Iniciamos, mais uma vez, o santo tempo da Quaresma. Confrontamos sempre a nossa sincera vontade de conversão com os nossos impasses e resistências. Com sinceridade o dizemos: temos dificuldade em manter o ritmo do que nos propomos. Os nossos belos propósitos iniciais são sempre maiores do que as nossas possibilidades de concretização. As urgências e as rotinas de cada dia gastam as nossas energias; e, se não estivermos atentos, podemo-nos deixar sufocar por um ritmo de vida que nos dispersa. Mas aí está a liturgia para nos acompanhar em cada domingo (ou em cada dia, se quisermos). Para nos consolar nas nossas incapacidades, para nos encorajar nas nossas debilidades, para apelar às razões que nos fazem acreditar, esperar e amar. Com o Salmo, também nós suplicamos: «Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, ensinai-me as vossas veredas».
Neste I Domingo da Quaresma, lemos os relatos evangélicos das tentações de Jesus no deserto. Este ano escutámos a versão de Marcos, sóbria, concentrada, urgente na narração. No princípio do evangelho de Marcos, Jesus é apresentado como o início de um tempo novo. João Batista proclama no deserto um batismo de arrependimento. O próprio Jesus, Cristo e Filho de Deus, é batizado por João no Jordão. Ele é o Filho muito amado do Pai confirmado pelo Espírito: «Tu és o meu Filho muito amado». Após o batismo, e logo de seguida, o mesmo Espírito o impele («expulsa», com sentido de movimento brusco) para o deserto: «o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás. Vivia com os animais selvagens, e os Anjos serviam-n’O»
«Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás»: Marcos sugere que a tentação durou o tempo todo. A tentação foi uma radical e agónica luta de Jesus renunciando a projetos de vida de domínio, de poder, de eficácia, de abundância, como nos relatam com detalhe Mateus e Lucas. Satanás é a figura bíblica que assinala aquela dimensão de divisão interior, de oposição ao apelo de Deus, aquela dimensão de dúvida, de suspeita, de acusação de tudo e de todos. É a figura do ser humano dividido, incoerente, separado da sua verdade mais profunda, renegando-se a si mesmo e ao apelo que o faz feliz. Por isso a coerência consigo mesmo, a fidelidade à própria vocação, à nossa identidade filial mais profunda, ao que somos chamados a ser é uma luta permanente. A grande tentação é perder a esperança, rendermo-nos ao vazio, ao desencanto, ao não sentido, à brutalidade do mal. Marcos não nos diz que Jesus venceu o mal, mas todo o seu evangelho nos diz que o mal não venceu Jesus nem o seu projeto de um Reino novo. O relato evangélico das tentações de Jesus é, pois, um apelo esperançoso à nossa resistência nas provas da vida, a não ceder ao desespero do não sentido, a ancorarmo-nos na confiança.
«Arrependei-vos e acreditai no evangelho»: esta é a primeira afirmação de Jesus no evangelho de Marcos, um apelo dirigido hoje a cada um(a) de nós. Foi, precisamente, com este apelo que iniciámos quarta-feira de cinzas o tempo da Quaresma. Estruturamos a nossa vida em modos de pensar, em razões que nos orientam. O apelo de Jesus, hoje, é, precisamente, mudar o nosso modo de pensar, pensarmos com outros e novos critérios, outras motivações, outras lógicas. Reconheçamos que o nosso agir está marcado pelas lógicas dominantes do mercado, da luta pelo poder, pela sedução, pelo egoísmo, pelo lucro fácil… Mudar o nosso modo de pensar, ou pensar evangelicamente é um caminho marcado pela tentação, um processo longo e paciente, com avanços e recuos, com falhas e recomeços, sempre imperfeito, nunca concluído.
Toda a Igreja, e também a nossa Comunidade da Capela do Rato, continua o processo de discernimento sinodal, na procura de uma maior fidelidade ao evangelho, ouvindo os gemidos interiores do Espírito na consciência dos crentes e das comunidades. Estamos na fase de aprofundar em pequenos grupos as propostas da Relação de Síntese da Assembleia do Sínodo de outubro. À luz do evangelho de hoje, também nós estamos sujeitos, ao longo deste processo, a grandes tentações. A primeira, e talvez a mais maléfica, é a permanente oposição ao processo sinodal, numa resistência explícita ou silenciosa. Há quem tenha medo que a Igreja mude, quem considere que a Igreja é inalterável e definitiva na sua doutrina, na sua liturgia, na sua organização, na sua moral. A outra tentação é a urgência de reformas imediatas a todo o custo, com risco de fratura da unidade eclesial, queimando tempos necessários de discernimento e de maturação das decisões. Para a maioria de nós, a grande tentação pode ser o desânimo, a falta de entusiasmo, o cansaço, aquela voz interior que deve ser combatida «isso não vai dar em nada, é só perda de tempo». E, todavia, estamos a desenhar e a ensaiar já o estilo da Igreja do futuro, comunhão e discernimento de todo o povo de Deus na tomada das decisões. Sabemos que as tensões e os conflitos internos são grandes, mas também sabemos que o Espírito leva-nos a descobrir e a viver dimensões novas do evangelho que é Cristo: «Eis que faço novas todas as coisas».
