Alfredo Teixeira, compositor e Professor da Faculdade de Teologia (UCP)
Sexta-feira Santa: Uma contemplação narrada
Sugiro hoje a escuta de uma obra marcante na história recente da escrita musical para a narrativa da «Paixão»: «Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem» (1982), de Arvo Pärt.
Depois de um período de silêncio, o regresso do compositor estoniano Arvo Pärt à composição foi precedido por uma longa meditação sobre a música antiga. No período de obras como «Tabula rasa» (1977), o desejo de visitar uma certa representação da música medieval é muito claro, identificando-se com a figura do compositor anónimo – como que um exercício de ascese autoral. Este é o período em que Arvo Pärt forja um idioma próprio. O compositor cunhou essa técnica composicional com o termo «tintinnabuli» (pequenos sinos). Trata-se de um particular cruzamento entre as técnicas de cantilação de origem judaica e cristã e as formas mais arcaicas de contraponto.
Este aspeto idiomático não transcreve apenas uma técnica. A meu ver a referência simbólica ao sino é uma metáfora espiritual de grande alcance. No Ocidente, a paisagem sonora está marcada pela vibração dos sinos, seja na fração do tempo, seja na evocação do canto, ou na gestação de uma comunhão orante assinalada pelo seu bamboar litânico. A organologia apelida o sino de idiofone, pelo facto de ser um instrumento em que o som é produzido pela vibração do seu próprio corpo. No caso do sino, isso acontece pela força da colisão com um outro objeto. Podemos dizer, assim, que o este som é redentor, transformando a dor em boa notícia. De algum modo, o sino (lat. «signum») pode transportar o «signo» da experiência crística da dádiva de si, em que a agressão infligida se resolve em graça oferecida. Este som vem do alto e vem da terra, porque só alicerçada (enraizada) a torre (a árvore) pode sustentar aquele chamamento das alturas.
Gostava de propor a obra «Passio», sobre o Evangelho de João (texto da Vulgada), como um paradigma, nesta fase da biografia de Arvo Pärt. É uma obra de 1982, correspondendo já ao período de instalação na Europa ocidental, mas dando continuidade à transformação que o seu labor composicional tinha sofrido nos anos 70, depois de um importante período de paragem. O particular uso do silêncio, do canto silábico, das tríadas harmónicas, conferem à obra uma imobilidade e um hieratismo que convêm à sua própria leitura do evangelho de João. O Jesus que Pärt descobre no Evangelho de João é uma figura que conhece tudo o que lhe vai acontecer. Assim a «narrativo» não explora o dramatismo (ação) próprio de um processo, mas antes a «contemplatio» de uma revelação (a glória do crucificado) – nesse sentido estamos mais próximos de Schütz, um dos pais da «Paixão» como forma musical. Não há corais, nem árias. A obra tem uma estrutura quiástica – (quiasmo) recurso estilístico que consiste numa estrutura cruzada entre dois grupos de elementos, em que a ordem das palavras do primeiro grupo é inversa à do segundo. Estes procedimentos numerológicos são frequentes nesta fase da sua biografia composicional – a mística das proporções.
Gosto de ouvir na música de Arvo Pärt o eco das dores e esperanças que habitaram a segunda metade do século XX, um mundo saído da irracionalidade da guerra, habitado por tantos exílios e trânsitos. Face à via da dominação tecnocrática ou perante a propaganda de que só o vazio é possível, a música de Arvo Pärt reclama a necessidade de construção interior de um espaço/tempo de redenção e esperança.