Já pairam nuvens negras, mas os clarões desta noite tudo dignificam e purificam. Instituição da Eucaristia, aquele cume de hospitalidade e de entrega. Não vos vou falar da singela e envolvente hospitalidade da família de camponeses turcos que acolheu o estrangeiro no seu lar muçulmano; também não vos falarei das palavras segredadas daquele padre que passara trinta anos em masmorras e dizia, baixinho, com olhos mansos e rasgados pelo sofrimento e pela certeza de uma presença indelével: «Roubaram-me tudo, exceto a minha dignidade». Não vos vou falar destes dois episódios, aparentemente díspares e que me fazem reviver a Eucaristia no quotidiano, num laço inquebrável que se teceu nestes e noutros encontros e me faz senti-los aqui, agora, nesta celebração que resiste à transitoriedade e toca o infinito.
A minha alma não quer afastar-se do Próximo Oriente – a «denominada» Terra Santa – onde tanto trigo vai sendo esmagado e as lágrimas e o sangue correm como rios. E o meu coração é atraído para lá porque foi na margem do Jordão que eu experimentei uma das mais intensas e significativas celebrações da Eucaristia. Não propriamente por estar naquele lugar, onde os turistas parecem abelhas a esvoaçar de flor em flor, mas sim pelo envolvimento da preparação que era, já em si, uma Eucaristia. O grupo era constituído por vinte peregrinos japoneses, quase todos católicos, mas onde havia igualmente duas jovens budistas e um guia a-religioso. Foi este – o guia – que, zeloso, alertou os dois padres que acompanhavam o grupo – um espanhol e um português – para o facto de no dia seguinte irmos celebrar a Eucaristia a um lugar onde não haveria igreja ou convento onde nos pudéssemos abastecer com hóstias para a celebração. Que fazer, uma vez que já era noite? Acabámos por interpelar o cozinheiro do hotel – um hebreu – que acedeu ao nosso pedido de nos preparar pão sem fermento para a manhã seguinte.
A Eucaristia na margem do Jordão deixou marcas de transformação no íntimo de cada um de nós. O sol sorria, mas era o rosto de cada um que mais brilhava e se expandia. Aquela celebração fora possível graças à conjugação do esforço de pessoas de diferentes religiões e proveniências. Aquele pão e aquele vinho tornaram-se símbolo da mais importante transformação que se verifica durante a celebração da Eucaristia: a transformação do coração de cada uma e de cada um de nós. «Fazei isto em memória de mim» (1Cor 11,24). Fizemos memória; não recordámos, mas sim realizámos: naquele «aqui» e «agora», realizámos o evento de salvação e todos nos transmutámos em pão e vinho uns para os outros. Dizia Santo Agostinho que a genuína comunhão faz com que a pessoa se transforme naquilo que comunga. Assim, se comungamos verdadeiramente Cristo, transformamo-nos no próprio Cristo. Sim, porque «a celebração eucarística é um drama onde nos tornamos protagonistas e bebemos a água salvífica de Deus sempre maior». A nossa celebração na margem daquelas águas barrentas, lambidos pelo sol escaldante, tinha iniciado a partir do contributo do guia e do cozinheiro não cristãos. E sentimos a presença real naquela metamorfose de corações. Nunca esquecerei a expressão das duas jovens budistas que seguiam todos os movimentos com atenção e respeito. E o seu interesse em saberem mais sobre aquilo que se denomina Igreja e que elas tinham sentido sempre distante e misterioso.
De todas as imagens da Igreja, uma das mais sugestivas é sem dúvida a de um pequeno barco, na sua relação intrínseca com as redes. O pequeno barco, guiado pela voz de Cristo, deve avançar destemidamente em direção ao alto-mar, investindo contra as ondas que o vergastam. Dentro desse pequenino barco, as redes vão sendo preparadas, consertadas, remendadas. Nós somos membros dessa rede; somos elos de uma rede sublime, que não serve para prender, mas sim para libertar: uma rede para libertar. Essa rede tem de ser fortalecida. Os fios terão de entrelaçar-se, em relação sadia. Haverá fios desgastados, outros quase rebentados; outros estarão ainda reluzentes, exigindo uso intenso e apropriado. Todos constituímos a rede que a força do Espírito lança no mar da nossa vida e do mundo que nos rodeia. «Também vós deveis lavar os pés uns aos outros». Porque somos fios de uma mesma rede: a rede da humanidade.
«Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de Mim». (S. Paulo aos Coríntios). Não houve outra pessoa que se atrevesse a pronunciar tais palavras. Uma herança daquele que está a algumas horas de passar pela Paixão da cruz. Como eu dizia no início, nuvens negras já pairam. Mas esta noite é de amizade, de luz, de profundidade.
«Também vós deveis lavar os pés uns aos outros». Isto é: também vós deveis acolher-vos uns aos outros, aceitar-vos uns aos outros no meio de todas as diferenças e eventuais contradições. A transformação operada no coração de cada um de nós e no coração da comunidade levar-nos-á a agirmos de forma a que as pessoas vejam Cristo em nós; através de nós. Aceitemos o convite; e aceitemo-lo vergados, ajoelhados, despojados e disponíveis. É assim que devemos aproximar-nos deste banquete que é a celebração da Eucaristia, em que o anfitrião é, ele mesmo, o alimento. Despojados, sem defesas, como recipientes. Com gestos genuínos de humildade, hospitalidade, escuta e valorização do outro. É a isto que somos chamados. Deixando-nos transformar como o fizemos naquela margem do Jordão; permitamos que Cristo saia da nossa barca – da Igreja – e sigamo-lo, vivendo a nossa vida quotidiana como uma verdadeira Eucaristia.
Pe. Adelino Ascenso – Homilia na Celebração da Ceia do Senhor em Quinta-feira Santa
