Queridas Irmãs, queridos Irmãos

Na violência e na brutalidade que se vive há uma semana nos territórios de Israel e da Palestina, as palavras do Livro do profeta Isaías parecem irrealistas, ingénuas, inoportunas até: «Sobre este monte, o Senhor do Universo há de preparar para todos os povos um banquete de manjares suculentos (…). Sobre este monte, há de tirar o véu que cobria todos os povos, o pano que envolvia todas as nações; destruirá a morte para sempre. O Senhor Deus enxugará as lágrimas de todas as faces». O utópico otimismo da profecia é negado pela crueldade e barbaridade dos ataques terroristas a uma comunidade de jovens que celebrava a vida no sul de Israel; pela retaliação militar israelita com o risco de provocar uma catástrofe humanitária; pelos milhares de mortos inocentes, sobretudo crianças indefesas, de um lado e de outro; pelo sacrifício do povo palestiniano, encurralado, sem eletricidade, sem água, sem comida, sem possibilidade de fuga e de refúgio noutro lugar mais seguro; pelo crescendo fanatismo religioso, judaico e muçulmano, a tornar cada vez mais impossível a coexistência de dois povos em dois estados. E só Deus pode enxugar as lágrimas das as mães judaicas e palestinianas que perdem os filhos. Todos sofrem, nesta escalada de dor, de ódio, de destruição; ambos os povos são ao mesmo tempo vítimas e agressores, adiando cada vez mais o lento e paciente caminho da paz e da reconciliação.

Talvez as palavras de um outro profetas (Jeremias), que foi testemunha da brutalidade da conquista e da destruição do reino de Judá pela potência ocupante (Babilónia), no ano de 588 a. C., digam melhor a realidade e interpretem com mais verdade os sentimentos e as emoções que se vivem no presente:
«Derramem os meus olhos lágrimas noite e dia, sem descanso porque a jovem, filha do meu povo, foi ferida com um golpe terrível, e sua chaga não tem cura!» Se saio aos campos, eis os mortos à espada; se regresso à cidade, eis os dizimados pela fome. Até profetas e sacerdotes vagueiam pelo país, sem nada compreenderem» (Jer 14,17-18).

Vivemos todos, pessoas, comunidades e nações, uma profunda desolação. Cresce a loucura do fundamentalismo religioso; aumentam as derivas nacionalistas e populistas instrumentalizando as religiões para fins políticos e ideológicos; ficam cada vez mais reduzidos e fragilizados os espaços de diálogo nas sociedades com radicalismo ideológico. Ecoa o grito das nações feridas e destruídas pela guerra; o grito dos desalojados, dos refugiados, daqueles e daquelas que não têm um espaço seguro para habitar, nem uma tenda estável onde viver e conviver; o grito crescente da criação em sua instabilidade climática, com a oscilação entre secas prolongas e chuvas torrenciais, crescendo a desertificação, morrendo a vida natural, alterando o próprio viver humano. E são os mais pobres as primeiras vítimas.

Nestes tempos em que tudo parece ruir, mais do que nunca, somos convidados a imaginar um futuro diferente, a dar nome, largueza, criatividade à nossa esperança. E essa função profética cumpre, precisamente, o texto de Isaías hoje lido: Deus oferece-nos uma palavra de excesso, uma promessa de um futuro novo, «impossível» a partir da realidade em que vivemos. As palavras de Isaías consolam-nos, abrem-nos a uma esperança teologal (dom de Deus), salvam-nos de cair no desespero, ajudam-nos a atravessar a tristeza e a angústia do tempo presente: «Sobre este monte, há de tirar o véu que cobria todos os povos, o pano que envolvia todas as nações; destruirá a morte para sempre».

Rezemos pelas e com as comunidades cristãs em Israel e na Palestina: celebram, como nós hoje, o mistério pascal na eucaristia. Em comunidades cada vez mais reduzidas (a maior parte dos cristãos da Terra Santa já emigrou…), os que permanecem arriscam a viver permanentemente em perigo de vida. Nestes dias e nestas noites, podem morrer ou podem continuar vivos. Partilham, com os seus concidadãos israelitas e palestinianos, o mesmo terror, o mesmo medo, o mesmo caos destruidor da guerra, a mesma insegurança, os mesmos riscos e perigos. A sua presença, lá, por si mesma, é testemunho em carne viva da esperança cristã, da esperança do profeta Isaías: Deus tirará o véu que separa os povos de se reconhecerem e de viverem em paz, de celebrarem um banquete comum festivo. No contexto de olho por olho e de dente por dente, na crescente efervescência dos fanatismos e radicalismos religiosos (judaico e muçulmano), os nossos irmãos cristãos assinalam a possibilidade do perdão ao inimigo, a promessa de reconciliação e pacificação entre os povos. A missão das comunidades cristãs é manter viva a esperança na desolação, a compaixão na brutalidade da violência, o perdão onde o ódio parece vencer. Rezemos pelo povo de Israel. Rezemos pelo povo da Palestina. Rezemos pelos crentes judeus, muçulmanos e cristãos, filhos e filhas de Abraão.

