Queridas Irmãs Queridos Irmãos Avançamos neste ano pastoral e escolar que agora começa. Avançamos com cautela, prontos a rever em cada dia a largueza dos nossos passos. Avançamos com a necessária coragem para vencer a paralisia do medo, mas também com toda a prudência para avaliarmos e respondermos, com responsabilidade, às exigências da realidade sanitária. Este tempo pertence ao quotidiano da nossa condição humana; a ele não nos podemos esquivar. Está na nossa consciência e atitudes de crentes fazer deste tempo um «kairos», um tempo oportuno e intenso de experiência de fé (interior, nesse esforço de ligar e dar sentido a tudo o que vivemos, e de testemunho solidário, de cuidado e de partilha). É neste tempo presente que «procuramos o Senhor», que tentamos discernir a sua presença e a sua vontade através da realidade que vivemos. Não há tempo a perder, e todo o tempo é decisivo: «Procurai o Senhor, enquanto se pode encontrar, invocai-O, enquanto está perto». A nossa vida é decidida através de dilemas, por vezes dilacerantes. Surgem diante de nós caminhos e opções em que, forçosamente, temos de escolher. Nestes dilemas aparecem em conflito urgências e coisas boas, não harmonizáveis: escolher uma significa excluir outra. Mas é nestes cruzamentos existenciais que a nossa vida se decide, em sua suprema liberdade, em sua consistência ética e em sua densidade espiritual. Somos a intensidade das nossas escolhas. No texto da carta aos Filipenses hoje lido, Paulo aparece-nos dividido entre dois caminhos que tem diante de si: o desejo de partir para Senhor e com Ele configurar definitivamente a vida, e o cuidado e acompanhamento dos irmãos em seu crescimento espiritual: «desejaria partir e estar com Cristo, que seria muito melhor; mas é mais necessário para vós que eu permaneça neste corpo mortal». O critério decisivo é o serviço aos irmãos. O «muito melhor» pessoal pode não ser o «mais necessário» no imediato. Os nossos desejos pessoais devem aceitar ser corrigidos pelo bem comum, pelo bem maior que é o bem de todos. Em tudo seja Deus glorificado no nosso corpo. O texto de evangelho, um exclusivo de Mateus, é parábola para nos interpretarmos, para nos julgarmos e resolvermos os conflitos que, por vezes, surgem na vida das comunidades. À lógica interesseira da promoção, do reconhecimento, da retribuição, da recompensa, contrapõe Jesus, com desassombro, a lógica da gratuidade; à justiça devida ao mérito, que sempre reclamamos e a que temos direito, Jesus oferece uma perspetiva, a do dom imerecido, aquele que amplia a vida e acrescenta felicidade. Concentremo-nos na parábola de hoje. Não deixamos de admirar aquela intensa solicitude do dono da vinha que, voltando à praça pública várias vezes ao dia, contrata toda a gente que encontra inativa para trabalhar na sua vinha: «Porque ficais aqui todo o dia sem trabalhar?»; «Ninguém nos contratou»; «Ide vós também para a minha vinha». Podemos facilmente imaginar que este trabalho intenso a exigir tanta mão de obra pode corresponder à vindima, que, entre nós, está a decorrer por esta altura. Adiramos ao sentido de responsabilidade social daquele proprietário: emprega na vida todos os que encontra, ainda que seja por poucas horas. Os da última não trabalhariam mais de duas horas; nem teriam tempo para aquecer os músculos… A integração social de trabalhadores sem ocupação, a dignificação da pessoa pelo trabalho são mais importantes do que a produtividade da vinha. As pessoas valem mais do que as propriedades e as quintas. É a lógica do Reino. Do ponto de vista do direito contratual e de uma justiça retributiva (a cada um o que tem direito), a parábola de hoje escandaliza. Os trabalhadores da primeira hora sentem-se defraudados por terem recebido, no final do dia, o mesmo denário que os da última hora. Para eles, e também para nós, é insuportável que «os últimos» tenham as mesmas oportunidades do que «os primeiros». Facilmente compreendemos o seu grito de justa reivindicação: «Deste-lhes a mesma paga do que a nós, que suportámos o peso do dia e o calor». A mesma paga a quem mais longa e duramente trabalhou?! Injustiça! Este é o grito de quem se sente ameaçado nos seus privilégios adquiridos por ser o mais antigo na empresa, na casa, na comunidade. Não suporta que os mais recentes tenham as mesmas oportunidades. «Os da última hora» são sempre uma ameaçada para «os da primeira hora». Mas onde a «boa nova» da parábola nos quer conduzir é para a generosidade do dono da vinha que, tirando do que é seu e sem comprometer a justiça do contrato laboral, paga a todos igual valor. Aos da última hora, aos que menos produziram, acrescenta generosidade e alegria imerecidas: «Não foi um denário que ajustaste comigo? Leva o que é teu e segue o teu caminho. Eu quero dar a este último tanto como a ti. Não me será permitido fazer o que quero do que é meu?». A parábola convida-nos a deslocar o olhar do rigor esperado do direito para o inesperado da gratuidade; do devido da justiça ao imerecido do dom. Uma conversão do olhar, do ver e do julgar, que brota da conversão do coração. Vale a pena aprofundar a passagem: «Ou serão maus os teus olhos porque eu sou bom?». Frase enigmática: em que sentido são maus os olhos dos da «primeira hora» em consequência da bondade (e da generosidade) do dono da vinha. A sua bondade está em acrescentar o que não é devido, em dar do que é seu, conforme quer, para além do direito contratual. A sua bondade está na capacidade de dar gratuitamente. Mas, então, o que significa a maldade do olhar, «os olhos maus»? Há traduções menos literais que interpretam assim: «Ou estás com ciúme porque eu sou bom?». A maldade do olhar, o ciúme, a inveja que cega o nosso olhar, que o falsifica vendo o mal onde acontece o bem, a alegria do gratuito. Que enigma é esse que perante a bondade de alguém, concretizado no inesperado do dom, reagimos com um olhar envenenado de maldade, envenenando relações, afetos, presente e futuro? Que sentimento mesquinho é esse, o da inveja e o do ciúme, que nos torna incapazes de ver, de acolher e de reconhecer a epifania da graça da bondade em nós e nos outros? Uma incapacidade de ver com lucidez o acontecer do dom. Sentimo-nos ameaçados e pervertemos a graça do dom em contestação de direitos, em reivindicações de privilégios adquiridos. Vemos nos outros ameaça, concorrentes ao nosso espaço, à nossa posição. Podemos ser esses azedos e ressentidos da «primeira hora», cegos à alegria do gratuito, ao acontecer do Reino, distorcendo a vida pelo nosso olhar de inveja e ciúme. Tanta beleza e bondade perdemos no acontecer gratuito da vida. O nosso grito de justiça por vezes não passa de ressentimento. Tanto desperdício… tanta vida adiada… tantas graças não recebidas… porque o nosso olhar estava distorcido pela maldade. «O Senhor é bom para com todos, e a sua misericórdia se estende a todas as criaturas». Pe. António Martins, XXV Domingo do Tempo Comum