No dia de Sábado Santo, dia do grande silêncio e despojamento (não há culto), a Igreja celebra o vazio e a ausência. Cristo morreu, foi sepultado num sepulcro, cerrado com a pedra. Esteve morto com os mortos. Habitou o vazio da morte, solidário com todos os mortos de todos os tempos. Aquele que em tudo foi igual a nós, não apenas morreu mas permaneceu morto; desce, simbolicamente, à mansão dos mortos, a essa região enigmática privada de toda a vida, onde reina o vazio.

Queridas irmãs e queridos irmãos, na beleza litúrgica desta noite, pérola da renovação conciliar, queremos viver a nossa condição de filhos e filhas mergulhados no oceano da vida, a do amor incondicional do Pai, do amor feito serviço e dom do Filho, e do Espírito Santo que renova a superfície da terra e o íntimo das nossas consciências e dos nossos corações. Na simplicidade dos gestos batismais e eucarísticos, expressamo-nos como comunidade, como Igreja que nasce da Páscoa. A Igreja é criação pascal: existe para testemunhar que a luz é mais forte do que as trevas, a vida mais forte do que a morte, o amor faz ressuscitar. Cada gesto que fazemos insere-nos, pois, no mistério de Deus e da Igreja; expressa a permanente geração enquanto filhos e irmãos. Mais do que em qualquer outra celebração, nesta noite celebramos também a dimensão materna da Igreja, expressão sacramental e comunitária da maternidade de Deus, do seu ser que gera vida.

Nesta noite, dois ritos marcam a maternidade da Igreja que nos envolve, sustenta e alimenta a nossa condição de filhos e irmãos: o rito da luz, com várias declinações; e o rito da aspersão batismal. Um e outro fazem memória da nossa condição de batizados, renovam a nossa identidade cristã, de homens e mulheres gerados na páscoa de Cristo, continuamente renascidos, perdoados, erguidos pelo Espírito que dá vida e recria. Gestos litúrgicos, mas também gestos pessoalizados, através dos quais cada um e cada uma se diz, se anuncia, se promete.

No rito da luz, do Círio aceso, das velas acesas a partir da luz do Círio, celebramos a nossa condição de filhos continuamente gerados pela luz que é Cristo, a luz que iluminada a humanidade e o íntimo dos nossos corações, onde permanentemente se trava essa batalha existencial entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a obscuridade e a iluminação, o sentido e o não sentido. Dissemos no início da celebração, quando foi aceso o Círio: «A luz de Cristo verdadeiramente ressuscitado nos dissipe as trevas do coração e do espírito».

Daqui a pouco, renovamos as nossas promessas batismais: esse contínuo dizer não ao mal e aderir ao Pai, fonte de vida, ao Filho, vida feita dom até à morte, ao Espírito amor vivificante derramado. Vivemos, em drama, o nosso êxodo existencial entre o não e o sim. A vela que vamos acender expressa a fé, débil, frágil, exposta ao vento, incerta, mas pequena luz na noite que ilumina os nossos passos, uma luz para o imediato. A vela, existencialmente falando, é cada um de nós que, qual círio que se gasta amando, acreditando, entregando-se, com Cristo. A vela é símbolo da nossa contínua Páscoa.

Na luz há fogo, um dos símbolos do Espírito na Escritura. Somos portadores de fogo, do fogo do Espírito, recebido pelo batismo e pelo crisma, pois somos ungidos pelo Espírito. Começamos a Quaresma com as cinzas, o pó que resta da combustão do fogo. Agora emerge a nossa combustão, no fogo do Espírito. Somos carne vivente que acolhe o sopro de Deus, vida gerada, curada, perdoada, ressuscitada pelo Espírito vivificante. Somos carne, corpo em combustão permanente: círio/vela vivente. A este gesto voltaremos quando as dúvidas nos devorarem e o medo nos oprimir. O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus de entre os mortos, também dará vida aos nossos corpos mortais. Uma vida quotidianamente renovada.

Tanta água, de tantas formas, é evocada nesta noite. As águas que fazem emergir a vida na terra, no início da criação. As águas abertas do Mar Vermelho, para um povo passar em êxodo de libertação, a pé enxuto. A promessa da Palavra de Deus que, em sua eficácia, é como a chuva e a neve vindas do céu; regam e fecundam a terra. Pela voz do profeta Ezequiel, Deus promete uma água pura e um coração novo: «Derramarei sobre vós água pura e ficareis limpos de todas as imundícies; e purificar-vos-ei de todos os falsos deuses. Dar-vos-ei um coração novo e infundirei em vós um espírito novo». Batismo quer dizer banho de emersão; era um ritual de purificação de todo o corpo, sinal de uma decisão de mudança de vida. Na liturgia cristã, este rito diz a nossa imersão na Páscoa de Cristo, o contínuo mergulhar (ou estarmos mergulhados, imersos) em sua morte e ressurreição. Pelo batismo, configuramo-nos existencialmente com Cristo morto e ressuscitado. Mais do que ritual, o batismo é o nosso modo aquático de viver, de sermos peixes no oceano do amor da Trindade, no oceano da fraternidade, sinais do tempo novo do Reino.

Habitamos o oceano, somos seres aquáticos, vivemos no útero materno de Deus e da Igreja. E ao mesmo tempo, uma sede insaciável nos habita, um fogo de desejo nunca apagado, uma aridez de secura que busca chuva fecunda. Essa é a dimensão dramática e realista da nossa condição humana inacabada, da nossa carência, da nossa entranhada vulnerabilidade, de quem se sabe exposto ao perigo, ao vazio, ao nada. Somos aqueles seres que navegam no oceano do amor, nas águas profundas da misericórdia, mas que nos reconhecemos inacabados, famintos, sedentos, em procura incessante. Com o salmista fazemos do nosso desejo oração: «Como suspira o veado pelas correntes das águas, assim minha alma suspira por Vós». Vivemos suspirando pelas fontes da água viva.

Uma palavra, uma promessa rasga em nós futuro e esperança. Somos convidados, na noite de Páscoa, a ir às fontes, a habitar junto da fonte, a fonte batismal, a fonte do desejo interior que grita por Deus. Para encontrarmos a origem do dom da vida, a sua frescura, a sua permanente vitalidade e renovação. Para bebermos também das fontes da alegria, a alegria de nos sabermos incondicionalmente amados e prometidos à vida; a alegria de nos sabermos salvos por um Deus que atravessa os abismos da nossa perdição. Como apelo, como promessa pascal, a isso somos convidados: «Tirareis água, com alegria, das fontes da salvação».

Ou noutra versão, existencialmente mais intensa: «Das fontes da salvação, saciai-vos na alegria»

Das fontes da salvação, saciemo-nos na alegria.

Pe. António Martins – Homilia da Vigília Pascal