Queridas Irmãs
Queridos Irmãos
Acolhamos como Palavra dirigida particularmente a nós, neste tempo de confinamento, o que Jesus manda dizer ao dono de uma casa em Jerusalém: «É em tua casa que Eu quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos». É em nossas casas desarrumadas, feitas estaleiros, escritórios, salas de aula, ginásios, que o Senhor quer celebrar a Páscoa este ano. Não no templo, com uma liturgia solene, mas de forma doméstica, familiar, com gestos simples, criativos, mas nossos.
O Senhor quer passar connosco, quer passar por nós, pelas nossas casas, para que façamos nossa a sua Páscoa. Preparemo-nos, com simplicidade e exigência, para que em cada uma das nossas famílias se façam gestos de Páscoa. Gestos que possam dizer, com verdade, a nossa apreensão e o desejo de sair do isolamento, a angústia da incerteza do presente e a esperança de um tempo novo, o isolamento necessário mas também a partilha solidária e a compaixão com os mais vulneráveis e excluídos.
Gestos verdadeiramente pascais, este ano mais do que nunca.
Na narrativa da paixão de Mateus, hoje lida, entra em cena um casal desconcertante, Pilatos e a sua mulher. Pilatos era o governador da Judeia, oficial militar de carreira, garante da ordem pública. Tendo consciência da inocência de Jesus, com receio de revoltas populares entrega o «terrorista» Barrabás e condena Jesus à morte de cruz. Encerra o assunto com o gesto cénico de lavar as mãos, a indicar que não ter mais nada a ver com o caso. O tempo angustiante e incerto que vivemos é a hora das decisões políticas, bancárias, empresarias, familiares, académicas. Nenhum líder pode lavar as mãos da responsabilidade das decisões, urgentes, necessárias, para bem do futuro da humanidade. Este tempo julgará quem vai ficar para a história como Pilatos, lavando as mãos da sua responsabilidade.
Na sombra de Pilatos, anónima, está a sua esposa. Não aparece em cena, mas manda informar o marido, no preciso momento da tomada da decisão, da sua profunda aflição. Aquela mulher sem nome nem rosto intui a inocência de Jesus, «o justo», e previne o marido da própria ruína moral: «Não te prendas com a causa desse justo, pois hoje sofri muito em sonhos por causa d’Ele». Pilatos não ouve a intuição da esposa, mas esta entra no processo da tomada da decisão; não podia ficar de fora, era um imperativo de consciência. Na mulher de Pilatos estão presentes todas as mulheres anónimas que, no silêncio das suas casas, decidem o quotidiano da vida, com urgência, pragmatismo, preparando alimentos, cuidando de filhos e agora são também educadoras; repartem-se entre atividades profissionais e vida doméstica acrescida, cuidam da família na retaguarda, prestam voluntariado. Na paixão da mulher de Pilatos está a paixão das mulheres do tempo presente, essas que não podem lavar as mãos, ou quando as lavam é para voltar a agir porque as suas mãos estão sempre a tocar e a cuidar, mesmo correndo risco de contaminação.
Compreendemos a paixão da humanidade de hoje na paixão de Cristo. Pode Deus livrar-nos da pandemia? Pode Deus salvar-nos do mal? Perguntas terríveis e inevitáveis neste tempo que todos atravessamos. Não procuremos respostas simplistas e ingénuas. A violenta e mortal experiência do mal, que a humanidade de hoje atravessa, é uma provocação a Deus e à fé de todos os crentes. Põe em causa a ideia bem arrumada de um Deus omnipotente, pronto-socorro.
A narrativa da paixão de Cristo ajuda-nos a dar sentido à nossa paixão e à paixão de toda a humanidade. Jesus, vulnerável, impotente e indefeso, é exposto ao escárnio, à blasfémia, à irrisão: «Tu que destruías o templo e o reedificavas em três dias, salva-Te a Ti mesmo»; «Se é o rei de Israel, desça agora da cruz e acreditaremos n’Ele. Confiou em Deus: Ele que O livre agora, se O ama». E Deus não intervém, permanece num terrível silêncio e inação. O Pai não livra o Filho da cruz; o Salvador não se salva. A cruz apresenta, à primeira vista, o fracasso de Deus. O seu amor, ali, parece revelar-se impotente. Na violência mortal dos acontecimentos parece não haver salvação. A cruz é a negação de uma conceção mágica de Deus.
Cristo morre, vítima da violência organizada, gritando por Deus, sentindo-se abandonado pelo Pai. Grita, do profundo da sua agonia (e aqui é a morte que triunfa sobre a vida), questionando o Pai, mas nele inteiramente confiando: paradoxo da fé: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?». Grito forte, de abandono, de terrível solidão. Grito do profundo da vida que está em perigo de morte. No abismo da sua dor e da sua morte, com o Salmo, Jesus questiona o Pai: «Porquê, meu Deus?». Na ausência de respostas, de justificações racionais, fica a pergunta como grito. No grito de Jesus na cruz estão recolhidos os gritos de todos os homens e mulheres que, na dor e na morte, sentem a ausência e o silêncio de Deus. Nos momentos de desolação, é a memória do amor que nos salva e nos dá esperança e confiança no futuro: «Pertenço-te desde o seio materno; desde o seio de minha mãe, Tu és o meu Deus». O Salmo que Jesus reza na cruz, com traços de acusação a Deus, termina em louvor: «… eu te louvarei no meio da assembleia».
Mateus conclui o evangelho da paixão narrando o insólito: no próprio momento da morte de Jesus, os túmulos abrem-se e os mortos ressuscitam. Atrapalhando os tempos da narrativa, Mateus apresenta já a fecundidade da morte de Jesus. Na violência da morte, em seu aparente triunfo, há uma invisível força que faz viver, que abre as portas da morte. «Abriram-se os túmulos, e muitos dos corpos de santos que tinham morrido ressuscitaram». Aquela vulnerabilidade indefesa do Filho de Deus, que não se salva da cruz, é a vulnerabilidade da força do amor fiel. É a força do amor compassivo e silencioso de Deus que abraça, na paixão do Filho, a paixão de toda a humanidade, a paixão de cada um de nós. Há vida na morte, e essa vida está nos gestos quotidianos de amor e de serviço com que cuidamos uns dos outros.
O oficial militar romano vê nos acontecimentos da paixão de Jesus o sinal da vida que brota, que renasce da morte. Vê o invisível, o que está para além da evidência: «Este era verdadeiramente Filho de Deus».
Esta hora de silêncio, de dor, de luta, de resistência para todos nós, possa ser também a hora da esperança e de uma fé renovada.
Pe. António Martins, Domingo de Ramos