Na celebração da eucaristia do IV Domingo do Advento (19.12.2021), na Capela do Rato, às 11.30h, fizemos memória agradecida da nossa querida amiga e irmã Leonor Xavier. Agradecemos o dom da sua inteira vida e da sua morte, da sua doçura, da sua fé, da sua presença fiel e iniciativa em nossa comunidade, dos seus compromissos e lutas cívicas pela inclusão.

Recordamos, agradecidos, as suas palavras:

«… é que eu tenho uma visão jubilosa, gratificada e plena da vida. Quando ela acabar, costumo dizer que irei de barriga cheia. A vida é um milagre para mim e, embora me reconheça no que disse, o forte é a minha relação de pasmo com a vida, de um imenso espanto. E de gratificação».

«Não tenho medo da morte, para mim é o próprio mistério».

«No fundo, acabo por ser uma abelha laboriosa… Sendo a vida agridoce, ela tem muita doçura. É por isso que eu sobrevivo até hoje…».

«Deus está a tempo inteiro na minha vida. É uma presença, por isso não costumo sentir solidão. Creio no Pai em rigor dos textos sagrados, em Cristo frágil, companheiro, misericordioso, no Espírito Santo sopro criador. Sinto-me protegida. Às vezes, miraculada, à conta de tantos momentos perigosos por que passei».

«Agradecer não a ter perdido, esta vida vivida. Na hora da morte irei de barriga cheia de viver».

(entrevista ao jornal Expresso, 01.04.2021, conduzida por Maria João Avilez)

Admonição inicial feita pelo Pe. António Martins

Neste IV Domingo do Advento, reunimo-nos em eucaristia para agradecer a inteira vida cumprida da Leonor, uma semana após o seu falecimento.

Saúdo os seus filhos, a Leonor, a Maria, o Gonçalo, os seus netos, familiares e amigos: «Como me sabem cada um amar, nas suas maneiras e nos seus modos».

À luz da sua morte, a vida da Leonor, e as palavras nas quais testemunhava o seu sentir, tomam um significado definitivo. Percebemos melhor quanto a sua escrita límpida e precisa era biográfica, autêntica e verdadeira. Relemos as suas palavras tão pessoais, tão profundas e sinceras, na entrevista que deu ao Expresso, em março passado, conduzida pela Maria João Avilez.

«Sinto este estado de graça das pessoas gostarem de mim – e de eu gostar delas e da minha família». Aqui estamos agradecidos por este gosto e este gozo de vida partilhada, de vida multiplica, de vidas congregadas. E com que arte, porque por gosto, a Leonor congregava pessoas tão institucionais e pessoas tão irreverentes e fora da norma. Era assim a Leonor: uma terna jubilação pela vida, agradecida; um viver em forma de banquete oferecido.

Agradecemos-lhe o seu testemunho jubiloso, o seu encanto de viver levando em seu corpo «o passageiro clandestino». Bebeu o cálice do banquete da vida, entre o júbilo e a dor, até ao fim: «eu tenho uma visão jubilosa, gratificada e plena da vida. Quando ela acabar, costumo dizer que irei de barriga cheia. A vida é um milagre para mim e, embora me reconheça no que disse, o forte é a minha relação de pasmo com a vida, de um imenso espanto. E de gratificação».

Podemos dizer, com verdade atrevida, que em sua morte a Leonor reuniu amigos, aqui na Capela do Rato, crentes e não crentes, gente com percursos tão diversos, que só ela poderia reunir e congregar. A celebração da sua morte foi um testemunho de fé e de beleza, uma experiência de serena pacificação e elevação: tudo estava certo, tudo estava bem.

Avançou vivendo até ao fim, entregando a vida no mistério da morte, nas mãos do Pai, sem medo: «Não tenho medo da morte, para mim é o próprio mistério». Aprendeu, como Cristo, a ser filha obedecendo ao corpo que progressivamente se fragilizava e se rendia: «Uma das artes da doença é conseguir obedecer ao corpo sem o rejeitar ou sem o odiar, entendendo que é o momento dele». Momento supremo desta obediência ao corpo é a morte; e que graça quando a mesma se aceita sem medo, com confiança; quando como crentes nos entregamos como filhas e filhas acabados de nascer nas mãos do Pai.

A Comunidade da Capela do Rato fica mais pobre. Perdemos a sua presença fiel, a sua iniciativa, a sua ironia e doçura, também a sua crítica frontal mas nunca ressentida. Com a sua arte de congregar a diversidade de tantos percursos de vida, convocando a sua rede de amigos e os seus contactos, a Comunidade da Capela do Rato viveu, nos últimos anos, altos momentos de encontro de crentes e não crentes, de festa celebrativa da mulher, na despedida do P. Tolentino, ou expressando apoio ao Papa Francisco, congregando artistas, escritores, jornalistas, músicos, personalidades públicas. Com a iniciativa e o empenho da Leonor, este espaço alargou-se, cumpriu-se como lugar transgressivo de fronteiras e de identidades.

Leonor, eras grata pela vida porque te reconhecias gratificada, «miraculada» até como dizias. «Agradecer não a ter perdido, esta vida vivida. Na hora da morte irei de barriga cheia de viver».

Obrigado, Leonor, pelo dom da tua vida e da tua morte, da tua fé convicta e autêntica, do teu compromisso por uma Igreja renovada, das tuas lutas pela inclusão.

P. António Martins