Queridas Irmãs
Queridos Irmãos

A liturgia convoca-nos hoje a uma atitude adorante perante o mistério envolvente do nosso Deus, Trindade Santa, comunhão amorosa de Pessoas. A Trindade é a nossa origem, o nosso habitat permanente, a nossa pátria de chegada. Somos, na história, imagens vivas da Trindade, marcados no nosso próprio ser com um «adn» trinitário. Não apenas nós humanos, mas cada criatura, todos os seres vivos, a vasta matéria conhecida e desconhecida do universo inteiro. Todos e tudo são expressão do amor trinitário, desse Deus amante e gerador de vida, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. «Nele vivemos, nos movemos e existimos».

No fundamento da experiência cristã há um dom de amor louco, excessivo e incondicional. Disso nos fala o evangelho de João hoje proclamado: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho para que todo o homem [e mulher] que nele acredite não pereça, mas tenha a vida eterna». Podemos dizer que esta passagem é o coração do evangelho de João e de todo o Novo Testamento: «Deus amou tanto…». «Tanto» uma pequena palavra que diz tanto; diz o que é impossível dizer, compreender. Deus, o Pai, amou tanto o mundo, e continua a amar; expressão do seu amor incontido foi (é) o dom do próprio Filho, a Palavra feita carne, um de nós, um como nós.

Uma nota literária: «Deus amou de tal modo o mundo que entregou o seu Filho». Os tempos verbais estão no passado: «amou», «entregou». O passado indica um acontecimento realizado; não é apenas uma promessa de futuro, ainda por acontecer. O Pai já expressou o excesso incontido do seu «tanto amor» enviando e entregando o Filho. O Filho já veio a nós em nossa carne e por nós se entregou, amando-nos até ao fim. Na cruz, Cristo, morrendo, proclama: «Tudo está consumado», o mesmo é dizer, realizado. Mas o dom do Filho não é apenas acontecimento do passado; é promessa de futuro, porque nos promete a uma vida plena: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância».

«Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele». Deus não condena, mas salva. É fiel à vida que cria, é fiel a cada um e a cada uma de nós. O seu amor a todos inclui, seja qual for o percurso de vida e a circunstância pessoal. Somos nós que nos condenamos quando recusamos amar. Não acreditar no Filho é não acreditar na força do Amor (de amar e de ser amado). Somos nós que nos condenamos a nós próprios. Essa é a tragédia do humano.

A paternidade do nosso Deus é universal e cósmica, abraça cada homem e cada mulher, integra cada criatura. Por isso o confessamos, no Credo, «Pai… criador de todas as coisas». Nas palavras da Encíclica Laudato si`, «O Pai é a fonte última de tudo, o fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que existe. O Filho, que o reflete e por quem tudo foi criado, uniu-se a esta terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito Santo, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e suscitando novos caminhos» (LS 238). A fé cristã proclama e confessa que o amor é a fundamento da realidade, da física, da biologia, da matéria, da vida, da humanidade. «O mundo criado… é uma trama de relações». «Tudo está interligado», porque tudo é expressão do amor trinitário do nosso Deus.

A nossa experiência de relação e de aliança com Deus está sempre ameaçada. Foi assim com o Povo de Israel, continua a ser assim com a Igreja, com cada um de nós. Vamos para a primeira leitura: o Povo de Deus troca a adoração ao Deus libertador por um bezerro de ouro. Moisés, revoltado e indignado, quebra as placas de pedra onde Deus tinha gravado a Lei como garantia da aliança. Volta a subir à montanha, com novas placas de pedra para uma nova edição dos mandamentos: «Moisés levantou-se muito cedo e subiu ao Monte Sinai». Sobe com esforço. E Deus vem ao seu encontro descendo. «O Senhor desceu da nuvem e ficou junto de Moisés».

Deus é aquele que sempre desce, abaixa-se, diminui-se, coloca-se ao nível de cada um de nós. Talvez fique junto de cada um de nós em sua nuvem misteriosa, talvez até nem demos pela sua presença, talvez nada sintamos…, ou sintamos o vazio, um longo esforço de procura, de subida, que nos deixa exaustos perante um Deus silencioso. O Senhor passou diante de Moisés, passa diante de nós, e deixa-nos palavras de consolo e de profunda ternura: «O Senhor é um Deus clemente e compassivo… cheio de misericórdia e fidelidade». Deus de amor fiel, Deus de ternura e de compaixão, Deus com entranhas de misericórdia. O nosso Deus.

