MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA A QUARESMA DE 20
21

«Vamos subir a Jerusalém…» (Mt 20, 18).
Quaresma: tempo para renovar fé, esperança e caridade.

 

Queridos irmãos e irmãs!

Jesus, ao anunciar aos discípulos a sua paixão, morte e ressurreição como cumprimento da vontade do Pai, desvenda-lhes o sentido profundo da sua missão e convida-os a associarem-se à mesma pela salvação do mundo.

Ao percorrer o caminho quaresmal que nos conduz às celebrações pascais, recordamos Aquele que «Se rebaixou a Si mesmo, tornando-Se obediente até à morte e morte de cruz» (Flp 2, 8). Neste tempo de conversão, renovamos a nossa fé, obtemos a «água viva» da esperança e recebemos com o coração aberto o amor de Deus que nos transforma em irmãos e irmãs em Cristo. Na noite de Páscoa, renovaremos as promessas do nosso Batismo, para renascer como mulheres e homens novos por obra e graça do Espírito Santo. Entretanto o itinerário da Quaresma, como aliás todo o caminho cristão, já está inteiramente sob a luz da Ressurreição que anima os sentimentos, atitudes e opções de quem deseja seguir a Cristo.

O jejum, a oração e a esmola – tal como são apresentados por Jesus na sua pregação (cf. Mt 6, 1-18) – são as condições para a nossa conversão e sua expressão. O caminho da pobreza e da privação (o jejum), a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola) e o diálogo filial com o Pai (a oração) permitem-nos encarnar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa.

1. A fé chama-nos a acolher a Verdade e a tornar-nos suas testemunhas diante de Deus e de todos os nossos irmãos e irmãs

Neste tempo de Quaresma, acolher e viver a Verdade manifestada em Cristo significa, antes de mais, deixar-nos alcançar pela Palavra de Deus, que nos é transmitida de geração em geração pela Igreja. Esta Verdade não é uma construção do intelecto, reservada a poucas mentes seletas, superiores ou ilustres, mas é uma mensagem que recebemos e podemos compreender graças à inteligência do coração, aberto à grandeza de Deus, que nos ama ainda antes de nós próprios tomarmos consciência disso. Esta Verdade é o próprio Cristo, que, assumindo completamente a nossa humanidade, Se fez Caminho – exigente, mas aberto a todos – que conduz à plenitude da Vida.

O jejum, vivido como experiência de privação, leva as pessoas que o praticam com simplicidade de coração a redescobrir o dom de Deus e a compreender a nossa realidade de criaturas que, feitas à sua imagem e semelhança, n’Ele encontram plena realização. Ao fazer experiência duma pobreza assumida, quem jejua faz-se pobre com os pobres e «acumula» a riqueza do amor recebido e partilhado. O jejum, assim entendido e praticado, ajuda a amar a Deus e ao próximo, pois, como ensina São Tomás de Aquino, o amor é um movimento que centra a minha atenção no outro, considerando-o como um só comigo mesmo [cf. Enc. Fratelli tutti (= FT), 93].

A Quaresma é um tempo para acreditar, ou seja, para receber a Deus na nossa vida permitindo-Lhe «fazer morada» em nós (cf. Jo 14, 23). Jejuar significa libertar a nossa existência de tudo o que a atravanca, inclusive da saturação de informações – verdadeiras ou falsas – e produtos de consumo, a fim de abrirmos as portas do nosso coração Àquele que vem a nós pobre de tudo, mas «cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14): o Filho de Deus Salvador.

2. A esperança como «água viva», que nos permite continuar o nosso caminho

A samaritana, a quem Jesus pedira de beber junto do poço, não entende quando Ele lhe diz que poderia oferecer-lhe uma «água viva» (cf. Jo 4, 10-12); e, naturalmente, a primeira coisa que lhe vem ao pensamento é a água material, ao passo que Jesus pensava no Espírito Santo, que Ele dará em abundância no Mistério Pascal e que infunde em nós a esperança que não desilude. Já quando preanuncia a sua paixão e morte, Jesus abre à esperança dizendo que «ressuscitará ao terceiro dia» (Mt 20, 19). Jesus fala-nos do futuro aberto de par em par pela misericórdia do Pai. Esperar com Ele e graças a Ele significa acreditar que, a última palavra na história, não a têm os nossos erros, as nossas violências e injustiças, nem o pecado que crucifica o Amor; significa obter do seu Coração aberto o perdão do Pai.