Os diferentes grupos sinodais de oração, reflexão e partilha estão a aprofundar os números 4 (Os pobres, protagonistas do caminho da Igreja) e 16 (Por uma Igreja que escuta e acompanha). Recorda a Relatório de Síntese: «Para a Igreja, a opção preferencial pelos pobres e descartados é uma categoria teológica, antes de ser cultural, sociológica, política ou filosófica» E refere vários tipos de pobreza, os que não têm o necessário para levar uma vida com dignidade, os imigrantes e refugiados, os que sofrem violência e abuso, sobretudo as mulheres, pessoas com dependência, idosos abandonados, vítimas de racismo, trabalhadores explorados… São «os mais vulneráveis entre os vulneráveis». Sem esquecer «a pobreza espiritual», a falta de sentido para a vida. A opção preferencial pelos pobres vai a par do cuidado da casa comum: «o clamor da terra e o clamor dos pobres são o mesmo clamor». E dá uma razão teológica e espiritual para a opção preferencial pelos pobres na vida da Igreja e de cada cristão: «Nos pobres a comunidade cristã encontra o rosto e a carne de Cristo»; «Uma Igreja sinodal precisa de colocar os pobres no centro de todos os aspetos da sua própria vida».
Faço uma delicada pergunta: É a opção preferencial pelos pobres uma opção da nossa Comunidade? E como a vivemos, pessoal e comunitariamente? Somos uma comunidade tendencialmente sem dificuldades económicas. Cumprimo-nos como comunidade que generosamente partilha, e tem gosto em partilhar. Pessoas, de forma discreta, organizam-se para responder a situações concretas de pobreza, falta de casa, de alimentação, de saúde, de alojamento … Tantas sinergias acontecem na vida da nossa comunidade, sem que isso seja anunciado. Vivemos uma discreta mas eficaz resposta a situações pontuais de pobreza. Mas podemos ainda ser mais organizados, fazer convergir a generosidade do nosso tempo, da nossa presença, da nossa partilha económica.
Se a maior parte de nós vive com conforto económico, haverá, certamente, outras pobrezas mais invisíveis, mais envergonhadas: pessoas que vivem só, idosos e doentes, que fazem uma profunda experiência de solidão e de abandono. Muitos idosos vivem como reclusos em suas próprias casas. Não esquecemos os imigrantes, sobretudo asiáticos, que acrescentam diversidade cultural e étnica à cidade de Lisboa. Podemos ver neles o perigo de uma progressiva islamização, mas ignoramos as miseráveis condições de alojamento em que vivem amontoados, a precária contratação de trabalho, as redes de tráfico em que foram explorados, o oportunismo dos patrões que empregam sem escrúpulos e a baixo preço mão de obra barata. São os próprios patrões que o reconhecem: sem a sua mão de obra, muitos serviços básicos da nossa organização social entrariam em rotura (produção agrícola, transportes, construção…). Que caminhos sinodais, em conjunto, propor e arriscar viver, no sentido de uma conversão à opção preferencial pelos pobres?
Este ano, no Patriarcado de Lisboa, o fruto da renúncia quaresmal no Patriarcado de Lisboa destina-se, em parte, a apoiar obras na Escola-Orfanato das Irmãs de São José de Chambery, na Diocese de Pemba, na vila de Mocímboa da Praia e Cabo Delgado, em Moçambique, para acolher crianças e jovens vulneráveis, vítimas da guerra, e abrir furos para captação de água e, dessa forma, resolver o consumo de águas envenenadas.
De novo o apelo que orienta a Quaresma: «arrependei-vos e acreditai no evangelho».
Pe. António Martins, Homilia do I Domingo da Quaresma
Mensagem do Patriarca de Lisboa para a Quaresma de 2024 – disponível aqui