Alfredo Teixeira, compositor e Professor da Faculdade de Teologia (UCP)

Domingo de Páscoa: A urgência da manhã

O compositor polaco Krzysztof Penderecki (1933-2020) morreu no passado 29 março, em Carcóvia, com a idade de 86, depois de doença prolongada. A memória deste compositor polaco ficará associada, de forma marcante, à presença de referências cristãs na música contemporânea europeia. Em todas as fases da sua biografia musical, encontramos vários frescos corais, que depressa foram reconhecidos como referências incontornáveis para a história recente da música vocal/coral.

A obra «Utrenja» (1970-71) tem a forma de díptico – embora possa ser lida como parte de um tríptico, a que se junta a «Paixão segundo Lucas» (1966), seguindo a lógica própria das narrativas cristãs (Paixão, Morte e Sepultamento, Ressurreição). Os dois «frescos» musicais, que constituem «Utrenja», foram escritos separadamente. A primeira parte inspira-se na liturgia ortodoxa de Sábado Santo, dando corpo a um exercício espiritual de lamentação pela morte de Jesus Cristo. A segunda parte, cuja escuta proponho, neste dia, toma materiais do ofício litúrgico da manhã do Domingo de Páscoa. Neste contexto, um cerimonial eslavo antigo, na sua estrutura e nos seus idiomas rituais, é inscrito num trabalho de recriação contemporânea, dando conta de um compromisso crucial na estética de Penderecki: o desejo de uma modernidade religada à tradição. Penderecki, para além da música, vivia a paixão da arboricultura, amor que herdou do seu avô. Talvez esse amor pela plantação de árvores ajude a perceber a forma como que nele se intricavam a vontade de experimentar novas técnicas composicionais e o desejo de enraizamento numa tradição.

«Utrenja» recorre a três vozes solistas masculinas (incluindo um «basso profondo»), que assumem papéis correspondentes à sintaxe litúrgica, e duas vozes solistas femininas, que desempenham outros papéis musicais. À massa vocal, constituída por dois coros, corresponde um efetivo instrumental com um amplo reforço das secções de metais e percussão. A primeira parte (dedicada à Eugene Ormandy), foi esteada na Alemanha de Leste, a 8 de abril de 1970, sob a direção de Andrzej Markowski, que estreou também a segunda parte, no dia 28 de maio de 1971. A forma de díptico é a mais recorrente, nas posteriores apresentações da obra, mas não de forma exclusiva. A sua sintaxe permite que cada uma das partes seja interpretada ou ouvida autonomamente. Desse ponto de vista, a obra respira a espiritualidade própria da teologia ortodoxa, que enfatiza muito a dimensão escatológica ou totalizante da ação litúrgica – em cada momento, em cada fragmento, é todo o mistério que se dá.

A estreia polaca de «Utrenja», com as suas duas partes, aconteceu em Carcóvia, a 16 de setembro de 1971, sob a direção de Jerzy Katlewicz. A obra teve aí uma receção ambígua, entre o estranhamento e o reforço de um sentimento de resistência. Note-se que esta estreia polaca ocorreu logo após a experiência de uma forte repressão, em consequência das revoltas no estaleiro de Gdansk, ocorridas no ano anterior. A obra inscreve-se assim, no tecido de uma transformação em que, como é sabido, a memória cristã, na Polónia, se tornou um dos principais fatores de resistência às dinâmicas de sovietização, no Leste europeu.

O quadro («Ewangelia») que abre a segunda parte do díptico («A Ressurreição») introduz-nos, de forma eloquente, no espírito da obra. Vivemos o sobressalto na violência da percussão. Não se trata do som transparente e luminoso de sinos. Trata-se de um magma resultante de uma erupção e nos acorda para uma urgência. A representação da vida que vence a morte não se declina, musicalmente, numa paisagem sonora etérea, desmaterializada. Pelo contrário, a energia é telúrica, evocando as narrativas bíblicas que associam os grandes acontecimentos salvíficos a sobressaltos cósmicos. Se a percussão veicula a força de uma erupção, as vozes do coro repartem-se entre o canto, o «parlato» e o grito, por vezes mais próximas da vozearia do que da harmonia dos «coros celestes» – é a «ressurreição da carne». Estas são vozes terrestres, resgatadas da sua angústia. A presença da súplica ganha uma particular expressividade nos momentos em que – como no sétimo quadro («Ikos») – o coro masculino dialoga com o «basso profundo», uma tessitura vocal rara, fora do Leste europeu. Desse «profundo abismo», sobe uma voz de clamor, ansiando a manhã de Páscoa. Esse despertar pode ser um anticlímax, na medida em que a força se resolve no silêncio. Ao ouvir de novo esta obra, fui habitado pela memória de um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, «Cânon» (1993), publicado no livro intitulado «Musa» (1994), que oiço interiormente como um grito: «Sombrios profetas do exílio abandonai vosso vestido de cinza».

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