No contexto de preocupação em que vivemos atualmente onde tudo parece frágil e incerto, falar de esperança poderia parecer uma provocação. O tempo da Quaresma é feito para ter esperança, para voltar a dirigir o nosso olhar para a paciência de Deus, que continua a cuidar da sua Criação, não obstante nós a maltratarmos com frequência (cf. Enc. Laudato si’, 3233.4344). É ter esperança naquela reconciliação a que nos exorta apaixonadamente São Paulo: «Reconciliai-vos com Deus» (2 Cor 5, 20). Recebendo o perdão no Sacramento que está no centro do nosso processo de conversão, tornamo-nos, por nossa vez, propagadores do perdão: tendo-o recebido nós próprios, podemos oferecê-lo através da capacidade de viver um diálogo solícito e adotando um comportamento que conforta quem está ferido. O perdão de Deus, através também das nossas palavras e gestos, possibilita viver uma Páscoa de fraternidade.

Na Quaresma, estejamos mais atentos a «dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, em vez de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam» (FT, 223). Às vezes, para dar esperança, basta ser «uma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença» (FT, 224).

No recolhimento e oração silenciosa, a esperança é-nos dada como inspiração e luz interior, que ilumina desafios e opções da nossa missão; por isso mesmo, é fundamental recolher-se para rezar (cf. Mt 6, 6) e encontrar, no segredo, o Pai da ternura.

Viver uma Quaresma com esperança significa sentir que, em Jesus Cristo, somos testemunhas do tempo novo em que Deus renova todas as coisas (cf. Ap 21, 1-6), «sempre dispostos a dar a razão da [nossa] esperança a todo aquele que [no-la] peça» (1 Ped 3, 15): a razão é Cristo, que dá a sua vida na cruz e Deus ressuscita ao terceiro dia.

3. A caridade, vivida seguindo as pegadas de Cristo na atenção e compaixão por cada pessoa, é a mais alta expressão da nossa fé e da nossa esperança

A caridade alegra-se ao ver o outro crescer; e de igual modo sofre quando o encontra na angústia: sozinho, doente, sem abrigo, desprezado, necessitado… A caridade é o impulso do coração que nos faz sair de nós mesmos gerando o vínculo da partilha e da comunhão.

«A partir do “amor social”, é possível avançar para uma civilização do amor a que todos nos podemos sentir chamados. Com o seu dinamismo universal, a caridade pode construir um mundo novo, porque não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar vias eficazes de desenvolvimento para todos» (FT, 183).

A caridade é dom, que dá sentido à nossa vida e graças ao qual consideramos quem se encontra na privação como membro da nossa própria família, um amigo, um irmão. O pouco, se partilhado com amor, nunca acaba, mas transforma-se em reserva de vida e felicidade. Aconteceu assim com a farinha e o azeite da viúva de Sarepta, que oferece ao profeta Elias o bocado de pão que tinha (cf. 1 Rs 17, 7-16), e com os pães que Jesus abençoa, parte e dá aos discípulos para que os distribuam à multidão (cf. Mc 6, 30-44). O mesmo sucede com a nossa esmola, seja ela pequena ou grande, oferecida com alegria e simplicidade.

Viver uma Quaresma de caridade significa cuidar de quem se encontra em condições de sofrimento, abandono ou angústia por causa da pandemia de Covid-19. Neste contexto de grande incerteza quanto ao futuro, lembrando-nos da palavra que Deus dera ao seu Servo – «não temas, porque Eu te resgatei» (Is 43, 1) –, ofereçamos, juntamente com a nossa obra de caridade, uma palavra de confiança e façamos sentir ao outro que Deus o ama como um filho.

