Queridas Irmãs, queridos Irmãos

Na parábola do evangelho de hoje, reconhecemo-nos todos (e todas), sem escapatória possível, que somos esses filhos marcados pela contradição entre a promessa inicial e o compromisso final, ou ausência dela. Não há um terceiro filho em que a palavra inicial (o sim ou o não) coincida com a sua ação. Somos todos como aqueles dois filhos: pessoas divididas e contraditórias. Habitamos o dilema da consciência, atravessamos a nossa incoerência, aquela abissal distância entre o inicialmente prometido «Eu vou Senhor», e o resultado final: «de facto não foi». Reconhecemos que todos já tomamos decisões erradas, intempestivas, em que não avaliamos as consequências. Quanta distância interior entre o nosso não inicial e o nosso compromisso final de corpo inteiro? Quanto tempo gasto, perdido, ou não…, nesse longo e árduo combate connosco próprios, num caminho de maior coerência interior, de maior coincidência entre a nossa promessa e a nossa ação.

Nas nossas vinhas quotidianas, quantas más vontades e resistências nos habitam? Quanta vontade de dizer não, de recusar o compromisso? Pela ordem seca e autoritária do chefe, pela quantidade de trabalho que cai em nossas mãos, com sabor a injustiça. Por ninguém nos ter perguntado, antes de nos ordenar, em que condições físicas e psíquicas estamos para o cumprimento daquela tarefa. O trabalho vai caindo nos emails que vamos recebendo. E, tantas vezes, situamo-nos naquela má vontade inicial do primeiro filho; fazemos nossa a sua rebelião interior. Vemos a «vinha» como um lugar onde só nos dão ordens, nos pedem tarefas sem qualquer preocupação pelas nossas forças. Como havemos de superar esta rebelião inicial do coração, esse grito primeiro de alma?…

Quando saboreamos um bom vinho, naquele sabor que nos enche as pupilas gustativas e nos abre os sentidos, estão histórias pessoais de vida concretas. Com esforço, suor, lágrimas, até sangue… Mas na festa final do vinho novo transfigura-se o drama e o custo da sua produção. Assim também em nossas vinhas quotidianas: há pessoas que precisam do nosso cuidado; na escola, na saúde, nas cadeias alimentares, nos socorros. Quando tomamos consciência de que a integridade e segurança de suas vidas dependem do nosso sim quotidiano feito ação, compromisso, entrega, cuidado, responsabilidade cívica. Tomamos consciência de que estamos a construir o tecido social, o diálogo inter-geracional, a ajudar a crescer, a ajudar a criar aquela que é a maior riqueza de um país, gente com responsabilidade social, com o sentido do outro, comprometida no bem comum. Então a nossa silenciosa rebeldia, a nossa má vontade inicial tornam-se ação luminosa, projeto criativo, vinha cuidada, na esperança de um vinho novo festivo. Na esperança de um bem futuro que será de todos e para todos, um bem comum. É o sentido do cuidado pelos outros, a nossa responsabilidade social que nos redime, em cada dia, de sermos anárquicos e inconsequentes rebeldes.

Recordamo-nos daquela bela e dramática passagem de Paulo da Carta aos Romanos, em que o Apóstolo se expõe aos leitores, em sua nudez interior de coração dilacerado: «não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero» (Rm 7,19). E grita: «Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte?» (Rm 7, 24). O drama paulino, e nosso, tão pessoal, da não coincidência entre o nosso querer e o nosso agir. Vivemos descoincidindo connosco mesmos. Vivemos atravessando a fratura da nossa dilaceração interior, sabendo o bem que queremos e incapazes pela debilidade da nossa vontade de o praticar. Vivemos em permanente ameaça de falência moral: este realismo existencial alerta-nos para essa ferida que parece não ter cura. Buscamos a felicidade, marcados pela infeliz dilaceração interior; buscamos a beleza marcados pela experiência do mal; buscamos a verdade que nos unifica e liberta, marcados pela fratura interior. A nossa debilidade, a nossa incapacidade de resposta consequente, precisa de ser curada, perdoada, reconciliada, potenciada, ajudada. Por isso gritamos por alguém, por uma força exterior a nós: «Quem me libertará deste corpo de morte?» Essa fratura que nos torna impotentes, pode ter origem em fracassos relacionais e afetivos, em processo de adição e de dependência, em situações de opressão política, psicológica ou moral. Pode ser o resultado de uma luta pela sobrevivência, a fatalidade de circunstâncias adversas que estruturam o psíquico, prisões e/ou pressões familiares, estigmas sociais sofridos… Tantas circunstâncias nos foram dividindo, debilitando e adiando, das quais pouca (ou nenhuma) responsabilidade temos. Somos vítimas dos contextos em que vivemos e nos debilitam.

