Intervenção inicial

Para a maioria de nós, o começo da guerra foi uma surpresa que, violentamente, nos acordou. O Presidente Putin justificou a invasão da Ucrânia evocando a história de um único território com uma única cultura e religião (ortodoxa), a «Grande Rússia» (Russkii mir). O Patriarca de Moscovo, sem condenar a invasão, fala de um «combate metafísico» contra o ocidente decadente. Não estamos longe da justificação da guerra santa. Nos últimos dias um grupo de 300 teólogos ortodoxos condenou esta ideologia «ignóbil e indefensável» como herética e contrária à tradição ortodoxa. As Igrejas ortodoxas na Ucrânia, em situação de cisma, aliam-se para apoiar a resistência, consolar o povo e fortalecer as tropas. A Igreja greco-católica, renascida da clandestina, expressa um incondicional apoio ao povo e governo ucranianos.

Nesta guerra manifestam-se as fraturas latentes entre as próprias Igrejas cristãs ortodoxas no Leste da Europa, marcadas por conflitos antigos e recentes, acusações mútuas e ressentimentos, proselitismo e excomunhões recíprocas; vem revelar e agravar a difícil relação ecuménica entre cristãos e Igrejas no leste da Europa. Se a guerra de hoje começa em 2014, também o conflito entre as Igrejas ortodoxas, consumado na criação da Igreja ortodoxa autocéfala (Patriarcado Ortodoxo de Kiev) reconhecido por Bartolomeu I, em 2019, o que provocou a excomunhão de Constantinopla por parte de Moscovo), visto como uma «declaração de guerra à Rússia». As Igrejas ortodoxas russas no ocidente cortam com o Patriarcado de Mosco; os patriarcados do Leste (Grécia, Roménia, Albânia, Bulgária, Sérvia, Moldávia….) afastam-se. No leste da Europa, nos campos, nas aldeias e cidades destruídas da Ucrânia, está a acontecer a separação das Igrejas ortodoxas, talvez um grande Cisma nas Igrejas do Oriente.

Na guerra entre Rússia e Ucrânia confrontam-se, com violência, as contradições e as tensões dentro e entre as diferentes tradições cristãs (soberanistas e globalistas, pacifistas e atlantistas (bélicistas), nacionalistas e europeístas, tradicionalistas e reformistas…). Todas as fraturas e tensões contemporâneas emergem neste conflito; ele é o espelho das tensões e contradições do cristianismo contemporâneo. Talvez fique daqui, deste nosso trágico presente, um profundo desafio futuro para todas as Igrejas, depurarem-se de toda a ideologia nacionalista e expancionista, da aliança entre trono e altar; renovarem-se a partir de dentro numa maior fidelidade evangélica e conversão ecuménica à diversidade. Tarefa cheia de escolhos, dados os profundos ódios e ressentimentos atuais e nas próximas gerações. É preciso reinventar, profeticamente uma experiência cristã que possa ser patriota com ser nacionalista, que não se afaste da catolicidade (universalidade).

Esta é a verdade: não se pode avançar para um ecumenismo da paz sem antes se avaliar a presença das Igrejas na guerra. No meio da dor, da destruição, dos milhões de desalojados e refugiados, o ódio entranha-se e permanecerá por gerações. A escalada militar adia a esperança de um cessar fogo imediato. No futuro, terminada a guerra, será necessário um longo e paciente caminho de paz e de reconciliação entre os povos russo e ucraniano, onde as Igrejas tão presentes na sociedade terão o seu lugar profético, único, insubstituível:  Porque Cristo «é a nossa paz: faz de ambos os povos um só, tendo derrubado o muro da separação e suprimido em sua carne a inimizade» (Ef. 2,14-15). Que desafios de conversão não devem acontecer no coração «bélico» de cada cristão, em cada comunidade, entre as Igrejas, entre povos?

Um ecumenismo de paz é, no presente e no futuro, tarefa urgente para as Igrejas cristãs na Rússia e na Ucrânia. Mas, ao mesmo tempo, pode parecer ingénuo, dada a crueldade dos ataques. Para aprofundar esta questão tão delicada e fraturante no cristianismo ortodoxo atual, a Comunidade da Capela do Rato promove, nesta noite, a reflexão: «Para um ecumenismo da Paz. O lugar das Igrejas cristãs na reconciliação entre Rússia e Ucrânia». Estão connosco para ajudar a dimensão teológica, ecuménica, testemunhal e política da questão o P.e Ivan Hudz, da Igreja Católica de Rito Bizantino Ucraniano, Évora; o P.e Sergey Borski, da Igreja Ortodoxa Russa; e o P. Petru Pruteanu, da Igreja Ortodoxa da Moldávia; o jornalista Filipe Avillez e o Dr Paulo Portas.

