Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

Compreendemos a nossa vida de forma dialética, na sucessão de tempos e vivências percebidos como opostos. A forma cartesiana com que estamos formatados apõe vida a morte, exaltação a humilhação, força a fragilidade, sucesso a fracasso. E tudo nos parece categorias, experiências e acontecimentos irreconciliáveis. A experiência cristã e a linguagem evangélica fazem coincidir e reconciliar os contrários, porque é paradoxal. A morte pode ser fecunda; pode haver força na fragilidade e exaltação na maior humilhação. Levamos tempo, muito tempo, talvez a vida inteira, para compreendermos o paradoxo como categoria evangélica e existencial.

Surpreende-nos a narrativa do evangelho de João: «Quando Judas saiu do Cenáculo, disse Jesus aos discípulos: “Agora foi glorificado o Filho do homem». Vejamos a coincidência dos opostos, e interroguemos qual o sentido dessa junção de contrários: «Quando Judas saiu do Cenáculo» é o «agora» da hora da glorificação, da exaltação do Filho. Judas saiu do Cenáculo para a trair Jesus. Recebe de Jesus o pão e nele entra o demónio; é abençoado e dá espaço a uma vontade maléfica, de traição e de recusa ao amor com que foi amado por Jesus. Há nele o dom, mas a lógica passional da traição leva-o a negar a graça que o habita no mais profundo do seu ser. Judas é a expressão do trágico da liberdade humana, essa possibilidade que nos habitada, de trair as fontes da vida e do amor. Uma liberdade que se destrói a si mesma. Revelação do limite destrutivo que está contido no dom da nossa liberdade, potência para nos cumprirmos no amor, amando e consentindo ser amado, ou na recusa suicida ao amor, a traição a si mesmo, antes de ser traição de outros.

«Quando Judas saiu» é o «agora/a hora» da glorificação/exaltação do Filho. «Era noite», porque parece ser a hora do triunfo das trevas. Mas nessa aparência do triunfo do mal, da recusa humana à graça de amar e ser amado, está a manifestação do amor filial de Cristo até ao fim. Até à radicalidade do dom de si mesmo, de sua vida fecunda que, por inteiro, se dá até à morte. Nesse momento noturno do triunfo da negação e do amor (Judas), acontece a «hora» do dom da vida do Filho ao Pai e aos seus: «tendo amado os seus amou-os até ao fim». Na traição de Judas, a fidelidade filial e fraterna de Cristo; na entrega homicida de Judas, a entrega amorosa do Filho de Deus. Na morte provocada por Judas, a morte consentida por Cristo: «A minha vida ninguém me a tira, sou eu que a dou». Na hora da tragédia da relação e da traição ao amigo, a hora do amor que dá a vida por aqueles que ama, os seus amigos. Que tremendas e vertiginosas manifestações paradoxais da intensidade da vida.

Hoje, em Roma, o Papa Francisco canoniza Carlos de Foucauld, uma prodigiosa e fascinante aventura de vida cristã, na transição do século XIX para o século XX. Juntamente com outra francesa do final do século XIX, Santa Teresinha, Carlos de Foucauld inspirou profundamente as elites católicas ao longo do século XX, no desejo de uma radicalidade evangélica, de novas formas de vida cristã, mais autênticos, mais radicais, inseridos na vida concreta das pessoas. De um cristianismo tecido de experiência e não de ideologia, mais testemunhal do que apostando em fazer prosélitos. Dele escreveu o Papa Francisco na sua última encíclica Fratelli tutti: «O seu ideal duma entrega total a Deus encaminhou-o para uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão, e pedia a um amigo: “Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos”. Enfim queria ser “o irmão universal”. Mas somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que Deus inspire este ideal a cada um de nós» (FT, 287).

O seu processo de beatificação e canonização chegou tarde; precisamente quando se ultrapassou o conflito de interpretações a seu respeito, pela complexidade da sua biografia e personalidade. Há nele uma tensão entre o eremita e o «irmão universal»; o militar renegado e aquele que nunca renegou o exército e foi bandeira ideológica da política colonial francêsa no norte de África. Em plena guerra da independência da Argélia, era politicamente incorreto beatificar um oficial do exército francês. A radicalidade da sua aventura espiritual, fora de norma, em terrenos de fronteira com os povos muçulmanos, os tuaregues no Saara da Argélia, fez dele um pioneiro do diálogo inter-religioso. Carlos de Foucauld começou por desejar, como era próprio na época, a conversão dos crentes do Islão ao cristianismo para renunciar a todo o «espírito militante».

Inovou, viveu na fronteira entre povos religiões e culturas, aventurou-se nas profundidades do deserto na paixão pelo estranho e pelo diferente, foi um fora de regra escrevendo regras que nenhum contemporâneo seu se atreveu a seguir consigo. Viveu, com radicalidade, entre os desconhecidos e os últimos, para testemunhar com a inteireza da sua vida, mais do que com pregações, a autenticidade da novidade do Evangelho. Foi beatificado em 13 de novembro de 2015, por Bento XVI.

