Queridos Irmãs
Queridas Irmãs

Recomeçamos. E tantas saudades de todos vós, da alegria de nos reencontramos, de estarmos juntos. A nossa querida comunidade do Rato tem sido edificada numa comunhão de afetos e de experiências: todos nos conhecemos, e por isso a vida flui, com intensidade, com cuidado e atenção uns pelos outros. Não podemos deixar que este património comum se aliene, que a comunidade se disperse, que a solidez dos nossos laços e afetos se desfaça. O Rato é uma herança, é uma pertença, é um afeto, é uma promessa de futuro.

Os tempos imprevisíveis de insegurança sanitária que estamos a viver não permitem uma normalidade, tão desejável, de vida (familiar, social, eclesial). A prova destes últimos seis meses já nos ensinou alguma coisa para continuarmos a resistir e a cuidar uns dos outros. Mas também nos alertou para alguns riscos a prevenir. Na vida eclesial, o maior perigo é o desfazer-se do tecido comunitário, a quebra dos nossos laços de pertença comum. Com as palavras de Paulo, «nenhum de nós vive para si mesmo».

As nossas celebrações eucarísticas continuam condicionadas pelas regras de distanciação e de higienização. Todas as prudências são poucas para evitar contágios. Irmãos e irmãs nossos, considerados de risco, não podem estar connosco presencialmente. Outros optam por outro espaço mais alargado e seguro; outros continuam a seguir, acomodados em suas casas, as celebrações à distância. A nossa comunidade (como todas) vive a meio-gás. E, possivelmente, assim viveremos ao longo deste ano pastoral.

Alegro-me com os irmãos e irmãs que, numa fidelidade de pertença a esta comunidade, não desistem de marcar a sua presença, com os seus dons e serviços, com a sua disponibilidade, no contexto de tantos apertos familiares e profissionais. No meio dos períodos de crise e de dificuldade, pode chegar a tentação da deserção e do acomodamento. A todos nós, é necessário uma dose acrescida de coragem e de esperança para permanecer, para participar, para «dar o corpo ao manifesto», para fazer comunidade. Não desistimos de edificar a nossa comunidade do Rato.

Era fácil, entusiasmante, socialmente gratificante participar no Rato quando a casa se enchia e era notícia nos jornais. Agora estamos mais pobres e só podemos ser mais humildes. Neste tempo de empobrecimento, a comunidade edifica-se à maneira do fermento na massa, de forma quase invisível, nos gestos discretos de cada um de nós, nos compromissos que não são notícia. Hoje participar na comunidade do Rato é uma opção humilde, sem visibilidade. Vivemos tempos de resistência, e bem-aventurados são aqueles e aquelas que conseguem ser fiéis nas pequenas coisas. Assim já estamos a preparar o futuro. Havemos de voltar a ser farol porque, no tempo presente, sabemos ser fermento discreto.

O evangelho de hoje (como também o de domingo passado) ensina-nos que a comunidade cristã se reconstrói continuamente através do perdão. Uma comunidade, uma família, um grupo humano coeso, vive da intensidade e da gratuidade das relações e dos afetos. Mas bem sabemos que as relações são frágeis, correm riscos de se quebrar. Há sempre feridas, incompreensões, ofensas e agressões, que podem ir até à violência. Por vezes as ofensas são tão grandes que deixam prolongadas feridas para sempre na vida das pessoas, das famílias, das comunidades. A pessoa ofendida e agredida sente-se humilhada e grita por justiça. A justiça «do pagamento da dívida», para falar com a linguagem do evangelho.
Pergunta Pedro a Jesus: «Senhor, se meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar?». O judaísmo do tempo, com generosidade, já admitia quatro vezes, e já eram demais. Pedro, acolhendo a novidade evangélica do perdão como excesso, pergunta aumentando o número: «Até sete vezes?». O número sete é já símbolo de totalidade. Jesus vai mais longe, múltiplica o número: «Não apenas te digo sete vezes, mas setenta vezes sete». Essa multiplicação é a cifra simbólica de que o perdão é infinito, não tem limite.
Uma nota a salientar no evangelho de hoje: o perdão acontece, estranhamente, por iniciativa da pessoa ofendida. Não tem de ter reciprocidade. À pessoa que ofendeu não é exigido arrependimento. Isto pode parecer-nos estranho e até chocar-nos. É de loucos dar o primeiro passo; consideramos que é dar parte de fraco. E acabamos por guardar um prolongado e silencioso rancor, destilando o veneno do ressentimento. Para perdoarmos esperamos que comecem por nos pedir perdão. Permanecemos na altivez do nosso orgulho de pessoas ofendidas. Entretanto, somos mendigos de perdão diante de Deus. É aqui que o evangelho nos vira do avesso: a iniciativa do perdão parte do ofendido; é gratuita e desproporcional; não exige arrependimento imediato. Por isso tem um traço de impossibilidade e de loucura. É excesso que escandaliza. Mas será mesmo possível perdoar assim?…

O perdão é o que há de mais difícil nas nossas relações. Não é imediato, não é espontâneo. Imediata é a exigência de uma justiça, que pode ter contornos de violência, como nos narra Jesus na parábola do evangelho. Aquele servo, a quem o seu senhor perdoou uma enorme dívida (dez mil talentos), não conseguiu perdoar a ninharia da dívida do seu companheiro (cem denários: um denário correspondia a um dia de trabalho); pelo contrário, «Segurando-o, começou a apertar-lhe o pescoço, dizendo: “Paga o que me deves”». A reação deste servo é o espelho das nossas reações imediatas, da exigência de justiça, por vezes extremamente violenta, com que reagimos a quem está em falta para connosco, a quem nos nos fere ou agride.

O perdão é gesto pessoal, totalmente gratuito, que brota do profundo de um coração pacificado. Pelo perdão, a pessoa ofendida liberta-se interiormente da dependência em relação ao agressor. Psicologicamente, enquanto alimentamos a vingança estamos a dar força ao agressor dentro de nós e continuamos a ser vítimas. O dom do perdão acontece como acolhimento da graça de uma pacificação interior, de cura em nós de todos os sentimentos de violência, de acusação, de ressentimento: «Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus» (Mt 6,9). Uma pessoa pacificada, por um excesso de graça que só pode vir de Deus, pode renunciar à justiça que lhe é devida, ao pagamento da dívida.

Não é caminho fácil, não é caminho normal, não é caminho espontâneo. É talvez o ponto de chegada de um longo e tomentoso caminho pessoal. Mas, essa é a certeza e a promessa do evangelho de hoje: o perdão é um caminho possível que por nós pode ser percorrido. A superar a cega exigência do «pagamento das dívidas».

Pe. António Martins, XXIV Domingo do Tempo Comum