Muito obrigado a cada um dos participantes pela disponibilidade e generosidade do seu tempo.

Vamos estar perante um debate complexo, delicado, difícil, em aberto. A Comunidade da Capela do Rato ousa, no atual contexto de guerra (em plena tensão e confusão) convocar uma inteligência interpretativa e profética da experiência cristã, nestes dias tão dramáticos e de tanto sofrimento. Não somos neutrais. À nossa racionalidade junta-se, inevitavelmente, o pathos da vida sofrida, da revolta, da dor quem é vítima agredida. Ousamos atravessar dilemas, tensões, confronto de posições. Com elevação e respeito pelas diferenças. Uma vez mais evocamos e repetimos as palavras de Sophia: «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar». O nosso exercício é de risco: tocamos o emotivo, o fraturante, o lugar do conflito, em nome da bem-aventurança evangélica: «Bem-aventurados os que promovem a paz, porque deles é o reino dos céus».

O debate será moderado pelo P. António Martins, capelão da Capela do Rato, e pelo jornalista Pedro Cordeiro, editor de política internacional do jornal Expresso.

Conclusão do debate

Termino, este debate, agradecendo a cada um dos participantes: o seu testemunho, a sua exposição, a sua coragem, a verdade das suas palavras.

O Papa Francisco, no ângelus de domingo passado, gritou, profeticamente, às nossas consciências: «Se sairmos desta vicissitude como antes, seremos de certa forma todos culpados». Na tragédia da guerra na Ucrânia, com maior ou menor fidelidade ao evangelho, as Igrejas cristãs da Europa estão implicadas. A bem-aventurança evangélica inquieta-nos, provoca-nos, julga-nos em nossos alinhamentos, uns mais beligerantes, outros mais pacifistas. Em Cristo, Príncipe da Paz, somos, permanentemente, convocados para a construir a paz, como bem comum (bem político), e nos pacificarmos no mais profundo de nós mesmos. Na construção da paz, estamos sempre a recomeçar: em nós mesmos, nas comunidades cristãs, entre as Igrejas, entre as nações e os Estados, entre etnias…

Bem sabemos que a graça do perdão (o perdão aos inimigos) não vem de nós próprios. De nós próprios vem a vingança, a justiça «olho por olho, dente por dente», ou a neutralização do inimigo, como se diz em lógica militar. O perdão é loucura, excesso que só pode vir de Deus; pedido incessantemente e desejado para além das nossas forças. Para uma reconciliação nos corações e entre povos inimigos, um longo e paciente caminho de cura, de pacificação interior é necessário percorrer em cada coração ferido, dentro das comunidades cristãs, entre as próprias Igrejas. A escalada militar acontece num instante, os caminhos da paz são longos e pacientes. Precisamos de pedir, suplicantes, o dom da paz e do perdão; queremos que acontecem em nós, para se traduzirem em comunidades e povos reconciliados. Para aí chegar é preciso ouvir o grito das vítimas, dos agredidos; ouvir o seu grito de ódio, clamando justiça. Um grito que precisa de ser dito perante o próprio agressor. Porque o perdão não prescinde da justiça, mas supera-a.

Como cristãos e como Igrejas, de várias tradições, estamos confrontados com a brutalidade destrutiva da guerra, com a implacável violência fraticida. E bem sabemos que somos habitados também por profundas violências fraticidas no interior de nós mesmos. Por isso, imploramos: «Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido».

Na guerra da Ucrânia as Igrejas cristãs da Europa estão a cavar o abismo da sua separação, ou a semear o futuro da sua reconciliação. Se, no presente, o ecumenismo está ferido, esta ferida aberta no coração da ortodoxia, como o lado aberto de Cristo na cruz, pode ser fecunda e fonte de bênção. Semente de futura unidade e reconciliação, talvez de futuras reformas até.

Nesta hora densa da história humana, todos nós, todas as Igrejas, somos chamados à conversão evangélica, a nos desarmarmo-nos das nossas lógicas de guerra, de acusação, de justiça vingativa. A nos superarmos em nossas tentações identitárias, nacionalistas ou integristas. A regressarmos, de novo, ao evangelho de Cristo nossa paz que faz de povos inimigos uma única humanidade, uma única fraternidade.

É a nossa esperança. Seja a nossa profecia e o nosso testemunho.