Nasce a 15 de setembro de 1858, em Estrasburgo, numa família aristocrata e culta. Fica órfão aos seis anos, mas ainda conheceu o amor de mãe que imprimiu nele a doçura e a ternura. Educado numa família católica piedosa, enquanto jovem torna-se agnóstico e indiferente à religião. Dissipa a fortuna de família numa vida boémia de festas com os amigos. Frequenta a Escola de Cavalaria e chega a oficial, mas pelo espírito de aventureiro e pela sua indisciplina é colocado fora do exército. Diz dele próprio neste tempo: «Era menos um homem do que um porco».

Faz, em 1883, uma expedição a Marrocos, disfarçando-se de rabino e disfarçando a sua identidade de ocidental. Aventura-se nas fronteiras do deserto registando, descrevendo e analisando o território. Este registo reabilita-o no exército. O contacto com a intensidade da prática religiosa muçulmana e judaica, no norte de África, acorda nele a consciência da presença de Deus: «O Islão produziu em mim uma profunda viragem. A vista desta fé, estes homens vivendo na contínua presença de Deus, fez-me entrever qualquer coisa de maior de mais verdadeiro do que as ocupações quotidianas»; «Meu Deus, se existis, fazei com que eu vos conheça».

Reencontra-se com o catolicismo e passa uma profunda vida de oração contemplativa. Deseja viver uma radicalidade evangélica. Em 1890, entra como monge na Trapa, uma das ordens monásticas católicas mais radicais e despojadas. Vive em Itália, no Egito, na Palestina, na Síria. Conhece bem a geografia bíblica, ligando a Palavra com a terra. Foi na Trapa que experimentou a intensidade da vida fraterna, a misericórdia de Deus através dos irmãos: «É impossível querer amar a Deus sem amar os irmãos: quando mais se ama a Deus, mais se ama os homens. O amor de Deus, o amor dos homens, é toda a minha vida, será toda a minha vida, espero».

Que feliz coincidência este dia da sua canonização com o evangelho de João hoje lido (talvez não tenha sido, mesmo, um mero acaso…). É o próprio Cristo que nos deixa a marca da identidade e de credibilidade cristãs, a qualidade e a fecundidade do amor fraterno: «Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros». Não temos outra carta de identidade e de autenticidade cristã senão o cumprimento em nós e nas nossas comunidades do mandamento novo.

Mas, para ele, a Trapa ainda era pouco. Sai da Trapa em 1897 e vai viver numa cabana junto do convento das Irmãs Clarissas, em Nazaré, como doméstico e jardineiro. Descobre a vocação de viver ao estilo de Jesus de Nazaré, numa vida oculta, concreta, simples, quotidiana. Já como padre da diocese de Viviers, aceita ser enviado para as fronteiras do deserto de Algéria (1901-1916) para aí, no meio dos tuaregues, marcar um estilo concreto de presença cristã, através do trabalho, da adoração eucarística, de uma vida de intensa oração, de acolhimento aos povos locais: «Vivendo do trabalho das minhas mãos, desconhecido de todos e pobre, gozando profundamente a obscuridade, o silêncio, a pobreza, a imitação de Jesus. Desejo habituar todos os habitantes a me olhar como seu irmão, o irmão universal». Apenas com o seu testemunho: «Gritar o evangelho através de toda a minha vida». O amor dos mais pequeninos e afastados, levou-o a encontrar Jesus no pobre e no outro profundamente diferente de nós: «Tudo o que fizerdes a estes mais pequeninos dos meus irmãos, é a mim que o fazeis» (Mt 25,40).

Estuda a língua tuaregue; escreve um dicionário tuaregue-francês, faz uma recolha da poesia amorosa deste povo colorido do Saara. Vive do trabalho e da oração no seu ermitério de junto às magníficas montanhas de Tamanrasset (sul da Argélia). No conflito entre tribos locais, ativado pelo eclodir da I Guerra, em 1916, é morto pelo jovem em pânico que o ajudava, sem o querer.

Num dos seus últimos escritos, escreveu: «Meu Deus, faz com que todos os homens vão para céu».

Nunca conheceu em vida nenhuma vocação. Mas a sua herança espiritual permanece fonte de inspiração para os Irmãozinhos e as Irmãzinhas de Jesus, que desenvolvem o projeto de congregação religiosa desejado. E nas as organizações sacerdotais e laicais que nele se inspiram.

Com as leituras deste domingo, podemos dizer que Carlos de Foucauld teve a mesma visão do vidente do Apocalipse. Viu a nova Jerusalém, descida do Céu. «Viu», e com a ousadia e a criatividade da fé, testemunhou, de corpo inteiro, esse fazer novas todas as coisas nos confins do deserto, testemunhando a fraternidade humana. Ele um aventureiro do Reino por terras do norte de África, tal como Paulo e Barnabé em terras da Ásia ocidental. Mas, ao contrário destes apóstolos, sem nunca ter podido contar qualquer conversão ou adesão ao seu projeto.

Como o seu silêncio e o seu «fracasso» missionário inspiram a «infertilidade» do nosso quotidiano!

Pe. António Martins, V Domingo da Páscoa