Tudo é narrado com um espantoso pormenor. Há carga emocional, tensão dramática, densidade humana e psicológica. E em tudo isto a revelação das entranhas de misericórdia de um Deus próximo que entra na violência do mundo. Cristo, o Filho do Deus vivo, é carne exposta, corpo entregue, violentado, dado, usado, destruído… Instante a instante, hora a hora, como num relato em direto, de repórter, nós leitores acompanhamos Jesus em sua paixão que é também a paixão do mundo, a nossa própria paixão. O impressionante na narrativa da paixão dos evangelhos é o pormenor, cada gesto, cada rosto, cada ação, cada acontecimento em suas contradições, densos de carga emocional, de tensão, de ambiguidade, de drama e de esperança.
E cada tempo, com as suas contradições, os seus impasses, as suas dores dilata e atualiza a paixão do Senhor. No drama da paixão de Cristo interpretamos a nossa própria paixão, a paixão da humanidade de hoje. A paixão de Cristo atualiza-se na paixão do nosso tempo, tão dolorosa, tão sofrida, tão caótica, violenta e destrutiva. As nossas lágrimas, os naufrágios, Gaza destruída, a Ucrânia invadida, os atentados, a força das armas, os impasses do caminho da paz e da reconciliação… As ambiguidades da política, a manipulação das multidões, a instrumentalização das emoções, a tentação do populismo, as alianças oportunistas, as traições, a brutalidade dos opressores, a força das armas e a fragilidade da paz…
Marcos, escandalosamente, apresenta-nos um Cristo paciente/ sofredor, tão profundamente humano, tão como nós, tão nós. Jesus é apresentado como um homem só, indefeso, abandonado por todos, exposto na sua vulnerabilidade. Tem medo perante a morte; sente pavor e angústia. A morte e a violência repugnam. Pede ao Pai para o livrar daqueles acontecimentos por que está a passar. É um homem apavorado diante da morte; não um herói corajoso, controlado em suas emoções, autodisciplinado. O leitor entra na intimidade da oração de Jesus ao Pai: «orou para que, se fosse possível, se afastasse dele aquela hora». Ou em discurso direto: «Aba, Pai, tudo te é possível: afasta de mim este cálice». Afasta de mim o cálice da dor, da violência dos acontecimentos, do abandono, da solidão, da angústia pelo corpo que se expõe. Tantas vezes, sempre, dizemos nós também em grito orante, carregado de medo, de repugnância, de angústia: «afasta de mim este cálice». Porque há cálices de vinho amargo, cálices de violência, de dor continuada, de situações familiares irreversíveis, de peso, de pena que recusamos, que são demais para as nossas forças… Todos nos revemos na paixão e na oração de Jesus. Tão humano, tão próximo de nós, tão como nós. Rejeita o sofrimento com todas as estranhas de uma resistência física e psíquica. Porque em seu corpo exposto é agonia, combate, resistência, luta….
Mas a sua oração não pede apenas que o Pai afaste o cálice da dor e da violência da hora. É também expressão da mais profunda confiança: «Contudo, não se faça o que eu quero mas o que tu queres». Em sua luta com dor perante a violência sofrida, entrega-se ao Pai, ao seu querer. Em sua luta interior, expressando a sua vontade de recusa da hora, procura sintonizar com a vontade do Pai. Há tensão na oração de Jesus. Mas há verdade, paixão, autenticidade. E na oração se pacifica. A oração é o grande lugar da nossa pacificação e do nosso desarmamento. A partir da oração de Jesus, não podemos cair na tentação de que o sofrimento do Filho seja querido pelo Pai. Isso seria cair na blasfémia de um Deus sádico e violento em que caiu alguma deriva da tradição cristã. Qual é, ali, a expressão da vontade do Pai? Que o Filho sofra? Ou que na violência sofrida do Filho sejam consoladas e justificadas todas as vítimas da violência da história humana? Não será a paixão de Cristo a expressão de como o grito e o sofrimento das vítimas sejam integrados em Deus?…
Outro pormenor apenas de Marcos: Jesus entrega-se indefeso, sem resistência. Após o beijo de Judas, «deitaram-lhe as mãos e prenderam-no». Há quem resista, quem o queira defender e quem queira defender-se. Alguém tira a espada e fere o servo do Sumo Sacerdote. Há violência e sangue derramado. A autodefesa é legítima. Mas mesmo a violência da autodefesa e da resistência, quando essa chega ao sangue, à morte, produz mais violência. Porque haverá sempre alguém que queira vingar as vítimas. Indefeso e desarmado, Jesus não justifica a violência de morte usada. Sentindo-se indefesos por um Mestre indefeso e desarmando, todos os discípulos o abandonam. Jesus fica só, completamente abandonado. Indefeso, exposto. Os discípulos não aguentam um Messias não violento, que recusa a violência do sangue, o recurso armado, a justiça justiceira e vingativa, a lógica do contra-ataque. Escandaliza mais uma vez. Fica só.
Esta não violência, esta pacificação, chega através da oração como combate interior, como agonia, como luta de vontades, como triunfo da vontade de Deus sobre a nossa, como entrega confiante, nossa, de filhos, à vontade do Pai.
Pode o fiel, no meio da violência, cumprir-se como pacificado? Cristo é a resposta que nos inspira, que nos provoca e escandaliza, ainda.
Pe. António Martins, Homilia do Domingo de Ramos