«Só com um olhar cujo horizonte esteja transformado pela caridade, levando-nos a perceber a dignidade do outro, é que os pobres são reconhecidos e apreciados na sua dignidade imensa, respeitados no seu estilo próprio e cultura e, por conseguinte, verdadeiramente integrados na sociedade» (FT, 187).

Queridos irmãos e irmãs, cada etapa da vida é um tempo para crer, esperar e amar. Que este apelo a viver a Quaresma como percurso de conversão, oração e partilha dos nossos bens, nos ajude a repassar, na nossa memória comunitária e pessoal, a fé que vem de Cristo vivo, a esperança animada pelo sopro do Espírito e o amor cuja fonte inexaurível é o coração misericordioso do Pai.

Que Maria, Mãe do Salvador, fiel aos pés da cruz e no coração da Igreja, nos ampare com a sua solícita presença, e a bênção do Ressuscitado nos acompanhe no caminho rumo à luz pascal.

Roma, em São João de Latrão, na Memória de São Martinho de Tours, 11 de novembro de 2020.

Francisco

D. Manuel Clemente

Homilia da Missa de Quarta-Feira de Cinzas e Mensagem para a Quaresma de 2021

Uma Quaresma que nos leve à Páscoa

«Diz agora o Senhor: “Convertei-vos a Mim de todo o coração”. Convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque Ele é clemente e compassivo, paciente e misericordioso». Lembrando tudo o mais – o que cantámos no Salmo, o que ouvimos a Paulo e o Evangelho que ressoa – fixemo-nos hoje no trecho de Joel, escolhido para inaugurar este tempo de graça. Da graça da conversão, ou seja, a que mais importa. Especialmente quando a pandemia nos confina fisicamente, mas não nos fecha o coração.
 “- Convertei-vos ao Senhor vosso Deus!” Enuncia-se num instante e requer uma vida inteira para se realizar plenamente, de Quaresma em Quaresma, mais e sempre mais, em totalidade e consequência. Um programa que não se esgota em quarenta dias, mas com eles há de avançar. Assim mesmo acompanharemos quantos sofreram e sofrem com a presente pandemia, bem como os que abnegadamente trabalham para a debelar, no setor da saúde e na sociedade em geral.
Conversão que nada tem de abstrato, bem pelo contrário. Para quem aceita a revelação divina, como em Cristo se conclui, ganha uma dimensão unitrinitária e caritativa bem definida e precisa.

