No tempo litúrgico do Natal, celebramos hoje a solenidade de Santa Maria Mãe de Deus. A Igreja louva a Deus por seu Filho feito carne gerado e nascido da carne de Maria. O primeiro texto do Novo Testamento que, de forma indireta, se refere a Maria, a mãe do Filho de Deus, pertence à Carta de Paulo aos Gálatas, passagem hoje lida na segunda leitura: «Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei e nos tornar seus filhos adotivos». Em breves e concisas palavras, aqui está o embrião de tudo o que se pode dizer sobre Cristo e sobre Maria, sua mãe.

O paternal desígnio do Pai, «tornar-nos seus filhos adotivos», acontece no envio do Filho à nossa humanidade, à nossa história, mergulhando por inteiro no drama da condição humana. Sendo em tudo igual a nós, carne da nossa carne, sangue do nosso sangue, o Deus connosco é um de nós. A sua humanidade, consubstancial à nossa, segundo a carne, recebe-a da carne de Maria. Cristo nasce de Maria pela ação do Espírito Santo, como nos testemunham os relatos da infância: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus» (Lc 1,35); «o que nela foi gerado vem do Espírito Santo», como escreve Mateus de forma mais contida. Por isso a fé da Igreja, desde os tempos antigos, proclama: Cristo, o Filho de Deus, «nasceu por ação do Espírito Santo da Virgem Maria/natus est de Spirictu Santo ex Maria virgine» (HD, 10: tradição apostólica de Hipólito de Roma, início do séc. III).

É esse mistério da maternidade divina de Maria, do nascimento do Deus Menino que os pastores confirmam com os próprios olhos, dando crédito ao anúncio dos anjos. Sem hesitar partem de imediato: «os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura. Quando O viram, começaram a contar o que lhes tinham anunciado sobre aquele Menino». Lucas assinala um relevante pormenor que nos diz a inteireza de Maria: qual tecedeira, procura ligar o sentido dos acontecimentos, entrelaçar o seu vivido com o vivido dos pastores e com o nosso vivido. Juntando fragmentos, unindo o que aparece ainda dividido e disperso pelo tempo, porque temos dificuldade em perceber tudo à primeira. «Maria conservava todas estas palavras, meditando-as em seu coração». Tecedeira do sentido das coisas e dos acontecimentos vividos, maiores do que a sua capacidade de compreender, Maria guarda o vivido no coração, ruminando, conectando, estabelecendo ligações, ordens de sentido. Na maternidade do Filho de Deus, Maria dá também à luz, a partir de dentro, do vivido em suas vísceras, a inteligência da fé. Um processo interior de «conexão» que leva tempo.

Voltamos ao texto da epístola de Paulo ao Gálatas hoje lido: «E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: «Abbá! Pai!». O Espírito do Filho clama em nossos corações «Papá/Paizinho/Abbá» e nos convoca a viver numa ternura confiante de crianças. Nas entranhas da fé cristã está a ternura, a confiança, o dom, o transbordamento do amor trinitário. O Pai envia o Filho, nascido de Maria, para nos tornar filhos e filhas; o Espírito do Filho clama em nossos corações «Abbá». E tudo isto de modo humano, realista, concreto, «nascido de mulher». Longo e difícil foi o caminho percorrido, nos primeiros séculos da Igreja, para compreender o paradoxo cristão: o Filho que o Pai envia no Espírito nasceu para nós de Maria. Maria dá realidade/carne à carne do Filho. Por ela, o Filho eterno é verdadeiro homem. Se o Verbo se faz carne em Maria, o Filho dela gerado e nascido é, também, verdadeiro Deus. A maternidade de Maria é uma maternidade divina, pois ela é a mãe do Filho de Deus feito homem. Em 431, no Concílio de Éfeso, a Igreja proclama a Virgem Maria «Mãe de Deus»/Theotókos, pois «deu à luz carnalmente o Verbo de Deus feito carne» (DH 252).