O Salmo da Liturgia da Palavra de hoje é um belo poema (salmo) do livro do profeta Daniel. Todas as criaturas (estrelas, gelos, neves, fontes, rios, animais, humanos…), neste poema, entram numa grande e solene liturgia cósmica de louvor e de ação de graças: «Dai graças ao Senhor porque Ele é bom, porque é eterna a sua misericórdia». Mas o contexto deste cântico das criaturas é bem dramático. Três jovens (Ananias, Mizael e Azarias) judeus são condenados à uma fornalha por se recusarem a adorar a estátua mandada erguer pelo rei Nabucodonosor. No meio das chamas os três jovens celebram, cantando, a grandeza e a glória de Deus: «Bendito sejais no trono da vossa realeza, digno de louvor e de gloria para sempre». O seu canto, a sua poesia são resistência de fé e política; marca de uma diferença e de uma liberdade que não se rende à força opressora do tirano de serviço.

Ficámos esta semana chocados e horrorizados com a brutalidade da violência policial nos Estados Unidos que vitimou o cidadão negro George Floyd. Na pátria das liberdades, dos direitos humanos e da democracia há brutal violência incontida, quer no abuso das autoridades, quer na revolta dos cidadãos. Ódios racistas antigos, feridas profundas ainda não curadas, emergem com violência numa sociedade profundamente fraturada, agravada pela pobreza e pelo desemprego. Mas não nos esqueçamos, o racismo é um cancro que nos pode minar a todos por dentro, silenciosamente. É um vírus que pode contaminar as próprias famílias, as comunidades cristãs, as nossas sociedades democráticas. A luta contra o racismo começa dentro de nós, avaliando a qualidade de hospitalidade que damos a quem é diferente de nós.

Não podemos silenciar a nossa profunda indignação, enquanto crentes, ao vermos políticos a instrumentalizar, despudoradamente, símbolos religiosos. É uma tentação que vemos, perigosamente, a crescer em políticos populistas. Não é sinal de fé sincera, mas de puro oportunismo. Porque a fé sincera é discreta, inspira com discrição, não se exibe. É, antes, expressão de despudor blasfemo, a suscitar ódio ao estrangeiro, a quem é diferente em sua cor, pertença religiosa, orientação sexual. Aos políticos de sincera inspiração cristã, possa a fé na Trindade motivar uma ética de integração das diferenças na unidade nacional, de respeito pelo outro a partir de valores comuns partilhados. E uma prudente contenção no uso da força do Estado, numa justa proporcionalidade.

Uma palavra final sobre a segunda leitura, tirada da segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Paulo escreve esta carta de coração rasgado a uma comunidade dividia, cheia de rivalidades e ciúmes. Havia disputa entre pregadores que rivalizavam na conquista de seguidores (nada de novo). Paulo foi trocado por outros pregadores mais eloquentes e sedutores; sente-se traído pela comunidade que fundou e amou. Com um tom severo, faz a apologia da sua própria fragilidade: «alegramo-nos todas as vezes que somos fracos». No fim da Carta, a despedir-se, já de coração pacificado (e como uma carta frontal e autêntica ajuda a pacificar!) deixa-nos um programa de vida: «Sede alegres, trabalhai pela vossa perfeição, animai-vos uns aos outros, tende os mesmos sentimentos, vivei em paz».

Neste reinício da nossa vida comunitária, também nós precisamos de nos motivarmos e encorajarmos uns aos outros, de nos sentirmos próximos. Precisamos de conjugar, em cada dia, coragem e prudência. Com uma grande paciência uns com os outros e connosco próprios para vencermos o desânimo deste tempo prolongado de resistência e de distanciamento físico. E tudo em nome do nosso Deus Trindade Santa que quer fazer de nós, em nossas relações e sociabilidades, ícones vivos da sua comunhão de Pessoas.

A saudação final de Paulo, na Carta, é a saudação inicial de cada eucaristia; a saudação que também quero deixar a cada um de vós, e a esta querida comunidade da Capela do Rato, ainda em dispersão: «A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus [Pai] e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco».

Pe. António Martins, Solenidade da Santíssima Trindade

Veja aqui a entrevista do Pe. António Martins ao programa Ecclesia, com o comentário às leituras deste domingo.