– De que Deus falamos, para a Ele nos convertermos, em Quaresma autêntica? Como professamos no Credo, começa por ser “Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”. Aceitá-Lo assim, significa aceitar-nos a nós como suas criaturas, correspondendo a este facto basilar, com toda a consequência espiritual e prática. 
Estamos aqui, porque neste preciso momento Deus nos mantém vivos e nos quer consigo. Vivos para vivermos e convivermos com os outros e a criação inteira, tomando-a como obra divina e dom do Criador. É esse o primeiro mandamento bíblico, convém lembrar: «O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também para o guardar» (Gn 2, 15). Mandamento muito mal cumprido, infelizmente, mas nem por isso olvidável – e muito menos agora, com a urgência ecológica que sobre nós impende.
A conversão a Deus criador passa antes de mais por respeitar a sua obra e viver em ação de graças. É exatamente o contrário da concupiscência destrutiva, que tudo quer capturar e esgotar em si mesma. Lembremos a magnífica afirmação de Santo Ireneu, sobre o arco completo duma criação realizada, de Deus para nós e de nós para Deus: «A glória de Deus é o homem vivo e a vida do homem é a visão de Deus». Sim, a nossa vida manifesta o poder criador de Deus, a sua glória. Mas não se conclui nem basta em cada um, antes no retorno à Fonte comum de tudo e todos, só em Deus contemplável.
Os motivos quaresmais do jejum, da esmola e da oração, não são meros exercícios ascéticos, aliás presentes na religiosidade em geral e até além desta. Quando o próprio Jesus nos recomenda discrição em tudo isso, quer alertar-nos para a exterioridade que nada resolve e geralmente despista. Sobriedade e partilha, autenticamente vividas, desprendem-nos de gulas e cobiças que não nos educam no gosto de Deus, nem nos libertam de egoísmos fatais. Um e outro, jejum e esmola, levam-nos à oração cristã, como o “Pai Nosso” a ensina.
Escreve-nos o Papa Francisco, na Mensagem em que nos apresenta esta Quaresma como “tempo para renovar a fé, a esperança e a caridade”: «O jejum, a oração e a esmola – tal como são apresentados por Jesus na sua pregação (cf. Mt 6, 1-18) – são as condições para a nossa conversão e sua expressão. O caminho da pobreza e da privação (o jejum), a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido (a esmola) e o diálogo filial com o Pai (a oração) permitem-nos encarnar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa».
Crer em Deus criador significa, neste tempo que nos cabe e justamente preocupa, estar sempre do lado da vida de todos e de cada um, reconhecendo-lhe o valor absoluto que detém do próprio Deus. E protegendo-a em todo o seu percurso, do ventre materno à morte natural.
A inviolabilidade da vida humana é a única garantia da sua defesa, face a qualquer exceção que, mesmo legalmente autorizada, rapidamente deslizaria para a respetiva negação. Nesta mesma Quaresma e na sociedade que integramos, a conversão a Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, exige-nos atitudes firmes neste ponto, face a eventuais disposições legais e quanto à consciência que as examina e supera.
Assim começámos há dois mil anos, aliás com outros, e assim estamos prontos a recomeçar agora, com muitos outros também, confessionais ou não. É uma frente comum de humanidade cuidadora e paliativa. Também neste ponto vale a exortação de São Pedro às primeiras gerações cristãs: «[Estai] sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito, mantendo limpa a consciência…» (1 Pe 3, 15-16).     

Conversão a Deus, nesta Quaresma agora, traduz-se igualmente, retomando o Credo, em acreditar em “Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor». Deus diz-Se e comunica-Se inteiramente em Cristo, sua Palavra incarnada, na humanidade que o sim de Maria lhe deu. Assim mesmo compartilhou a condição humana, sobretudo nos dramas e tragédias que tanto contrariam a criação divina.

“Até à morte e morte de cruz” (cf. Fl 2, 8): Morte e cruz que, sendo nossas, foram por Ele assumidas, para as preencher com a sua vida. Foi assim que a Palavra criadora se tornou redentora, redizendo-nos perfeitamente segundo Deus. Por isso ressuscitou e nos ressuscita agora, no cumprimento batismal de cada um.
Presença que a nossa conversão reconhece e acolhe na humanidade em que se alarga. Esclarece o mesmo Evangelho como há de acontecer pela positiva: «Porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo» (Mt 25, 35-36). Se cada um traduzir esta atitude, no que concretamente lhe couber, aí mesmo realizará a mais perfeita Quaresma.

Conversão é também, continua o Credo, a Deus Espírito Santo
, que nos inclui na relação de Cristo com o Pai, em perfeita comunhão. Espírito que nos fará compreender o que Cristo é e como prometeu: «Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há de guiar-vos para a Verdade completa. […] Ele há de manifestar a minha glória, porque receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso é que eu disse: “Receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer”» (Jo 16, 12-15).
Sim, converter-se a Deus é aceitá-Lo como Ele próprio se revela: Pai criador, que nos recria no Filho, em quem inteiramente se diz na humanidade que somos e havemos de ser; Espírito que nos dá, para que a vida divina seja nossa também.
– Que importante será, se nesta Quaresma deixarmos o Espírito “conduzir-nos ao deserto”, como o fez a Jesus (cf. Mt 4, 1), para mais nos convertermos à palavra do Pai e à sua exclusiva adoração! Mesmo quando o dia-a-dia nos atém aos espaços habituais – ainda mais confinados pela presente pandemia –, o “deserto” bíblico assinala o íntimo lugar das escolhas radicais, onde a liberdade e a caridade simultaneamente despontam.
Jejum, esmola e oração, ganham aqui o sentido perfeito. No alimento essencial que Deus é e oferece, relativizando tudo o mais; na partilha com que cada um garante o necessário a todos; na oração que nos mantém na verdade absoluta de sermos de Deus e para Deus. – É assim, só assim, que esta Quaresma nos levará à Páscoa!

