Queridas Irmãs, Queridos Irmãos,

Bem sabemos que com limões se podem fazer limonadas, e acrescentar doçura ao ácido. No calor do verão, como nos sabe bem um refresco ou um gelado de limão. A forma como começo esta homilia pode não parecer a mais canónica… Vou tentar fazer uma aproximação ao evangelho de hoje lido. Trata-se de um texto que, na sequência narrativa de Mateus, aparece abruto, sem ligação ao anterior nem ao posterior. Uma espécie de texto isolado e, ao mesmo tempo, tão profundo e denso. Estamos perante um momento de crise no seguimento de Jesus. Bem nos recordamos das exigências que ouvimos no domingo passado: «Aquele que ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim». Seguir Jesus é exigente, é apelo permanente de conversão, de mudança de orientação de vida. De deixar hábitos adquiridos e acolher a irrupção da novidade do Reino. Começam as resistências; paira no ar um sentimento de desencorajamento e desistência. O próprio João Batista tem dúvidas se Jesus é «aquele que deve vir, ou deve esperar outro».

Neste contexto Jesus não se lamenta; pelo contrário expressa um hino de louvor e de agradecimento. Nas circunstâncias de crise que experimenta (o limão) encontra motivos de jubilação, de agradecimento e de louvor (a limonada): «Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos». A vida nunca é tão estreita e sufocada nas suas limitações que não encontremos nós também motivos de louvor e de ação de graças. Podemos lamentar-nos com o que nos está acontecendo, acusar outros pela dor que atravessamos. Mas podemos também encontrar razões de agradecimento. É uma alternativa que pertence a nós, que brota da dimensão sapiencial com que vivemos, acolhemos e olhamos a realidade, o contraditório da vida, o complexo da realidade, o paradoxo da condição humana. «Eu te bendigo, ó Pai…». Cada um de nós encontre em sua própria vida, no presente, mesmo em circunstâncias adversas, razões de louvor e de agradecimento.

Por que motivo bendiz Jesus o Pai: «porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos». Que «verdades» são estas? O texto aqui não esclarece. Mas mais à frente o evangelho de Mateus fala dos «mistérios do reino dos Céus» (Mt 13,11). Ou seja, o entendimento da presença de Deus em nossas vidas, na história, na vida da humanidade. Presença que é revelação, sabedoria, outra compreensão de nós mesmos, do sentido da vida. Avanço em profundidade, mergulho numa inteligência crente que se experimenta na simplicidade, no despojamento, no acolhimento e na vivência do «pequenino». Que passa pelo que é humilde, discreto, por vezes sem valor. Há uma beleza, há uma «revelação» (tirar o véu), há uma presença divina nos «pequeninos». E cruzando passagens no evangelho de Mateus, «pequeninos» são os excluídos, os famintos, os presos, os estrangeiros, os refugiados… com que Jesus se identifica: «todas as vezes que o deixaste de fazer a um desses mais pequeninos, foi a mim que o deixaste de fazer» (Mt 25,45).

Deus esconde-se aos «sábios e inteligentes» e «revela-se» aos «pequeninos». Estamos num típico modo de expressão judaica em que tudo o que nos acontece é atribuído a Deus, quer o bem, quer o mal. Ou por outras palavras, nada da nossa condição, nada do que somos e vivemos fica fora da ação divina. Deus esconde-se aos sábios e inteligentes? Uma afirmação assim, tão imediata e de conclusão tão simplista, levar-nos-ia a pensar que a fé não exige inteligência, que fé e cultura são realidades opostas, que a procura do conhecimento não é coisa evangélica. Por este caminho, pomos em questão toda a produção cultural e artística que a tradição cristã inspirou e inspira ainda. Ficaríamos comprometidos na missão e história da nossa Comunidade da Capela do Rato em sua procura de um diálogo sincero entre fé e cultura.

Mas não podemos também ignorar quanta excessiva racionalidade é expressão de soberba; quanto conhecimento não se transforma em arrogância, domínio sobre os outros, pura abstração, sem ligação à fonte existencial da vida. Ficamos fascinados quando o conhecimento e a inteligência são expressos de forma humilde e sábia, como serviço, cuidado, partilha, engrandecimento da comunidade. Não ignoramos que juntamente com o conhecimento pode haver um convencimento, uma arrogância, uma exaltação narcisista de si próprio, um desligar-se da nossa mais profunda humanidade e da humanidade dos nossos irmãos e irmãs. Quanta desumanidade na pura racionalidade abstrata (desencarnada). Quanta violência na racionalidade tecnológica que instrumentaliza o saber e o priva de sabedoria!

