Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

Tivemos esta semana a notícia consoladora de que as vacinas começam a ser distribuídas e, assim se espera, dentro de seis meses metade da população já poderá estar imunizada. Começa-se a ver um princípio de luz num longo e demorado túnel. É uma boa notícia que a todos nos encoraja. Só podemos agora esperar que se cumpra uma rigorosa distribuição para todos da vacina, tendo como prioridade os mais idosos, os mais vulneráveis, os mais expostos ao risco de contágio.

Perante esta boa notícia, não deixamos de encontrar um eco atualizado das palavras que Deus dirige ao povo através do profeta: «Consolai, consolai o meu povo. Falai ao coração de Jerusalém e diz-lhe em alta voz que terminaram os seus trabalhos». Também nós precisamos de palavras que nos consolem na desolação, nesta dureza prolongada que nos está a exigir tantos sacrifícios pessoais, familiares, económicos.

O contexto histórico do texto da primeira leitura (do profeta Isaías) é o regresso à pátria do Povo de Deus exilado em Babilónia. Esse exílio foi vivido como um tempo de profunda crise de identidade nacional (não tinham terra, nem templo, nem realeza, nem sacerdócio…), de fé (o Deus fiel da Aliança está agora silencioso e inoperante) e de profunda desolação: nem cantar eram capazes: «Nos salgueiros que ali estavam penduramos as nossas harpas» (Sl 137,2); gritavam de raiva imprecações contra o agressor.

Mas diz o povo em sua sabedoria concreta, forjada no tempo: «Não há bem que sempre dure nem mal que não se acabe». A história humana avança na impermanência; a vida, em sua plasticidade, altera-se, as circunstâncias mudam. Onde havia obstáculos passa a haver oportunidades. O que parecia o fim dá lugar a um novo começo. Na aridez desoladora e sequiosa do deserto rasgam-se inesperados caminhos de vida: «Preparai no deserto o caminho do Senhor, abri na estepe uma estrada para o nosso Deus».

Precisamente aí, no deserto. Não na abundância verdejante das margens dos rios, nos vales férteis pelas inundações, nos terrenos bem irrigados, mas nos lugares de desolação, onde a vida vegetal e animal resiste e luta pela sobrevivência com adversidade da falta de água. É aí nesta geografia de resistência e de provação, nesse lugar espiritual exposto a todas as tentações, que o futuro recomeça e o povo refaz o caminho do regresso à pátria.

A estepe é a zona de transição entre o deserto e a floresta húmida, o caminho necessário a percorrer de um lugar a outro; a estepe é a passagem, a travessia, o caminho da páscoa. Na estepe há escassez de chuvas a vegetação é rasteira e resistente. A criação de gado é difícil, porque as pastagens secam depressa. Vive-se em permanente itinerância nómada. E nós somos esses nómadas confinados na estepe de um tempo de passagem, este que estamos todos a atravessar, como sabemos e podemos. A estepe bem pode ser o símbolo desta viagem que todos estamos a fazer: «Abri na estepe uma estrada para o nosso Deus».

Como havemos nós de acolher hoje esta interpelação? O que Deus nos quererá pedir com esta linguagem simbólica, esta profecia poética aberta? O deserto e a estepe são regiões geográficas áridas, de escassez de água. Mas podem ser as palavras com as quais damos nome à experiência e travessia interior que estamos a viver. São os nomes para os nossos estados de alma, os nossos sentimentos de desolação, de aridez, esta transição custosa entre um passado perdido e um futuro desconhecido que estamos todos, cada um a seu modo, a atravessar. Faz-nos sentido o apelo do profeta: «Abri na estepe uma estrada para o nosso Deus».

Reconhecemos, com a linguagem profética e poética de Isaías, que a nossa vida está confinada por tantos «vales» e «montes» de distanciamento. Vivemos numa bolha de segurança e bem-estar. O nosso confinamento, com os seus custos, acaba por ser, de certo modo, «dourado», comparado com o daqueles que todos os dias têm de se deslocar, em transportes públicos, aos seus lugares de trabalho. Pelo nosso percurso académico, empresarial, administrativo situamo-nos nas elites: isso não é um título a exibir mas uma responsabilidade social a exercitar: «A quem muito foi dado, muito será pedido» (Lc 12,39).

Abrir na estepe uma estrada para o nosso Deus é abrirmo-nos às necessidades dos que estão sós, dos mais fragilizados, com o agravamento neste tempo de pandemia. É vivermos atentos às necessidades daqueles e daquelas que são nossos empregados, que vêm de longe prestar o seu trabalho, têm rendimentos familiares baixos. Nas empresas, com o tecido económico mais fragilizado, os eventuais cortes salariais têm de se aplicar, em igual proporção, às chefias. Porque o exemplo vem de cima.

Lemos hoje o começo do evangelho de Marcos: «Início do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus». Assim começa o texto, com esta frase primeira, sem tempo, nem espaço. Mas com que densidade: tudo começa com uma «boa notícia», um «evangelho». Essa «boa notícia» inaugural, que tudo inicia, é a própria pessoa de Jesus Cristo. Precisa Marcos, com uma concisão teológica, «o Filho de Deus». Cristo é o nosso início, o nosso (re)começo. Com Ele e nele podemos sempre reiniciar a nossa vida, utilizando a linguagem informática quotidiana.

Portugal despediu-se esta semana do seu maior pensador, Eduardo Lourenço. Em sua Heterodoxias, aprendemos que a dúvida para faz parte do processo da própria fé; que a fé é dom mas, misteriosamente, se pode perder. Na leitura que fez dos nossos poetas e escritores, e do próprio País, «entendemo-nos melhor a nós, nós próprios». Na homilia que D. José Tolentino proferiu na celebração das suas exéquias, recebemos, como herança, a confidência de uma sua comoção, o dom das suas lágrimas perante a palavra e a pessoa de Jesus: «Nada há de mais superior a Jesus. Já imaginou um Deus que diz bem-aventurados os pobres, os humildes, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos, os que têm fome e sede de justiça, os que promovem a paz. Não há nada de superior».

O evangelho que é Cristo é quem permanentemente nos (re)inicia.

Pe. António Martins, Homilia do II Domingo do Advento