Queridas Irmãs Queridos Irmãos Como num preciso guião de uma bela narrativa cinematrográfica, pelo relato de Lucas também vemos e imaginamos acontecer (manifestar-se) diante de nós, no ecrã da nossa consciência, do nosso imaginário, nos recantos mais profundos do nosso ser, o nascimento do Jesus. Um grande cenário, um grande plano, os senhores do mundo decidindo nas capitais os destinos do império com critério quantitativos, na frieza burocrática e impessoal das administrações políticas: «saiu um decreto de César Augusto, para ser recenseada toda a terra». E logo a atenção, a concentração no concreto, no drama de uma família anónima, de uma remota região do império, a Galileia, em deslocação, fora de sítio, fora de lugar, sem lugar próprio, fora da sua casa: «José subiu também da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e da descendência de David, a fim de se recensear com Maria, sua esposa, que estava para ser mãe». E é nesse contraste entre as impessoais decisões políticas e as humanas e tão concretas decisões familiares, de adaptação, de deslocação, de precaridade de recursos, que o natal de Jesus acontece. Sempre insólito, periférico, nas margens, fora de sítio, o natal de um sem lugar, Na origem da humanidade de Cristo, está um lugar que não é casa próprio, nem casa humana, nem casa confortável: Enquanto ali se encontravam, chegou o dia de ela dar à luz e teve o seu Filho primogénito. Envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria». Mesmo o nosso Natal deste ano, reduzido, concentrado, devolvido ao essencial, sem grandes reuniões familiares, sem encontros alargados, ainda será um Natal que, no modo, pouco tem do natal de Cristo. Por mais festa, celebração, presépio criativos, finas toalhas de meda, belos arranjos florais e decorações adequadas, o nosso natal tão requintado, elegante, mesmo na versão sóbria deste ano, é ainda um natal muito distante do Natal de Cristo. Perguntamos: se não domesticamos o Natal, se não despojamos o Natal da sua essencialidade e marginalidade tipicamente cristãs? O Natal que chegada a nós, festa da Família, na sua origem não tem uma família em festa, mas uma família em dores de parto, a aflição de uma mãe a dar a luz num lugar estranho, fora de sítio, de lugar próprio. Como será possível celebrar um natal autenticamente cristão sem encontro com a fragilidade do humano, com o incómodo, o estranho, o sem lugar, sem teto, sem casa, sem família, sem festa, sem brinquedos?… «Envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura». A manjedoura, lugar/recipiente onde os animais comem. Uma manjedoura com palha o primeiro berço do Menino: que poético, que insólito, que estranho! A estranha poesia do nosso Deus que se faz Menino e vem frágil ao nosso encontro, para nos encontrar e abraçar na fragilidade da nossa humanidade. Mas nesse seu ser deitado numa manjedoura já está um destino do seu dar-se em alimento, do seu dar vida: «Isto é o meu corpo que é para vós: tomai e comei». «Eu vim para que tenham a vida e a tenham em abundância». Antecipação poética e teológica da sua páscoa, do seu modo de se dar todo, por inteiro, até ao fim, amando e servindo. Para que tenhamos vida do dom da sua vida. «Envolto em faixas» a anunciar o futuro sudário, a sua mortalha; naquele menino deitado na manjedoura, pela narrativa de Lucas, já toda o seu destino, toda a sua missão antecipados. A manjedoura assinala a proximidade de animais, que aquele lugar era habitado por animais. Um estábulo? Uma gruta, nas proximidades de Belém, ondo o gado dos pastores se recolhe?