Desde 1968, por instituição de Paulo VI, celebra-se também neste primeiro dia do novo ano o Dia Mundial da Paz. Foi a mensagem de Paulo VI, «A Paz é Possível», que inspirou a vigília de oração pela paz e contra a guerra que nesta Capela se celebrou, precisamente, há 51 anos. Somos herdeiros vivos dessa memória, que nunca poderemos esquecer, como cristãos, como cidadãos, como homens e mulheres que lutam, continuamente, pela paz e pela democracia, pois uma e outra são bens frágeis, permanentemente ameaçados. Nunca nos esqueçamos que a paz e a democracia nunca estão definitivamente adquiridas. Recordo a recente entrevista ao Expresso de D. Rui Valério, conduzida por Maria João Avillez. Interroga-se e interroga-nos o Patriarca de Lisboa: «a celebração dos 50 anos do 25 de Abril. Onde é que está a Igreja? Onde está, nesta celebração, o espaço para recordar e reescutar o que na altura grandes bispos, grandes padres católicos empenhados disseram e fizeram?» Por seu lado, o Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa em sua mensagem de ano novo, afirmava: «No ano em que se comemora o 50.º aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974, não podemos esquecer todos os que estiveram na primeira linha do combate pela democracia, grande parte deles motivados pela sua fé e pelo desejo de colaborar num mundo melhor». No ano em que o País decide o seu futuro democrático em termos de escolha de governo, «ninguém deve excluir-se do processo de escolha daqueles que julga mais capazes de administrar os recursos que são sempre escassos, em prol do bem comum».

Continua D. José Ornelas: «É urgente uma solidariedade nacional e um compromisso claro dos partidos políticos. As eleições que se aproximam exigem propostas assertivas e conteúdos programáticos compreensíveis para que se possa, a nível nacional, discutir projetos e apresentar soluções. Só assim os cidadãos podem ser levados a optar pela adesão a projetos concretos e não a votar pela raiva ou desilusão ou, pior ainda, a não votar». Como cristãos e como cidadãos, como cidadãos inspirados pelo evangelho e pela doutrina social da Igreja, precisamos de resistir a duas tentações: o absentismo (não votar) e o voto pelo pelo, pela raiva e pelo ressentimento. Um e outro não dignificaria a nossa consciência católica nem a nossa participação cívica. Exigimos aos partidos e/ou às coligações que apresentem propostas concretas para a crise da saúde pública, da educação, da sustentabilidade da segurança social, da habitação, da imigração e da integração dos estrangeiros no nosso tecido social. Não podemos fugir aos graves problemas sociais nos quais vivemos, cujas soluções políticas continuam adiadas. Esperamos que a próxima campanha eleitoral possa acontecer como um debate elevado de políticas concretas para o País, e não fique prisioneira, também ela, da lógica da raiva e do medo, contendo a tentação dos radicalismos extremados.

Ontem, no final da eucaristia, uma pessoa me perguntava: O que podemos fazer pela paz? O que cada um de nós pode fazer: desarmar o coração, pacificar os seus sentimentos, curar ressentimentos antigos, rezar e querer bem a quem nos fez mal. Travar a lógica da violência, da acusação, da vingança. Esse caminho de paz possível está ao alcance de cada um de nós. A paz como processo político começa na interioridade da cada um de nós, como processo espiritual.

Dirijo a cada um e a cada uma de vós, às vossas famílias, as palavras da bênção de Deus a Araão e a seus filhos, recolhidas no livro dos Números. Sabei que o Senhor vos abençoa, vos acompanha, está presente em vossas vidas, porque onde há amor e vida partilhados há já presença de Deus: onde há amor aí habita Deus, porque Deus é amor. E a bênção de Deus não se nega a ninguém:

O Senhor vos abençõe e vos proteja.
O Senhor faça brilhar sobre vós a sua face
e vos seja favorável.
O Senhor volte para vós os seus olhos
e vos conceda a paz.

Pe. António Martins, Homilia na Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus