Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

Iniciamos a celebração deste IV Domingo do Advento com essa sublime obra prima do canto gregoriano: «Rorate caeli desuper… Derramai, ó céus, o vosso orvalho do alto, e as nuvens chovam o Justo». Mesmo não atendo acesso imediato à letra na precisão do latim de S. Jerónimo, fomos envolvidos pela sua doçura melódica. É um cântico de súplica, de quem dá voz à desolação de um povo, sufocado pela opressão: «Sião tornou-se deserta; Jerusalém está desolada»; «olhai, Senhor, para a aflição do vosso povo».

Mas também um cântico de uma profunda e intensa esperança na ação libertadora de Deus: «que Ele retire o jugo do nosso cativeiro». A melodia inspira-se na versão latina do profeta Isaías. Recordamos a passagem que já ouvimos no I Domingo do Advento: «Consolai, consolai o meu povo (…) dizei-lhe em alta voz que terminaram os seus trabalhos». Com estas palavras também nós damos expressão, no canto ou no silêncio que acolhe, à nossa presente desolação, à dor e inquietação que nos atravessam, à esperança confiante no futuro que nos anima e encoraja. Porque o «presente jugo do nosso cativeiro» será terminado.

Voltamos a ler, neste domingo, o relato de Lucas da Anunciação. Em Maria se recolhe e se expressa toda a esperança do povo de Israel. Deus não abandona o seu povo. A partir das suas entranhas de jovem mulher fecunda, Maria acolhe e dá carne da sua carne ao Filho de Deus feito homem. Jesus recebe corpo do corpo de Maria. Podemos estabelecer uma analogia entre o texto de Rorate caeli desuper e a narrativa da Anunciação. Diz-nos a letra do cântico a partir da tradução latina: «as nuvens chovam o Justo, abra-se a terra e germine o Salvador». A terra mãe, em sua fecundidade, fazer germinar em seu seio o Salvador; mas a terra para ser fértil precisa que as nuvens derramem a sua chuva. Também em Maria, qual terra virgem fecunda, a nuvem/sombra do Espírito derrama a sua fecundidade: «Conceberás e darás à luz um Filho, a quem porás o nome de Jesus»; «O Espírito Santo virá sobre ti
e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra».

«Conceberás e darás à luz um Filho»: Esta promessa, esta provocação não são ditas apenas a Maria; é dito a toda a Igreja, a cada um e a cada uma de nós. Cristo continua a nascer em nós, a precisar de mãe para ser gerado em nós, de manjedoura para para nascer. Deus continua a procurar «mães» para dar carne da nossa carne a seu Filho, para gerá-lo em nós. Dizia o dominicano Mestre Eckhart, no século XIV: «O Pai gera o Filho na [nossa] alma» (Ser. 4)». Deus tem todo o prazer de conceber o seu Filho em nós e que nós tenhamos o prazer em consentir conceber em nós «com Ele o mesmo Filho» (Ser 59). Pela fecundidade do Espírito, o Pai gera continuamente o Filho em nós, em cada um de nós. A maternidade de Maria, a sua hospitalidade e fecundidade no feminino, é condição de toda a Igreja, de cada crente. Somos todos portadores de uma feminilidade, de uma identidade mariana, acolhedora e generativa da vida.

O sim inteiro de Maria é expressão última de uma liberdade que coloca questões, que interroga, que pergunta como é possível: «Como será isto, se eu não conheço homem?» Pelas suas condições de jovem mulher ainda noiva, por si só, pelos limites e possibilidades da sua realidade, Maria não compreende a viabilidade do caminho dessa maternidade insólita, fora da norma e da lei geral da natureza. «Como será possível?», dizemos também nós, vezes sem conta, na estreiteza de uma realidade que nos oprime, nos fere e nos limita; quando não se vislumbram as estradas do futuro. Os porquês, os medos, as dúvidas, o sincero questionamento de Maria dão lugar a uma inteira disponibilidade, a uma entrega sem reservas: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra».

Queridas Irmãs e queridos Irmãos, por mim falo e creio falar em nome de toda a humanidade: a coisa mais difícil da vida é deixar que outros façam em nós, é deixarmo-nos fazer por outros. Porque esse «fazer» traz sempre um desafazer dos nossos projetos, perda de poder, uma renuncia ao auto-controle, a ser dono (ou dona) do próprio corpo. E, todavia, vamos percebendo, a custo, que há um fazer em nós que não depende de nós, que vem a nós na surpresa dos acontecimentos, contra a nossa vontade, em contradição com os nossos desejos. O grande trabalho interior (custoso) é acolher a realidade que acontece, abraçá-la e consenti-la. E com uma liberdade de inteira confiança também dizer do profundo de nós próprios: «Faça-se em mim». Por aí passa a nossa reconciliação com o que nos acontece, com as surpresas inesperadas da vida.

Temos hoje o raro privilégio de celebramos a eucaristia com canto da tradição gregoriana e da polifonia da renascença. O canto, aqui interpretado, é devolvido ao seu lugar originário próprio, a celebração da eucaristia. Em meu nome e em nome da Comunidade do Rato, agradeço a generosidade do Coro dos Amigos do Conservatório de Nacional, dirigido pelo maestro e compositor Luís Lopes Cardoso. É motivo de alegria para todos nós. E para os membros do coro talvez seja ainda maior, tal foi o incontido entusiasmo com que prepararam a sua presença e participação. Todos sabemos que os coros, as orquestras, o teatro, a cultura, têm sido os grandes sacrificados nesta pandemia. E ninguém tem falado deles. Há artistas e músicos a passar por precárias condições de vida que não são notícia.

Esta oportunidade que acolhi com inteiro agrado, e também algum receio – confesso -, é uma forma da Comunidade do Rato se solidarizar com os artistas e de lhes dar espaço e hospitalidade. E de continuar a se cumprir como lugar de encontro entre a fé e a cultura, procurando na beleza expressar a própria fé, em Deus e no humano. Os artistas, disse-o o Concílio Vaticano II, são aliados da experiência cristã, porque têm «ajudado a Igreja a traduzir a sua divina mensagem na linguagem das formas e das figuras, a tornar percetível o mundo invisível». Poetas, escritores, escultores, pintores, arquitetos, músicos, homens e mulher do teatro, cineastas…, «se sois amigos da arte, sois nossos amigos». Pela beleza e pela arte assim se cria e se recria uma fraterna amizade.

Percebemos talvez com maior clareza, neste tempo de pandemia, a afirmação do Concílio: «o mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero». Precisamos da vossa inspiração e criatividade para não desesperamos, para encontramos sentido nos dramas do nosso quotidiano, para nos elevarmos e não sermos devorados pelo horror do mal. Pela voz, pelas vossas mãos, entra e se transfigura a nossa revolta, o nosso protesto, as nossas lágrimas, a nossa alegria, a nossa fraternidade desinteressada, as epifanias de bondade e de beleza que vamos recebendo inesperadamente. A vossa arte inspirada é cura para as feridas da nossa alma, consolo para as nossas desolações, transfiguração da nossa dor.

A todos vós a nossa gratidão.

Pe. António Martins, IV Domingo do Advento

PAUSA ESTIVAL

A Capela do Rato encontra-se em pausa estival, reabrindo a 15 de setembro, com a Eucaristia às 11h30.

You have Successfully Subscribed!