Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

Acompanhamos Jesus em seu caminho com os discípulos da Galileia para Jerusalém, onde vai viver a sua Páscoa. Percorrem o mesmo caminho geográfico, inscrevem os pés e o corpo num comum itinerário com o Senhor, avançam e descansam em conjunto, mas resistem a sintonizar interiormente com Ele. O episódio hoje narrado no evangelho de Marcos situa-se na saída de Jericó para Jerusalém, a última etapa da peregrinação pascal de Jesus com os discípulos: «Quando Jesus ia a sair de Jericó com os discípulos e uma grande multidão, estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu, a pedir esmola à beira do caminho».

Maravilha-nos a coragem e ousadia deste cego: grita do profundo da sua cegueira e da sua carência, numa súplica orante que rasga os ouvidos de Cristo: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim». Não desiste de gritar, mas grita ainda mais alto, quando o querem calar. Grita porque espera ser ouvido, grita porque só pelo seu grito de pode afirmar. A sua súplica é o último reduto da sua esperança, expressão da sua resistência, testemunho de uma humanidade não alienada nem rendida. Neste cego e pedinte nos revemos e nos interpretamos. As suas palavras dão-nos as palavras certas para gritar orando e confiando, do profundo da nossa noite e da nossa carência: «Jesus tem piedade de mim».

Há um momento, na passagem hoje lida, em que os discípulos e a multidão que segue a Cristo aderem, por inteiro, à sua palavra. Marcos assinala uma conversão comunitária; traço invulgar num evangelho que, continuamente, sublinha o desencontro dos discípulos com o Senhor. Ao ouvir o cego gritar, a multidão, num primeiro momento, quer sufocar o seu grito: «Muitos repreendiam-no para que se calasse». Ouvir o grito de dor, de aflição, de revolta, de protesto, fere-nos e desconcerta-nos. Não sabemos o que fazer. Ficamos como que paralisados. Há logo um silêncio que é imposto, um «cala-te» organizado.

Mas aquele cego não se deixa silenciar; o seu grito é a réstia da sua dignidade que não pode alienar. O seu grito chega aos ouvidos de Jesus que para para o escutar, para acolher a singularidade da sua voz, o seu desejo, a confissão da sua carência, a sua palavra tão única e tão pessoal: «Chamai-o». E basta esta palavra de disponibilidade, de acolhimento, de convocação para a escuta, para reorientar e mudar o comportamento da comunidade que agora se torna facilitadora do encontro pessoal do cego com Cristo: «Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te». De comunidade que bloqueia o acesso a Cristo, a comunidade que encoraja, comunidade que faz mediação positiva, que estimula e acolhe. Que bela e profunda expressão de conversão comunitária, que também nos desafia e questiona como comunidade.

Neste dia em que na Diocese de Lisboa tem início o processo sinodal a que o Papa Francisco convoca toda a Igreja, podemos identificar na passagem do evangelho a conversão comunitária/sinodal a que cada comunidade cristã é chamada: cumprir-se como lugar de escuta do grito dos pobres, dos excluídos, dos feridos, de todos os pedintes; ser lugar onde é possível dizer, com verdade, o que se sente, o que se pensa, o que se espera; passar de força de bloqueio no acesso a Cristo a força facilitadora do encontro e da relação pessoal com o Senhor. É a conversão evangélica que nunca cessa: as nossas comunidades cristãs são chamadas a cumprir-se como lugares onde é possível gritar, suplicar, falar com verdade, sem silenciamentos, condenações ou exclusões.

Reconheçamos, que as nossas resistências interiores, os nossos preconceitos sociais, as nossas disputas de poder, as nossas organizações eclesiásticas pesadas, as nossas normas cegas e impessoais, as nossas liturgias ritualistas e mecânicas, a nossa presença eclesial sem alma, cansada, rotineira, tornam-se bloqueio no acesso de outros a Cristo. Temos defendido mais a instituição do que as pessoas em suas dores, procuras e gritos. Reconheçamos que a frescura e a novidade da renovação conciliar foi perdendo impacto com tantas resistências e bloqueios. A primavera tornou-se um longo inverso de silêncios e medos, de palavras não ditas, de contra-reformas.

Quando somos encorajados, desejados, chamados, convocados com estima e vontade sincera de sermos ouvidos, todo o nosso ser rejubila. A nossa vida ressuscita mesmo em sua densa escuridão ou na mais profunda carência. Há uma fonte de júbilo que nos surge, inesperadamente. E basta que sejamos desejados e chamados, acolhidos e escutados. Reconhecidos em nossa própria história. Ao se saber chamado e esperado por Jesus, facilitado por aqueles que o queriam silenciar, todo o corpo do cego desperta; vê com todos os sentidos, antes de ter recuperado a vista: «O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus». Que exultação, que alegria, que libertação. Que capacidade ressuscitadora, libertadora, iluminadora pode ter uma comunidade cristã? Transportamos em nós um tesouro de vida (de graça) que tão pouco exploramos.

Precisamos de tanta generosidade e coragem para arriscar fazer acontecer este processo sinodal. Avançamos sem GPS, sem manual de instruções, sem metodologias seguras e verificadas. Tudo nos parece impreciso, pouco claro, e isso deixa-nos desconcertados. Mas aí está, precisamente, a novidade deste processo: desinstalar-nos, colocar-nos num processo sincero de escuta, de palavra dita com verdade, de partilha do risco de acreditar hoje e da fecundidade profética do evangelho. Não sabemos bem para onde vamos; e alcançar resultados concretos e operativos nem sequer é o objetivo. Vamos entrar num amplo processo de escuta, de escuta uns dos outros, de escuta do Espírito Santo que fala nas consciências e nas experiências dos crentes. Vamos convocar o sentir dos fiéis, ouvir a sua sensibilidade, o grito das suas dores, revoltas, dificuldades e esperanças.

Estamos a antecipar a Igreja do futuro, a arriscar pensar a longo prazo, a mudar mentalidades clericais estruturadas, a corrigir a passividade do laicado, a colocar a autoridades dos pastores no contexto de processos comunitários de decisão corresponsável. Não sabemos bem como fazer tudo isto. Mas vamos arriscar, vamos sonhar o futuro, vamo-nos cumprir como uma grande procissão em êxodo libertador, feita de vida partilhada, de caminho percorrido em conjunto.

Talvez possamos imaginar, com Jeremias, uma Igreja a caminho que integra coxos e cegos, mulheres grávidas portadoras de vida e mulheres que deram à luz e levam filhos nos braços. Todos estes não vão ter um caminho facilitado, ligeiro, sem obstáculos. Uns não vêem, outros tropeçam, outras são atrapalhadas pelos próprios filhos. Mas tudo isto é a beleza e a grandeza da vida, em sua diversidade, em sua pluralidade, em sua fragilidade e dificuldade.

Caminhamos, mas caminharemos sempre com a fragilidade do nosso próprio corpo. Estamos a preparar o futuro, a unirmo-nos ás gerações que hão de vir recolher, agradecidas, o que hoje semeamos em lágrimas, com medos, com inseguranças: «Os que semeiam em lágrimas recolhem com alegria».

Pe. António Martins, XXX Domingo do Tempo Comum