Mas essa brecha da não coincidência entre o nosso dizer «quero» e o nosso agir é a fresta por onde entra a ação de Deus, a força do Espírito que nos inspira, a começar por nos pormos em questão, por não nos aceitarmos em nossas respostas dadas, por nos aventurarmos, corajosa e humildemente, feridos em combate sim, pela aventura da coincidência consigo mesmo, pela busca árdua de unidade interior de vida. Entregues e confiantes a uma mão que nos é lançada, a uma palavra amorosa de esperança, a uma certeza de sermos amados para além dos nossos méritos, qualidades e fracassos. Com o salmista nos confiamos à memória do próprio amor de Deus, à sua eterna e incondicional misericórdia: «Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias e das vossas graças, que são eternas. Não recordeis as minhas faltas e os pecados da minha juventude. Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência, por causa da vossa bondade, Senhor» (Sal 24).

Voltamos ao evangelho de hoje. Esta outra parábola de um pai e dois filhos nada nos diz sobre o processo interior do arrependimento. Quanto caminho interior não foi feito pelo primeiro filho até ao compromisso final. Embora a narrativa nada nos diga, aquele «depois, porém, arrependeu-se e foi», foi, certamente, o resultado de um processo interior conflituoso, de um combate consigo mesmo, com o pai em sua autoridade de pai e de responsável pela gestão da vinha. Só pode ter sido uma páscoa de consciência e de decisão: a passagem dos seus interesses mais imediatos até à compreensão e aceitação da vinha como bem comum, a envolver a sua responsabilidade e o seu compromisso de trabalho concreto.

O caminho do arrependimento interior é árduo, conflituoso, espinhoso, longo; há tanta coisa a perceber que ainda não se percebe. Tantos orgulhos e perceções subjetivas a vencer. Tanta aceitação corajosa das próprias feridas, tanta reconciliação com as próprias debilidades, fracassos e incapacidades. Tanta aprendizagem com os erros do passado, tanta confiança e esperança no maior desespero. Tanta paciente espera para consigo e para com os outros. Para chegarmos àquele momento, por graça, após longo caminho de combate, entre a aceitação e a recusa, de arrependimento e de reorientação de vida, de tomada de uma decisão com uma liberdade eficaz, em que a nossa vontade coincide com a vontade de Deus. Este é nosso instante de felicidade, esse momento em que se alcança, ainda que fugaz, a beleza e a verdade de sermos nós próprios, inteiros. E esta é a maior graça que nos pode ser dada, a graça da ressurreição: «Se abrir os seus olhos e renunciar às faltas que tiver cometido, há-de viver e não morrerá».

Para compreendermos melhor o alcance da parábola de Jesus e a frase final do texto lido, a raiar o escandaloso, «Os publicanos e as mulheres de má vida irão diante de vós para o reino de Deus», deixo uma nota sobre o contexto: Jesus, já em Jerusalém, no centro do poder religioso, está em confronto direto com as autoridades religiosas instituídas, os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo. O cerco aperta-se e a hora da cruz aproxima-se. Jesus desmascara a hipocrisia e a mentira do poder religioso, obstinado em suas certezas e tradições, cego às situações dolorosas concretas da vida dos crentes, incapazes de perceber os apelos de Deus nos sinais dos tempos: «João Batista veio até vós, ensinando-vos o caminho da justiça, e não acreditastes nele». Pensando que cumprem a vontade de Deus, só dela se afastam. Os pecadores e as pecadoras públicas, publicanos e mulheres de má vida, vão adiante para o reino dos céus. Paradoxalmente, estão mais próximos da vontade do Pai. Parece que o pecado público é menos perigoso do que o pecado privado. Neles e nelas nunca se apagou a fronteira entre o bem e o mal, a brecha do coração que leva ao arrependimento. Possivelmente são pecadores reincidentes que sabem, miseravelmente, que o são. Habitam o dilema da consciência, vivem de coração dilacerado. São capazes de se arrependerem, porque não vivem obstinados em suas certezas, orgulhosos de uma santidade já alcançada. Não se reconhecem puros e justos. Estendem as mãos para Deus, suplicantes de perdão, compaixão e misericórdia. A sua vida, em sua miséria moral, não mente. Vivem sem máscara e sem hipocrisia. E aí está a sua verdade.

Voltemos, a terminar, ao início da parábola com o pedido do pai: «Filho vai hoje trabalhar na vinha». O dia mais importante da nossa vida é o dia de hoje, o dia e a hora em que nos decidimos, em que atuamos a nossa consciência e a nossa liberdade. Com dilemas, com brechas, no meio de dúvidas. Ressoa o apelo, incessante: «Filho vai hoje trabalhar na vinha».

Pe. António Martins, homilia do XXVI Domingo do Tempo Comum