Pecámos contra Deus, contra os mais frágeis e desprotegidos, crianças e jovens, mulheres e homens que entregaram o coração e a consciência a padres a quem confiavam, esperando deles uma palavra de consolação, de orientação, de cura. E foram violentados e violentadas num abuso de poder, numa manipulação de consciência, num domínio do outro que resultou em abuso sexual. Reconhecemos o pecado do silenciamento das vítimas, do ocultamento, da defesa do bom nome da instituição sacrificando os mais frágeis e indefesos. «Pecamos contra Vós, e fizemos o mal diante dos vossos olhos».
É certo que há gritos de escândalo, humilhações, denúncias, acusações ferozes pelo ocultamento dos abusadores. Na legítima indignação não faltam vozes justiceiras que julgam o todo pela parte. Mas a verdade da agressão e da humilhação das vítimas, reprimida, sufocada, negada até pelas próprias vítimas em sua ferida silenciosa e aberta, emerge em sua força libertadora, para todos. A começar pelas próprias vítimas: falaram, testemunharam, contaram a sua narrativa reprimida, deram voz ao silêncio que as sufocava, sabiam que estavam a ser ouvidas e acreditadas. Tiveram a oportunidade de libertar a voz e contar, pela primeira vez, a sua narrativa de horror, de dor e de humilhação.
A verdade liberta, por muito que nos custe. É uma verdade libertadora para a própria Igreja como instituição que toma consciência de uma dura e cruel realidade, bem maior do que julgava. Toma consciência que as vítimas não confiam na sua própria organização. É uma verdade libertadora também para toda a sociedade, não para acusar apenas a Igreja-instituição de ocultamento, mas também para se rever e tomar as necessárias medidas preventivas e reparadoras, de dar voz ao silêncio nos clubes desportivos, nos colégios militares, nas escolas, nos ginásios… Este é um tempo oportuno de graça. Este é o nosso tempo favorável. Acolhemos a complexidade dolorosa e esperançosa do relatório da Comissão Independente como um tempo de graça, de purificação, de justiça reparadora, de cura e de perdão que nos é dado. A «graça a alto preço» do tempo presente.
«Criai em nós, ó Deus, um coração puro». «Dai-nos de novo a alegria da vossa salvação».
Acolhamos a narrativa de Mateus das tentações de Jesus no deserto como o espelho nos nosso combates interiores, dos dilemas com que permanentemente somos confrontados, com o contraditório das escolhas a que a vida e a fé nos colocam. Nas narrativas das tentações nos revemos, nos interpretamos, nos compreendemos, nos desmontamos em nossas estratégias de desejo possessivo, de domínio sobre os outros, de conquista de reinos de influência. Sem medir o risco da nossa fragilidade e os nossos limites, julgando-nos poderosos, resistentes, capazes de vencer, de influenciar e de conquistar. Não percebemos que somos nós nos tornar vítimas das nossas falsas ilusões, esses «ídolos» (falsas representações de Deus e de nós) que nos habitam, que alimentamos, que a cultura da força, do espetáculo, do mérito e da influência gera em nós, se não resistirmos à onda dominante.
«Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães». «Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo»; «…mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e disse-Lhe: «Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares». A estratégia «diabólica» (do que nos interiormente divide) está em desafiar o nosso ego, a dimensão narcisista de nós que não quer ser derrotada, que sempre se quer impor; está em convocar em nós a força, a apetência pelo poder e pela glória: «Se és o Filho de Deus…». Jesus aceita ser Filho, não pela força do milagre, pela capacidade do espetáculo, pelo desafio às leis da gravidade, pelo poder da conquista, mas pela aceitação da sua própria humanidade, limitada, vulnerável, frágil, exposta à fome, à carência e à privação («Nem só de pão vive o homem»). Nessa aceitação da sua própria humanidade, a sua suprema liberdade de Filho: «Embora sendo Filho, aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu (Hb 5,8)».
Tão longo é o caminho de aceitação da nossa frágil humanidade; tantas são as tentações e as falsificações com que nos mascaramos em heróis invencíveis, dando lugar ao falso em nós (o diabólico), negando ou adiando a nossa condição de filhos. Somos recebidos de outros (do Pai), por um amor incondicional, e dados a nós próprios na aventura de uma liberdade agónica, sempre em risco de tentação, sempre em luta com as próprias falsificações.
Bem recordamos aqueles jogos de crianças em que éramos desafiados «Não és homem, não és nada se…». E nós, pobres crianças narcisistas, lá caíamos no nosso orgulho de mostrar a nossa força aos outros que nos desafiavam, e assim nos provávamos publicamente. Mas na maioria dos casos descobríamos a nossa fraqueza e tínhamos que engolir a nossa derrota: não somos homens nem mulheres com uma força intocável; somos devolvidos à nossa pobre fragilidade.
Essa é a verdade que o livro dos Génesis nos relata: querendo ser como deus, descobrimos a nossa nudez e dela temos vergonha. Por isso nos vestimos com a primeira folha de figueira que temos à mão: «…compreenderam que estavam despidos»; «entrelaçaram folhas de figueira e cingiram os rins com elas». Porque temos dificuldade em identificar na alucinação das coisas apetecíveis uma força de morte. Vivemos de mortais ilusões, de fatais alucinações que chegam a nós com uma poderosa e irresistível força sedutora.
A melhor estratégia do mal, o seu mais fino engano e, por isso, a sua mais forte sedução, não está no seu horror, mas na sua força sedutora, na sua aparente beleza e qualidade: «o fruto da árvore era bom para comer e agradável à vista, e precioso para esclarecer a inteligência». E nesse fruto sedutor (a que se pode acrescentar os reinos da terra, o poder e a glória do evangelho) há um gérmen de morte (um fatal verme de podridão, de morte de si mesmo). Como estes textos nos desmontam, nos revelam nas estratégias do desejo que nos habita, e nos devora. É como aquela maçã, em certas naturezas mortas (vanitas), tão bela, tão rubra, tão sedutora, mas com um verme a entranhar-se…
«Se a morte reinou pelo pecado de um só homem, com muito mais razão, aqueles que recebem com abundância a graça e o dom da justiça reinarão na vida por meio de um só, Jesus Cristo». Com a linguagem de antítese de Paulo, reconhecemos nessa páscoa permanente do reino do pecado e da morte, o reino de Adão, para o reino da vida e da justiça, o reino de Cristo. Vivemos oscilando entre estes dois reinos, com eles misturados no profundo do nosso coração, divididos e em luta entre o reino da morte e do pecado e o reino da vida e da justiça (a ação de Deus em nós). Mas dizer isto, que é verdade existencial, é ainda pouco. Porque os dois reinos não são equivalentes, não estão ao mesmo nível. Nunca nos esqueçamos do «com muito mais razão», dessa razão sobreabundante, desse amor incondicional que é Cristo, verdade e vida de nós próprios. Graça incondicional de perdão e de cura.
«Onde abundou o pecado, superabundou a graça».
Pe. António Martins, Homilia do I Domingo da Quaresma