Entremos na parábola do evangelho. Um rei preparou um banquete nupcial para o seu filho. Chamou os convidados, mas estes recusaram-se ir às bodas. Muito recentemente, entre nós, príncipes casaram a sua filha. E não consta que os convidados se tenham recusado a ir. Ninguém quis ficar de fora. A alusão ao rei que prepara as bodas para o filho evoca a linguagem bíblica da esponsalidade de Deus com o povo. Trata-se de uma simbologia muito fecunda que atravessa toda a Escritura. O auditório, ouvindo a parábola, percebia logo que o rei se referia a Deus e as bodas do filho a Cristo. Ao convite insistente do rei («Vinde às bodas!»), os convidados respondem recusando. O rei, que quer oferecer a festa das bodas do filho como bem público, como festa alargada, insiste no convite. A resposta dos convidados torna-se violenta e assassina: trataram mal os enviados do rei e assassinaram-nos.

A tragédia que estamos a assistir é a negação da festa da vida, da alegria de viver e de partilhar a vida como bem comum, de construir uma sociedade pluralista. Quando chegamos a isto, estamos a perder a nossa mais profunda humanidade, e a recusar a humanidade dos outros, o seu direito à alegria, à celebração do encontro e da festa. Só um terrível ódio sedimentado nos corações, gerações após gerações, pode levar a esta destruição. O rei indignado responde com uma violência organizada: «enviou os seus exércitos que acabaram com aqueles assassinos e incendiaram a cidade». É, todavia, no contexto da violência e da guerra que a parábola se torna evangelho, boa notícia; anuncio de um excesso. O rei não desiste de fazer das bodas do filho um acontecimento de alegria partilhada. Com imaginação e invenção incontidas, alarga o dom: «Ide às encruzilhadas dos caminhos e convidai para as bodas todos os que encontrardes’. Então os servos, saindo pelos caminhos, reuniram todos os que encontraram, maus e bons. E a sala do banquete encheu-se de convidados». Lucas concretiza em termos de diversidade de condição humana esta mesma parábola: «Sai imediatamente às praças e às ruas da cidade e traz aqui os pobres, os estropiados, os cegos e os coxos» (Lc 14,24).

Tiro duas breves aplicações existenciais da parábola. Uma primeira: Não nos deixemos sufocar nem paralisar pelas resistências, pelas circunstâncias adversas. O amor é inventivo, é imaginativo. Saberá sempre encontrar alternativas para se doar e se cumprir, de congregar e fazer festa. O amor é criativo. Com a simbologia da parábola, o amor de um pai por um filho noivo, o amor de um noivo pela sua noiva partilhado socialmente; símbolos onde todas as formas de amor humano cabem. Uma segunda: para nos renovarmos como Igreja no seu todo, e como comunidade concreta, precisamos de alargar a nossa tenda, de sair do conforto dos nossos espaços, das nossas relações, dos nossos hábitos. Precisamos de arriscar o encontro com o diferente, com o estranho, com os caminhos concretos de tantos homens e mulheres que não se cruzam com os nossos caminhos. Temos medo de frequentar lugares diferentes, estranhos, onde vivem os descartados da sociedade, os socialmente pobres e insignificantes. Falta-nos aquela audácia para sair da bolha das nossas seguranças. Temos uma vivência do evangelho muito acomodada. Aquele rei alarga o seu palácio: «a sala do banquete encheu-se de convidados». Eleva o povo pobre, excluído e marginal à condição aristocrata. Oferece aos improváveis convidados uma veste de festa.

Recordamos o eco das palavras ditas pelo Papa Francisco em Portugal: «Todos! Todos! Todos!». No encontro que teve com a Companhia de Jesus, o Papa convoca, precisamente, a parábola do evangelho de hoje: «Jesus é muito claro: todos. Os convidados não quiseram vir à festa. Por isso ele disse para irmos às encruzilhas e chamar todos, todos, todos. Por outras palavras, a porta está aberta a todos, todos têm espaço na Igreja». Estamos abertos a todos? Está a nossa comunidade aberta a todos?

Com as palavras do Salmo, digamos nós também o sentido da nossa esperança, a alimentar a nossa resistência quotidiana, por entre desolações, obstáculos, aridez, provações… : «A bondade e a graça hão de acompanhar-me todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre». A bondade e a graça do Senhor inspiram e fundam a bondade e o gratuito como escolhas pessoais, nossas. E são estas escolhas que nos devolvem a nossa humanidade, em cada dia ameaçada, em cada dia renovada.

Pe. António Martins, XXVIII Domingo do Tempo Comum