Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

Dou graças a Deus pelo dom e responsabilidade da pregação, esse trazer ao concreto das nossas vidas a Palavra de Deus proclamada nas leituras lidas na eucaristia. Dou graças a Deus por o Evangelho, através das minhas pobres palavras humanas, da minha voz, por vezes insegura e baixa, chegar a vós e tornar-se carne em vossa carne, vida em vossas vidas. A tarefa da homilia não é nada fácil; não é fácil dar atualidade a textos tão antigos, não é fácil ligar a Palavra aos acontecimentos concretos do quotidiano. Agradeço comovido este mergulho no abismo da Palavra, este fogo que vos atiço, este oceano em que vos convido a mergulhar. E o primeiro a mergulhar, a ser queimado, a deixar-se arder é o próprio pregador.

Se perante vós, como padre que preside à eucaristia desta comunidade, tenho a missão de ajudar a que se celebre em cada um(a) de vós uma aliança esponsal com a Palavra de Deus, um encontro festivo. Como todos vós, com todos vós, sou ouvinte da Palavra, por ela edificado. Edificado, mas antes desconstruído, porque a própria Palavra tem força para demolir e para reconstruir. Com as minhas infidelidades, as minhas resistências, as minhas distrações, digo com Maria, digo com todos vós: «Faça-se em mim segundo a tua Palavra».

Sou incendiário, semeador, aguadeiro, garçon da Palavra. Sou incendiário porque vos quero pegar o fogo da Palavra, fogo que queima, aquece, fazer arder por dentro o coração. Sou semeador lançando sementes soltas, sem saber onde vão cair, ao terreno dos vossos ouvidos e dos vossos corações. Sou aguadeiro que vos quer servir a frescura da Palavra em vossa sede e aridez. Sou garçon que vos quer trazer à mesa o prato da Palavra que alimenta confecionado com requinte e qualidade.

Por tudo isso, pela vossa recetividade, até pelo vosso juízo crítico, dou infinitas graças a Deus.

A pregação é um dom, uma arte, um artesanato semanal, sempre a treinar, sempre a praticar. Também é um combate, uma procura sem encontrar logo, um varrer a casa à procura da moeda perdida, um escavar procurando um tesouro escondido. Pregar é dar a Palavra, mas é dar a Palavra dando-se também. A Palavra da homilia é também palavra pessoal do pregador, revela o seu estilo, a sua miséria consolada pela misericórdia do Pai. Na homilia se expõe, se afunda, se entrega.

A homilia não é discurso, não é conferência, não é catequese, nem sequer é sermão ao estilo barroco. Pretende ser uma conversa familiar, próxima; tem o seu quê de informal, de improviso, dá liberdade à imaginação e à criatividade. Procura que o ouvinte, o crente, celebre e viva hoje o seu encontro com o Senhor: «Se hoje ouvirdes a voz do Senhor não fecheis os vossos corações».

Com a linguagem imaginativa do Livro de Daniel e do Apocalipse, também vos quero provocar visões. Porque a Palavra de Deus torna-nos visionários. Faz-nos ver mais longe, mais fundo, ver antecipadamente (antever). Também a nós, a cada um(a) de nós, nos é dito hoje: «contempla as visões da noite». Somos chamados a ver o invisível, a ver no escuro, a ver no noturno. Que belos paradoxos. Podemos ver no obscuro da noite, da noite da história, da nossa própria noite, nas trevas luminosas do Deus obscuro.

Na violência quotidiana da história, nos náufragos, nas fronteiras fechadas a muros e a arame farpado, nos campos de refugiados, no êxodo dos famintos, dos sedentos, dos sem casa e sem família, «vemos» uma realeza, um reino definitivo, uma justiça para a humanidade, «vemos» o Rei da vida em plenitude, «o Primogénito de entre os mortos, o Príncipe dos reis da terra». Aquele que eternamente nos ama, o eterno Vivente. Por isso, atravessando o noturno com a visão do futuro, ousamos dizer: Sim, Amen!!!

