Queridas Irmãs
Queridos Irmãos
De novo nos reunimos (e nos unimos) mais em eucaristia, agradecidos pelos dons recebidos, na alegria que estarmos juntos, de nos reconhecermos e acolhermos como irmãos e irmãs. Voltamos sempre à fonte da nossa unidade, a páscoa do Senhor, em que Ele se dá por inteiro a nós. A celebração da eucaristia marca a nossa identidade de Povo a caminho, de comunidade que atravessa as crises do tempo mas avança na esperança, reinventando-se.
Temos vindo, na leitura do evangelho de Marcos, a acompanhar a peregrinação de Jesus com os discípulos para Jerusalém, para aí celebrarem a Páscoa. Assim nos compreendemos melhor: também somos uma comunidade de discípulos que peregrina, por entre a instabilidade da vida (do mundo, do País, das nossas famílias, da nossa própria vida…) na procura de uma maior fidelidade ao evangelho. O Senhor está no meio de nós, acompanha-nos na força interior do seu Espírito, faz-nos arder o coração com a sua Palavra. O drama dos discípulos que têm dificuldade em compreender o Senhor, em mudar o modo de pensar, é também o nosso.
No relato do evangelho de hoje, como no domingo passado, o Senhor já se encontra em Jerusalém. Aqui vai ter um duro confronto com as autoridades religiosas. Tão duro e tão violento que desemboca na sua prisão, condenação e morte na cruz. Vai-se cumprir o que anuncia pelo caminho: o Filho do homem vai ser morto. O Senhor apela aos discípulos para não adotarem os comportamentos hipócritas, gananciosos, manipuladores, exibicionistas das autoridades judaicas: «Acautelai-vos dos escribas, que gostam de exibir longas vestes, de receber cumprimentos nas praças, de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes».
Precisamos de ser pudentes na interpretação deste apelo. O contencioso de Jesus com as autoridades judaicas em Marcos é expressão do clima de perseguição às primeiras comunidades cristãs por parte das autoridades judaicas da época. É má interpretação trazermos estes textos para a atualidade sem mais; lidos sem controle, podem fomentar leituras antijudaicas, levar a equívocos, alimentar ódios e perseguições do passado. O apelo à cautela por parte dos discípulos é para o interior da comunidade. Porque o poder religioso pode sempre corromper-se. Há sempre a tentação de se afirmar em pompas litúrgicas, em vestes faustosas, em desfiles de arrogância e de protagonismo, em manipulação de consciências, em modo fácil de extorquir a generosidade dos pobres e aumentar a riqueza. Recordo o que o saudoso bispo de Setúbal, D. Manuel Martins dizia com profetismo sempre atual: «Se todo o poder corrompe, o poder religioso ainda mais». É para o alerta desta corrupção, sempre presente, que o Senhor convoca à cautela os seus discípulos.
O carisma sedutor de tantos líderes religiosos, a sua autoridade sagrada inquestionada, o seguimento cego por parte dos crentes, a disponibilidade total ao seguimento, o beber todas as palavras como revelações divinas, dão aos líderes religiosos uma autoridade desmedida. Uma autoridade que pode acabar por manipular as consciências, abusar da intimidade. Por isso mesmo precisa sempre de estar ativa, na consciência das pessoas e no seio das comunidades, uma atenta vigilância de comportamentos e de atitudes. Os crentes e as comunidades precisam de ser cautelosos e vigilantes com o exercício da autoridade dos seus pastores e guias. Toda a autoridade, e também a religiosa, precisa de ser controlada.
O drama contemporâneo dos abusos na Igreja revelou o poder obscuro, oculto, silencioso, de tantos líderes religiosos, fundadores de comunidades, guias espirituais carismáticos com aparência luminosa. A autoridade eclesial aparece hoje mais pobre, mais exposta, mais miserável, mais questionada, mais humilde. Este esvaziamento só nos pode levar à única Palavra que dá vida, à unidade e autoridade que nos salva – o Senhor com o seu evangelho. «Só Deus basta».
No Templo de Jerusalém, diante do cofre das ofertas, Jesus observa com atenção e visão interior os gestos banais dos fiéis que fazem as suas ofertas: «Jesus sentou-Se em frente da arca do tesouro, a observar como a multidão deitava o dinheiro na caixa». À primeira vista, até parece que o Senhor se dedica a coisas mundanas, a ver a quantidade das moedas a cair no cofre. Nada disso. O Senhor penetra o seu olhar nos gestos exteriores e vai à raiz dos mesmos, à verdade profunda e radical de cada pessoa. Os nossos gestos revelam-nos e denunciam-nos. Falam de nós, dizem motivações interiores. O evangelho de hoje educa o nosso olhar para vermos para além das aparências, para sabermos discernir a verdade pessoal de cada gesto. Tarefa nada fácil, e ainda mais na desatenção da vida acelerada que todos vivemos, sem tempo para parar e ver com atenção; ver para além do que parece, ver a interioridade dos gestos e dos acontecimentos. Perdemos nós, homens e mulheres contemporâneos de uma acelerada cultura do visual, a capacidade penetrante do olhar, a profundidade da observação como exercício de reconhecimento da verdade de cada pessoa que encontramos?
«Muitos ricos deitavam quantias avultadas. Veio uma pobre viúva e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante». Entre os ricos, que dão quantias avultadas do que lhes sobeja, Jesus identifica uma pobre viúva, uma mulher discreta e à margem. Não há diálogo direto nem encontro pessoal. Jesus observa à distância o comportamento das pessoas e interpreta os seus gestos. Na insignificante oferta da pobre viúva há a densidade de uma grandiosa partilha: «Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros». Dando uma ninharia, «duas pequenas moedas», deu mais do que todos os ricos que deixavam avultadas quantias. Há no seu gesto a grandiosidade de uma partilha incondicional, sem cálculos: «ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha, tudo o que possuía para viver».
Podemos até dizer que poderia ter ficado com a esmola. Os custos do faustoso culto eram pagos com as avultadas quantias dos ricos. E o seu sustento era mais urgente. O valor do seu dom, quantitativamente, foi insignificante. Mas nesse seu gesto insignificante, Jesus quer-nos revelar a grandeza dos pequenos gestos nos quais as pessoas se dão por inteiro. Aquela viúva é o exemplo do dom total. Deu «tudo o que possuía para viver». Literalmente: «toda a sua vida». Quanto dos nossos dons, das nossas partilhas, por mais generosas que sejam, não deixam de ser migalhas, comparados com os da viúva. Damos migalhas do que somos, do que possuímos, do nosso tempo, do nosso saber, da nossa cultura, mas não nos damos num dom total de nós mesmos. Damos com reservas, damos e damo-nos por migalhas, numa inteireza adiada. Esta é a nossa imensa pobreza comparada com a generosidade da pobre viúva.
Como esta pobre viúva nos desconcerta, nos provoca e incomoda. Como a sua incondicional generosidade nos desafia a darmo-nos por inteiro. Sem migalhas.
Pe. António Martins, XXXII Domingo do Tempo Comum