Na solenidade da narrativa do evangelho de S. João, Jesus apresenta-se como senhor do seu destino: «A minha vida ninguém ma tira, sou eu que a dou». Senhor de si, sabe de onde vem, o que acontece, dá-se por inteiro na expressão de um amor sem reserva, até ao fim. No meio da violência, da acusação, na manipulação da multidão, das alianças entre poderes inimigos, das tradições dos discípulos, Jesus nunca perde o controle de si mesmo, a perceção dos acontecimentos: «Sabendo Jesus tudo o que Lhe ia acontecer». Sabe o que lhe vai acontecer, porque conhece o íntimo das consciências e nada do que é humano lhe é estranho. Sabe quem é, e como tal se apresenta. Oferece-se disponível, inteiro, a todas as mãos que o podem violentar, devorar, manipular, rasgar e matar.
Àqueles que o vão prender, senhor de si e dominando a situação, Jesus adianta-se e pergunta-lhes: «A quem buscais?». Identifica-se com aquela expressão que no evangelho de S. João diz a sua identidade divina de Filho: «Sou eu», expressão por três vezes assinalada no texto. Perante a sua auto-identificação, os agressores recuam e caem por terra. Façamos a nós mesmos a pergunta que Jesus faz a quem o vai prender: «A quem buscais?». Que nomes damos à nossa procura existencial? À nossa fome e à nossa sede? Que carências e necessidades mais profundas sentimos em nossas vidas? Que desejos secretos nos fazem procurar coisas, pessoas, projetos de realização? E na procura de satisfação dos nossos desejos, na realização dos nossos projetos, que pessoas já manipulámos, ou instrumentalizámos? A quem retirámos liberdade, vida e futuro? A quem buscamos, e com que instintos de violência?… Na narrativa do evangelho possamos interpretar o segredo do nosso coração, atravessar os nossos sentimentos mais profundos, também os mais contraditórios e os mais obscuros.
Outra nota que quero sublinhar da narrativa do evangelho de S. João é a dimensão pacífica e pacifista de Jesus. Há nele uma opção declarada por conter ali, no ato da sua prisão, toda e qualquer possibilidade de defesa violenta, de contra-ataque, de represália. Simão Pedro, num ímpeto de legítima defesa, desembainha a espada e corta a orelha direita de um dos servos do sumo sacerdote, chamado Malco. Jesus, desarmando, desarma Pedro: «Mete a tua espada na bainha». Vivemos tempos de corrida aos armamentos, de uma economia de guerra, de invasões e ofensivas, de mísseis, drones… Mortos, feridos, cidades destruídas, populações sufocadas, indefesas, encurraladas. Ucrânia, Faixa de Gaza, Síria, Myanmar, Moscovo… «Uma terceira guerra mundial aos bocadinhos», como afirma o Papa Francisco. Toda esta loucura poderia ter sido evitada, pela prudência, pela sabedoria, pelo diálogo entre potências e lideres políticos. A guerra não pode ser uma inevitabilidade.
O evangelho convoca-nos a um desarmamento dentro de nós próprios. Tão pessoal, tão próprio, tão interior. É a cada um de nós que o Senhor nos diz: «Mete a tua espada na baínha». Que espadas temos erguidas em nossas mãos, para cortar e destruir? Para agredir e humilhar? Para afirmar o nosso poder? Pode ser a espada do nosso estatuto social, do nosso cargo académico ou empresarial, a espada da nossa influência ou do nosso saber. O que temos, o que sabemos, as nossas responsabilidades podem ser transformadas em instrumentos de violência, e não de paz. As nossas próprias palavras, aquelas palavras que quotidianamente usamos para dialogar, para nos entendermos, podem também ser usadas como espadas que ferem. A palavra como espada… O olhar como espada… os nossos gestos como espadas… que agridem, invadem, provocam feridas. A que profundidade de não violência nos convoca ordem do Senhor dita a Pedro: «Mete a tua espada na baínha»!!! Cada um de nós é um Pedro que precisa de ser desarmado pela palavra pacificadora do Senhor. Uma espiritualidade e uma cultura de não violência é um combate interior contra as forças da violência e da agressão que nos habitam e que se exteriorizam como expressão da nossa vontade de poder, dominar e manipular.
A última nota que quero sublinhar é a consumação da inteira vida de Jesus, no dom de si mesmo, no esvaziamento da cruz: «Está tudo consumado» /consumatum est. A consumação da inteira vida do Senhor é expressão também da consumação das Escrituras: «sabendo que tudo estava consumado, para que se cumprisse a Escritura até ao fim». O amor até ao fim é o cumprimento da Escritura até ao fim. A carne de Cristo é texto cumprido, verbo realizado. O evangelho de João não salienta o pavor e a angústia de Jesus perante a morte, mas sim a solenidade majestosa do seu morrer como consumação da sua missão, da sua inteira existência como dom e serviço. Em nada se nega, em nada se reserva, em nada se desvia. Na sua morte, a sua vida fica inteiramente cumprida. A sua morte dá o sentido e a configuração definitiva a toda a sua vida, a cada um dos seus gestos: «Está tudo consumado».
Nunca saberemos as circunstâncias da nossa morte, nem podemos antecipá-la. Nunca saberemos como vai acontecer o nosso acabamento, com que coerência, com que grau de fidelidade até ao fim. Se de uma forma serena, ou angustiada. Se de uma forma lenta ou súbita, se conscientes ou inconscientes. Nunca saberemos antecipadamente. Só saberemos passando/atravessando a própria morte. Podemos, com humilde e sincero desejo, pedir o dom de uma boa morte. Serena, rápida, sem sofrimento nem peso para ninguém. Seria uma graça, a derradeira graça recebida, podermos dizer, conscientes, confiantes e agradecidos: «Tudo está consumado»! O que tinha de ser feito, foi feito. O que tinha de ser vivido, foi vivido. Estou acabado. E nas mãos de Deus, com Cristo, me entrego. Mas nada sabemos nem podemos antever…
Sabemos, sim, já hoje, que morremos solidários com Cristo em sua morte, e Ele connosco. E será o Senhor quem nos acaba. Receberemos, então, como palavra sua: «Estás consumado». «Não precisas de correr mais, de procurar mais. A fadiga dos teus recomeços, das tuas tentativas sem sucesso acabou. Todo o teu esfoço foi apenas um tentar acertar. Mas sou eu que te acabado, sou eu que te torno promessa cumprida. Sou eu que te consumo como filho, comigo, nas mãos do meu Pai e teu Pai. Chegou ao fim a tua luta, o teu combate».
«Tudo está consumado».
Pe. António Martins – Homilia na Celebração da Paixão do Senhor em Sexta-feira Santa