Sábado Santo: O silêncio não é vazio
Nascido em 1637, Dietrich Buxtehude deu continuidade ao ofício de organista, herdado de seu pai. E é nessas funções que o encontramos em Lübeck, na prestigiada Marienkirche, a partir de 1968. No âmbito do seu ofício musical, coube-lhe a organização de um conjunto de concertos anuais – sob o nome de «Abenmusiken» – realizados depois das Vésperas, nos domingos do Advento. Na sua maturidade, estas obras tornaram-se oratórios desenvolvidos, sob o ponto de vista vocal e instrumental. É possível que as cantatas que constituem o ciclo «Membra Jesu nostri» (BuxWV 75), de 1680, tenham origem nesta pática do oratório nas tardes de domingo.
«Membra Jesu nostri patientis sanctissima» (numa tradução livre: «Santíssimos Membros do nosso Jesus sofredor») é uma meditação da Paixão, na qual se contempla o corpo crucificado, num mapa de dor, evocando sete partes diferentes: pés («Ad pedes»), joelhos («Ad genua»), mãos («Ad manus»), lado («Ad latus»), peito («Ad pectus»), coração («Ad cor») e face («Ad faciem»). A maior parte do texto latino é extraído de um poema medieval popular, «Salve mundi salutare», que Buxtehude deve ter encontrado numa compilação intitulada «Domini Bernhardi Oratio Rhythmica», publicado em Hamburgo, em 1633. A obra, atribuída a São Bernardo, parece ser de Arnulf de Louvain (c.1200 –1250). Mas é claro que ela se inscreve nos itinerários da espiritualidade de São Bernardo, tradição influente, tanto na geografia da Igreja romana, como em contexto luterano.
Em cada meditação, a cada excerto do poema, Buxtehude junta um fragmento bíblico – dir-se-ia, um intensificador de sentido. A Bíblia e o poema místico envolvem-se numa intriga espiritual. O incremento de diversas formas de piedade, para além do culto oficial, permitiu o desenvolvimento deste tipo de composições textuais, ao serviço da piedade cristã, num contexto menos padronizado, para além da rigidez dos padrões composicionais litúrgicos. A obra é composta por sete meditações, num itinerário circular que encadeia as diversas tonalidades. O uso de referências numerológicas – uma herança medieval – transportava o ato de compor para o centro de uma teologia da criação. A criação musical era simbolicamente associada à perfeição do ato criador de Deus.
Cada uma das cantatas abre com uma sonata instrumental. Trata-se da composição de um cenário espiritual, que antecipa o clima que o canto aprofundará. A estética não é dolorista. O compositor não procura a retórica do «tremendum». Marcado por influências italianas, o idioma musical declina-se numa sensualidade mística, própria de uma espiritualidade que não renuncia ao corpo. Pelo contrário, encontra na ferida o rasto de um amor maior, capaz de vencer todo o sofrimento. No dia de Sábado Santo, os cristãos são convidados ao silêncio. Mas esse silêncio não é vazio. É habitado por um corpo de redenção e esperança. No livro «Teoria da Fronteira», de José Tolentino Mendonça, encontramos um fragmento do poema «O que é cair?» que pode dialogar com esta joia do sagrado barroco:
«qualquer corpo é sempre sem esperança
e, contudo, apenas aos corpos
a esperança pertence»