rutura, assinale a diferença de Cristo, o salto qualitativo, o salto de amor que Cristo representa. Há um momento na nossa vida em que só um gesto destes nos pode salvar; há um momento na nossa vida em que só um gesto destes faz a diferença.

O cristianismo nasceu sem nenhuma força. Não tinha a seu lado a força de um pensamento, a força de uma cultura, a força do dinheiro, a força da cidadania… não tinha nada. Tinha apenas a certeza de que somos o lugar sagrado e este chamamento de Jesus a que sejamos loucos, a que sejamos capazes de caminhar contracorrente.

Ou vivemos contracorrente, expressando na nossa vida o que isso significa, numa lógica de amor e dádiva, ou então vivemos um conformismo social e cultural que dilui o cristianismo e o torna um folclore, e não um lugar de redenção e transformação das nossas vidas.

O cristianismo não se faz de massa mas das histórias individuais. Quantos lugares sagrados, que são a vida de cada um de nós, estão aqui?

Vamos pedir que o Espírito nos habite, nos fortaleça, nos dê a certeza do amor de Deus, confirme em nós o amor de Deus, e nos dê a capacidade de arriscar uma outra sabedoria, que muitas vezes é loucura aos olhos do mundo, mas outra coisa não é do que abraçar até ao fundo e até ao fim a cruz do Senhor.

Pe. José Tolentino Mendonça

Redação: SNPC/rjm

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Janeiro

2014/01/08 - Conversas à Capela - A virtude da Paciência

Paciência com Deus - capa do livro«Estamos habituados a olhar o Evangelho como o mapa que nos descreve o Céu. Menos habituados estaremos em ver também nele a gramática que nos interpreta o mundo. Pois é assim que o Cristianismo surge no discurso de Halík: como justa gramática da vida» (Alexandre Palma)

A próxima sessão das Conversas à Capela terá lugar na Capela do Rato, dia 8 de Janeiro, às 21h30. O tema da conversa é a virtude da paciência, e será debatido a partir das leituras que Ana Vicente (do Movimento Nós Somos Igreja), o padre Alexandre Palma (autor do prefácio do livro) e Rui Medeiros (professor de Direito da Universidade Católica Portuguesa) fizeram do livro Paciência com Deus, de Tomáš Halík (Edições Paulinas, 2013). O encontro inicia-se com pequenas intervenções dos convidados, a que se segue um debate aberto a todos.

Sobre o livro e o autor, pode ler-se aqui uma breve apresentação:

http://www.snpcultura.org/paciencia_com_Deus_resposta_interrogacoes_ateismo.html