… Assim se vai criando esse magnífico poema da tradição cristã que é o Presépio, uma espécie de conto de crianças que todos os anos se refaz, se narra, se desenrola e se desarruma, se imagina de novo, e se monta figura a figura. Pelas nossas mãos a narrativa do Natal toma vida, habita as nossas casas, é reinventada no nosso imaginário, e com magia e ternura recriada a um canto, sobre um móvel de nossas casas. A significar que aquele que nasceu num não lugar, continua a procurar um lugar para nascer em nós. A procurar um lugar em nós, um lugar na nossa casa. E todo um conto imaginário e de fantasia se vai desenvolvendo, a partir dos relatos evangélicos, acrescentando pela fantasia criativa dos apócrifos cristãos, que completaram a escassez de informação dos evangelhos com curiosos e fantasiosos relatos imaginários. A fantasia foi-se acrescentando na história da narrativa do nascimento de Jesus. Pelo século VI, um evangelho apócrifo chamado pseudo-Mateus (falsamente atribuído a Mateus) narra o nascimento de Jesus tendo dois animais a seu lado, o boi e o jumento. Fá-lo a partir do profeta Isaías que narra «o boi conhece o seu dono e o jumento, a manjedoura do seu senhor» (Is 1,3) e da versão grega do profeta Habacuc que apresenta a futura manifestação de Deus no meio de dois animais (Hab 1,3). No meio de dois animais… então cruzando Habacuc com Isaías vem a identidade dos animais do presépio, o boi e o jumento. Ao longo da história o boi mudou de sexo e passou a vaca; o burro manteve-se burro. Esta era a história à qual S. Francisco de Assis deu vida ao Presépio na noite de Natal de 1223, em Greggio, mandando trazer o boi, o burro e muita palha. Mas há ainda outra profecia que pode inspirar uma infinita criatividade de Presépio, também do profeta Isaías. O poeta profeta Isaías, com a suas belas narrativas das profecias messiânicas, inspira em nós a utopia e a fantasia. Dele é a idealização do futuro príncipe esperado, o menino que a jovem donzela vai dar à luz, o filho que nos foi dado: « Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado. Tem o poder sobre os ombros e será chamado «Conselheiro admirável, Deus forte,Pai eterno, Príncipe da paz».Nesses tempos messiânicos vindouros, espera-se o cumprimento do desejo de paz entre os povos: «quebrarão as suas espadas, transformando-as em relhas de arado, e suas lanças, a fim de fazerem podadeiras. Uma nação não levantará a espada contra a outra» (Is 2,4). Do mesmo Isaías profeta e poeta a passagem que lemos na primeira leitura: « Todo o calçado ruidoso da guerra e toda a veste manchada de sangue serão lançados ao fogo e tornar-se-ão pasto das chamas». Esta paz messiânica, que a tradição cristã vê cumprida em Cristo, não é apenas entre povos, entre seres humanos de origens diferentes reconciliados. Alaga-se a todas as criaturas, é uma paz e uma reconciliação que supera a inimizade predadora entre animais ferozes (agressores e predadores) e animais indefesos (as vítimas): «Então o lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso, e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente» (Is 11, 6-8). Sonho poético impossível de se cumprir, pois o lobo e o leão não mudarão a sua natureza de predadores, e a vaca e o cabrito continuarão a ser vítimas. Mas com esta linguagem se profetiza uma paz alargada a toda a criação. Uma reconciliação plena entre agressores e vítimas, uma superação dos contrários e da violência da própria natureza. «O Menino que mete a mão na toca da serpente» é a profecia de Cristo, aquele que reconcilia todas as criaturas do universo, como nos diz S. Paulo: «Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo» (Gl 4,28), «reconciliar por Ele e para Ele todos os seres, os da terra e dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz» (Col 1,19-20). O Príncipe da Paz: paz nos corações pacificados, reconciliados, paz entre seres humanos, entre os povos, paz na criação inteira, entre o leão e o cordeiro, o Menino e a serpente. O nascimento deste Príncipe pacificador de todos os seres humanos, de todos os animais, dos seres humanos com os animais celebramos nestas noite: «Glória a Deus na alturas e paz na terra aos homens que ele ama». Pe. António Martins, Missa do Galo