Sé de Lisboa, Quarta-Feira de Cinzas, 17 de fevereiro de 2021

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Caminhar juntos para a Páscoa – reflexão da Comissão Nacional de Justiça e Paz

Eis-nos de novo na Quaresma e o Papa Francisco convida-nos a juntarmo-nos a Jesus que nos diz: «Vamos subir a Jerusalém…».

A Quaresma é sempre um tempo especial, mas esta apresenta-se com uma nova fisionomia, apresenta-se carregada de medos num caminho armadilhado e por isso a tentação de desistir da caminhada é grande. Na sua Mensagem, no entanto, o Papa diz-nos que é um «tempo para renovar fé, esperança e caridade». Subir a Jerusalém é ir ao encontro da Páscoa.

Subir a Jerusalém é um caminho a percorrer e podemos fazê-lo juntos no desafio da comunhão e assim «recebemos com o coração aberto o amor de Deus que nos transforma em irmãos e irmãs em Cristo».

O trajeto do tempo presente, o troço que nos propomos calcorrear, tem vários encontros à nossa espera. É uma subida com «a luz da Ressurreição que anima os sentimentos, atitudes e opções» e se orienta pelos marcos da fé, esperança e caridade.

1. A fé chama-nos a acolher a Verdade e a tornar-nos suas testemunhas diante de Deus e de todos os nossos irmãos e irmãs 

«A fé não resolve a nossa sede.

Muitas vezes intensifica-a, destapa-a e,

em algumas circunstâncias,

torna-a até mais dramática.

Mas a fé ajuda-nos a ver na sede

Uma forma de caminho e de oração».

Tolentino Mendonça, in Elogio da Sede

 

Neste tempo de Quaresma, acolher e viver a Verdade manifestada em Cristo leva-nos a acreditar no caminho. É neste caminho que «o jejum, vivido como experiência de privação» por um valor maior, «leva, a quem o pratica com simplicidade de coração, a redescobrir o dom de Deus e a compreender a nossa realidade de criaturas que, feitas à sua imagem e semelhança, n’Ele encontram plena realização». O amor é um movimento que centra a minha atenção no outro, considerando-o como um só comigo mesmo.

É o tempo de «acolher e viver a verdade», de dar espaço, fazer o vazio para acolher.

E não nos falta quem acolher. Na nossa fragilidade de criaturas, somos desafiados a acolher a vida com as suas fragilidades, sem pretensões a super-heróis. Mas este processo faz parte do caminho, desta subida que não se satisfaz com um verniz espiritual. Exige que se viva uma espiritualidade com coerência e realismo. E não falta onde meter as mãos: quantas realidades sociais carecem de ações que promovam uma efetiva subsidiariedade que ultrapasse o domínio despótico dos mercados de capitais e dos lucros que olha com desdém para os trabalhadores que vivem na incerteza e na penúria, em que a economia não é capaz de dar o devido valor à pessoa! É um desafio nesta caminhada para, com consciência, dar maior atenção e valorização à economia social, para que esta não seja mero adereço para momentos de aflição extrema.

É tempo de «acolher e viver a verdade» diante dos idosos e inverter o paradigma social. Neste tempo favorável somos chamados a acolher cada idoso como um presente de Deus que nesta pandemia eleva um grito silencioso, mas angustiante, questiona e exige uma outra resposta, pois não nos falta engenho. Com gratidão pela vida, precisamos de desenhar uma nova proximidade, onde a institucionalização não pode ser resposta única nem primeira.