No evangelho de João, hoje lido, dois homens estão um diante do outro, olhos nos olhos, face a face. Pilatos, o governador romano, investido de poder político, militar e judicial, ali o plenipotenciário de Roma, e Jesus de Nazaré, prisioneiro, amarrado, ferido, despojado de si, desarmado. O poderoso e o impotente, a plena autoridade diante do condenado, a força e a fragilidade em confronto agónico. Mas ali quem é o autêntico Senhor? Onde está a realeza, o autêntico e verdadeiro poder? Pergunta Pilatos a Jesus: «Tu és o rei dos judeus??». Tu, um pobre condenado indefeso, inteiramente nas minhas mãos? Tu rei?… Pobre coitado.

Resposta senhorial de Jesus, solene, real, porque tão autêntica e subversiva: «O meu reino não é deste mundo»; «o meu reino não é daqui». «Então, tu és rei?», «É como dizes, sou rei». Mas rei ao avesso, rei cujo reino não se confunde com qualquer rei e reino da terra. O seu reino não é daqui. A lógica do seu poder é um anti-poder; a sua força é a do amor levado ao extremo. No meio de uma total expropriação, na pura nudez de uma humanidade despojada, eis o senhorio de uma vida livre que livremente se dá: «A minha vida ninguém ma tira, sou eu que a dou».

Tudo ao avesso, tudo ao contrário. Tudo paradoxal. Assim é a lógica evangélica. E naquele humilhado e desfigurado, naquele pobre homem, «Eis o homem», o humano realizado, o Filho acabado de se deixar gerar, a epifania da glória de Deus. Uma glória invisível no silêncio de um condenado pelos reinos do mundo, pela aliança do poder político com o poder religioso. Todos os poderes o condenam à morte. «O meu reino não é deste mundo». O seu reino pertence aos pobres, aos libertos, aos artífices da paz, da beleza, da justiça, aos límpidos de coração.

Assistimos à subida ao trono dos senhores e patrões deste mundo, e até os aplaudimos, estendemos-lhe a passadeira, fazemos parte da enorme assembleia da sua entronização. Os senhores da finança, da bolsa, da política internacional, da economia, das multinacionais, do desporto, os príncipes deste mundo, são os reis que aclamamos, a quem entregamos cegamente o coração, a quem servimos sem questionar, sem pôr em causa, de quem consentimos ser servos, para não dizer escravos. Sugam-nos o sangue, as horas de descanso, o tempo interior, as economias, os afetos, a liberdade, até alienam a nossa consciência; fazem-nos comprar o que não precisamos, acumular sem necessidade. Enquanto a sua riqueza aumenta, povos são espoliados.

Quem é o meu rei? Em que reino sirvo? A que rei entrego a nossa lealdade?

Estou a ler um livro escrito por três jovens professores de filosofia, católicos franceses socialmente comprometidos. Ousam oferecer uma reflexão sobre o possível contributo político dos católicos na sociedade. Ousam, provocam, questionam, fazem pensar. Escrevem com coragem profética: a fé cristã «dessacraliza e deslegitima aos poderes mundanos, político e económico, fazendo do mestre o servidor»; «A cruz de Cristo relativiza o poder político e desmascara a dominação» (cf. Paul Colrat, Foucauld Giuliani, Anne Waeles, La communion qui vient. Carnets politiques d’une jeneuse cathólique, Seuil, Paris 2021).

Ousam dizer que o fermento cristão é curar a nossa vida do desejo de tudo dominar e orientá-la para a caridade, para o dom gratuito de si mesmo. Pertence às entranhas do cristianismo ser instância crítica para com os poderes estabelecidos. Porque este «reino de sacerdotes», que somos todos nós, pertence a um «reino que não é deste mundo». A experiência cristã põe a política em crise, destrói os ídolos do poder, gera insubmissão.

Porque esperamos «um reino que não terá fim», um outro reino onde reina o Senhor da Vida, o eterno Vivente.

Pe. António Martins, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo