Queridas Irmãs
Queridos Irmãos
Chegamos à Páscoa.
Fazemos, no possível das nossas restrições e do nosso isolamento social, memória da Páscoa do Senhor, do cumprimento da sua vida feita dom de amor até ao fim, numa entrega despojada, incondicional. A memória da eucaristia, que é uma das dimensões centrais da liturgia de quinta-feira Santa, é a memória viva (pascal) do Senhor que, por inteiro, em todo o seu ser, se dá por nós, servindo e cuidando de nós. Ele dá-se de corpo inteiro como alimento que nos alimenta e reúne: «Isto é o meu corpo, entregue por vós»; Ele dá-se vital, visceralmente, em suas entranhas esgotadas e rasgadas: «Este cálice é a nova aliança no meu sangue».
Porque a Páscoa é corpo e sangue, vida concreta feita dom, violência forçada e dádiva livre de um amor inteiro «até ao fim». Esta é a memória que nos faz viver, hoje, nas presentes circunstâncias; nesta memória viva, a nossa fé enraíza-se e aprofunda-se; esta memória é portadora de uma promessa de futuro, rasga diante de todos nós caminhos de esperança: «Todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha». Na memória da Páscoa do Senhor, damos sentido ao nosso presente e abrimo-nos ao futuro, que já começa.
Mas todas estas palavras, ouvidas e acolhidas no contexto do nosso confinamento, têm um sabor amargo de contradição e de insuportável. Estamos impedidos viver a Páscoa em comunidade, de comungarmos o corpo e o sangue do Senhor. A nossa Páscoa, este ano, do ponto de vista sacramental, está marcada por uma violenta provação e privação. Nunca imaginaríamos que um decreto da Cúria Romana dispensasse os cristãos da comunhão sacramental; e isso aconteceu. Quer aqueles que, habitualmente, podem comungar, quer aqueles que, por razões várias, não comungam, todos, no presente, estão na mesma circunstância de privação. Todos são iguais nos limites e na carência. Estranha comunhão eucarística nesta ausência de comunhão sacramental. E isto também é inédito.
Fica a pergunta em aberto: se, na vida civil, há o acesso quotidiano ao pão e os supermercados estão abertos, não poderiam estar abertas também algumas igrejas mais espaçosas, no estrito cumprimento das regras sanitárias, e o Santíssimo exposto, para tempos de oração pessoal? É uma violência simbólica que todas as igrejas tenham as portas encerradas, quando farmácias, supermercados, alguns serviços públicos permanecem abertos. Se há distribuição de pão, não poderíamos inventar uma distribuição do pão eucarístico, com uma presença humana de consolação, para os doentes, os idosos, as pessoas que estão só? Não tenho resposta, mas isto inquieta-me.
Precisamos, mais do que nunca, de gestos redentores do nosso isolamento, de gestos que devolvam o corpóreo da nossa dimensão comunitária, gestos de pertença comum. Porque a vida espiritual ajuda a manter a saúde mental, a equilibrar e a integrar afetos e emoções. Uma estratégia de saúde pública que apenas tem como urgência a dimensão corpórea e clínica é redutora; cria violências psíquicas, agrava a saúde mental, os estados de imunidade, porque aumenta a solidão, o isolamento, a depressão. E todo o corpo social fica em risco também. É tempo de cuidarmos da saúde psíquica e espiritual de todos. É urgente equilibrar a racionalidade técnico-científica com uma dimensão afetiva, social e espiritual.
Este dia do ministério ordenado, da nossa identidade de padres (e pastores) ao serviço do Povo de Deus, está marcado por profundas dilacerações e dilemas, que partilho convosco. Separados das suas comunidades, os padres vivem também tempos de desamparo e de isolamento. A alegria de um padre é ter a comunidade reunida; e a impossibilidade dessa reunião, nas atuais circunstâncias, é dor interior para todos nós. Também nós padres vivemos este isolamento como uma forma de comunhão com todo o Povo de Deus e toda a sociedade. Este tempo pode ser aproveitado para fazermos uma travessia no silêncio, despojados das nossas habituais lideranças.
Penso em vós todos os dias. Penso e rezo por vós.
Centremo-nos, agora, na narrativa do «lava-pés», um exclusivo do evangelho de João. Sublinho dois traços da narrativa de João: o tom solene inicial: «sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim», e a precisão narrativa, num tempo lento, gesto a gesto, movimento a movimento, do lava-pés: «sabendo que saíra de Deus e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto e tomou uma toalha, que pôs à cintura. Depois, deitou água numa bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que pusera à cintura».
Esta é a hora da passagem do Filho para o Pai, a hora da cruz. Como momento dessa hora está o gesto do lava-pés: gesto ousado, escandaloso totalmente inesperado para os discípulos. O Mestre despoja-se para ficar com a veste (tanga) do servo; o Senhor põe-se de joelhos diante dos seus discípulos, servindo-os. Gesto solene de um amor levado até ao fim, feito serviço e dom, que Pedro não pode compreender ali: «O que estou a fazer não o podes compreender agora, mas compreendê-lo-ás mais tarde». Também nós somos lentos em compreender as implicações desse gesto ousado e escandaloso. Talvez esse «mais tarde» seja para nós o tempo presente. Em nossos dias, o gesto do lava-pés passa da solenidade litúrgica para o concreto da vida.
Partilho convosco os gestos de lava-pés que alguns membros voluntários da nossa comunidade, em cooperação de esforços e de vontades com a Comunidade de Santo Egídio, têm feito: longas horas passadas em filas de supermercado, o transporte de tantos sacos pesados, as deslocações ao encontro dos mais desfavorecidos, até para destinos mais periféricos como Rio de Mouro e Laranjeiro. Tem sido uma dádiva quotidiana de si mesmos, para transformar os nossos donativos em alimentos, medicamentos e bens necessários que vão proporcionar a mais de meia centena de pessoas carenciadas uma Páscoa mais alegre.
Há mulheres que, doentes e sozinhas, tentam sustentar na mesma casa jovens com deficiência, que ficaram sem os Centros de dia, e crianças pequenas sem escola. Há pessoas isoladas que não têm frigorífico e dependiam da Reefood, encontrando-se agora sem recursos para assegurar a alimentação de cada dia.
Há agregados familiares marcados pelo desemprego, que integram idosos doentes e jovens estudantes dependentes das magras pensões de doença dos avós. Há famílias de seis pessoas que tentam subsistir com o ordenado mínimo de um só filho, em casas pequenas, com crianças sem computador para seguir as aulas e uma jovem grávida, desempregada e doente.
Há mães sozinhas que procuram manter com pouco mais de trezentos euros filhos com doença crónica e dependentes de medicamentos. Há os idosos do Lar das Irmãzinhas dos Pobres em Campolide que estão agora a precisar de ajuda em bens alimentares, para poder continuar a cuidar destes anciãos.
Alguns da nossa comunidade estão no terreno, ligando eucaristia e vida, celebrando, na urgência do concreto, gestos de lava-pés, numa via sacra ao vivo. Sintamo-nos em profunda comunhão com eles.
Eucaristia e lava-pés, corpo de Cristo que é dado por nós e para nos (re)unir, e mãos que cuidam e servem, são dimensões complementares da liturgia de Quinta Feira Santa: «Isto é o meu corpo, entregue por vós»; «também vós deveis lavar os pés uns aos outros».
Assim o possamos compreender melhor, assim o possamos traduzir na vida.
Pe. António Martins, Quinta-feira Santa – Ceia do Senhor