Queridas Irmãs, queridos Irmãos,

Partimos do evangelho de Lucas, neste domingo da oitava do Natal em que celebramos a Sagrada Família de Jesus, Maria e José. O evangelista começa por nos relatar a vida de uma normal família judaica piedosa, cumprindo os rituais de purificação prescritos no livro do Levítico. Lucas é exuberante ao assinalar quanto o Menino encanta a quem o vê e acolhe. É um Menino diferente, um Menino único. Essa «originalidade» ou «diferença» de Jesus são reconhecidas, acolhidas, abençoadas e proclamadas por dois anciãos, Simeão e a profetisa Ana. Vemos, na elegância e delicadeza literárias de Lucas, um fulguroso encontro de três gerações, que mutuamente se encontram e se acolhem, transmitindo fecundidade, alegria, bênção e agradecimento pelo dom daquele bebé frágil que acolhem e elevam em seus braços desgastados pela idade.

«Simeão recebeu-O em seus braços e bendisse a Deus». Pode descansar em paz porque os seus olhos viram a salvação, a luz das nações. Aquele ancião piedoso aceita serenamente o acabamento da sua vida na morte, porque os seus olhos veêm o futuro na bênção daquela criança. Um futuro para Israel e para todos os povos. «Havia também uma profetisa, Ana, filha de Fanuel, da tribo de Aser. Era de idade muito avançada (…). Estando presente na mesma ocasião, começou também a louvar a Deus e a falar acerca do Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém». A bênção da vida, o agradecimento, a alegria, transbordam das mãos e da boca dos dois anciãos. «O pai e a mãe do Menino Jesus estavam admirados com o que d’Ele se dizia».

Fecunda, humana, com futuro, é uma sociedade em que as gerações mais idosas podem receber as mais novas como bênção, e podem transmitir-lhes a sua sabedoria, a sua ternura, o seu silêncio, esse processo lento de maturação e decantação da vida, essa depuração e concentração no essencial. Humana é aquela sociedade em que a experiência dos seus idosos é respeitada, acolhida; em que o sabor do seu saber é narrado, recolhido, registado e transmitido. Bem sabemos que se não registarmos as memórias, as tradições, os cantares, os saberes que os nossos idosos silenciosamente guardam, vamos irremediavelmente perder um incalculável património. Feliz é aquela família onde acontece um fecundo diálogo geracional, entre pais, filhos e avós. Todos sabemos: há uma cumplicidade misteriosa e mágica entre avós e netos que os filhos nunca perceberão. Os netos recebem, talvez, um património mais sólido dos avós do que dos pais: o património dos afetos, dos valores, da fé, da ternura, das memórias de família. Ainda que imaterial é bem mais valioso do que o património material herdado dos pais e tão, prontamente, alienado na primeira oportunidade.

Gosto de o dizer, com um traço provocador: A Sagrada Família foi uma família irregular, como tantas outras do passado e do presente. Irregular porque não se enquadrou na norma dominante, nos critérios sociológicos comuns. Na Sagrada Família há filiação por geração e por adoção. Entre Maria e Jesus há uma maternidade biológica; entre José e Jesus uma paternidade adotiva, afetiva, sem continuidade biológica. Há um mútuo acolhimento, uma aceitação do outro e do mistério que transporta. José é chamado a acolher a sua noiva Maria, grávida, sem envolvimento seu. Por mais santa e redentora que seja a razão, o dom do Filho único de Deus feito carne nascido de Maria, não deixa de haver, naquela família, perturbação, receios, esperança frustrada, projetos de vida reformulados, circunstâncias não desejadas que tiveram de ser integradas.

Mas aquela família é sagrada, sobretudo, porque é uma comunidade de vidas ao serviço da Vida; vidas que se amam e, porque se amam, servem, cuidam umas das outras, para além da reivindicação da posse, da progenitura, da continuidade biológica, do laço de sangue. Sagrada Família, porque consagrada no tormento, na incerteza, na reinvenção de projetos e sonhos pessoais desfeitos, na contínua adaptação à realidade possível. Sagrada Família a assinalar como sagrada também cada família irregular, com traço de descontinuidade biológica, mas onde se acolhe como bênção o dom e a vida de cada um, seja quem for, seja como for, seja qual for a sua identidade e orientação.