«A eliminação dos idosos da vida da família e da sociedade representa a expressão de um processo perverso em que já não existe a gratuidade, a generosidade, aquela riqueza de sentimentos que fazem com que a vida não seja apenas um dar e receber… Eliminar os idosos é uma maldição que muitas vezes esta nossa sociedade se autoinflige»[1].

Por isso, a atenção materna da Igreja que recentemente nos alerta: «Existe, antes de tudo, o dever de criar as melhores condições para que os idosos possam viver esta fase particular da vida, tanto quanto possível, no seu ambiente familiar, com as amizades habituais», diz o documento recentemente publicado pela Academia Pontifícia para a Vida[2].

É preciso tempo de «acolher e viver a verdade», para acolher a solidão e o isolamento, convidando todos a ver mais além a verdadeira provocação da vida.

É preciso tempo, um tempo onde a fé da criatura mergulha na relação íntima com o seu Criador. «E o Senhor está ali, … dar-nos-á a palavra certa, o conselho para ir em frente sem aquele sumo amargo do negativo. Porque a oração, usando uma palavra profana, é sempre positiva. Sempre! Leva-te em frente»[3] – são palavras do Papa Francisco.

2. A esperança como «água viva», que nos permite continuar o nosso caminho

«Tudo à nossa volta parece agitado

por um tremor que nos faz inseguros, pessimistas,

à espera de um grande sismo;

e é enorme a tentação de exclamar

“que não há onde firmar pé”.

Hoje quero ver para além do nevoeiro ou das trevas,

olhando para a nascente, onde a esperança está limpa,

sem os afluentes poluídos do caminho».

João Aguiar Campos, in Circunstâncias

 

É o tempo da «esperança que não desilude». A subida a Jerusalém carrega o anúncio da paixão e morte de Jesus, mas é um caminho que desemboca na Ressurreição.

A vida no mundo carrega preocupações e canseiras. Basta olharmos para a educação e a saúde. Sentimos entre as mãos fragilidades e incertezas.

Mas é agarrados a esta «esperança que não desilude» que podemos com desprendimento olhar a educação e perceber que é nela que se joga o futuro de um povo e que ela não pode ser reduzida a jogos de poder, a números semelhantes a bolas de sabão, a querer resultados sem olhar a meios.

Continuamos a perceber guerras por quinhões educativos, por querer fazer da educação um instrumento onde os experimentalismos se expandem como cogumelos em inverno chuvoso.

Mais do que parece, não há verdadeiro empenho educativo. São necessários horizontes de sonho e capacidade para fazer germinar processos educativos que verdadeiramente promovam a capacidade de enfrentar o ‘novo’ e olhar para as inevitáveis dificuldades da vida como possibilidades de melhor e mais além.

«Falar de esperança – escreve o Papa na sua mensagem – no contexto de preocupação em que vivemos atualmente onde tudo parece frágil e incerto, poderia parecer uma provocação».

Mas estamos no tempo da esperança e a vida não está num ecrã.

E com o olhar de esperança também olhamos para a saúde com preocupação. Não nos podemos resignar aos efeitos mágicos diariamente exibidos de números, gráficos e imagens que parecem vindas de um qualquer filme de ficção. A saúde são pessoas. A saúde é Covid-19, mas é cancro e tantas outras doenças que apoquentam muitas pessoas, principalmente as mais pobres.

E depois não nos podemos escandalizar e rasgar as vestes diante do despontar de fenómenos de timbre populista.

Neste tempo da «esperança que não desilude» espera-se a capacidade de tocar as feridas para ajudar a sarar e não para provocar a dor, espera-se encontrar soluções efetivas e não placebos que adiem para um amanhã incerto. É que a frescura da esperança «ilumina desafios e opções da nossa missão».

Este é o tempo da «esperança que não desilude» olhando também para as feridas da criação. Somos convocados a cuidar das preciosidades desta Terra que se deleita com o mar e as serras, as florestas e os rios, as planuras e todas as intervenções antrópicas… Precisamos da consciência dos limites da finitude dos recursos, das respostas imperfeitas que a tecnologia oferece, dos limites que fazem parte intrínseca da criação e, ao mesmo tempo, são desafios à superação.

