Após o gesto violento de Jesus ao expulsar, em pleno dia, os mercadores e cambistas no átrio do templo, temos hoje, na sequência do próprio evangelho de João, o encontro noturno, íntimo, tu a tu, com Nicodemos. O momento narrativo é dos mais belos e profundos de todo o evangelho de João. Um notável entre os judeus, Nicodemos, procura Jesus na calada da noite, para não ser reconhecido nem identificado em público. Com todos os seus receios e hesitações, Nicodemos vence o seu medo. Jesus acolhe inteiramente a circunstância de Nicodemos, uma autoridade que tem receio de aparecer e ser julgada pelos seus pares. A este noturno e receoso clandestino, Jesus faz a mais ousada e incompreensível proposta, nascer de novo, nascer do Alto, nascer do Espírito. Entregar-se confiante ao sopro imprevisível do Espírito: «O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito».

Nicodemos nasceu mesmo de novo. Os seus aparecimentos posteriores, no evangelho de João, irão manifestar esse seu novo nascimento, uma nova maneira de viver, de se relacionar, de acolher Cristo, ainda que muito discretamente. A partir daquele encontro, o Espírito transformará um medroso num corajoso. Será Nicodemos aquele que defende Jesus quando as autoridades judaicas procuram prendê-lo, defendendo a Lei e o direito de defesa: «Acaso a Lei condena alguém sem primeiro ouvi-lo e saber o que fez?» (Jo 7,50). Será também Nicodemos aquele que, no entardecer do dia da crucifixão, recolherá o corpo morto de Jesus e lhe dará digna sepultura, «trazendo cem libras de uma mistura de mirra aloés» (Jo 19,39). Que gesto de esbanjamento o seu para com o corpo morto de Jesus, só comparado ao esbanjamento do perfume de alto preço da pecadora pública! Porque ao dom em excesso do amor só se pode corresponder com o dom de nós mesmos, também em excesso, a alto preço.

Como nos identificamos com a hesitação, o medo, a coragem e a noite de Nicodemos! Nas suas hesitações revemos as nossas. Na sua procura noturna damos nome ao nosso desejo e às nossas inquietações. Medrosos, hesitantes, tateando incertos, carentes de certezas e de iluminações, mas habitados por um profundo desejo, por um fogo de permanente inquietação, pelo apelo irrenunciável a uma procura que não nos deixa quietos, aí vamos nós, quais outros Nicodemos, pela noite. Eis-nos aí, na noite, procurando o nosso encontro pessoal com o Espírito, na carne da nossa humanidade carente, exposta ao risco e ao perigo.

No diálogo íntimo noturno com Nicodemos, Jesus declara o incondicional e fundante amor de Deus pelo mundo, pela humanidade inteira, por cada um e cada uma de nós: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito». É o seu amor sem medida que funda a nossa fé e confiança. Deus é credível porque nos ama sem condições, sem exigir uma imediata resposta. Oferece-se, propõe-se, não se impõe. «Deus amou tanto…». A forma verbal em grego (aoristo) significa um acontecimento realizado. O dom do Filho ao mundo concretizou o incondicional amor de Deus por nós. Deus colocou o Filho em nossas mãos. Podemos corresponder ao dom do Filho, aceitando-o e nele confiando. Como o podemos recusar, trair, matar… Podemos matar o dom do Filho que nos é dado. O Filho é «entregue» em nossas mãos. Deus arrisca entregar o Filho ao cuidado ou à recusa da humanidade. Deus arrisca porque nos ama, e quem ama confia.

S. Paulo, na Carta aos Efésios, sintoniza inteiramente com o evangelho de João quando afirma: «é pela graça que fostes salvos, por meio da fé. A salvação não vem de vós: é dom de Deus». Nunca nos esqueçamos: vivemos no reino da graça e não do mérito; da graça incondicional do amor do Pai que nos precede em tudo, e por isso em tudo nos espera. Na origem do nosso ser está o amor. Porque só o amor salva, dá vida e cura as feridas da vida. E a graça primeira, a primeira expressão do amor de Deus que dá vida, é o dom da nossa própria vida, a graça de existirmos e sermos quem somos: «Na verdade, nós somos obra de Deus, criados em Jesus Cristo». Somos «obra de Deus», criação de Deus em Cristo. A graça primeira de sermos criados (de sermos dados a nós mesmos, de sermos quem somos) coloca-nos, desde logo, em ação de graças. Saibamos dar graças pelo dom da nossa própria vida, sempre original, por vezes difícil de acolher até para nós mesmos.

«Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna». Acreditar ou recusar o dom do Amor (do Filho) e da Vida é escolha nossa. E aí está a nossa condenação: Não acreditar é escolher a morte, a violência, a destruição do amor: «Quem acredita n’Ele não é condenado, mas quem não acredita já está condenado». Bem sabemos que como homens e mulheres podemos fazer a escolha de destruirmos o amor com que somos amados. Que podemos não responder com um amor fraterno mas com violência e destruição. É porque acreditamos no Amor como fonte de vida que somos chamados a amar e a cuidar da vida, da vida de cada pessoa em concreto. Depende de nós, em cada dia, escolhermos a vida e não a morte, o amor e não o ódio, a paz e não a violência, o perdão e não a acusação. Estas escolhas são nossas, e nem Deus pode escolher por nós. A condenação é a desconfiança, a desconfiança no amor que é a fonte da vida; que a sustém e a destina a uma vida plena (vida eterna). Isso é amar as trevas mais do que a luz.

A liturgia deste IV domingo da Quaresma tem uma dimensão batismal. Faz, por um lado, memória do nosso próprio batismo. Não apenas fomos batizados, mas somos continuamente batizados na Páscoa de Cristo. Pelo sopro imprevisível do Espírito, o Senhor nos chama a nascer de novo, a nascer do Alto. E quem nos faz nascer de novo é sempre o amor incondicional do Pai («Deus amou tanto o mundo») que entrega como dom a cada um de nós o seu próprio Filho. Que fazemos do dom do Filho que nos é entregue? Pergunta que nos queima e nos julga. Com que amor desmesurado, quais outros Nicodemos ou Madalenas, entre esbanjamento e lágrimas, de corpo inteiro, acolhemos o dom do Filho que em nossas mãos se entrega, qual corpo dado por nós? Como Nicodemos e Madalena, perguntemo-nos: O que fazemos nós do corpo de Cristo? O que fazemos nós ao corpo de Cristo que são os irmãos mais vulneráveis e a comunidade inteira?

Este IV Domingo as comunidades cristãs rezam pelos seus catecúmenos que se preparam para o batismo (os chamados «escrutínios», no Ritual da Iniciação Cristã de Adultos). Temos connosco a Rita e a Maria, nossas catecúmenas. Peçamos que o Senhor as conforte, as console e as fortaleça em sua contínua luta entre a trevas e a luz, o mal e o bem, a tristeza e a alegria, a dúvida e a confiança. Na vida cristã há uma permanente dimensão de luta. Quanto nos alegra e consola que, neste tempo difícil na vida da Igreja, em que a pertença e a continuidade na vida eclesial é questionada, haja quem queira preparar-se para o batismo e declarar-se, solenemente, cristão, aceitando fazer uma caminhada de aprofundamento da fé, e das fontes da mesma, a Escritura, a Liturgia, a oração.

Bendito seja Deus!

Pe. António Martins, Homilia no IV Domingo da Quaresma