E é aí que Deus se esconde, porque a sua revelação passa pelo que é simples, humilde, autêntico, concreto. E os humildes e os pequeninos, precisamente pela sua circunstância de despojamento e de pobreza, estão mais abertos a acolher a presença de Deus. Porque a revelação de Deus vem pela via do abaixamento, da «sabedoria louca da cruz», do que não tem valor aos olhos do mundo, como nos afirma S. Paulo: «o que é loucura no mundo, Deus escolheu para confundir os sábios; e o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte» (1 Cor 1, 27).

Prestamos a nossa sincera homenagem ao Professor José Mattoso, que nos seus 90 anos foi chamado ao definitivo da vida. Conhecemos dele o historiador medievalista, o académico, o arquivista, o cidadão comprometido, o cristão contemplativo que nunca renunciou à sua identidade monástica, vivendo a contemplação no meio da secularidade. Expressamos a Deus a nossa gratidão por este irmão mais velho, mestre e sábio que nos ajudou a aprofundar a inteligência da fé, a relacionar fé e vida, fé e compromisso histórico, fé e acolhimento do novo, fé e luta pela justiça, fé e vida contemplativa. Porque Deus se revela aos pequeninos, àqueles que se descentram de si; e se revela também nas pequenas coisas do concreto da vida, essas que marcam as nossas fidelidades, pertenças, laços. «Enquanto houver sobre a terra alguém que procura levantar o Céu, quer dizer, implantar um pouco de bondade e de beleza sobre a Terra, restabelecer equilíbrios, perdoar ofensas, respeitar o “Céu”, renunciar ao poder, plantar uma árvore e regá-la todos os dias (como no filme de Tarkovski, Nostalgia), vibrar com uma cantata de Bach, arriscar a vida para matar a fome de alguém, comover-se com o riso de uma criança, sentir-se interpelado pelo mistério de Jesus Cristo no Getsémani como Aquele que carrega os pecados do mundo (…) não é insensato manter a esperança» (Levantar o Céu. Os labirintos da sabedoria, 14).

Chegámos ao fim de mais um ano pastoral na nossa Comunidade da Capela do Rato. Ano intenso, tenso, duro, cheio de surpresas que puseram em crise a nossa fé, a nossa esperança, o nosso ser Igreja. Ano grandioso na celebração da memória dos 50 anos da vigília de oração pela paz e pelo fim da guerra colonial, mas também ano de lutos, de lutas, de resistências, de protestos, de indignações. Ano que nos desgastou, nos engrandeceu mas também nos feriu. Chegamos ao final do ano todos cansados, esgotados, sem energia. Esse é um sentimento pessoal meu, mas que creio poder comungar com a minha comunidade, sabendo que cada um e cada uma faz a sua viagem existencial única, no possível, como sabe, consegue e pode. Entre a crise e a promessa, o desgosto e a esperança, a indignação e o desejo sincero de urgente mudança do nosso viver eclesial.

Sentimo-nos cansados e exaustos. Exaustos das nossas atividades, dos nossos ritmos velozes de vida, alucinantes por vezes, sem ligação às fontes da nossa interioridade. Exaustos até, por vezes, de nós mesmos, cansados dos nossos impasses, das nossas banalidades sempre recorrentes, da vida sem brilho que levamos, feita de repetições, sem rasgos de ousadia nem de novidade. Cansados deste nosso viver eclesial sem chama, sem criatividade, sem imaginação, divididos entre a saudade de tempos passados e a incapacidade para acolher novos tempos que já estão a acontecer.

Cansados dos jugos e fardos quotidianos que a vida profissional e familiar nos impõe e aos quais não podemos fugir; fardos de doença e de luto pesados e desoladores, por vezes, levados na solidão. Conforta-nos, tranquiliza-nos e consola-nos o convite, a promessa do Senhor em suas palavras oportunas para este final de ano pastoral: «Vinde a Mim, todos os que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve».

E com Pedro respondemos, humildes, confiantes: «A quem iremos Senhor. Só tu tens palavras de vida eterna».

Pe. António Martins, XIV Domingo do Tempo Comum