Neste caminho de subida para Jerusalém, precisamos de companheiros de viagem para este itinerário de amor, aquele Amor que é timbre da criação, e podermos ser «testemunhas do tempo novo em que Deus renova todas as coisas», diz o Papa.

E a Ressurreição é o maior sinal da esperança.

3. A caridade, vivida seguindo as pegadas de Cristo na atenção e compaixão por cada pessoa, é a mais alta expressão da nossa fé e da nossa esperança 

«Para curar as feridas profundas das relações primárias da nossa vida (“a fraternidade”),

temos uma necessidade vital do tempo.

Não nos reconciliamos verdadeiramente se não permitirmos

que a dor-amor entre até à medula da relação doente,

seja absorvida e lentamente a cure.

São sobretudo necessárias ações que digam,

com a linguagem do comportamento, que queremos realmente recomeçar».

Luigino Bruni, in Redescobrir a Árvores da Vida

 

«A caridade… é a mais alta expressão da nossa fé e da nossa esperança», não é assistencialismo, mas é um dom que gera fraternidade. Este caminho chama-se fraternidade e carrega um amor que tem mangas arregaçadas para agir.

Assim, cada um pode ser aquela retaguarda que multiplica os locais dos milagres de fraternidade, nas escolas, nos hospitais, nos lares, nas famílias…

E as famílias, precisamente pelo amor recíproco, podem merecer a presença de Jesus, tornando-se Igreja doméstica, cenáculo e escola de humanidade. Não foi assim no início do cristianismo? Neste caminho para a Páscoa podemos multiplicar os pontos de luz acolhendo Jesus e, como a semente que morre, assim germinará uma nova primavera para a Igreja e para a Humanidade.

É a expressão da caridade que pode dar ao progresso científico o sentido do verdadeiro serviço à vida sem colocar condições.

A fraternidade não pode reduzir-se a um simples exercício de palavras, ou a um elemento decorativo fazendo companhia à liberdade e à igualdade. É necessária uma humildade desarmante que suja as mãos na história, que na vida quotidiana vive o tempo, é criativa, tem a arte da hospitalidade, é amiga.

A mensagem do Papa não se limita a cada um, mas alarga o amor alertando-nos que «a partir do “amor social”, é possível avançar para uma civilização do amor».

É uma subida que pode ser íngreme e causar desânimos, mas desafia à coragem de arriscar e, nesta Quaresma especial, reclama sairmos de nós e ir ao encontro com um telefonema, uma refeição levada à porta daquela pessoa que está só, uma conversa usando as novas tecnologias disponíveis para nos alegrarmos com o bem que não é notícia e partilha as agruras dolorosas entre os escombros da solidão, da doença, do abandono, da miséria, da escuridão da alma, da morte.

Diante dos desafios, não temos limites e fazemos o caminho até ao fim para que ninguém sucumba à tentação de desistir. A beleza da comunhão ajudar-nos-á no aprofundamento dos afetos, na vivência do perdão, na regeneração das relações para sermos coerentes, resilientes e criativos.

A caridade é um dom que bate ao nosso coração.

E a grande dor deste momento presente não é o vírus, mas o isolamento, porque nos tira o timbre trinitário da relação. E a subida a Jerusalém é feita de relações, relação criatura-Criador, relação entre nós e relação com a criação. É que em Jerusalém haverá a Ressurreição com novos Céus e nova Terra.

E se virmos ‘aquele’ brilho dos olhos, então é porque o Paraíso não está longe, mas entre nós.

 

Comissão Nacional Justiça e Paz

17 de fevereiro de 2021

 


[1] J.M. Bergoglio, Solo l’amore ci può salvare, LEV, Città del Vaticano 2013, p. 83.

[2] Documento da Academia Pontifícia para a Vida: “A velhice: o nosso futuro. A condição dos idosos depois da pandemia”, 9 de fevereiro de 2021.

[3] Papa Francisco, Audiência Geral, 10 de fevereiro de 2021.