Sabemos também que as famílias são lugares de controle, de exercício de um poder, de um domínio. Por vezes o nome de família domina e sufoca a identidade e a singularidade da cada pessoa. Há uma honra, uma tradição, uma genealogia, uma aristocracia a defender e a promover geração após geração. Quando se nasce é-se marcado a fogo pela pertença e pelo condicionalismo da família a que pertencemos. Quantas vezes, felizmente cada vez menos, a família não é um obstáculo ao cumprimento pessoal de cada um dos seus membros?! Quantos casamentos reduzidos a meros contratos políticos e económicos, no passado, entre famílias. No tempo em que a sociedade protegia a família!! Sim, mas que tipo de família protegia, que valores de família defendia? Não certamente o da liberdade individual, nem a liberdade de amar e de casar.

A família pode ser um lugar onde uma pessoa sufoca, onde se vive em permanente estado de agressão, de não exclusão, ou até de perseguição. Além de «sagrada», há também em cada família uma dimensão «diabólica». Uma violência não verbalizada, uma agressividade latente, uma dor silenciosa não curada, ressentimentos antigos que permanecem… Marcos apresenta-nos Jesus numa tensão com a sua família. É tido por louco, os seus querem-no em casa, controlado, domesticado. Jesus prefere uma comunidade de discípulos ligados pela promessa do Reino e pela fraternidade, a viver numa família de laços de sangue. Quando lhe indicam que sua mãe, seus irmãos e suas irmãs estão «lá fora» e querem levá-lo para casa, responde: «Todo aquele que fizer a vontade de Deus, esse é minha mãe, meu irmão e minha irmã» (Mc 3,35). Talvez uma leitura mais aprofundada dos evangelhos nos ajudasse a relativizar o nosso discurso teológico tão monolítico (e ideológico) sobre a família.

Na segunda leitura, tirada da Epístola de Paulo aos Colossenses, o Apóstolo apresenta-nos aquele critério básico de toda a vida cristã em comum, na família, na comunidade cristã, em qualquer contexto em que se cruzam relações, afetos, projetos de vida em comum: «Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se algum tiver razão de queixa contra outro». «Suportar» tem aqui o sentido de aguentar, de suportar o peso do outro. Os pais suportam os filhos, carregando com eles; como os filhos suportam os pais, carregando com eles quando as suas forças se debilitam, perdem autonomia e orientação. Sim, mas não só nessas circunstâncias mais extremas. Há circunstâncias, em que o peso da relação a dois é suportado por um; o outro atravessa um tempo de fragilidade física, psíquica ou moral. É levado no amor pelo outro. E só o amor que perdoa, aguenta, tudo suporta, pode trazer futuro. O insuportável é o isolamento, a solidão, o abandono, a indiferença.

«Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente»: está tudo aqui. «Acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição». Suportando-se e perdoando mutuamente, vivendo a caridade nas relações, então maridos e esposas, pais e filhos, amigos, companheiros, companheiras, podem crescer na relação, porque a relação tem futuro. E isto é válido para todo o tipo de comunidade e de família, para famílias regulares e irregulares, para famílias tradicionais e famílias reconstituídas, para projetos de vida em comum entre pessoas de sexo diferente ou do mesmo sexo. Porque onde se quer que a relação tenha futuro, não pode deixar de haver «suportai-vos uns aos outros», «perdoai-vos mutuamente», e «acima de tudo revesti-vos da caridade».

Pe. António Martins, Homilia do Domingo da Sagrada Família

PAUSA ESTIVAL

A Capela do Rato encontra-se em pausa estival, reabrindo a 15 de setembro, com a Eucaristia às 11h30.

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